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ISBN 978-85-62480-96-6 versão impressa

Sem. de Saúde do Trabalhador de Franca Set. 2010

 

ACIDENTES, DOENÇAS E ADOECIMENTOS DO TRABALHO CONTEMPORÂNEO

 

A saúde do trabalhador da saúde: impactos da reestruturação produtiva no campo da Atenção Básica

 

 

Maria Cristina Moreno MatiasI; Simone WolffII; Millien Lacerda MalinowskiIII

IProfessora aposentada do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina - UEL. Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas UNICAMP. Contato: e-mail: crismmatias@hotmail.com
IIProfessora do Depto de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina - UEL. Doutora pela Universidade Estadual de Campinas UNICAMP. Contato: e-mail: wolff.simone@gmail.com
IIIGraduada em Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-graduanda em Psicanálise.  Contato: e-mail: millienlm@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

Este texto propõe refletir sobre a organização do trabalho no campo da saúde pública e suas implicações para a saúde mental dos trabalhadores, tendo como foco as transformações dos modos de organização do trabalho que vieram no bojo da reestruturação produtiva ensejada pela implementação das políticas neoliberais no país. Para tanto, delimitou-se o processo de trabalho em Unidades de Saúde (US), por constituírem um espaço privilegiado para o estudo das relações de trabalho no setor da saúde pública. A pesquisa foi embasada em metodologia qualitativa com enfoque etnográfico. As informações foram coletadas por meio de observação-participante e entrevistas semi-estruturadas.

Palavras-chave: Saúde do Trabalhador. Organização do Trabalho. Saúde Pública. Reestruturação Produtiva.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Este estudo tem por objetivo refletir sobre a organização do trabalho no campo da saúde pública desde a recente reestruturação produtiva neoliberal, e suas implicações sobre a saúde mental dos trabalhadores envolvidos neste processo. Para tanto, delimitou-se como campo de pesquisa a área da atenção básica e, dentro desta, as Unidades de Saúde US, por constituírem um espaço privilegiado para o estudo das relações de trabalho no setor da saúde pública. O recorte do objeto foi realizado em cima de duas Unidades de Saúde do município de Londrina. A análise utilizou-se de metodologia de pesquisa qualitativa com enfoque etnográfico. As informações foram coletadas por meio de observação-participante e entrevistas semi-estruturadas com os trabalhadores vinculados às referidas USs.

As USs têm como proposta o desenvolvimento da Estratégia de Saúde da Família ESF, que consiste em uma política pública de saúde prioritária para a reorganização da atenção básica no Brasil. De acordo com os princípios do Sistema Único de Saúde SUS, propõe-se que a ESF seja desenvolvida por meio do exercício de práticas gerenciais e sanitárias democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios delimitados, considerando sua dinamicidade e particularidades. Os princípios gerais da atenção básica em saúde são: universalidade, acessibilidade e coordenação do cuidado, vínculo e continuidade, integralidade, responsabilização, humanização, equidade e participação social (BRASIL, PNAB, 2006a).

Estes princípios trazem novas exigências aos trabalhadores e, ao mesmo tempo, a inviabilidade de atendê-las sob uma conjuntura que deteriora as relações de trabalho ao cortar gastos públicos com funcionalismo. Como consequência, ocorre uma demanda de flexibilização e polivalência aos trabalhadores que leva à intensificação do trabalho na medida em que se traduzem no acúmulo de funções para aqueles que permanecem efetivos em meio à proliferação de contratos de trabalho instáveis por tempo determinado, com carga horária reduzida etc. (que, no caso, dificultam o engajamento dos trabalhadores aos preceitos da ESF). Portanto, os efeitos mais infaustos das políticas neoliberais sobre o mundo do trabalho, a saber, o baixo nível de contratação, sobretudo no setor público, e o excesso de contratos temporários de trabalho (POCHMANN, 2005), refletem-se nos processos produtivos e na organização do trabalho nas USs de maneira tensa e conflituosa, gerando quadros de estresse que afetam, particularmente, a saúde mental dos que estão inseridos neste processo. 

Neste sentido, destaca-se a importância da problematização dos modos cotidianos de produção de saúde e a investigação da saúde dos trabalhadores, uma vez que são estes os sujeitos ativos na construção da ESF. De acordo com Dal Rosso (2008, p. 93):

O estudo de pontos de conflito, acumulação de contradições, enfrentamentos, nós sensíveis e situações que perturbam o funcionamento normal de uma ordem, de um processo ou de uma instituição constitui meio de inestimável valor para a descoberta de aspectos insuspeitos da realidade social e para captar onde se localizam as contradições e se dão os grandes embates, quem são os agentes, suas ideologias, a forma como constroem fatos e verbalizações. (...) Para que possa ser percebido e capturado, requer que seja buscado junto aos trabalhadores que vivem a realidade cotidiana das condições de trabalho.

É assim que os discursos dos trabalhadores, fundamentados em suas vivências e práticas desenvolvidas cotidianamente no campo do trabalho em atenção básica, serão abordados neste estudo, tendo como foco de análise a (re)organização do trabalho neste setor e seus efeitos sobre a saúde do trabalhador.

 

2 METODOLOGIA

Nesta pesquisa, optou-se pela metodologia qualitativa com enfoque etnográfico, que se desloca das macroanálises para focalizar as relações cotidianas que incluem não somente aspectos microssociais, como também a relação com seus determinantes sociais e culturais, utilizando como critério os significados imediatos e locais das ações, que se expressam nas práticas, nos discursos e nas instituições criadas (SATO; SOUZA, 2001).

Com o propósito de obtenção de informações sobre a rotina e os processos de trabalho nas duas Unidades de Saúde pesquisadas, utilizou-se de observações participantes nos espaços de trabalho dos servidores, de entrevistas semi-estruturadas, gravadas e transcritas e também de participação em visitas domiciliares e reuniões de equipe. Posteriormente, foram realizadas leituras específicas para a análise dos relatos dos servidores entrevistados. Foram entrevistados doze trabalhadores nas Unidades de Saúde, entre eles: Agentes Comunitários de Saúde, Auxiliares de Enfermagem, Auxiliares de Serviços Gerais, Médicos, Dentistas e Enfermeiros. Apenas o cargo dos servidores será mencionado após os relatos, a fim de preservar-lhes a identidade. 

 

3 O SETOR DA SAÚDE NO CONTEXTO DA REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

A reestruturação produtiva neoliberal assinala o desmantelamento do modelo social-democrata de regulação da economia, voltado para o mercado nacional e favorecido por políticas estatizantes o qual serviu de paradigma aos países capitalistas desde o pós Segunda Guerra até a década de 1970 , e sua substituição pela liberalização comercial e financeira, de cunho privatizante, com vistas ao mercado internacional.

Para Cattani (2002), a reestruturação produtiva pode ser entendida como um processo que concilia mudanças institucionais e organizacionais nas relações de produção e de trabalho, visando superar os limites sociais e técnicos colocados pelo regime de acumulação fordista a partir do final dos anos 60, de modo a atender a necessidade de manter ou elevar as taxas de lucratividade - as quais foram duramente afetadas por vários fatores ligados à própria lógica do fordismo1.

Para dar conta dessa crise, as organizações têm lançado mão de diversas estratégias. Dentre elas, destaca-se a flexibilização da organização dos processos de produção e trabalho, via de regra subsidiada pela mediação da informatização no interior das relações de trabalho (DAL ROSSO, 2008; SILVER, 2005). A intensa competitividade gerada por este quadro trouxe mudanças, tanto na estrutura produtiva das organizações quanto no universo dos seus ideários e cultura, que resultaram em uma nova configuração do mundo do trabalho (ANTUNES, 2003).

Algumas tendências deste novo cenário são evidenciadas pela crescente substituição do modelo taylorista-fordista de produção, embasado em um tipo de organização extremamente verticalizada e hierarquizada que supõe um quadro de pessoal estável e avolumado, pelas formas produtivas inspiradas no chamado toyotismo, marcado por uma estrutura organizacional enxuta calcada na flexibilização e desregulamentação do mercado de trabalho. Tais tendências desencadearam a precarização das condições de trabalho por meio da desregulamentação da legislação trabalhista (KREIN, 2008).

Antunes (2008) afirma que este processo extrapolou os limites do mundo produtivo industrial, passando também a manifestar-se no chamado setor de serviços, o qual inicialmente apresentou uma forte absorção daqueles que se desempregavam do trabalho fabril. Assim, as referidas mutações organizacionais, tecnológicas e de gestão também afetaram fortemente o setor de serviços, dentre os quais destacamos o ramo da saúde, inclusive pública, que cada vez mais se submete à racionalidade e à lógica mercantil neoliberal (DAL ROSSO, 2008).

Campos (2007) reafirma tais efeitos ao observar que este modelo se estendeu para o SUS, sem considerar as especificidades do campo da saúde. Assim, os gestores inventaram "remendos" (autarquias, agências, fundações de apoio, OSCIPs, entre outras) com a função de facilitar a gestão financeira e de pessoal diante das dificuldades de execução orçamentária, administração de pessoal, interferência político-partidária, burocratização e degradação organizacional engendradas pelas políticas neoliberais.

Segundo a Cartilha do Programa Nacional de Desprecarização do Trabalho no SUS - Desprecariza SUS (BRASIL, 2006b), os municípios tiveram de buscar alternativas na contratação de novos trabalhadores em função da necessidade de expansão face ao constrangimento da Lei de Responsabilidade Fiscal. Explica-se, assim, as parcerias firmadas com Organizações Não-governamentais (ONGs) ou Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs) e contratos com cooperativas, que resultaram na precarização dos vínculos de trabalho em inúmeros locais. Essa multiplicidade de vínculos e contratações diferenciadas de trabalhadores em uma mesma Unidade de Saúde são altamente flexibilizados em questões salariais, de horário, funcionais e/ou organizativa. Isso contribui para a alta rotatividade e insatisfação profissional, gerando danos tanto para os trabalhadores, como para os usuários do sistema. O relato abaixo ilustra o tipo de queixa relacionado a esta precarização.

[...] O ministério estava preocupado com a precarização do vínculo. Então o que eles constataram? Muitas dessas equipes, principalmente de agente comunitário, estavam contratadas com um tipo de contrato que era temporário, não tinha férias, não tinha décimo terceiro [...]  (Médica da ESF).

De acordo com Merhy (2005), esses processos indicam alterações no parcelamento dos processos de trabalho, nas qualificações profissionais, na redefinição do trabalho intelectual e manual, no mercado de trabalho, nos processos burocráticos e hierárquicos no campo da saúde pública. O depoimento de uma das entrevistadas reflete a (des)organização das relações de trabalho que veio na esteira dessas mudanças:

Então, a gente vai ter que trabalhar com as equipes no processo de trabalho. Aí começaram a surgir as encrencas. Porque a gente sentiu que ter esse enrosco de ter equipes que umas vão pra fora e umas ficam na unidade... eu sou da saúde da família, ou não sou. E essa diferença também: ah, eu sou Santa Casa, ah eu sou estatutário. Daí enfermeira que é da Santa Casa, que é minha chefe, nem é estatutária (Médica da ESF).

Nota-se, portanto, que as novas configurações do mundo do trabalho decorrente da debilitação do erário estatal carreada pela conjuntura neoliberal têm se difundido nos processos produtivos da saúde pública que, assim, passam a se pautar cada vez mais sob uma perspectiva privatista de modo a dar conta do baixo orçamento e da insuficiência de concursos públicos. Com base nos dados qualitativos revelados pela pesquisa de campo, serão abordadas, a seguir, as implicações desse processo para a saúde dos trabalhadores inseridos nesse setor, tendo como foco de análise as suas singularidades perante outros ramos estatais, bem como suas distinções relativamente a outros setores da economia privada.

 

4 A SAÚDE DO TRABALHADOR DA SAÚDE

De acordo com Merhy e Franco (2009), o novo ciclo de acumulação do capital e reestruturação produtiva incide primordialmente nos espaços do trabalho vivo, ou seja, no trabalho humano em ato, nas situações de encontro entre usuário e trabalhador da saúde. O setor da saúde, portanto, tem sido cada vez mais capturado pela centralidade do capital financeiro que caracteriza a atual fase do capitalismo. Neste sentido, o campo da saúde vem igualmente passando por um processo de "financeirização", que incide na disputa de múltiplos interesses: a saúde como patrimônio social e bem público, de um ponto de vista anti-hegemônico; e a saúde como bem de mercado regido pela lógica da acumulação do capital.

Entre os principais lugares em que essa disputa se instala dentro do campo de produção de saúde, Merhy e Franco (2009) destacam os processos de trabalho e os perfis tecnológicos e assistenciais. Assim sendo, o trabalhador da saúde representa um dos principais alvos da disputa, a partir da sua micropolítica no processo produtivo. Desse modo, os vários grupos interessados nesta produção sempre apontam para caminhos simbólicos e materiais diferenciados para o que deve ser o cuidado em saúde, isto é, para como deve se estabelecer a organização do trabalho neste setor.

As pesquisas e experiências metodológicas desenvolvidas por Dejours e Abdoucheli (1994) apontam que o fator potencialmente desestabilizador da saúde mental dos trabalhadores consiste nas pressões decorrentes da organização do trabalho, seja qual for o contexto. Neste sentido, o sofrimento no trabalho será concebido como a vivência subjetiva que implica, sobretudo, em um estado de luta do sujeito contra as forças ligadas à organização do trabalho (DEJOURS; ABDOUCHELI, 1994). O relato a seguir aponta para alguns entraves originados pela organização do trabalho e o estresse que disso decorre.

A ouvidoria não quer saber do funcionário, o que está acontecendo. Então a gente vê isso como um descaso, porque na realidade eles não estão ouvindo o nosso lado. [...] A gente se estressa muito com a demanda grande, a falta de funcionário, não é falta de companheirismo dos colegas, a gente um apóia o outro, né. Mas é realmente a hierarquia. [...] Do local de trabalho aqui a gente procura estar acatando [as propostas] pra melhoria, aí sim! Mas se vem lá de cima, daí a gente não confia mais porque não tem um feedback, sabe (Auxiliar de Enfermagem da US).

Além disso, podem-se observar também os vários entraves com os quais os trabalhadores se deparam para cumprir com o trabalho na sua dimensão prescrita e para obter o mínimo de controle sobre a organização e o planejamento das atividades. Estas dificuldades também causam insatisfação e sofrimento ao trabalhador, assim como inúmeros prejuízos às ações de atenção básica. Isso pode ser exemplificado no seguinte relato:

Quando [a ESF] começou eu falei: puxa que coisa legal! Você atende família por família, casa por casa, saber das pessoas, da idade, das doenças, da possibilidade de ficar doente. Nossa, com todas essas informações, você pode fazer um planejamento fantástico! Agora, se não tem informação não tem como planejar, aí você fica aqui, esperando o paciente chegar. O paciente chega e você não está tratando de organizar a demanda, você está aqui simplesmente atendendo o paciente, aí volta ao que era antes (Dentista da ESF).

No que tange às dificuldades de planejamento e previsibilidade do trabalho, cabe destacar também as considerações de Dejours (2004), que afirma que os trabalhadores precisam constantemente lidar com os imprevistos que inevitavelmente surgem e atrapalham o funcionamento da produção, perturbando o que foi prescrito. Sendo assim, os trabalhadores jamais respeitam as prescrições em sua totalidade, não apenas pelo prazer de transgredir ou desobedecer, mas pela necessidade de lidar com o real do trabalho e fazer o melhor possível, no tempo mais curto possível.

Às vezes o médico encaminha lá pra ortopedia do hospital e não coloca urgência. Então se eu vejo que é uma coisa que a pessoa está precisando, que tá ruim, eu ligo lá e falo: oh, a pessoa está ruim. Às vezes o médico nem colocou urgência, e eu falo que colocou (Auxiliar de Enfermagem - US).

O enfrentamento e a superação do real poderiam ser facilitados se houvesse uma maior possibilidade de organização dos próprios trabalhadores em relação aos processos de trabalho. No relato abaixo, nota-se que o encontro com o real do trabalho e com a demanda que não pode ser suprida parece gerar fortes implicações subjetivas para a trabalhadora. Além disso, estas condições acarretam a intensificação e a precarização do trabalho, cujo sofrimento pode vir a ser um subproduto.

Eu já percebi que aquela fila lá fora faz mal para a gente. [...]  A gente não consegue pensar: Ah, que se danem eles, eu vou fazer passo a passo, do jeito que é. Interfere né, no comportamento da gente com o paciente. [...] Você acaba correndo, mesmo que você não queira, e às vezes ficam algumas coisas a desejar não é? Como por exemplo, inclusive não enxergar algumas coisas (Auxiliar de enfermagem da ESF).

De acordo com Lacaz (2003), a participação dos trabalhadores na organização do trabalho deveria ser o elemento norteador do processo de trabalho, o que seria favorecido pela democratização das relações entre os trabalhadores. No entanto, vemos que o acesso ao planejamento é restrito a poucos trabalhadores deste setor geralmente o profissional médico e aqueles que exercem cargos de coordenação. 

Também são concernentes a esta questão as considerações de Freyssenet (1989) sobre as contradições do processo de desqualificação e superqualificação. Para o autor, há um movimento de desqualificação do trabalho de alguns pela superqualificação do trabalho de outros. Este processo provoca a incorporação de uma parte da "inteligência" da produção por poucos sujeitos, ligados à gerência, sendo a outra parte distribuída entre um grande número de trabalhadores. Os primeiros seriam os "encarregados da tarefa (impossível) de pensar previamente a totalidade do processo de trabalho, descobrindo e possuindo o domínio do conjunto dos parâmetros", enquanto aos segundos cabe a mera execução destas atividades (FREYSSENET, 1989, p. 2). No depoimento da Agente Comunitária de Saúde, se percebe que esta condição de divisão do trabalho desautoriza-a da possibilidade de interferir sobre o seu processo de trabalho e sobre as situações em que ela sente a necessidade de mudança. 

A gente sente essa necessidade de fazer mais, sabe. [...] Quantas vezes eu cheguei da rua com um problemão, querendo passar para alguém, querendo solucionar, aí chega alguém que joga um balde de água fria. [...] Na verdade o ACS, em si, é uma fonte de informações que ficam pra gente. Então você tem que ter essas informações, pra se um dia, se precisar, você saber. [...] Porque se você não tiver a resposta, considera-se que você não sabe trabalhar direito (Agente Comunitária de Saúde - ESF).

Entre as defesas contra o sofrimento padecido no trabalho, Dejours (2005, p. 20) dá destaque àquelas que se dão pela clivagem entre sofrimento e injustiça, "que atribui o infortúnio à causalidade do destino, não vendo responsabilidade nem injustiça na origem desse infortúnio". Entre os entrevistados, pôde-se observar que é recorrente a explicação das dificuldades presentes na organização do trabalho pela via da responsabilização do "sistema", percebendo-as como infortúnios originados de "uma coisa geral, maior, mais profunda", causando uma abstração de um problema que é, na realidade, concernente às questões da organização do trabalho:

Na verdade é um sistema, não é culpa de um, não é culpa de outro, é um sistema que funciona dessa maneira, a gente tem que se adequar ao que a gente tem. E esse sistema não é culpa do funcionário, é um sistema que é implantado pelo governo. O governo não quer que seja assim? Que o médico atenda cinco dias na semana e tenha uma tarde, meio período, pro Saúde da Família? O médico tem que acatar o que o sistema pede... Como que vai ser diferente? [...]  Tudo depende do sistema (Agente comunitária de saúde - ESF).

Este processo torna-se cada vez mais visível na sociedade atual, sobretudo pelo constante assujeitamento e adaptação dos trabalhadores aos ditames de cunho sistêmico dos novos paradigmas gerenciais, que vieram no bojo do padrão de competitividade gerado pelas políticas neoliberais (WOLFF, 2005). Desta forma, as pessoas se percebem com um raio de ação reduzido e as resistências tornam-se cada vez mais individuais.

Porque eles [servidores] são muito resistentes, quando vem alguém aqui da Vila da Saúde falar alguma coisa eles já começam a reclamar, reclamar, reclamar. Não discute a questão em si, o que seria bom pra gente... se fecha em si mesmo (Trabalhador da ESF).

Alguns destes aspectos são intrínsecos ao próprio processo de reestruturação produtiva e à influência que estes novos modelos de produção exerceram sobre a capacidade organizativa dos trabalhadores, gerando resultados devastadores neste campo. Lacaz (2003) discorre sobre o processo de assujeitamento dos trabalhadores e de sofisticação da disciplina fabril, que se constituíram nas bases da organização e gestão do trabalho sobre os modelos do taylorismo, e avançam no fordismo e no toyotismo em nome de uma "colaboração" entre gerência e trabalhador carro-chefe das atuais políticas de gestão de pessoas quase sempre forçada. Sob a atual precarização das condições de trabalho, o discurso da "colaboração" promove rupturas com coletivos e sociabilidades mais amplas, difundindo uma individualização que leva a comportamentos cada vez mais competitivos e agressivos (BRAGA; SANTANA, 2009; WOLFF, 2005). Espera-se que esta colaboração seja individualizada, ou seja, fraciona-se o coletivo, impondo-lhe a cooperação de todos os seus membros com a organização, ao mesmo tempo em que os emula entre si.

Este quadro é agravado pela já mencionada diversidade de contratos de trabalho precários, ensejada pela adoção do paradigma da reestruturação neoliberal no interior das organizações prestadoras de serviços públicos. Depreendem-se, assim, alguns conflitos nas relações de trabalho oriundos da diferença de vínculos trabalhistas presentes em uma das USs pesquisadas. Na seguinte fala, podem ser observadas as contendas enredadas entre um servidor que ocupa um cargo de coordenação exercido com vínculo terceirizado e um servidor com contrato efetivo, mas subordinado àquele:

Essa pessoa colocou que o PSF é supérfluo. Aí ela perguntou: "Por que supérfluo?" E aí começou a conversa fiada. Mas eu deixei. Aí chegou uma altura ele saiu, foi lá pro fundo. Ele e mais três, tinha mais três funcionários lá no fundo, eu fui lá pedir: "Que falta de consideração, vamos lá retornar?". Aí nesse meio tempo ele disse: "Essa coitada aí fica em cima do muro, porque ela não pode agir porque ela não é uma servidora. Eu sou um servidor. Se ela for fazer alguma coisa, uma punição, eu vou responder um processo administrativo, e ela? Vai ganhar um pé na bunda! Porque ela não tem respaldo nenhum!" (Coordenadora da US).

Em vista de todas as questões aqui levantadas, é importante destacar as considerações de Merhy e Franco (2009) sobre as propostas da ESF e sua real efetivação. Apesar de todo esforço pela alteração dos processos de trabalho neste setor, não se observam mudanças consistentes na produção do cuidado. Sendo assim, o cuidado em saúde acaba permanecendo sem a alteração de sua lógica produtiva alteração que encontra grande parte de seus empecilhos na própria organização do trabalho no setor.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscamos, através deste texto, apresentar brevemente as atuais questões do mundo do trabalho e do campo da saúde pública, cuja relação é atravessada por determinantes sociais, econômicos, políticos, culturais e subjetivos. Visto que as diretrizes da Estratégia de Saúde da Família prezam por um cuidado que atenda as reais necessidades - individuais e coletivas - dos usuários, dever-se-ia priorizar uma organização do trabalho igualmente comprometida com as necessidades dos trabalhadores, e não simplesmente com as necessidades políticas ou as contingências econômicas, visando a garantia da saúde do trabalhador da saúde. Haja vista a organização que se tem hoje, que provoca a precarização das condições de trabalho e a expropriação da relativa autonomia do trabalhador nos seus processos de trabalho com vistas a promover uma intensificação do trabalho que dê conta de burlar as dificuldades trazidas pelo atual modelo econômico. Condições que vêm gerando insatisfação e sofrimento.

Neste sentido, os processos de subjetivação dos trabalhadores, que, segundo as finalidades da ESF, deveriam ser enformados pela centralidade do ato de cuidar do outro de maneira holística, continuada e preventiva, acabam sendo cooptados pela lógica neoliberal com vistas à intensificação do seu trabalho e ao drible dos outros entraves aqui arrolados, face ao baixo número de contratação de efetivos e da reduzida capacidade de investimento do Estado, que vêm no rastro desta política-econômica. Diante disso, é importante questionar as novas formas de organização do trabalho que vêm sendo implantadas neste setor e elaborar novas investigações nesta direção, em virtude da multiplicidade de fatores que atravessam este campo e que interferem no cotidiano das equipes de atenção básica em saúde.

REFERÊNCIAS

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1 A respeito do fordismo e sua crise, ver também Harvey 1992 e Bihr, 1998.