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ISBN 978-85-62480-96-6 versión impresa

Sem. de Saúde do Trabalhador de Franca Sep. 2010

 

ACIDENTES, DOENÇAS E ADOECIMENTOS DO TRABALHO CONTEMPORÂNEO

 

Saúde e segurança no trabalho em uma associação de reciclagem de Jaboticabal-SP

 

 

Ana Paula Leivar BrancaleoniI; Ana Claudia Giannini BorgesII

IProfessora Doutora do Departamento de Economia Rural da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias de Jaboticabal/UNESP. Contato: e-mail anapaula1977@hotmail.com
IIProfessora Doutora do Departamento de Economia Rural da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias de Jaboticabal/UNESP. Contato: e-mail agiannini@fcav.unesp.br

 

 


RESUMO

Este artigo discute a questão da saúde e segurança no trabalho em uma associação de reciclagem e comercialização de resíduos. Trata-se de um empreendimento dentro dos princípios da Economia Solidária que visa, portanto, a garantia de processos autogestionário, tendo como foco o ser humano e não o capital. Os trabalhos com o grupo, foram desenvolvidos ao longo de um ano. Para a coleta de dados e informações utilizou-se a metodologia qualitativa, dentro dos pressupostos da pesquisa-ação, além da realização de entrevistas semi-estruturadas com dez associados. Os dados foram analisados pelo método de análise de conteúdos.

Palavras-chave: Saúde do Trabalhador. Economia Solidária. Associação de Reciclagem.


 

 

1 INTRODUÇÃO

1.1  Transformações no processo de trabalho e economia solidária

As transformações sócio-econômicas, que se intensificaram no Brasil, principalmente a partir da década de 90, com a ascensão das políticas neoliberais, resultam em um panorama cada vez mais inquietante, tendo-se por pressuposto a garantia da dignidade humana como aspecto fundamental a ser perseguido. Isto porque, ainda que, o Estado, no Brasil, nunca tenha se configurado dentro de um modelo de bem estar social, teve sua atuação cada vez mais diminuída na regulação da relação capital-trabalho e no atendimento das demandas sociais. No caso desta última, foi atribuída como responsabilidade da sociedade civil, através de organizações ou grupos. Questiona-se, dessa forma, até que ponto o crescimento do Terceiro Setor a partir deste período apresenta um caráter emancipador (MONTAÑO, 2002).

As mudanças na organização da produção, com a crescente automação e utilização das tecnologias de informação no mundo do trabalho e a adoção de outros modelos de gestão, que não só "taylorista-fordista", trazem novas nuances para a organização dos trabalhadores. Assiste-se a um aumento do desemprego estrutural e a perda do poder de barganha por parte dos sindicatos, que assumem um caráter cada vez maior de negociação e busca pela manutenção dos empregos. Com a diminuição e precarização dos empregos formais, tem-se um aumento significativo da informalidade e da terceirização de serviços, através de falsas cooperativas que, na verdade, apenas viabilizam a redução dos encargos trabalhistas para as empresas que as contratam. Assim, observa-se um número cada vez menor de trabalhadores que possuem empregos. Todavia, constata-se um crescimento do que Antunes (1997) denomina de "classe-que-vive-do-trabalho". Para o autor, a diminuição estrutural do emprego, não elimina a centralidade da categoria trabalho na sociedade atual.

Frente a este quadro, nota-se um acirramento da desigualdade social e da busca por alternativas de geração de trabalho e renda, para um número de desempregados cada vez maior.

Estas mudanças no modo de produzir afetam não só o trabalhador como também o consumidor. Para atender um mercado cada vez mais competitivo e inconstante em seus padrões, são desenvolvidas estratégias de diferenciação de produtos (como embalagens, por exemplo), relacionadas ao gosto do consumidor e não a novos atributos, além da ampliação da obsolescência dos mesmos. Em conjunto, verificam-se estratégias de propaganda que ampliam o comportamento individualista, maximizador e aquisitivo dos indivíduos. Assim, potencializa-se também a produção de resíduos e a sua destinação passa a representar um problema significativo.

Frente a este quadro, a economia solidária tem se disseminado como uma possibilidade de sobrevivência das camadas da população excluídas do mercado formal de trabalho. Manifesta-se sob diferentes formas organizativas que estão construídas sobre princípios gerais da prática da autogestão, caracterizada por tomadas de decisão mais democráticas, relações sociais de cooperação entre pessoas e grupos e pela horizontalidade nas relações sociais em geral (COUTINHO; BEIRAS; PICININ; LUCKMANN, 2005). Assim, essa possibilidade estabelece uma "nova" forma de produção, consumo e distribuição de riqueza centrada na valorização do ser humano, construindo uma alternativa à dimensão alienante do trabalho desumanizado.  Compreende, ainda, um caráter multidimensional, envolvendo as dimensões: social,  econômica,  política, ecológica e cultural, tendo com perspectiva maior a construção de um ambiente socialmente justo e sustentável.

A ANTEAG - Associação Nacional dos Trabalhadores e Empresas de Autogestão e Participação Acionária (2005) delineia princípios e conceitos fundamentais em que uma formação em Economia Solidária deve-se basear, indicando, inclusive, estratégias de formação e recursos metodológicos. O primeiro deles é o princípio de que o central na organização da sociedade é o ser humano, sendo esta concepção norteadora para redefinir relações sociais, econômicas, produtivas e afetivas. Assim, "a formação em Economia Solidária precisa dialogar com o trabalhador, trazendo para o processo formativo o sentido que é dado pelas vivências e anseios do trabalhador"  (ANTEAG, 2005, p. 21).

Diante desse quadro, constituiu-se um projeto de Extensão Universitária, composto por 22 alunos do Curso de Administração e coordenado por duas docentes. Existe desde 2003 e passou por várias configurações.  Este tem por objetivo apoiar grupos sociais organizados, para geração de trabalho e renda, visando o desenvolvimento da autogestão e auto-suficiência por parte dos mesmos.

Através da iniciativa de um aluno, houve a aproximação com uma associação de reciclagem de resíduos do município, que apresentava como objetivo a geração de trabalho e renda, através da separação e comercialização do lixo produzido na cidade. Foi a partir deste momento que o Projeto de Extensão firmou-se na perspectiva da Economia Solidária. Este direcionamento nos indicou também a necessidade de consolidação de outros referenciais, tanto para nossa atuação junto aos grupos, quanto para a formação dos alunos que compunham o Projeto. É importante ressaltar que esse processo de construção de referências para o trabalho é permanente e que, ao longo do mesmo, em muitos momentos reproduzimos a estrutura tradicional de decisões, seja nos grupos apoiados, seja junto aos alunos, ainda que se busque sua superação através da construção de espaços de participação coletiva.

O trabalho junto a esta associação de reciclagem trouxe, com grande relevância, a necessidade de reflexão acerca da questão da saúde e segurança no trabalho desenvolvido por esses associados. Isto porque, a construção de relações autogestionárias, não garantia, em si, condições de trabalho mais seguras, mesmo porque a urgência cotidiana era a garantia de uma renda mínima para a subsistência dos mesmos. Assim, as condições estruturais precárias e os riscos enfrentados no dia-a-dia do trabalho, desenvolvido naquela associação, apontava como sendo um ponto nevralgico, também nos Empreendimentos de Economia Solidária, a questão de saúde e segurança dos trabalhadores. Mas, para tanto, inicialmente, faz-se relevante apresentar a concepção de saúde que balizará nossa análise.

1.2  A questão da saúde e segurança no processo de trabalho

De acordo com a VIII Conferencia Nacional de Saúde, realizada em 1986, saúde foi idealizada como sendo a satisfação das necessidades básicas: alimentação, moradia, transporte, serviços de saúde e educação (GOMEZ; LACAZ, 2005). Neste trabalho, incluímos ainda na compreensão de saúde/doença, enquanto um processo, que se articula através da qualidade das relações estabelecidas. Para analisar a saúde do trabalhador, frente a esta concepção, é importante entendê-la no decorrer das relações sociais e suas divisões, e como estas se dão no processo de trabalho.

De acordo com Abramides e Cabral (2003), saúde e capacidade técnica são inseparáveis da capacidade de trabalho. Logo, cada sistema de produção dita uma organização do trabalho que afeta de diversas maneiras o trabalhador. Deste modo, "o objeto da saúde do trabalhador pode ser definido como o processo de saúde e doenças dos homens em sua relação com o trabalho" (ABRAMIDES; CABRAL, 2003, p. 75).

Assim, ao se falar em saúde dos trabalhadores, reporta-se, necessariamente, ao sistema sócio-econômico em que estamos inseridos e a decorrente forma de organização do processo de trabalho. Constata-se, ao longo do desenvolvimento do Capitalismo, a priorização da acumulação de capital, em detrimento da qualidade de vida no trabalho e da saúde dos trabalhadores. Fato que se dá tanto no Fordismo/Taylorismo quanto, de forma ainda mais acentuada, no modelo de acumulação flexível. Este último se constitui em uma resposta à crise do sistema capitalista e ganha destaque, no Brasil, especialmente a partir da década de 90, articulado ao ideário neoliberal.

A retração do Estado do atendimento das demandas sociais e da regulação da relação capital/trabalho, o enfraquecimento dos sindicatos e das demais representações dos trabalhadores e a consequente acentuação da deterioração das relações trabalhistas e precarização das condições de trabalho, somadas à ameaça constante do desemprego, participam do desencadeamento de vários processos de adoecimento dos trabalhadores.

No Brasil, a saúde do trabalho vem sendo institucionalizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Porém, este se encontra cada vez mais sobrecarregado pela falta de estrutura adequada para atender à demanda cada vez maior por atendimento de saúde adequado, principalmente após a adoção do ideário neoliberal. Compromete-se, dessa forma, a possibilidade de consolidação de uma proposta de saúde de caráter integral, que articule os aspectos físicos, psíquicos e sociais.

Pensando a questão da saúde dos trabalhadores, a partir das configurações do trabalho no sistema capitalista, Dejours (2002, p. 63) afirma que "a erosão da vida mental individual dos trabalhadores é útil para a implantação de um comportamento condicionado favorável à produção. O sofrimento mental aparece como intermediário necessário à submissão do corpo." Desta forma, os processos de adoecimento não seriam algo contrários à manutenção do sistema, mas, ao contrário, participam de sua sustentação.

Ainda que o autor se refira a processos produtivos, nos quais, a condição do trabalhador é de subordinação, a ruptura com a condição de sofrimento mental, à qual os trabalhadores já foram condicionados por suas experiências anteriores de trabalho desumanizado, constitui-se em um dos grandes desafios dos Empreendimentos de Economia Solidária (EES). Contudo, ainda que o desafio seja grande, não há como se isentar desta reflexão, frente ao risco de reproduzir no cotidiano das EES, condições precarizadas e de risco à saúde de seus trabalhadores, assim como aquelas encontradas, tantas vezes, em organizações em que o único foco é a produção.

Assim, faz-se relevante adentrar no cotidiano desses sujeitos, compreender os sentidos que atribuem ao seu próprio trabalho, bem como à questão da saúde e segurança no trabalho.

 

2 OBJETIVOS

Nesta pesquisa, tem-se por objetivo analisar a saúde e segurança dos trabalhadores de uma Associação de Reciclagem de um município do interior de São Paulo, considerando-se como fatores ligados ao processo saúde/doença, não somente o ambiente do trabalho, dentro da organização, como também o contexto social em que eles estão inseridos.

Visou-se observar, também:

 

3 TRAJETÓRIA METODOLÓGICA

Utilizou-se como método a pesquisa-ação. Foram encontros semanais com o grupo ao longo de um ano; além disso, também foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os associados. As entrevistas foram gravadas e integralmente transcritas.

Escolheu-se a entrevista, como instrumento complementar de coleta, pois esta possibilita a obtenção de dados tanto de caráter objetivo, quanto subjetivo (MINAYO, 1996). Assim, a entrevista é um instrumento privilegiado de coleta de informações, pois permite, através da fala, revelar condições estruturais, sistemas de valores, normas e símbolos (sendo ela mesma um deles) e ao mesmo tempo ter a condição de transmitir, através de um porta-voz, as representações de grupos determinados, em condições históricas, sócio-econômicas e culturais específicas.

Segundo Triviños (1987), a entrevista semi-estrurada parte de certos questionamentos básicos, apoiando questões, que interessam à pesquisa e, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, junto de hipóteses que surgem à medida que recebem as respostas do informante. Desta maneira, seguindo espontaneamente a linha de pensamento e das experiências do informante, dentro do foco principal colocado pelo investigador, iniciam-se a elaboração do conteúdo da pesquisa.

No que se refere ao processo de coleta de dados nos trabalhos em grupo, teve-se como pressuposto o fato do conhecimento ser produto da vivência social, sendo resultante do diálogo entre os diferentes sujeitos de experiências, saberes e direitos.

Assim, os encontros semanais foram balizados pelo desafio de um trabalho que visa articular e integrar o saber-fazer do público ao qual se destina (no caso os associados), pretendendo garantir seu efetivo envolvimento e mobilização (VERÁS, 2000).

Conforme aponta Campos (2001), outra potencialidade, dos trabalhos realizados dentro desta orientação é o conhecimento da cultura local e a contribuição para a construção de novos significados através da interação, bem como o estabelecimento de redes de experiências.

Quanto à análise de dados, esta se deu através do método de análise de conteúdos. Segundo Bardin (1979), ela se dá pela compreensão de sentido na comunicação, levando em consideração o contexto histórico-social no qual o indivíduo e os fenômenos estudados se inserem, buscando um entendimento das forças que movem o homem em suas relações sociais.

 

4 A ASSOCIAÇÃO ANALISADA E SEU DESENVOLVIMENTO

A Associação é caracterizada como um EES, pois está sustentada na autogestão e no desenvolvimento humano. Apresenta, em seu Estatuto Social, o objetivo de destinação do material reciclável, proveniente do lixo do município, promovendo a inclusão social.

O histórico da associação apresenta uma imbricada e contraditória relação com o Poder Público Municipal. Em 2001, foi criada a cooperativa de triagem de lixo do município, sendo esta incluída na proposta de Política Pública Municipal em Economia Solidária, da gestão da época. O objetivo desta cooperativa, segundo documentos oficiais da prefeitura, era oferecer trabalho para catadores e separadores de lixo desse município. Inicialmente, a Prefeitura reuniu essas pessoas e as organizou em um grupo que, posteriormente, por iniciativa do próprio Poder Público, veio a se constituir enquanto cooperativa. Após esse processo, foi firmado um convênio entre Prefeitura e Cooperativa, contudo os termos de compromisso foram elaborados exclusivamente por técnicos municipais.

Esse convênio propunha a concessão de suporte material, técnico e financeiro aos cooperados, em contrapartida a Prefeitura se beneficiaria com a separação do lixo orgânico do reciclável, aumentando a vida útil das células do aterro sanitário. Contudo, muito pouco dos aspectos financeiros e técnicos previstos pela parceria foram cumpridos.

Constatou-se que, por sua implementação não ser decorrência da iniciativa e participação dos cooperados, e sim do Poder Público, não houve a apropriação do sentido cooperativista. Foi reproduzida, inicialmente, no cotidiano, a vivência de um trabalho alienado do ambiente de fábricas, bem como, de relações autoritárias. Essa ocorrência não se deu somente pela maneira imperativa como foi criada, mas também pela história de cada um de seus membros, no que se refere às suas vivências em processos de trabalho anteriores e pela dinâmica do capitalismo vigente. Desse modo, tendiam a repetir o conhecido. Também se constatou essa repetição nas regras estabelecidas, pelo grupo, para o seu regimento interno, entre elas: advertências e suspensões para os comportamentos tidos como inadequados, como as conversas paralelas durante o trabalho na esteira.

Identifica-se que, neste primeiro momento, a cooperativa funcionou enquanto um mecanismo de precarização das relações trabalhistas, bem como da permanência de uma política assistencialista, refletida na falta de estímulo à autogestão. Estas ausências não permitiram que novas perspectivas fossem construídas, mantendo o "sonho" do trabalho com registro em carteira. Nota-se, ainda, o descompromisso do Poder Público com a questão do lixo, ao repassar aos cooperados essa responsabilidade. Esse descaso também pode ser verificado com o não cumprimento, pela Prefeitura, de seus deveres (econômicos, técnicos), o que culminou na ilegalidade da cooperativa pelo não cumprimento das responsabilidades tributarias, bem como da manutenção de registros necessários.

O projeto de Extensão iniciou as reuniões com o grupo, com frequência semanal, a partir de 2005, quando a cooperativa já se encontrava em situação de ilegalidade. Nestes encontros, buscou-se refletir acerca de sua condição, os principais problemas enfrentados, visando construir, em conjunto, formas de superação. Em um momento posterior, discutiu-se a melhor alternativa para a formalização e legalização do grupo. As discussões propostas que envolviam a possibilidade de ações mais cooperativas, dentro de uma perspectiva autogestionária, eram recebidas com bastante resistência, tendo esta se mostrado um dos principais focos a serem trabalhados.

Ao longo dos encontros, constatou-se que nos processos de tomada de decisão, havia disputa pelo poder por determinados "cargos", pois eram entendidos não enquanto representação do interesse coletivo, mas sim de mando e determinação. Ao longo das reuniões, notou-se um movimento de auto-reflexão acerca do funcionamento do grupo, surgindo questionamentos sobre os processos de tomada de decisão e as relações estabelecidas entre eles.

Todavia, outros elementos eram permanentemente reforçados, pelo próprio grupo, como sendo necessários para sua organização e bom funcionamento, especialmente o relógio de ponto e a sirene, diante da dificuldade de se confiar em todos os seus membros.

Na medida em que o grupo foi se apropriado do processo, outras necessidades foram elencadas, como assessoria no controle financeiro, na organização do processo de trabalho e no secretariado.

Observou-se, com isso, uma maior consciência do grupo acerca do trabalho desenvolvido. Esse processo vem contribuindo para a inclusão de um número maior de pessoas, na re-organização do grupo como Associação e, portanto, na geração de maior renda para cada membro. Assim, a organização passa a ser gradualmente de forma autogestionária e cooperativa.

 

5 A SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO DOS ASSOCIADOS

Esses ganhos e melhorias identificadas na organização do grupo não são verificados, na mesma intensidade, nos cuidados tomados durante as atividades produtivas, no que se refere à promoção da saúde e segurança dos trabalhadores. Constatou-se, através das entrevistas e observações, a ocorrência de vários e constantes pequenos acidentes, entre eles: cortes, ferimentos leves, contusões e dores por conta de postura e forma de execução das atividades. Contudo, mais esporadicamente, ocorreram ferimentos de maior gravidade como, por exemplo, ferimento com uma seringa no processo de triagem do lixo que acabou evoluindo para uma séria infecção no local atingido, cortes de maior seriedade e fraturas.

No que se refere aos acidentes julgados como mais graves, ao longo do ano, foi possível observar ocorrências que poderiam ser evitadas com o uso adequado de equipamentos de proteção individuais (EPI's) e o correto manuseio de máquinas e ferramentas. Pode-se citar, como exemplos: corte no pé de um associado, pelo uso da motosserra sem os EPI`s adequados, ao desempenhar atividade com os resíduos das podas de árvores da cidade; ferimentos na mão, presa na esteira; queda do caminhão, entre outros. Contudo, tais ferimentos foram atribuídos, pelos associados, ao acaso.  Assim, não identificam condutas pessoais que possam ter favorecido a ocorrência de tais acidentes, ou que poderiam colaborar para evitá-los. Mas, ao invés disso, justificam: "aconteceu porque tinha que acontecer".

Ao perguntar sobre os riscos que eles estariam expostos, em suas respostas, não houve a associação ao tipo de trabalho que desenvolviam. Além disso, não identificavam como relevante determinados perigos da atividade, tais como: inalação de agentes químicos, mordidas de animais, cortes profundos entre outros, presentes em seu cotidiano de trabalho.

Constatou-se, desta forma, que os associados não identificavam a sua atividade produtiva como sendo perigosa, ou que apresentasse riscos à saúde. Assim, afirmavam não ter qualquer temor em sua realização e, portanto, não adotavam os equipamentos individuais de proteção. A função e o uso destes se reduziam a momentos em que eram visitados por órgão de fiscalização e serviam, desta forma, para "evitar multas", pois continuamente reafirmavam que se sentiam seguros em realizar todas as suas funções.

Constata-se, portanto, uma resistência muito grande ao uso dos EPI's. Os associados afirmam que o uso é incômodo e dificulta o processo de trabalho. A fala de uma associada ressalta essa resistência: "Deus que me livre ficar com esse negócio na cara o dia inteiro [refere-se à máscara], quando a gente sabe que vem alguém deixa na cabeça e quando a pessoa chega a gente coloca rapidinho".

Observa-se que o uso do equipamento não é associado ao auto-cuidado, mas sim a uma exigência externa e que a descoberta desse descumprimento, por uma autoridade competente, resulta em punição. Desta forma, usa-se, em raros momentos, para evitar a punição externa e não por uma apropriação de sua necessidade para a preservação da própria saúde. Esse comportamento do grupo pode ser exemplificado pelo comentário de um associado: "Dia que tem gente aqui, todo mundo de máscara. Mas, se reparar elas estão novinhas, branquinhas. É até engraçado".

Aventa-se que, na associação, um dos motivos à resistência ao uso dos EPI's é o desconhecimento pela maioria da função indispensável desses equipamentos.

É importante ressaltar, também, a escassez de equipamentos realmente adequados à atividade na Associação, que deveriam ser oferecidos pelo Poder Público Municipal (de acordo com convênio estabelecido), como calçados em quantidade e na numeração correta para cada associado, bem como óculos de proteção para o corte da lenha. Quando os equipamentos são oferecidos em quantidade, não são adequados a todos os associados, ou para determinada atividade. Um exemplo é a disponibilização de apenas dois tamanhos de luvas, o que dificulta, em muito o uso por parte de alguns associados. Contudo, não se constata mobilização dos mesmos para que esta responsabilidade seja adequadamente atendida pelo Poder Público, na medida em que não reconhecem a importância de tais equipamentos.

Outro fato que merece destaque é o processo de entrada de um novo associado no grupo. Este é submetido a um verdadeiro "teste de aceitação", devendo incorporar todos os hábitos considerados certos naquela cultura grupal, como o não uso de equipamentos de segurança, por exemplo. O uso dos EPI's acaba sendo associado a posturas de fraqueza e depreciação do trabalho que realizam. Quando questionada em relação ao uso de EPI's, uma associada respondeu: "Acham que o nosso trabalho é ruim. Trabalhar com o lixo não é ruim, tem trabalho muito pior".

Assim, constata-se que é a própria imagem enquanto trabalhador de um processo digno que está em jogo. Visão pactuada pelo grupo e concretizada pelo não uso dos equipamentos, não reconhecendo a precariedade do trabalho e os riscos envolvidos no processo.

Dejours (2002) ainda discorre, em suas pesquisas, que a abdicação ao uso da proteção não se resume apenas àquilo que o grupo acha certo ou errado, pois o medo vive constantemente com o trabalhador, mas só raramente aparece à superfície por encontrar-se contido pelos mecanismos de defesa. Segundo o autor, "as atitudes de negação e de desprezo pelo perigo são uma simples inversão da afirmação relativa ao risco" (DEJOURS, 2002, p. 70).

Observou-se ainda, em alguns momentos, a culpabilização exclusivamente do próprio acidentado pelos males sofridos, visto que a ocorrência teria se dado porque "a pessoa bobeou". Constata-se, então, que há a "culpabilização" (VELLOSO; VALADARES; SANTOS, 1998) do próprio sujeito, não levando em conta o processo de trabalho em que está inserido, como é evidenciado também no depoimento de um dos associados:  "Não tenho medo, basta se cuidar".

Pode-se também referir, acerca da fala acima, uma "ilusão mágica" de que todo o controle está em suas mãos. Desta forma, há uma defesa onipotente de que são capazes de se proteger de qualquer risco. Essa "ilusão" vai ao encontro das discussões de Dejours (2002) acerca das estratégias coletivas de defesa, enquanto mecanismos inconscientes e coletivos de que o grupo lança mão para se proteger da angústia do adoecimento e da morte, bem como para a sua manutenção no processo de trabalho. Desta forma, esta aparente displicência com a saúde física, indica-nos a vivência de um sofrimento psíquico no desenvolvimento do trabalho que não é reconhecido ou comparece de forma explícita.

Outro elemento que aparece com importância nos discursos é a ausência de registro em carteira. Segundo eles, este é um requisito que sentem falta, por causa dos direitos que este reserva, como: previdência, FGTS, entre outros. Além disso, gostariam de obter as "facilidades" que a empresa também pode oferecer, como vale refeição, transporte e convênios médicos. Mas, principalmente, destacam a vantagem da certeza de um salário fixo ao final do mês ao ser contratado "pela carteira de trabalho". O desejo da carteira de trabalho assinada, mesmo mantendo a lógica da relação capital trabalho, é exemplificado pela fala de um associado: "Porque de carteira assinada você tem mais segurança, né... sabe que tem aquele tanto de pagamento no final do mês".

O convênio médico e a previdência social são o que eles mais sentem falta, uma vez que o único amparo médico possível é por meio do SUS, que como já foi ressaltado não consegue atender a demanda de pacientes. A previdência social, por outro lado, acaba disputando o orçamento enxuto dos associados e, portanto, fica sempre em segundo plano frente a outras prioridades. Uma associada comentou o processo de afastamento de um colega acidentado: "Ele não tava pagando INSS porque já não ganha muito, se tirar esse dinheiro, faz muita falta".

Muitas vezes, o meio em que o trabalhador vive, com condições precárias de higiene e problemas em relação às necessidades básicas como alimentação, é propício à proliferação de doenças e seu agravamento. Também se constata que mesmo que o trabalhador esteja preocupado com a sua saúde no trabalho, o que se sobrepõe é a supremacia da sobrevivência concreta, ou seja, a geração de renda. Como afirma Dejours (2002), o trabalhador pode se encontrar em situação tão precária que sua saúde deixa de ser prioritária, vindo em segundo lugar, conforme ocorre com o pagamento do INSS entre os associados.

Ainda que não vivenciem a ameaça e a insegurança da perda do trabalho (na medida em que são os seus próprios patrões), uma insegurança de outra ordem se coloca: a inconstância dos rendimentos, especialmente frente a eventualidades e adoecimentos.

Contudo, identificam-se respostas, do próprio coletivo, frente a esta precariedade. É ilustrativa a postura do grupo quando um associado ficou impossibilitado de trabalhar por conta de um acidente grave. Este continuou a participar da divisão das sobras dos meses, mesmo sem exercer sua atividade até o seu restabelecimento. Assim, ao longo do seu período de afastamento, o associado continuou sendo remunerado.

Outra constatação relevante junto aos associados, como também discutido por Dejours (2002), é o sentimento de vergonha frente ao adoecimento. Um caso ilustrativo foi o esforço de uma associada de esconder dos demais que estava com séria perda auditiva, por conta de uma infecção no ouvido. Sempre que questionada pelo grupo, ela dizia que "andava muito distraída" e por isso não estava escutando direito o que diziam. Afirmou, posteriormente, que sentia vergonha por estar surda.

No que se refere aos sentidos atribuídos ao próprio trabalho, a maioria dos associados refere que a função, por eles desempenhada, é relevante para o grupo e para sociedade de uma forma mais ampla, o que demonstra que há uma identificação dos mesmos com o trabalho. Um associado ressalta que: "O nosso trabalho é muito importante. Já pensou se esse lixo todo fosse para a célula? Então a gente ajuda o meio ambiente".

Relatam inclusive a visita nas escolas para falar às crianças e aos jovens sobre a importância da reciclagem e a participação em eventos na Universidade. Com isso, constata-se um empoderamento dos sujeitos e o desenvolvimento de uma auto-percepção enquanto sujeitos de suas próprias histórias. Isto se explicita pela mudança de postura, do grupo, frente ao Poder Público, enquanto sujeitos de direitos e não como solicitantes de favores. Reconhecem o próprio trabalho como relevante para o município, o que os fortalece enquanto grupo. Assim afirma uma associada: "O nosso trabalho é importante para a prefeitura, uai. É muito caro fazer uma célula dessa".

A identificação com o produto do trabalho, no que se refere à saúde do trabalhador, faz-se essencial na medida em que participa da ruptura com o trabalho alienado, possibilitando o entendimento de seus processos e identificação de suas necessidades, municiando-os na busca por melhorias e engajamento na conquista de direitos. Pode-se dizer, assim, que a condição de participar de uma Associação o torna parte do trabalho, integrante de um processo, não apenas mais um trabalhador/executor. Entende-se, dessa forma, que este é um elemento fundamental que contribui para uma melhora na qualidade de vida, bem como nas condições de saúde, quando esta é compreendida de forma ampla.

Esse processo de empoderamento, também, se reflete no desejo dos associados por adquirir conhecimentos que não possuem e que foram concretizados pelo engajamento, dos mesmos, em projetos como os de Alfabetização e de Continuidade dos Estudos Interrompidos, como também pela busca de conhecimento através da experiência de outras associações e cooperativas de reciclagem.

Constata-se, assim, uma busca pela ruptura com posturas assistencialistas por parte do Poder Público Municipal, colocando-se nas reivindicações como cidadãos de direitos.

Esse processo de reconhecimento, enquanto sujeitos de história, contribui para a diminuição da vulnerabilidade social do grupo, constituindo, inclusive entre eles, uma rede de apoio e ajuda mútua, fundamental na superação de situações-limite.

 

6 CONCLUSÕES

O conceito de saúde deve ser entendido de forma ampla, como processo de saúde e doenças, dos homens em sua relação com o trabalho, rompendo com as velhas dicotomias que tratam de forma estanque: mente, corpo e condições sociais.  A análise dos dados nos aponta elementos importantes em que o trabalho autogestonário, nesse caso estudado, supera condições de alienação e adoecimento, tantas vezes denunciadas em Empreendimentos que têm como foco principal, e quase exclusivo, o lucro. O processo de empoderamento dos sujeitos, o seu reconhecimento no produto do seu trabalho, bem como os laços cooperativos desenvolvidos, são elementos fundamentais na promoção de condições de uma vida mais saudável e com mais qualidade. Tal configuração também se traduz em uma redução da vulnerabilidade social deste grupo, na medida em que constituem uma rede de apoio mútuo, frequentemente acionada nos momentos de crise.

Por outro lado, observam-se, no cotidiano, reproduções de condições de trabalho que implicam em riscos de diferentes severidades para os trabalhadores. Na Associação, verifica-se o pouco uso dos EPI's e a utilização de estratégias coletivas de defesa frente às angustias do adoecer e da morte. Assim, nota-se o não reconhecimento de todos os riscos envolvidos no processo de trabalho, mesmo porque isto implicaria na aceitação do medo do adoecimento, do qual, defendem-se. Outra questão é o sentimento de vergonha e culpabilização frente ao adoecimento, como uma ameaça à imagem perante o grupo e a própria auto-imagem.

Assim, as condições estruturais do trabalho, bem como a premência pela geração de renda, com vistas à garantia da subsistência, acabam por se constituir enquanto elementos que ameaçam a vivência de um processo de trabalho de forma mais saudável. Portanto, trata-se de um ponto nevrálgico a ser superado, para que os princípios da Economia Solidária se concretizem, de forma mais plena, no cotidiano dessa associação.

 

REFERÊNCIAS

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