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ISBN 978-85-62480-96-6 versión impresa

Sem. de Saúde do Trabalhador de Franca Sep. 2010

 

ACIDENTES, DOENÇAS E ADOECIMENTOS DO TRABALHO CONTEMPORÂNEO

 

A reificação humana: estado indutor da doença e dos acidentes de trabalho1

 

 

José Reginaldo Inácio

Sindicalista, Diretor do Sindicato dos Eletricitários do Sul de Minas SINDSUL/MG, Secretário Regional da 3ª Secretaria da Região Sudeste da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria CNTI/MG, Doutorando do Programa de Pós-graduação em Serviço Social pela UNESP Campus de Franca/SP e Mestre em Filosofia pela PUC Campinas/SP. Pesquisador do grupo de pesquisa/CNPq: Serviço Social Aplicado: Trabalho, Produção e Questão Social. e-mail: jrinacio@task.com.br

 

 


RESUMO

Sob a base teórica marxiana e breves recortes de ciclos (des)construtores do valor humano demonstraremos o quanto é acentuado o impacto da questão social ao declínio do valor e do papel que a força de trabalho exerce na sociedade, sobretudo a partir da Revolução Industrial. Referente que demarca também o quanto a degradação ética e moral são determinantes a sujeição humana a condições inóspitas e degenerativas à sanidade física e mental do homem trabalhador. Determinantes à banalização de uma realidade aonde acidentes e doenças do trabalho são ocorrências controladas apenas enquanto dados estatísticos e/ou objetos de pesquisas ou de estudos.

Palavras-chave: Trabalhadores. Ética e Moral. Alienação e Reificação. Doenças e Acidentes Relacionados ao Trabalho.


 

 

INTRODUÇÃO

Em princípio, é preciso eliminar qualquer possibilidade de desvio da perspectiva proposta (neste debate) em direção ao pensamento recorrente e determinante da lógica persecutória às causas afetas a saúde e a integridade física do trabalhador, enfim, ao próprio trabalhador.

O ser humano quando representado como objeto físico privado de qualidades pessoais ou de sua individualidade, torna-se coisa, reifica-se. Transforma-se em objeto de consumo. Para Marx, quando o trabalho, ou melhor dizendo, a força de trabalho2 é desconstituída de sua concepção racional e é meramente tratada como mercadoria (commodity), configurar-se-á uma das formas de reificação do homem (ou humana). Sob essa ótica, procuraremos situar as questões que tanto afligem as condições de sáude e a vida do trabalhador tendo como referência que esta condição pode, além de limitar, condicioná-lo (o trabalhador) a aceitar esse estado, neutralizando suas possibilidades de restabelecer-se enquanto humano a um estado de emancipação e superação desta condição.

Ainda que, aos acidentes e às doenças profissionais, atribuamos signos da degradação ética e moral, será na transição ou transformação do homem em coisa na reificação humana que consideraremos interesses e/ou necessidades artificiais como referentes impostos ao trabalhador, aniquiladores da condição humana cuja concepção tem origem a partir do sistema que (ou de quem) o explora3 e impõe a grande contradição à coletividade e ao indivíduo dentro e a partir do ambiente (de trabalho) no qual tem sua razão e ação como os fundamentos vivos da transformação e do desenvolvimento social.

 

DESENVOLVIMENTO

A moral vinculada à sociedade escravista, concebida por uma ideologia dominante, considerava "o escravo como 'instrumento falante', cuja vida era igual ao valor de uma coisa" (TITARENKO, 1982, p. 59). Trata-se de uma concepção moral que persiste e sobrevive aos tempos e torna-se mais vigorosa quando a sociedade supera as trevas medievais, e, num extrato do processo evolutivo civilizacional, do Renascimento ao Iluminismo, irrompe nos séculos das luzes a possibilidade da escravidão formal extinguir-se, e isso de alguma forma irá ocorrer, instituindo-se, a partir da Revolução Industrial, uma nova forma de exploração do homem pelo homem.

A escravidão se transforma. Não se admitem mais estados escravistas. As leis reverberam o abolicionismo. Há marcante deflexão da classe que vive do trabalho. O estado de escravidão ganha traços miscigenados e as pessoas, independente da raça, que vivem da sua própria força de trabalho, ajustam-se à nova (velha) concepção moral; não mais feudal ou escravista, mas burguesa; não mais escravos, mas proletários ou operários.

Ao oferecer ao homem condições libertárias às suas maiores e melhores possibilidades, criações intelectuais e/ou tecnológicas , que pela lógica propiciariam uma vida melhor, com bem estar em profundidade e em amplitude social e coletiva, também trouxe as primeiras contradições àquilo que fora denominado de questão social4, no século XIX, como designativo ao fenômeno de pobreza (humana) crescente entre os membros das classes operárias assolados a partir da Revolução Industrial com o advento da sujeição social (coletiva) ao capitalismo de um lado, enquanto, de outro, a acumulação da riqueza e da propriedade se manteve privada, monopolizada por outra parte da sociedade, a burguesia.

Estar instrumento de produção e do capital e não mais força viva de trabalho esconde a verdadeira face daquilo que irá se tornar o trabalhador daí em diante.

Transcender o espaço da produção, inclusive não mais do trabalho, sustenta possibilidades desprezíveis à lógica defendida para a manutenção do atual sistema. Adequar condições que incluem a racionalidade e a humanidade ao trabalhador, como lazer, educação, cultura e esporte, por exemplo, que podem ser a possibilidade de emancipação da condição humana, coloca sentido e resistência à precariedade das situações e espaços de degradação consentidos até então. É aí que procuramos identificar em qual dimensão e como as necessidades humanas, suas condições de subsistência, interferem na sujeição às diversas formas de uso da força de trabalho viva.

Como "consequências imediatas da produção mecanizada sobre o trabalhador" há a sujeição do homem e de sua família às imposições de uma nova forma de "apropriação pelo capital das forças de trabalho suplementares. O trabalho das mulheres e das crianças.". O que caracteriza a (des)constituição das relações familiares  numa dimensão em que os hábitos e costumes de até então passam a obedecer a uma lógica determinada pelo capital. "Assim, de poderoso meio de substituir trabalho e trabalhadores, a maquinaria transformou-se imediatamente em meio de aumentar o número de assalariados, colocando todos os membros da família do trabalhador, sem distinção de sexo e de idade, sob o domínio direto do capital.". Para a classe trabalhadora, as implicações dessa nova ordem alteram o vínculo dos valores sociais a partir da família. A força de trabalho passa a ser consumida pelas obrigações deletérias do capitalismo que abre mão de qualquer outro valor que não seja o lucro. Dessa forma, "o trabalho obrigatório, para o capital, tomou o lugar dos folguedos infantis e do trabalho livre realizado, em casa, para a própria família, dentro dos limites estabelecidos pelos costumes" (MARX, 2002, p.451).

A ética, nas relações sob a égide do capitalismo, perde os referentes que a consolidam enquanto virtude a ser preservada numa sociedade. Só passa a ser observada nas ações e/ou no comportamento do homem trabalhador, apenas se se compromete com a produção e o lucro, do contrário (quando não é observada), é condizente com o ideal do capitalismo e a racionalidade "aparente", sob essas circunstâncias, prescinde do valor humano, dos hábitos, dos costumes e da ética.

Será na dissociação entre mente e mãos5, no exercício do trabalho, que percebemos o quanto pode haver o retrocesso evolutivo da espécie humana a dimensões específicas da matéria, coexistindo a criatura humana artificial (reificada) junto às estruturas artificiais de um sistema construído e constituído para a produção, obedecendo às leis da física (mecânica, termodinâmica, robótica...) em sua concepção. Concepção na qual o homem trabalhador usa, nesse processo, praticamente pela última vez, sua capacidade racional, que é dirimida pelas leis exclusivas do capital. Daí em diante terá que situar-se ou dispor-se da mesma forma que sua criação (artificial), seus produtos ou coisas. A criatura humana artificial disposta num ambiente em que é tratado como se fosse um compósito constituído de matérias dotadas de resiliência, mas contida em (e de) sua própria fragilidade (humana) e a (fragilidade) das demais espécies vivas, levando-nos a observar o homem que ainda vive da força do trabalho, destituindo-se, primeiro, da racionalidade que o distingue das demais espécies vivas; segundo, da irracionalidade que o identifica às reações e aos impulsos dos demais animais irracionais; e, por fim, também, de sua forma biológica que o caracteriza entre as demais espécies vivas, transformando-se em coisa. Razão pela qual já não mais se preserva, pois que reificado perde assim sua própria percepção da vida e, consequentemente, a percepção das demais espécies e de seus semelhantes.

A dissociação entre mente e mãos pode ser comprovada a partir do momento que o homem trabalhador se mistura ou se liga ao processo de produção6 e não mais se percebe ou se preserva enquanto força viva de trabalho, neutralizando, ou até mesmo eliminando, sua capacidade humana (racional ou irracional). Sennett nos diz que "quando a cabeça e a mão estão separadas, é a cabeça que sofre" (SENNETT, 2009, p.56). Podemos deduzir dessa citação e da ideia que a fundamenta que se trata de uma realidade na qual os processos desencadeadores da alienação humana se originam7. Ao concordarmos com Sennett, faz-se necessária uma reflexão acerca da alienação desencadeada na ruptura que sugere. Teremos que admitir uma mente já comprometida nos sentidos da própria alienação. Se admitirmos, logicamente passamos a concordar que este processo neutraliza a cabeça (a mente). As mãos, ou melhor, as ações que ela possa desenvolver não terão a razão a direcioná-las. Não há a racionalidade objetivando as escolhas que possam permitir aproximação ou distanciamento das ações, dos sistemas operacionais ou ambientes propiciadores do risco ou da insalubridade. Portanto, invertendo a lógica de Sennett, sem, entretanto, discordar de sua ideia, "[...] quando a cabeça e a mão estão separadas", pode-se até deduzir que, a priori, a mente já foi afetada, com isso é o corpo (a mão) que se expõe, deteriora e sofre, mas sem a sensibilidade estimulada para rejeitar ou reagir a situação de risco.

A transformação da condição humana, nessas circunstâncias, pode superar a degradação da alienação8? Podemos arguir, de alguma forma, que o trabalhador alienado detém sua irracionalidade, por conseguinte, há ainda sensações impulsionadas por estímulos nervosos que asseguram a defesa e a busca da sobrevivência, diante da iminência do perigo, através dos instintos comuns a todo animal na busca pela preservação de sua própria vida e/ou espécie. Mas essa condição não é observada e tampouco assegurada por parte significativa daqueles que se sujeitam a espaços e/ou ambientes onde a lógica do capital usa a força de trabalho humana submetida à força produtiva artificial (máquinas, equipamentos e instrumentos...).

Devemos lembrar que a força produtiva artificial é zelosamente mantida e/ou cuidada pela força de trabalho humana. Esta, porém, é transformada, deteriorada e/ou consumida por aquela ou naquela. Daí se conclui que ao questionamento posto nos cabe inferir, como resposta, outra questão: é possível aos trabalhadores subverter a ordem do capital condicionando-se como seu sujeito e nele ou dele se reproduzindo, transformando-se em espécie/espécime de aceitação ou liquidez no mercado como produto/mercadoria?

A interseção das questões enunciadas (anteriormente) leva-nos a considerar que, primeiro, há no mundo do trabalho a desconstituição da ética, depois da moral, ou seja, dos hábitos e dos costumes, em seguida das leis e das normas em geral. A partir daí a racionalidade passa a estar comprometida, seu uso já está estéril; até a irracionalidade que há no humano e o seu próprio corpo são neutralizados enquanto força produtiva, uma vez que a força de trabalho fora neutralizada assim que a racionalidade foi comprometida; nesse ponto há a involução ou degenerescência da condição humana (animal e irracional) a apenas matéria, mesmo que viva, mas inerte. Assim como as coisas materiais, o trabalhador, sob tais condições, é inanimado e precisa de impulsos externos para ter e ser potência. Assim, só reage provocado por ações externas ou em cumprimento a elas. Desconstituído da razão, primeiro pela alienação e depois pela reificação, não é mais livre, não faz e nem precisa fazer escolhas. À mercê da esteira de produção onde está situado ou disposto, mistura-se com e como o produto, em quantidade e qualidade, enquanto houver demanda e aí permanecer (ao mesmo tempo) útil e perfeito. Uma perfeição só sustentada se estiverem integrados instrumento de produção, produto e consumidor. Do contrário, o que se tornou (o trabalhador) não será consumido; será uma coisa desprezível, consequentemente descartável, como descartável foi outrora sua condição humana nesse tipo de sociedade.

Há aspectos da alienação que implicam sujeição ao risco num sentido latente e, ao mesmo tempo, contínuo em diversos ambientes de trabalho. Pouca ou nenhuma garantia é oferecida ao trabalhador que acaba dispondo-se como produto ao apresentar-se enquanto força humana de trabalho. Sentido expropriador da razão que também neutraliza as possibilidades do sentir, pois a pessoa envolvida tem, de alguma forma, ao considerar essa (ou sua) condição, uma expectativa incerta da sobrevivência. 

O sistema em sua complexidade, capitalista ou não, não existe sem pessoas. Em sua estruturação, admitindo o desenvolvimento humano civilizatório, até então conhecido, como parte fundamental deste sistema, o homem precisa ser tratado como uno e finito enquanto maturação e possibilidade de vida às espécies vivas numa existência específica. Se assim consideramos, também admitiremos que se o sistema for visto como linear, não admitirá a complexidade incorporada à condição humana. O que exclui as reais possibilidades de existência das espécies vivas, incluindo a humana, neste planeta.

"A percepção do vivo, uma das reflexões que precisa ser considerada, só emerge com o ser vivo racional" (INÁCIO, 2005, p. 99). Com essa reflexão, ao elaborarmos uma análise da "Reestruturação produtiva: o fim que altera as relações de trabalho e o agir comunicativo como alternativa à decomposição da classe que vive do trabalho", foi possível observar que a extinção do homem trabalhador intuído por sua força de trabalho (conforme aqui já enunciamos) nos processos de reorganização dos meios de produção capitalista praticamente desconstituiu o sentido de racionalidade que poderia incluir uma melhora na qualidade de vida da classe trabalhadora. Uma re-estruturação na qual seus idealizadores nominam como flexível tudo aquilo que, através da imobilidade da racionalidade da classe dominante, degrada e torna precários os ambientes e as formas de trabalho9, além dos direitos humanos (do trabalhador), inclusive os mais elementares, transparecendo ignorar acintosamente que "sua morte [a morte do trabalhador a partir da sua força de trabalho] é a degradação e a desqualificação de todas as construções artificiais e sem vida. São objetos e instrumentos inúteis a si próprios. Não existir o homem é inexistir qualquer efeito e razão a suas criações e obras. A tecnologia que extingue o homem será a hecatombe das espécies vivas e não apenas do humano" 10 (idem, 99 e 100). 

A linearidade não é uma característica das espécies vivas. Tratar o homem com essa possibilidade é submetê-lo a uma durabilidade e transformação peculiar as matérias mortas e artificiais que permanecerão existindo ainda que as demais matérias ou espécies se extingam. Essa possibilidade também submete as espécies vivas, mais ainda a humana, a uma vulnerabilidade existente nos espaços artificiais, onde junto às demais matérias ou materiais máquinas, equipamentos, instrumentos e ferramentas, por exemplo , são simultaneamente distribuídos, colocados (ou retirados) em (de) uso e/ou funcionamento.

Da mesma forma que as outras matérias, o homem, nesses espaços, termina por sujeitar-se aos ajustes e adequações que permitem garantir a produção e/ou resultados em patamares de competitividade e lucro em que as coisas ou matérias existentes, muito mais o trabalhador, devem cooperar para a manutenção destes objetivos. É nesta hora o momento em que o valor em si de quem oferece a sua força de trabalho ao sistema (capitalista) sofre o reflexo daquilo que se tornou o trabalhador11.

A privação a que se submete o trabalhador num ambiente inóspito ao uso da sua força de trabalho, leva-o a concessões às quais sua própria vida é (de modo latente) concedida. Dessa maneira, podemos também dizer que não cabe ao homem trabalhador elaborar contingências a si próprio. Isso significaria, pela segunda vez, expropriá-lo em sua miséria; seria considerar que o estado no qual se encontra foi por si próprio provocado, afinal, como dissera Forrester, referindo-se aos desempregados: são "[...] incompatíveis com uma sociedade da qual eles são os produtos mais naturais. São levados a considerar indignos dela, e, sobretudo responsáveis pela sua própria situação, que julgam degradante e até censurável." (FORRESTER, 1997, p.11).

Na reflexão proposta, e em debate, a autora insere pontos significativos a serem considerados como exigências do sistema capitalista para a transição da classe empregada à classe desempregada, uma vez que são mitigadores da percepção das causas e dos reais fatores da vulnerabilidade e do risco social que tanto afetam a sociedade, em especial as classes trabalhadoras (empregadas e desempregadas). Ao incluir a utilidade às estruturas que sustentam o mundo do trabalho, delimita-se a origem e a necessidade de se estar, ou não, a ele inserido, e destaca que "[...] ao resto da humanidade, para 'merecer' viver, deve mostrar-se 'útil' à sociedade, pelo menos àquela parte que a administra e a domina. [...] 'Útil', aqui, significa quase sempre 'rentável', isto é, lucrativo ao lucro. Numa palavra, 'empregável'", e acrescenta ainda que, "'explorável' seria de mau gosto!" (1997, p.13).

Pessoas ou máquinas só permanecem como força de produção se sincronizadas para garantir a lógica vigente do sistema capitalista (o lucro). Nesse sistema não são permitidas concessões explícitas a essa lógica. Caso ocorram, dar-se-ão de modo velado, de maneira que seu efeito seja neutralizado.

O descarte de peças ou de pessoas dependerá da disposição em que estas se encontram dentro da lógica utilitarista assimilada e até defendida, em diversos casos, por quem está sob domínio independente da forma (coação) , às condições pessoal (física ou mental) e/ou ambiental (salubre, insalubre ou periculosa). E o trabalhador fica sujeito a quem o domina como única forma de se garantir enquanto instrumento útil de um sistema cujas reservas similares podem estar com melhores preços ou condições, algumas até mais ajustadas ou aperfeiçoadas, outras até sem uso e, portanto, perfeitas para a aquisição ou reposição.

É nesse cenário o local onde se amplia aquilo que chamaremos de mais um paradoxo existencial conflituoso do mundo do trabalho (INÁCIO, 2008)12. Há, ao mesmo tempo, o excesso e a ausência de alternativas. O que impõe ao homem maior sujeição às adversidades, ampliando-se os espaços (no caso das indústrias de confecção e calçados, por exemplo, a quantidade de espaços) e as novas formas de exploração para quem ainda vive do trabalho13. Se nas sociedades escravistas, "os espartanos praticavam periodicamente o extermínio selectivo de seus escravos" (TITARENKO, 1982, p. 59), no capitalismo, mais ainda com o advento do neoliberalismo potencializado por sua forma própria de globalização , esta prática ganha dimensões maiores14. "O direito ao trabalho já se reduz ao direito de trabalhar pelo que querem te pagar e nas condições que querem te impor. [...] Enquanto caem os salários e aumentam os horários, o mercado de trabalho vomita gente. Pegue-o ou deixe-o, porque a fila é comprida" (GALEANO, 2007, p. 169). Essa acaba sendo a visão dos trabalhadores, mas não num estado de contemplação, já que estão situados nos mesmos locais onde outros, sob as mesmas condições (sub)existem15 ; encontram-se como uma massa já disforme em decomposição ascendente, fazendo com que todos os sentidos, não apenas a visão, sintam esse estado e suas consequências, mas sem nenhuma consciência de sua superação. Situação que, pelas circunstâncias impostas, apresenta-se como natural, haja vista tratar-se de uma coletividade que perdeu a referência de seus indivíduos humanos em sua singularidade e, nesse sentido, para que subsista a espécie (humana) no trabalho, esta precisará ser acéfala.           

Nessa condição, há, por parte da classe dominante, a configuração ampla de fetiche16 em relação ao trabalhador. Ao observá-lo como mercadoria, enfeitiça-se com a possibilidade de sua aquisição (contratação). Fetiche que se sustenta pelo poder coercitivo do trabalho e pela lógica econômica da oferta e da procura, a qual, além do menor preço, apresenta dois outros atrativos: primeiro, a certeza de que este profissional não está ou foi "contaminado" pelos "vírus dos vínculos empregatícios e/ou direitos" considerados uma degenerescência jurídica que atrofia os propósitos do sistema capitalista e só permanecem em convenções e acordos coletivos, tidos como anacrônicos, visto serem rígidos num momento em que a flexibilidade impera no tempo e no espaço, moldando pessoas a qualidade e quantidade das coisas e coisas a qualidade e quantidade das pessoas e garantidos para os trabalhadores remanescentes como força ativa de trabalho enquanto forem insubstituíveis e necessários à produção. Segundo, a ampliação da desconsciência de classe que acompanha a quem chega ao mundo do trabalho, trazendo nutrientes novos, (neo)alienantes, a um processo ascendente de individualismo e competição junto à classe que ainda vive do trabalho.  

Trabalha-se quase que exclusivamente para a manutenção das condições físicas e de produção, ou seja, subsistir para retornar às ações produtivas do sistema. Se não bastasse a sujeição singular já distinguida e ampliada por Marx17, trata-se, poderíamos dizer, de uma lógica que na atualidade vigora em todos os espaços da produção criados e mantidos nas facções, nas bancas de pesponto e nos porões aqui enunciados, onde netos, avós, filhos, pais e mães se refugiam e escondem, inclusive com todas as suas dores e sofrimentos que deveriam ser percebidos por todos os seus sentidos, entretanto se encontram anestesiados (neutralizados) pelas necessidades (estranhadas e reificadas) da subsistência do corpo para a produção. Um corpo ligado e não (mais) vivo, essa é a referência a um trabalhador que só existe sob esta condição: reificado.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não precisaríamos retornar a Marx para conseguir enxergar que o trabalhador assalariado, o operário, empregado ou desempregado, é refém contínuo da desigualdade e da injustiça do capitalismo, propulsoras venais da inclusão assistida da humanidade, que vive ou necessita viver de seu trabalho, aos espaços de risco e/ou vulnerabilidade social, uma vez que as estatísticas enunciadas, não apenas aqui, já elucidaram, elucidam e até ofuscam muitas visões com tamanha claridade. Mas com Marx fica mais fácil a compreensão da enunciação desse cenário18.

Ao que vimos e podemos deduzir, não são as condições humanas que afetam o estado de doença e/ou morte instalados nos ambientes de trabalho, mas sim a ausência dessas condições. Quando a razão e os sentimentos (ou sentidos) não se manifestam em sintonia com aquilo que se realiza, em qualquer espaço, o homem (trabalhador ou não) não está presente. De alguma forma, poderíamos dizer que as ações e suas consequências, são derivativas das coisas que se tornaram os homens e quem os exploram.  

Definições e conceitos para o homem trabalhador, não são os das ciências biológicas, tampouco das ciências sociais ou humanas. Serão nos fundamentos e deduções da lógica situada na física, na engenharia de materiais (sólidos), que definições e conceitos ganham sentido e passam a valer para as pessoas que ainda trabalham. A fadiga, as tensões e o stress não são sintomas do excesso ou da exploração humana. Adquirem no trabalhador dimensões só admitidas às máquinas ou equipamentos. Nesses estados (fadiga, tensão, stress) há tratamentos (manutenções) que já previnem essas transições estruturais e sistêmicas do mundo das coisas, permitindo que contingências operacionais garantam a correção de tais adversidades ou disfunções. Para repetições e movimentos de máquinas e equipamentos, testes prospectivos de resistência são feitos e considerados para não se romper com os limites19 que poderiam comprometê-los enquanto instrumentos de produção. Sob tais circunstâncias há garantia preditiva asseguradora da qualidade e da quantidade das coisas. Previsões de funcionamento contínuo e transições preventivas são designativos dessa garantia. A própria depreciação das estruturas funcionais de um sistema incorpora a dimensão e a relevância de seu valor.

Concluí-se daí que os valores do homem trabalhador e das coisas não se equivalem. Enquanto às coisas são ajustadas e oferecidas as melhores estruturas e espaços para uso de sua força de produção, buscando eliminar as condições ou estados que as façam sofrer qualquer tipo de desgaste ou disfunção, ao trabalhador resta garantir-se nestas condições. Há a intensa negação da constituição ou das faculdades que são próprias dos seres vivos (racionais ou irracionais). Desse modo, sequer "chega-se (...) ao resultado de que o homem (o trabalhador) só se sente como (ser) livre e ativo em suas funções animais, comer, beber e procriar, quando muito ainda habitação, adornos, etc., e suas funções humanas só (se sente) como animal" (MARX, 2004, p. 83), pois estaríamos ignorando ao aqui exposto e até impossibilitados desta reflexão. Ademais, situando-nos ao contexto enunciado, percebe-se na derradeira citação que ao caracterizar o homem trabalhador ao animal (irracional), a capacidade humana (nutritiva e/ou sensitiva) limita-se a ser uma força ativa exclusiva à subsistência, conferindo-lhe a higidez necessária para estar e fazer parte de um processo de produção. Todavia, descaracterizando-a da concepção de força de trabalho sublinhada por Marx.

É fundamental, também, observar neste processo que, além da racionalidade, o homem trabalhador perde sua irracionalidade, sua condição animal (irracional) e é exposto e se expõe a uma condição meramente inorgânica, material, artificial, ou seja, reifica-se.

Ele se coisifica, anula-se nesse processo: é a máquina, ou um apêndice de máquina, uma estranha máquina cujo óleo combustível é constituído de proteínas. Não é mais um homem com capacidade de pensar, agir, tomar decisões. É apenas uma peça de engrenagem que, quando gasta pelo uso, pode ser substituída. Ele está desomizado" (BASBAUM, 1977, p. 25).

Assim como lubrificar/aferir/limpar/cobrir/repousar são ações para a preservação de máquinas, equipamentos, instrumentos e ferramentas, garantindo-se a efetividade de suas propriedades (resiliência) e funcionamento nos controles corretivos/preventivos/preditivos, para o trabalhador, nutrir/exercitar/banhar/vestir/descansar20, são ações equivalentes para manter-se aceito e ativo socialmente no sistema vigente. São ações (estranhadas) desenvolvidas pelo homem trabalhador que, junto às outras, cumprem-se em relação ao mesmo objetivo, ou seja, a preservação dos meios e a garantia dos fins para a produção e o lucro. 

Ações e condições que possam caracterizar ou potencializar a condição humana para o trabalhador (quase) não são priorizadas nas situações em que o uso de sua força de trabalho sujeita-se ao desgaste físico e/ou mental e a riscos (periculosidade e/ou insalubridade).

Nos ambientes em que "máquinas, equipamentos, instrumentos e ferramentas" são prioridades à produção, cabe ao trabalhador decidir: ou faz parte desse conjunto, pois que assim já é considerado, ou será por este substituído. Nesse sentido, o tratamento dado a esse conjunto passa a ser, também, o oferecido ao trabalhador. Se no caso das máquinas e ferramentas não há relação que as vinculem fora dos espaços de produção, se só nestes é que são úteis, na relação com o trabalhador não será diferente. À máquina repõem-se peças danificadas e/ou, se for o caso, substitui-se toda a unidade. Ferramentas se aferem, quando ainda é possível, ou são substituídas. O mesmo também se dá com equipamentos e instrumentos e, sob mesmas justificativas, com o trabalhador, caso não se adeque às necessidades produtivas e/ou ao lucro.

Nesse cenário, são coisas (máquinas, equipamentos, ferramentas, instrumentos, peças...) que vigoram (só) ao valor aí originário. O lucro torna-se o criador. Dá corpo e movimento a tudo isso e, ao mesmo tempo, retira as possibilidades da razão permanecer ativa no mundo do trabalho. Ao homem trabalhador concede (impõe) a transformação de seu corpo para realizações nas mesmas proporções e sentidos das coisas. Consequentemente, as possibilidades de seus movimentos (ações ou trabalho) limitam-se aos processos e programações peculiares às coisas.  Razão pela qual a força de trabalho, sob e nessas condições, não é mais "o conjunto das faculdades humanas físicas e mentais existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano", mas a sua negação.

 

REFERÊNCIAS

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TITARENKO, A.I. e outros. Fundamentos da ética Marxista e Leninista. Moscovo-URSS: Progresso, 1982.

 

 

1 Este artigo é parte da pesquisa: "Ética e trabalho: concepção de uma antítese social", para a Tese de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UNESP Campus de Franca/SP.
2 Consideraremos, assim como Marx, que: "Por força de trabalho ou capacidade de trabalho compreendemos o conjunto das faculdades humanas físicas e mentais existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, as quais ele põe em ação toda vez que produz valores-de-uso de qualquer espécie". (MARX, 2002, p. 197). Daí se deduz que a ausência dessa força para a realização do trabalho, estando o trabalhador em ação profissional, também refletirá na ausência da condição humana.
3 "O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (Mesnchenwelt)." (MARX, 2004, p. 80).
4 "[...] a questão social é a aporia das sociedades modernas que põe em foco a disjunção, sempre renovada, entre a lógica do mercado e a dinâmica societária, entre a exigência ética dos direitos e os imperativos de eficácia da economia, entre a ordem legal que promete igualdade e a realidade das desigualdades e exclusões tramada na dinâmica das relações de poder e dominação" (TELLES, 1996, p. 85).
5 Nesse sentido, fica mais fácil para identificar essa ruptura, bem como suas consequências aos trabalhadores, que destaquemos os dados do Anuário Estatístico da Previdência Social, porém estratificando-os (de modo elementar) e tendo como referência o período de 2000 até 2008, no qual se registrou só nos primeiros anos da primeira década do século XXI, 4.381.065 acidentes de trabalho no Brasil. Número de registro que supera a média anual de 486 mil ocorrências; e, mensalmente, superior a 40 mil acidentes de trabalho, com mais de 1350 ocorrências por dia ou 56 por hora. Das 25.494 mortes registradas, devido aos acidentes de trabalho, foram em média 236 mortes por mês e 7,86 por dia. Dos dados relativos a 2008, foram 747.663 registros em decorrência de acidentes ou doenças ocupacionais, sendo nestes casos os membros superiores os mais afetados, ou seja, com 188.842 ocorrências (BRASIL, MPS, 2010).
6 Destacamos que os dados dos Relatórios Técnicos 1 e 3 das Indústrias de Calçados e Confecções, relativos à pesquisa sobre acidentes do trabalho em micro e pequenas empresas industriais (MPE) nos ramos calçadista e de confecções, também comprovam tal dissociação. Em especial pelo fato de que exatamente os membros superiores, mais precisamente as mãos, são dispostos à produção como se fossem apêndices de máquinas ou equipamentos, distando-se de suas condições e fragilidades orgânicas e/ou biológicas como se tivessem propriedades comuns às matérias dotadas de resiliência, ou seja: "Os registros de acidentes mais diagnosticados, conforme CID 10/Grupos, foram 'ferimento do punho e da mão' e 'fratura ao nível do punho e da mão'. Esses dois diagnósticos corresponderam a 46,3% dos acidentes nas MPE. Em ordem decrescente, 'traumatismo superficial do punho e da mão', 'queimadura e corrosão do punho e da mão', 'lesão por esmagamento do punho e da mão', 'outros traumatismos e os não especificados do punho e da mão' e 'amputação traumática da mão', respectivamente com participações 7,1%, 5,7%, 4,2%, 3,8% e 3,1%, totalizaram 23,9%, ou seja, uma proporção inferior ao diagnóstico mais freqüente, ou seja, o 'ferimento do punho e da mão', que teve uma participação sobre o total de 30,2% (TAB. 7). Enfim, apenas os traumatismos envolvendo a mão como parte específica do corpo atingida se fizeram presentes em 70,2% dos acidentes de trabalho levantados junto às indústrias de calçados nas áreas selecionadas". Já no caso das indústrias de confecção, "a parte do corpo mais atingida em acidentes típicos foi membro superior com 70,7% das ocorrências, dos quais 74,5% atingiram o dedo da mão".
7 Ao impor processos de capacitação ao homem trabalhador como (meros) aferidores do trabalhador para que permaneçam ajustados ou calibrados como se fossem equipamentos, máquinas, instrumentos ou ferramentas para a produção, anulam a racionalidade e a formação humana. "É este o ponto crítico no problema da capacitação: a cabeça e a mão não são separadas apenas intelectualmente, mas também socialmente" (SENNETT, 2009, p.57).
8 Mészáros ao elaborar sua "teoria da alienação em Marx" destaca aspectos relevantes acerca da alienação; entretanto nos limitamos a considerá-los numa abordagem que acreditamos melhor exprimir as idéias em curso, ou seja: "A alienação humana foi realizada por meio da transformação de todas as coisas em objetos alienáveis, vendáveis, em servos da necessidade e do tráfico egoístas. [...] A reificação de uma pessoa e, portanto, da aceitação 'livremente escolhida' de uma nova servidão em lugar da velha forma feudal, politicamente estabelecida e regulada de servidão pôde avançar com base numa 'sociedade civil' caracterizada pelo domínio do dinheiro, que abriu as comportas para a universal 'servidão à necessidade egoísta'" (MÉSZÁROS, 2006, p.39).
9 A condição estabelecida no mundo regido por essa lógica re-estruturante e globalizada incorpora o que Bauman denomina como "Lei global e ordens locais" para situar o caráter rígido dos capitalistas em detrimento da flexibilidade exigida dos trabalhadores, ou seja: "O mercado de trabalho é rígido demais; precisa tornar-se flexível, quer dizer, mais dócil e maleável, fácil de moldar, cortar e enrolar, sem oferecer resistência ao que quer que se faça com ele. [...] A 'flexibilidade' só pretende ser um 'princípio universal' de sanidade econômica, um princípio que se aplica igualmente à oferta e à procura do mercado de trabalho. A igualdade do termo esconde seu conteúdo marcadamente diverso para cada um dos lados do mercado. Flexibilidade do lado da procura significa liberdade de ir para onde os pastos são verdes, deixando o lixo espalhado em volta do último acampamento para os moradores locais limparem; acima de tudo, significa liberdade de desprezar todas as considerações que 'não fazem sentido economicamente'. O que, no entanto, parece flexibilidade do lado da procura vem a ser para todos aqueles jogados no lado da oferta um destino duro, inexpugnável: os empregos surgem e somem assim que aparecem, são fragmentados e eliminados sem aviso prévio, como as mudanças na regra do jogo de contratação e demissão. [...] as agruras dos 'fornecedores de mão-de-obra' devem ser tão duras e inflexíveis quanto possível com efeito, o contrário mesmo de 'flexíveis': sua liberdade de escolha, de aceitar e recusar, quanto mais de impor as suas regras do jogo, deve ser cortada até o osso" (BAUMAN, 1999, p.112-3).
10 Reiteramos nossa citação a Serge Latouche (INÁCIO, 2005, p. 204) que ao mencionar Pierre Clastres, diz da "preponderância que a sociedade civilizada tem dado às coisas e aos objetos mortos, em detrimento dos seres vivos, ou seja: 'A mais terrível máquina de produzir é por isso a mais temível máquina de destruir. Raças, sociedades, indivíduos, espaço, natureza, floresta, subsolo! Tudo deve ser útil, tudo deve ser utilizado, tudo deve ser produtivo, com uma produção levada ao seu desempenho máximo de intensidade' (LATOUCHE, 1996, p. 34). Nessa breve citação, acredito emergir muitas das adversidades desprezadas pela civilização que não se desvencilha da busca desenfreada apenas pelos bens que se pode consumir e/ou se converter em produtos rentáveis, esquecendo, infelizmente, que tem se tornado um desses bens".
11 "O operário procura manter a massa de seu salário trabalhando mais, seja trabalhando mais horas, seja produzindo mais no mesmo tempo. Pressionado pelas privações, aumenta ainda mais os efeitos funestos da divisão do trabalho. O resultado é: quanto mais trabalha menos salário recebe. E precisamente pela simples razão de que, à medida que faz concorrência aos seus companheiros, faz, portanto, dos seus companheiros operários outros tantos concorrentes, os que se oferecem em condições tão ruins como ele próprio, porque ele, por conseguinte, em última instância, faz concorrência a si mesmo, a si mesmo como membro da classe operária" (MARX, 2006a, p.64). Entretanto, enfatizando um pouco mais, deduzimos de Marx que essa não é a limitação definitiva a qual o trabalhador se sujeitará. Seu espaço para o trabalho (caso subsista) será diminuído ainda mais pelo fato de máquinas e equipamentos ampliarem, num sentido ambíguo, este cenário de concorrência, incluindo mais trabalhadores num local que não mais os comportam, como consequência, mais exposição a riscos com a elevação das possibilidades de degradação das formas e dos ambientes de trabalho, tanto quanto da precariedade nas relações sociais e empregatícias, como da exploração do homem e de sua força de trabalho.
12 Destacamos o "paradoxo existencial conflituoso" no momento atual da história, primeiramente, ao situar no artigo: "Líder sindical ação, transição pelo poder e ética", que: "Precisamos, e é urgente, que a humanidade retome o seu papel e supere a tecnologia. Tecnologia que se sustenta nos sistemas e nas grandes corporações e faz deste mundo um paradoxo existencial conflituoso. Convivemos com séculos distintos num instante único de nossa história, cuja circunstância destrói a possibilidade de um senso comum nas instituições sociais. Há neste universo uma transitoriedade extrema que faz das pessoas e das instituições peças programáveis e/ou descartáveis numa sociedade regida por sistemas que não sustém trabalhadores como pessoas. A exigência impessoal destes sistemas faz das condições de trabalho um agente de discriminação e exclusão, pois convivemos em situações sub-análogas a de escravo e com outras ações profissionais conceptuais em plenitude. Enquanto cortadores de cana e carvoeiros morrem de fadiga em canaviais e carvoarias, numa expectativa de vida inferior a trinta anos, outros profissionais atuam na virtualidade, por exemplo, com horários flexíveis e espaços de trabalho privativo, projetando uma melhora na qualidade de vida e a existência para uma posteridade ascendente. Realidade paradoxal no mundo do trabalho que é pouco concebida entre diferentes e distantes entre si, seja pelas circunstâncias, seja pelos espaços em que se situam" (INÁCIO, 2008, p.282-3).
13 A degradação enunciada pode ser observada de diversas formas e em diversos locais, mas, atualmente no estado de São Paulo, espaço federativo de maior expressão industrial e riqueza no Brasil, pode-se comprovar a existência e manutenção do submundo da exploração do homem pelo homem na indústria da confecção, em que lojas e grandes magazines, provêm facções que superexploram trabalhadores a condições (sub)análogas a de escravos em espaços onde "oficinas funcionam em porões ou locais escondidos, pois a maior parte delas é ilegal, sem permissão para funcionar. E para que suspeitas não sejam levantadas pelos vizinhos, que acabariam alertando a polícia, as máquinas funcionam em lugares fechados, onde o ar não circula e a luz do dia não entra. Para camuflar o barulho das máquinas, música boliviana toca o tempo todo. Os cômodos são divididos por paredes de compensado. Essa é uma estratégia para que os trabalhadores fiquem virados para a parede, sem condições de ver e relacionar-se com o companheiro que trabalha ao lado o que poderia resultar em mobilização e reivindicação por melhores condições" (ROSSI e SAKAMOTO, 2005). Essa situação se segue, ao que se pode observar, entretanto se trata de uma recorrência que não teve origem quando a matéria: "Trabalho escravo é uma realidade também na cidade de São Paulo", foi veiculada em 27/04/2005.
Situação que prossegue envolvendo empresas terceirizadas, quarteirizadas ou facções ligadas à empresa C&A e às Lojas Marisa, conforme matéria: "Escravidão é flagrada em oficina de costura ligada à Marisa veiculada em 17/03/2010. "Na avaliação da médica e auditora fiscal [...] [...] que também fez parte da comitiva e checou até a receita médica de uma das trabalhadoras com doença de pele, as vítimas do trabalho escravo na oficina de costura CSV estavam expostas a distúrbios respiratórios, problemas ergonômicos, e justamente a enfermidades dermatológicas, além das condições psicossociais indesejáveis, por causa do medo constante" (HASHIZUME, 2010).
14 Imaginar em que nível se pode explorar o trabalhador nos leva a questionar, até por reciprocidade, em qual nível quem domina exerce sua defesa para justificar a manutenção desse estado. É aí que essa medida tem dimensões que negam a racionalidade de quem a justifica, induzindo à banalização, não apenas uma condição de trabalho já deteriorada, mas também todo um espaço já degrado e que dispõe trabalhadores como resíduos de materiais e/ou produtos (humanos) que têm validade ou tempo para uso ou consumo, podendo variar conforme o local ou disposição em que se encontram. Vejamos: "O presidente do Sindicato da Indústria do Vestuário Feminino e Infanto-Juvenil de São Paulo e Região (Sindivest), Ronald Moris Masijah, afirmou que a linha que separa o trabalho escravo e a terceirização é muito tênue. Partiu, contudo, para uma relativização da caracterização do trabalho escravo contemporâneo. Em plenas atividades do 1º Fórum Estadual de Combate ao Trabalho Escravo, ele apresentou fotos de fábricas na China e disse que 'lá as pessoas trabalham até 72 horas por semana e não é trabalho escravo'" (PYL, 2010). Matéria veiculada no dia 02/02/2010: "Exploração de estrangeiros na cadeia têxtil é debatida".
15 Os fatos envolvendo esta superexploração são recorrentes e referentes (também) das consequências desumanas da globalização. Os espaços e ambientes (degradados) de trabalho (escravo) onde os trabalhadores imigrantes sul-americanos (mais especificamente peruanos e bolivianos) são explorados, se "enquadram" perfeitamente na visão de Bauman, segundo este autor, a "casa de correção inaugurada em Amsterdã no começo do século XVII [em que seus promotores e idealizadores] visavam produzir homens 'saudáveis, moderados no comer, acostumados ao trabalho e com vontade de ter um bom emprego, capazes do próprio sustento e tementes a Deus". Descrição que nos remete a uma visão do cenário e do sentimento inicial daqueles trabalhadores imigrantes aliciados e até traficados, que chegam foragidos e/ou em fuga de um processo de exclusão e são incluídos (aprisionados) à margem do submundo da exploração da classe trabalhadora brasileira. Onde se sujeitam a uma seleção (triagem) a qual os promotores e idealizadores deste processo "fizeram uma longa lista de ocupações manuais para os possíveis internos desenvolverem essas [suas] qualidades como as de sapateiro, fabricantes de carteiras de dinheiro, luvas e bolsas, guarnição para colares e capas, tecelagem de fustão e lã, roupa branca e tapeçaria, bordados..." (BAUMAN, 1999, p. 118).
16 Vivemos hoje, muito mais do que na época de Marx, a possibilidade da subsunção humana à condição mercadoria. O trabalhador, ao sujeitar-se a essa condição, enfeitiça a quem o explora. Muitas mercadorias oferecidas em diversos catálogos com atribuição de valores que o sistema capitalista dá, via alienação, sem preocupar-se com o valor. Não há preocupação com a escassez/quantidade e/ou qualidade, pois a oferta é cada vez mais ampla, flexível e tudo parece descartável.
17 "O valor da força de trabalho era determinado não pelo tempo de trabalho para manter individualmente o trabalhador adulto, mas pelo necessário à sua manutenção e à de sua família". Poderíamos dizer que além de expor o cenário de uma (sua) época, antevia a atualidade: "Lançado a máquina todos os membros da família do trabalhador no mercado de trabalho, reparte ela o valor da força de trabalho do homem adulto pela família inteira" (MARX, 2002, p. 452).
18 Trata-se de uma consideração (final) que se inicia no passo derradeiro da desconstituição humana para a vida. O suicídio do trabalho, no trabalho e/ou para o trabalho. Elaboração que poderia também ganhar sustentação, atualmente, nas idéias de Dejours. Todavia, concluiremos situando em Marx o cenário para essa morbidade. Nesse cenário, seus principais signos se revelam e refletem o ritual que antecede os preparativos (perenes) da mortuária (sociedade) capitalista para receber (todos os dias) o corpo (inerte) e não mais o homem (o trabalhador). Em Sobre o suicídio, Marx descreve este cenário: "[...] quando se vê a quantidade incrível de classes que, por todos os lados, são abandonadas na miséria, e os párias sociais, que são golpeados com um desprezo brutal e preventivo, talvez para dispensar-se do incômodo de ter que arrancá-los de sua sujeira; quando se vê tudo isso, então não se entende com que direito se poderia exigir do indivíduo que ele preserve em si mesmo uma existência que é espezinhada por nossos hábitos mais corriqueiros, nossos preconceitos, nossas leis e nossos costumes em geral" (MARX, 2006, p.27). 19 Destacamos aqui a LER e DORT Lesões por Esforços Repetitivos e Distúrbios Osteo-musculares Relacionados ao Trabalho, como estados semelhantes que, inclusive, caracterizam-se, hoje, como uma epidemia nas classes trabalhadoras brasileiras.  Pergunta-se: essa semelhança se distende a sua prevenção? 20 "Às 8 ou 10 horas de trabalho que gasta no local em que exerce sua atividade, é preciso juntar as horas que consome desde o levantar até chegar ao local e tantas outras, do local de trabalho até a volta ao seu lar. Como suas noites devem ser bem dormidas, para que possa no dia seguinte vender sua força de trabalho, sua hora de dormir está condicionada ao fato de que deve dormir cedo. Toda sua vida familiar (da alimentação ao sono) passa na realidade a girar em torno dessas 8 ou 10 horas que vende ao patrão, o que significa as 24 horas do dia. [...] Recebe apenas um salário em troca de sua força de trabalho, o qual lhe permite recuperar as energias gastas, recompor seu organismo, para que amanhã possa vendê-las ao dono da máquina" (BASBAUM, 1977, p. 24-5).Assistimos, na atualidade, à ampliação desse quadro (inclusive de horário) em todos os espaços da vida do homem trabalhador. A mente e o corpo dos trabalhadores rastreados pelos diversos mecanismos de comunicação (telefonia, internet, televisão, rádio...). Amplificadores do (des)controle humano (reificado) que, além do exagero de se conviver com jornadas de trabalho superiores aos primórdios da Revolução Industrial, com carga horária superior a 15 horas, essa situação exige de quem a sofre (o trabalhador) a desconstituição do seu caráter e sensibilidade (sentimentos), pois impõe sua dissimulada aceitação como algo prazeroso, a fim de garantir a higidez (rigidez) e a (des)consciência (do sistema capitalista) da coisa humanizada em ascendente valor de uso e/ou lucro.