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ISBN 978-85-62480-96-6 versión impresa

Sem. de Saúde do Trabalhador de Franca Sep. 2010

 

ACIDENTES, DOENÇAS E ADOECIMENTOS DO TRABALHO CONTEMPORÂNEO

 

Trabalho e saúde mental: estudo com trabalhadores da indústria calçadista de Franca (SP)

 

 

Taísa Junqueira PrazeresI; Vera Lúcia NavarroII

ITerapeuta Ocupacional, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP/USP), Mestre. Contato: taisajunqueira@yahoo.com.br / taisajunqueira@usp.br
IISocióloga, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP/USP), Doutora. Contato: vnavarro@usp.br

 

 


RESUMO

Este trabalho pretende contribuir com as reflexões acerca das transformações no mundo do trabalho e suas conseqüências na saúde dos indivíduos. Partindo de uma metodologia qualitativa, esse trabalho objetivou estabelecer relações entre as condições de trabalho das atividades de pesponto das indústrias de calçados de Franca (SP) e os problemas de saúde mental relatados pelas trabalhadoras que as executam. Os resultados sugeriram que essa atividade se revela como fonte geradora de sofrimento psíquico para as trabalhadoras, invadindo todas as dimensões de suas vidas.

Palavras-chave: Sofrimento Mental. Saúde e Trabalho. Reestruturação Produtiva. Indústria de Calçados de Franca. Trabalho Feminino.


 

 

INTRODUÇÃO

O mundo do trabalho, no atual momento histórico, marcado pelo processo de reestruturação produtiva, aponta para a importância da reflexão acerca do trabalho e sua relação com a saúde dos indivíduos.

Navarro (2006) afirmou que vivencia-se um período de transformações organizacionais e tecnológicas que modificam os processos e as relações de trabalho e que tais mudanças ocorreram e vem ocorrendo em um período de adoção de políticas de cunho neoliberal que acabam por mercantilizar serviços essenciais como a saúde e a educação, o que contribui para o enfraquecimento das instituições públicas encarregadas da vigilância dos ambientes de trabalho, resultando em contratos precários e temporários de trabalho, aumento da jornada, intensificação do trabalho, depreciação salarial, exploração do trabalho em domicílio e crise do movimento sindical. A autora afirmou que, no Brasil, essas transformações se intensificaram a partir da década de 1990 e contribuíram para o avanço de doenças relacionadas ao trabalho, para o aumento de acidentes causadores de incapacidade (temporária ou permanente) e de mortes de trabalhadores.

Neste contexto de reestruturação produtiva do modo de produção capitalista, o trabalho, componente necessário para o processo de humanização do indivíduo enquanto ser social, tornou-se "degradado", "aviltado" e "estranhado", se transformando em meio de subsistência (ANTUNES, 2006, p. 123) para a classe trabalhadora. Segundo Franco e Druck (1998, p. 63) se consolidou rapidamente nas sociedades ocidentais "[...] um processo de 'coisificação' dos indivíduos e das relações sociais" - o indivíduo perdeu sua dimensão subjetiva, sendo esta instrumentalizada diante de uma sociedade laboriosa que busca incessantemente a racionalidade econômica dependente do lucro, do retorno do que fora investido, da acumulação e da dominação.

No bojo destas mudanças verifica-se um crescimento significativo do trabalho feminino, responsável, em muitos países avançados, por mais de 40% da força de trabalho. Contudo, na divisão sexual do trabalho pelo capital no espaço fabril, as atividades de capital intensivo são exercidas predominantemente por homens e, às mulheres, são destinadas atividades mais rudimentares, com menores níveis de qualificação e de trabalho mais intenso. Repercute, também, o fato da força de trabalho feminina ser absorvida pelo capital principalmente no universo de trabalho precarizado, part time, informal, desregulamentado; a tais mazelas adicionam-se a desigualdade salarial, contraditória à sua participação no mercado de trabalho e a desigualdade dos direitos sociais e trabalhistas (ANTUNES, 1999).

Diante dessas transformações, tem-se observado nos últimos anos um aumento significativo do número de queixas e sintomas relacionados ao trabalho e suas precárias condições, intensificando gravemente o processo de adoecimento, resultando no crescente número de trabalhadores com fadiga, déficits auditivos e visuais, transtornos de ansiedade, intoxicações exógenas, além de outras doenças como as lesões por esforços repetitivos (LER) (CARLOTO, 2003), sendo que a destruição do indivíduo no trabalho se estende para além de seu espaço restrito e atinge todas as esferas de sua vida privada (LANCMAN, 2007), pois a doença, nas palavras de Almeida (2000), representa um rompimento na vida cotidiana e modifica não só as relações sociais, como seu projeto de vida.

Essa realidade pode ser claramente verificada nas indústrias de calçados de Franca, uma vez que visando atingir os padrões de qualidade, produtividade e lucratividade impostos por esse novo cenário mundial, essas indústrias incorporaram mudanças vivenciando um processo excludente e desigual, que gera grandes consequências para os trabalhadores.

Uma das principais mudanças advindas da adoção do processo de reestruturação produtiva em Franca foi a eliminação de um grande número de postos de trabalho, expulsando muitos trabalhadores das indústrias e aumentando, significativamente, o número de desempregos.

A esses trabalhadores não restaram muitas saídas. Diante de condições precárias de trabalho, a economia informal foi crescente e esses trabalhadores acabaram se submetendo ao trabalho coureiro-calçadista fazendo bicos, sem vínculos empregatícios, prestando serviços às indústrias, os quais são realizados nas bancas ou até mesmo no próprio domicílio do trabalhador, invadindo todas as dimensões de sua vida.

Diante deste contexto, este trabalho tem por base estudos realizados pelas autoras desde a década de 1990, com trabalhadores da indústria de calçados de Franca (SP), que tiveram por objetivo compreender como as transformações ocorridas com a intensificação da reestruturação produtiva no setor repercutiram e vem repercutindo na saúde dos trabalhadores.

 

SOFRIMENTO: O PREÇO PAGO PELA SOBREVIVÊNCIA

Com a processualidade da reestruturação produtiva no Brasil e suas consequências, tais como a incorporação de novas tecnologias; a diminuição de muitos postos de trabalho; a intensificação do ritmo de trabalho; a sobrecarga e a exigência dos que continuam trabalhando; a necessidade de tornarem-se trabalhadores polivalentes para se manterem empregados; a crescente precarização das relações de trabalho, tem-se ampliado e agravado significativamente o riscos de acidentes e o quadro de doenças ocasionadas pelo trabalho (HELOANI; LANCMAN, 2004)

Essa situação é evidenciada pela voracidade com que o capital consome a força de trabalho vendida pelos trabalhadores em troca de um salário, que se caracteriza pela única alternativa que lhes restam para a manutenção de suas existências.

"O mundo do trabalho adoece", à medida que a organização do trabalho o transforma em sacrifício para quem o realiza, tornando-o extenuante e marcado por condições cada vez mais precárias (LOURENÇO, 2008, p. 4), uma vez que o perfil do trabalhador no capitalismo contemporâneo é o de um trabalhador flexível, capaz de "conviver com pressão, com o medo, com a inconstância, com a concorrência e a competição alma da sobrevivência" (LIMA, 2001, p. 58).

Desta forma, as consequências das formas de organização do processo de trabalho na saúde dos trabalhadores não apenas os destroem, mas acabam por arruinar todas as suas relações devido à falta de espaço para vivências significativas, para diálogos, resultantes do ritmo acelerado e dos discursos alienantes, que não somente esgotam o trabalhador fisicamente e mentalmente, como também provocam a competição entre eles (MASUZAKI; CARVALHAL, 2009).

O trabalho realizado pelos sapateiros das indústrias de calçados de Franca pode suscitar graves consequências à saúde psíquica destes. Dar voz ao sofrimento desses indivíduos nos permite conhecer os agravos intimamente relacionados à precarização de seus trabalhos (PRAZERES, 2010). Longe de se tratar de casos isolados, buscamos através da visibilidade desta situação, compreender a dimensão da gravidade da problemática vivenciada por muitos, tanto dentro dos muros das fábricas, como fora.

Os depoimentos dos trabalhadores elucidam que, muitas vezes, a atividade realizada se revela como fonte geradora de sofrimento, devido às consequências desta na saúde e na vida daqueles que a realiza. De acordo com Sato e Bernardo (2005) a percepção do próprio trabalhador sobre as relações existentes entre a saúde mental e o trabalho, resultante de suas vivências e experiencias, é reconhecida como uma importante fonte de informação reveladora dos efeitos dessa relação, como pode ser observado nos depoimentos abaixo:

Eu me sinto muito cansada. [...]  a cabeça dói muito quando você fica muito nervosa e muito estressada com o serviço, a cabeça fica daquele jeito, né? Dói, dói muito e você deita na cama você não consegue nem ficar deitada, nem sentada, nem ficar em pé. [...]. Eu tomo muito calmante para dormir. Até antidepressivo eu tomo, porque você fica tão nervosa que você entra em depressão. Tem dia que eu choro em cima da máquina porque não vai dando certo, não vai dando certo e você vai ficando nervosa e você tem que tomar remédio. Talvez se eu tivesse outro tipo de serviço eu não sentiria tantas coisas que eu sinto1.

[...] chega no final do dia eu já estou cansada demais. Nossa, muito cansada, quebrada, porque ficar sentada o dia inteirinho não é fácil não. Além disso, o serviço estressa, vixe, estressa e muito. Tem hora que não dá certo e é aquela pressão. Irrita muito, eu fico muito nervosa [...]. Eu tenho muita dor de cabeça também, é o que mais dá em mim, já fiz um monte de tratamento. Sei lá o que é isso, mas a minha cabeça dói todo dia, todo dia, mas eu já ando com remédio na bolsa2.

De acordo com Alves (2007, p. 235), o toyotismo ao dar continuidade com as formas de organização do taylorismo-fordismo, acaba por atingir o corpo e a mente do trabalhador, sendo o estresse uma das claras consequências vivenciadas diante desse novo cenário, o qual se caracteriza por um sofrimento "que expressa o caráter totalitário e totalizante das novas implicações objetivas (e subjetivas) da produção de valor. O estresse é sintoma epidemiológico do sócio-metabolismo da barbárie e das novas condições da produção do capital."

Além disso, observa-se atualmente uma

pressão constante contra a grande massa de trabalhadores existente em quase todo o mundo. Uma ameaça com objetivo certeiro faz com que milhares de pessoas sintam-se sobressaltadas, pois a única ferramenta de que dispõem, sua força de trabalho, pode ser dispensada a qualquer momento. O desprezo assola o universo do trabalho e traz consequências drásticas para todos os que têm em seu trabalho sua única forma de sobrevivência (HELOANI; CAPITÃO, 2003, pp. 102-103).

Assim, os sofrimentos psíquicos decorrentes do trabalho realizado pelos trabalhadores agravam-se com a coexistência do sentimento de medo diante da insegurança de um trabalho incerto. De acordo com Castelhano (2005), o sentimento de medo do desemprego é agravado pelas mudanças estruturais do trabalho, que somado à angústia, acaba por ocasionar danos maiores ao sofrimento do trabalhador.

[...] eles fazem muita pressão em cima do trabalhador e muita gente cede por medo de perder o serviço [...]. É por medo, só isso3.

Eu sou uma pessoa que eu sempre tive medo de levar atestado e eles me mandarem embora. De procurar o ambulatório da fábrica e me mandarem embora. Então hoje em dia a gente não tem segurança, a gente fica nas mãos deles4.

O medo do desemprego torna-se, portanto, um poderoso meio de manipulação (CASTELHANO, 2005), que através das novas formas de intensificação do trabalho, possibilitam a exploração e a dominação dos trabalhadores através de situações precárias de trabalho encontradas dentro e fora dos ambientes laborais (SELIGMANN-SILVA, 2009).

Assim, o medo revela-se como fator de submissão, omissão e produtividade, uma vez que "por medo, [os trabalhadores] passam a produzir mais do que as suas forças, ocultando suas queixas e evitando, simultaneamente, serem humilhados e demitidos" (BARRETO, 2000, p. 228).

É importante ressaltar que o trabalhador só manifesta sua doença quando o equilíbrio é rompido, tornando o sofrimento insuportável, ou seja, a doença só é evidenciada aos outros quando o trabalhador já utilizou de todos os seus recursos (intelectuais, psicológicos, afetivos) para lidar com o que lhe é imposto e percebe que nada pode fazer para transformar essa situação ou adaptar-se à ela (LANCMAN, 2007).

Ao não ver saída para sua situação de sofrimento, o trabalhador passa então a vivenciar também o sentimento de desamparo, que somado a sua dor física, resulta em um sofrimento psíquico intenso diante de sua própria impotência (BORSOI; RIGOTTO; MACIEL, 2009).

De acordo com Dejours (2000, p. 64),

[...] na atual conjuntura, o 'gerenciamento pela ameaça', respaldado na precarização do emprego, favorece o silêncio, sigilo e o cada um por si. Tais obstáculos ao aparecimento da verdade sempre estiveram presentes na organização do trabalho, mas a manipulação da ameaça que faz calar as opiniões contraditórias e confere à descrição 'oficial' do trabalho um domínio sobre as consciências, está incomparavelmente mais difundida do que há 20 anos. Paradoxalmente, os próprios trabalhadores se tornam cúmplices da negação do real do trabalho e do progresso da doutrina pejorativa do fator humano, graças ao seu silêncio, à sonegação de informações e à desenfreada concorrência a que se veem mutualmente constrangidos.

A pressão por parte das empresas, para não reivindicarem seus direitos intensifica o sofrimento do trabalhador, "pois se somam a dor física, a mágoa, o sentimento de desamparo e o medo de não mais poder trabalhar" (BORSOI; RIGOTTO; MACIEL, 2009, p. 177).

Ao se renderem às pressões e abrirem espaços para o medo, para a repetição, para o sentimento de impotência diante de suas condições de trabalho, os trabalhadores passam a vivenciar o que Dejours (1994) denomina sofrimento patogênico, no qual a rigidez da organização do trabalho apresenta-se tão intensa que acaba por extinguir qualquer expressão de autonomia ou reconhecimento.

Nos referimos aqui àquele sofrimento que emerge no choque e na impossibilidade de um rearranjo entre o sujeito-portador de uma história singular e personalizada, e uma organização do trabalho despersonalizante. Quanto mais rígida for a organização do trabalho, mais acentuada é sua divisão e menor o conteúdo significativo da tarefa, bem como as possibilidades de mudá-lo. Assim, o sofrimento psíquico aumenta correlativamente (MERLO et al., 2003, p. 122).

Os depoimentos dos trabalhadores trazem à luz elementos significativos que elucidam claramente a negação do sofrimento, lamentável condição imposta para a sobrevivência humana diante do trabalho.

Igual eu vou citar meu caso. Eu vai fazer uns 3 anos que eu não vou no médico fazer um exame completo porque eu não quero faltar do serviço e levar atestado. Eu deixo de ir no médico para não faltar. Mas igual esses dias a fábrica me mandou para o médico porque não teve jeito mesmo, eu passei mal lá na fábrica. Eu preciso até fazer exame porque eu não sei até hoje o que me deu. Sei lá, eu morro de medo de perder meu emprego, não gosto de ficar faltando, eu sou responsável até a mais da conta. Então eu tento segurar o máximo quando eu estou doente, só em último caso mesmo que eu falo que eu não estou dando conta, que eu preciso de  ir no médico, mas caso contrário eu fico quieta5.

Eu acho que o ser humano é igual uma máquina. Queima, estoura um fiozinho ali, você vai lá e faz uma gambiarra, aí estoura em outro lugar, você vai lá e faz outra gambiarra ali. Aí quando você vê, você tem que trocar a máquina inteira porque não tem mais conserto e assim é o ser humano. Se você sente alguma coisa e não vai procurar saber o que é no médico, aí você toma um remedinho que passa, aí chega de tarde está doendo de novo, aí você toma outro remedinho e acha que passa. Aí não há ser humano que aguente, aí a pessoa acaba adoecendo de vez6.

Tal condição de sofrimento surge, portanto, quando o grau de insatisfação do trabalhador não pode mais ser mudado, uma vez que todos os seus meios de defesa já foram esgotados (DEJOURS, 1992). A insatisfação no trabalho designa um complexo conjunto de sentimentos, tais como vergonha por sentir-se apenas um apêndice da máquina e indignidade diante da atividade executada (ASSUNÇÃO, et al., 2006). Nessas situações a subjetividade do indivíduo é atingida gerando grande sofrimento ao trabalhador que acaba por desempenhar seu trabalho de forma meramente mecânica, com total ausência de prazer (SELIGMANN-SILVA, 1994).

Esses sentimentos estiveram mais presentes dentre os depoimentos dos trabalhadores que desempenham seu trabalho fora dos ambientes fabris, devido às condições ainda mais precarizadas que fazem parte do mundo de suas atividades laborais.

Não me sinto satisfeita não, porque você trabalha muito e ganha pouco, entendeu? Você não é registrada e não tem nada, não tem convênio médico, não tem nada7.

[...] eu não estou satisfeita com as condições do meu serviço porque eu gostaria de estar registrada, daqui uns tempos poder aposentar porque eu já sei que isso vai ser difícil porque eu não estou pagando uma previdência. Então como eu vou me aposentar?8

Dejours (1992) destacou a insatisfação do trabalhador como uma das formas fundamentais de sofrimento no trabalho, sendo o sentimento de desvalorização um fator importante no seu desencadeamento.

Os depoimentos dos trabalhadores referentes aos sentimentos de (des)valorização e reconhecimento vivenciados diante de seus trabalhos ilustraram a perversidade do modo de produção capitalista, a precarização de suas atividades laborais e a desumanização das relações estabelecidas no contexto organizacional.

Eu acho que eu não estou valendo mais nada, porque quanto mais a gente faz, mais eles querem e mais parece que a gente não está fazendo nada. Então querendo ou não, a gente nunca recebe o valor pelo que a gente faz, a gente nunca é valorizado. Então falta muita valorização9.

[...] eu não tenho nenhum valor para eles. Você não tem valor nenhum, é descartável. O ser humano é descartável [...]. Daqui uns dias a gente vai virar escravo e não vai ser ninguém10.

Assim, a insatisfação no trabalho, a falta de reconhecimento e a desvalorização sentidos pelos trabalhadores caracterizam-se por possuírem determinado potencial destrutivo à saúde psíquica destes, por revelarem-se como fatores desencadeadores de sofrimento e de doenças ocupacionais. Como afirmou Dejours (2000, pp. 34-35),

quando a qualidade de meu trabalho é reconhecida, também meus esforços, minhas angústias, minhas dúvidas, minhas decepções, meus desânimos adquirem sentidos. Todo esse sofrimento, portanto, não foi em vão; não somente prestou uma contribuição à organização do trabalho, mas também fez de mim, em compensação, um sujeito diferente daquele que eu era antes do reconhecimento. O reconhecimento do trabalho (...), pode depois ser reconduzido pelo sujeito ao plano da construção de sua identidade (...) a identidade constitui a armadura da saúde mental (...). Não podendo gozar os benefícios do reconhecimento de seu trabalho nem alcançar assim o sentido de sua relação para com o trabalho, o sujeito se vê reconduzido ao seu sofrimento e somente à ele.

Desta forma, o não reconhecimento, a falta de oportunidade de crescimento, a desvalorização no trabalho resultam em sentimentos de insatisfação pela realização de algo sem sentido em sua vida, "o que significa dizer que, sob o capitalismo, o trabalhador repudia o trabalho; não se satisfaz, mas se degrada; não se reconhece, mas se nega (ANTUNES, 2006, p. 127).

A coexistência da ausência de valorização e reconhecimento no trabalho e das precárias condições de trabalho nas indústrias de calçados de Franca leva-nos à falta de perspectiva com relação ao futuro dentro e fora de seus trabalhos, como revela essa trabalhadora.

Sonhos daqui para frente eu não tenho mais nenhum. Eu não penso em realizar sonhos porque o salário que eu ganho não dá para ter realizações. Eu acho que cada dia que passa está se tornando mais difícil da gente sonhar, a não ser que eu faça cursos e estude para ter um melhor salário. Mas em termos de trabalhar no pesponto, não tem jeito de sonhar muito. A gente tem que acordar e largar de sonhar11.

No contexto contemporâneo, as vivências dos trabalhadores relativas à falta de perspectivas, de desesperanças intensificam. A imposição do capitalismo e sua perversidade tende a extrapolar os limites humanos e a identidade do indivíduo construída ao longo da vida, abstraindo o "ser humano que tem um corpo e uma fisiologia, afetos e vínculos sociais, limites e necessidades próprias" (SELIGMANN-SILVA, 2007, p. 92).

A perda de identidade profissional, de auto-estima, de forças para lutar por condições melhores de trabalho, de perspectivas de vida encontram-se com a traumática situação de sofrimento vivenciada pelos trabalhadores diante de suas atividades laborais.

Os depoimentos dos trabalhadores, por vezes calados por choros que revelavam a angústia, o desespero, o sofrimento, o medo, a revolta, a raiva, a descrença são provas vivas das palavras de Marx (1989, p. 148) de que "o trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. [...]  a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens".

Os trabalhos desses indivíduos, permeados por desrespeito e humilhações geram grandes sofrimentos, os quais nem sempre (ou quase nunca) podem ser expressos por meio de sintomas psíquicos e físicos que, por vezes refletem muito pouco a verdadeira dor sentida diante das condições destes trabalhos (PRAZERES, 2010).

Para finalizar, é importante ressaltar que a busca por melhores condições de trabalho, deve ser a busca por uma nova vida dotada de sentido, que deve ser alcançada pela reconstrução de

um novo modo de produção fundado na atividade autodeterminada, baseado no tempo disponível (para produzir valores de uso socialmente necessários), na realização do trabalho socialmente necessário e contra a produção heterodeterminada (baseada no tempo excedente para a produção exclusiva de valores de troca para o mercado e para a reprodução do capital) (ANTUNES, 1999, p. 179).

Para tanto, é necessário vencermos a dominação imposta pelo modo de produção capitalista, para que possamos buscar uma vida com sentido dentro e fora do trabalho, em todos os espaços de nossos cotidianos. Lutemos por isso!

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A maneira como o trabalho nas indústrias de calçados de Franca é organizado traz implicações importantes para as condições de saúde dos trabalhadores; seus limites são testados a todo instante através das relações estabelecidas com seus trabalhos.

Os sofrimentos relatados pelos trabalhadores evidenciam claramente essas conseqüências; contudo, não revelam a real intensidade com que tais sofrimentos destoem suas vidas, uma vez que somente eles sentem verdadeiramente o fardo desumano de seus trabalhos.

É importante destacar, como afirmou Lancman (2007), que se o trabalhador é capaz de concretizar através de sua fala a experiencia vivenciada, ele também é capaz de buscar um sentido dentro e fora do trabalho e assim, contribuir na evolução da organização do trabalho, na busca pela construção de um mundo mais justo em que a vida humana sobreponha ao capital.

Eis um caminho a ser percorrido!

 

REFERÊNCIAS

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1 E. M., 27 anos, sapateira terceirizada. Entrevista concedida em 17/abr/2009.
2 C. H., 46 anos, sapateira. Entrevista concedida em 14/fev/2009.
3 M. R., 44 anos, sapateira. Entrevista concedida em 05/maio/2009.
4 M. C., 43 anos, pespontadeira terceirizada. Entrevista concedida em 23/jul/2009.
5 V. V., 35 anos, pespontadeira. Entrevista concedida em 28/jun/2009.
6 M. R., 44 anos, sapateira. Entrevista concedida em 05/maio/2009.
7 S. H., 42 anos, pespontadeira terceirizada. Entrevista concedida em 20/ago/2009.
8 E. M., 27 anos, sapateira terceirizada. Entrevista concedida em 17/abr/2009.
9 C. K., 22 anos, pespontadeira. Entrevista concedida em 22/jan/2009.

10 M. R., 44 anos, sapateira. Entrevista concedida em 14/jan/2009.
11 A. F., 37 anos, sapateira desempregada. 15/mar/2009.