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ISBN 978-85-62480-96-6 versión impresa

Sem. de Saúde do Trabalhador de Franca Sep. 2010

 

ACIDENTES, DOENÇAS E ADOECIMENTOS DO TRABALHO CONTEMPORÂNEO

 

A relação entre saúde e trabalho de médicos do sistema único de saúde do município de Jaguariúna (SP)

 

 

Luiz Gonzaga Chiavegato FilhoI; Vera Lúcia NavarroII

IPsicólogo - Doutorando em Psicologia FFCLRP/USP. E-mail: rafanini@hotmail.com
IIProfessora Orientadora. E-mail: vnavarro@usp.br

 

 


RESUMO

O objetivo principal foi investigar as relações entre o trabalho e o processo saúde/doença dos médicos do SUS do município de Jaguariúna (SP), através de uma pesquisa qualitativa, na perspectiva teórica da Clínica da Atividade. Foram realizadas entrevistas individuais abertas e de auto-confrontação. Foram entrevistados quinze médicos e dois gestores. A análise das entrevistas indicou que o trabalho dos médicos das UBS's de Jaguariúna caracteriza-se, sobretudo, pelo desenvolvimento de uma atividade 'contrariada' ou 'impedida', favorecida pela impossibilidade desses profissionais em organizar o seu próprio trabalho, que impacta na saúde na forma de stress, distúrbios de ansiedade, entre outros.

Palavras-chave: Saúde e trabalho; Trabalho; Médicos; Saúde do trabalhador; Psicologia do trabalhador.


 

 

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho de pesquisa inicia-se a partir de algumas reflexões, na busca por caminhos que pudessem, além de aprofundar o conhecimento acerca das relações saúde e trabalho, sobretudo no que se refere aos aspectos psicossociais, contribuir para o desenvolvimento do poder de ação dos trabalhadores sobre as situações de trabalho, em prol de mais conforto, saúde e eficiência. Teve como objeto de estudo o trabalho dos médicos do Sistema Único de Saúde do município de Jaguariúna (SP), objetivou investigar as relações entre o trabalho e o processo saúde/doença daqueles profissionais. Foi, então, desenvolvida uma pesquisa qualitativa, na perspectiva da psicologia do trabalho, desenvolvida pelos autores da Clínica da Atividade. Foram realizadas entrevistas individuais abertas e de auto-confrontação. Ao todo foram entrevistados quinze (15) médicos e dois (2) gestores da Secretaria de Saúde desse município.

O princípio básico que orientou o desenvolvimento dessa pesquisa é a idéia de que é preciso reconhecer e explicitar as singularidades e as particularidades presentes no comportamento do trabalhador nos ambientes do trabalho. Buscar, nas estratégias elaboradas pelos trabalhadores para atuar em diversas condições de trabalho, suas razões, critérios de decisão, objetivos e motivações, enfim, um sentido que organiza o desenvolvimento ou não de suas ações (LIMA, 2001). Nesse caso, o trabalho pode ser considerado como o processo de produção da existência humana. Assume-se que o homem não nasce pronto para o trabalho, dotado das aptidões e habilidades históricas da humanidade. O homem precisa ainda conquistá-las e dominá-las. Isso faz com que o trabalho, e tudo que se relaciona a ele, não sejam entendidos como um processo natural ou hereditário, mas histórico.

Aquele que pretende investigar as relações entre saúde e trabalho não pode ignorar as transformações importantes ocorridas no mundo trabalho, atualmente, cujas principais tendências apontam para as limitações na absorção da força de trabalho jovem, inclusive qualificada; aumento significativo do trabalho feminino; a instabilidade e irregularidade ocupacionais; o subemprego e o desemprego recorrente, duradouro e sem perspectivas de inclusão no mercado formal; as dificuldades de inserção da mão de obra não qualificada; diminuição de postos de trabalho, por conta das inovações tecnológicas, bem como a desregulamentação de novas formas de inserção laboral (ANTUNES; ALVES, 2004).

Tais tendências configuram um novo perfil de trabalhador, bem diferente do período taylorista/fordista, onde se valorizam sujeitos flexíveis, criativos e inovadores, que saibam trabalhar em equipe e compreendam o sentido e a velocidade das mudanças, visando agilizar as tomadas de decisão.  Devem saber conviver com a pressão, o medo, a inconstância, a concorrência, e a competição.

Nesse contexto, o trabalho em saúde, embora ancorado ainda nos princípios tayloristas/fordistas, também sente o impacto das transformações tecnológicas e das mudanças organizacionais do mundo do trabalho, sobretudo a partir dos anos 1980 (DELUIZ, 2001).

Entretanto, entende-se que a gestão das relações de trabalho sempre ocupou um lugar secundário na área da saúde, que, historicamente, privilegiou as questões clínicas e do cuidado e não tomou conhecimento das ações de desprecarização do trabalho, redução da rotatividade e do absenteísmo, de construção de um plano de carreira, entre outros. Dessa forma, a construção  de políticas públicas que transforme a gestão dos serviços de saúde, em prol de ambientes de trabalho mais saudáveis e estimulantes tem se configurado como um importante e difícil desafio (PIERANTONI, 2002; PIERANTONI; VARELLA; FRANÇA, 2004; BARBOSA et al., 2008; SANTOS, 2008; COHN, 2009).

Alguns estudos demonstram que o cenário apresentado acima, tem impactado em todos os profissionais de saúde, inclusive a profissão médica, agregando novas pressões pessoais e sociais, revelando inadequação das condições materiais e organizacionais do trabalho nos estabelecimentos de saúde e provocando fadiga, crescente insatisfação no trabalho, impactos no bem estar subjetivo e problemas de saúde mental (MURRAY et al., 2001; NOGUEIRA-MARTINS, 2003; SOBRINHO et al., 2006; MELO; ASSUNÇÃO; FERREIRA, 2007; BARBOSA et al., 2007; OLIVEIRA, 2008).

No caso específico do processo e da organização do trabalho médico, as mudanças promovidas pela reestruturação produtiva, repercutem em alguns aspectos importantes como, por exemplo, a perda da autonomia; na remuneração (assalariamento crescente); no estilo de vida; na saúde dos profissionais; na onipresença das grandes corporações de saúde; super-especialização, devido aos avanços tecnológicos; a rotinização do trabalho; no comportamento ético e nas relações médicos e pacientes, contribuindo para que sua atividade profissional se torne extremamente desgastante (MACHADO, 1996; SCHRAIBER, 1998; NOGUEIRA-MARTINS, 2003; CARNEIRO; GOUVÊIA, 2004; SOBRINHO et al., 2006).

Essas repercussões na saúde caracterizam-se por sensações de mal estar, desconforto psíquico e emocional, desafetos e situações desagradáveis e, por vezes, conflituosas. Um sofrimento mais mental que físico podendo, ou não, adquirir feição de doença catalogada (NOGUEIRA-MARTINS, 2003; SOBRINHO et al., 2006 ; MELO; ASSUNÇÃO; FERREIRA, 2007).

Entretanto, apesar das precárias condições de trabalho observadas atualmente e de sua importância para a vida da sociedade, a teorização, sobre as consequências para as condições de vida e saúde, desse profissional, é relativamente pequena. A maioria das pesquisas adota métodos epidemiológicos, privilegiando o enfoque da etiologia das doenças e o tratamento dos agravos, além do foco no mercado de trabalho, no perfil dos profissionais e nas condições de trabalho, como a jornada de trabalho prolongada, ritmo intenso, predomínio das atividades de plantão ou, então elementos isolados de sua saúde mental (NOGUEIRA-MARTINS, 1991, 1998, 2003; ALVES et al., 2004; COHEN; RHYDDERCH, 2006; BARBOSA et al., 2007; MILLER, 2009).

Todavia, para compreensão dos impactos desse cenário na saúde dos profissionais de saúde é preciso promover a mudança dos pressupostos epistemológicos e ontológicos que dão forma ao campo, visando integrar os múltiplos e dinâmicos estados de ser e, por sua vez, da saúde/doença, entendido como, de acordo com Sawaia (2003, p.83), "como um processo dialético em que o subjetivo e o objetivo, o ético e o biológico nem estão cindidos, nem se confundem, mas se dilaceram, acrescentam-se, identificam-se e superam-se ao mesmo tempo", enaltecendo a importância do significado e dos sentidos atribuídos pelas pessoas à saúde, doença, práticas de saúde, medicamentos, trabalho, ao corpo, etc. na compreensão do processo saúde/doença (PAIM; ALMEIDA FILHO, 2000; WALTNER-TOEWS, 2000; PALMA; MATTOS, 2001; CHIAVEGATO FILHO, 2004; SAWAIA, 2003).

Portanto, para a compreensão dos impactos das situações de trabalho na saúde deve-se considerar o singular e o particular com o intuito de conhecer os modos operatórios dos trabalhadores e as estratégias de regulação das condições de trabalho diante das exigências da organização de trabalho. O grande desafio é, a partir desta compreensão, criar estratégias de prevenção e de desenvolvimento da capacidade de ação dos trabalhadores sobre as situações de trabalho (DOOPLER, 2007).

Em relação à contribuição da psicologia nessa questão é possível observar a predominância da visão de que o trabalho é meramente um campo de aplicação de sua produção teórica. Ignora-se a diversidade, o singular e o particular presente nas situações de trabalho e nas estratégias elaboradas pelos trabalhadores para lidar com determinadas condições e organização do trabalho. Por isso, é possível encontrar modelos teóricos críticos à redução do sujeito a um operador, em busca da identificação de como o sujeito articula suas diferentes competências, tanto na dimensão psíquica quanto na cognitiva, frente à imprevisibilidade da realidade, considerando a articulação da variabilidade inter e intra-individual e a decorrente do contexto de trabalho (SPINK, 1996;  CLOT, 2007).

Nessa perspectiva ontológica em relação à centralidade do trabalho no desenvolvimento do ser humano, os estudos de Clot (2006), dentro da tradição histórico-cultural em psicologia, têm mostrado que é na atividade real do sujeito que é possível compreender o sentido e a subjetividade, o homem se mostra na ação, pois o que o liga ao mundo exterior são as relações com os homens. Pelo trabalho reconhece-se a si mesmo e o outro, onde a subjetividade se dá como processo, no contexto material, social, histórico e objetivo.

Portanto, para o presente estudo, adota-se como quadro teórico-metodológico a psicologia do trabalho desenvolvida pelos autores da Clínica da Atividade, que tem como ponto de partida identificar as relações que se estabelecem entre subjetividade e atividade de trabalho. A compreensão da relação entre o trabalho e subjetividade não é centrada na luta contra o sofrimento, mas na atividade de trabalho como fonte permanente de recriação de novas formas de viver, sendo a subjetividade entendida "como produto da atividade" (SILVA, 2002, 2005; CLOT, 2006, 2007).

 

2 METODOLOGIA

Diante do objetivo principal dessa pesquisa, que foi analisar as relações entre trabalho e saúde de médicos do SUS de Jaguariúna, optou-se pela realização de um estudo qualitativo, na perspectiva da psicologia do trabalho, desenvolvida pelos autores da Clínica da Atividade (SILVA, 2002, 2005; CLOT, 1995, 1999, 2000, 2001, 2006, 2007).

Assim, de acordo com essa perspectiva, realizou-se um estudo de caso envolvendo os profissionais médicos do SUS de Jaguariúna/SP. A pertinência do desenvolvimento de um estudo de caso está na possibilidade de "investigar um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto de vida real, especificamente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos", visando preservar as características dos acontecimentos da vida real, tidos como fenômenos sociais complexos. Entende-se, portanto, que uma situação de trabalho não pode ser entendida fora do seu contexto (YIN, 2005, p. 32).

A pesquisa foi desenvolvida na Secretaria Municipal de Saúde de Jaguariúna/SP. A autorização para o início do trabalho foi concedida pela Diretora Administrativa, com o consentimento do Secretário Municipal. Todas as etapas do projeto foram realizadas nas dependências da Secretaria Municipal de Saúde de Jaguariúna e das Unidades Básicas de Saúde. As entrevistas iniciais e de autoconfrontação foram feitas no interior dos próprios consultórios, entre uma consulta e outra ou no final da jornada de trabalho dos médicos.

Esta pesquisa não provocou riscos aos sujeitos estudados uma vez que todos poderiam livremente negar ou aceitar contribuir para a pesquisa. Além disso, o anonimato foi garantido, bem como o direito de suspender sua participação no decorrer da pesquisa a qualquer momento.

Primeira etapa

A etapa inicial correspondeu à realização das entrevistas individuais abertas com os profissionais médicos. Em razão da perspectiva qualitativa desse estudo, que requer uma relação mais íntima e próxima à situação pesquisada, o processo de definição do número de médicos abordados esteve sempre aberto, flexível, para mudanças no decorrer da pesquisa. Entretanto, houve o cuidado para que o conjunto dos médicos participantes do estudo representa-se as diversas especialidades oferecidas nos serviços de saúde (VASCONCELOS, 2002).

O universo desse estudo foi composto por médicos das Unidades Básicas de Saúde, cujas especialidades são: clínica geral, geriatria, pediatria e ginecologia.  

As entrevistas individuais abertas foram realizadas no período de setembro de 2008 a março de 2009. Foram entrevistados quinze (15) profissionais médicos, sendo que oito (8) são clínicos gerais, três (3) ginecologistas, três (3) pediatras e um (1) geriatra. Além deles foram entrevistados dois gestores da Secretaria de Saúde. Tanto os médicos, quanto os gestores, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.  As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas e analisadas.

A inclusão dos sujeitos obedeceu a dois critérios principais: ter mais de um ano no serviço e ser do quadro permanente da Prefeitura de Jaguariúna.  Esses critérios se justificam por caracterizar um profissional que já conhece razoavelmente a operacionalização do sistema de saúde e por ser estável do ponto de vista do vínculo empregatício. Além disso, a inclusão procurou observar a divisão proporcional das especialidades oferecidas pela Secretaria de Saúde do município e a realização de entrevistas com ao menos um médico de cada Unidade Básica de Saúde.

Vale salientar que não foi fácil entrevistar profissionais médicos. Em geral, relutaram em admitir problemas e fraquezas, tanto no trabalho, quanto em sua saúde, como se estivessem imunes ou sempre minimizando as ocorrências. Praticamente, a maioria dos entrevistados demonstrou uma sensação de vergonha quando tinha que admitir as dificuldades, como se os problemas fossem comuns para os outros, menos para eles. Assim, com muita facilidade, no decorrer da entrevista, iniciavam as respostas apontando para os colegas e não para si próprio.

Segunda etapa

A segunda etapa, realizada de agosto a novembro de 2009, se constituiu da realização de entrevistas de autoconfrontação, baseada na técnica do sósia, feitas com cinco (5) médicos, um (1) de cada Unidade Básica de Saúde de Jaguariúna e que participaram da primeira etapa. Objetivou, a partir do material transcrito e preliminarmente analisado das entrevistas individuais abertas, aprofundar a compreensão de temas surgidos na primeira etapa. Diferentemente da entrevista individual aberta, a de autoconfrontação não foi feita em apenas um encontro. Foram ao menos dois encontros, que serão detalhados a seguir.

As entrevistas de autoconfrontação foram apenas baseadas na técnica do sósia, diante da dificuldade em encontrar horários para reunir os médicos fora do ambiente de trabalho, em razão dos múltiplos vínculos empregatícios, e da ausência de apoio institucional, para realizá-los durante a jornada de trabalho, assim foi realizada com pelo menos um médico de cada Unidade Básica de Saúde, individualmente ou na presença de um colega, caso houvesse disponibilidade.

As entrevistas de autoconfrontação iniciaram-se com o pesquisador apresentando a transcrição do material coletado inicialmente junto ao médico, confirmando opiniões, esclarecendo dúvidas ou aprofundando determinado tema. Em seguida, foi apresentada uma pré-análise, ou seja, as interpretações iniciais feitas do material coletado, onde foi possível identificar um aspecto presente na situação de trabalho, comum a todos os entrevistados, que foram as dificuldades encontradas na organização das consultas, mais precisamente para adaptar-se à regra, elaborada pelos gestores, dos quinze (15) minutos para cada consulta.

Depois desse momento, foi então feita ao médico (a) a pergunta regra da técnica do sósia: suponha que eu seja o seu sósia e que amanhã eu irei substituí-lo (a), quais são as instruções, relativas à consulta médica, que eu devo seguir para que ninguém perceba a substituição? Ao longo do relato, foram solicitados mais detalhes acerca de quatro (4) elementos da experiência profissional: acerca da tarefa como tal; acerca das relações entre os indivíduos ou pares no coletivo de trabalho; sobre as relações hierárquicas; e sobre a organização formal e informal do ambiente de trabalho. Em seguida, durante um novo encontro, o material transcrito foi apresentado ao médico, que, individualmente, o comentou de forma oral. Em um dos comentários, foi possível contar com a presença de outro médico(a) da respectiva unidade.

Entende-se que a autoconfrontação é possível mesmo quando é feita sobre a transcrição de um depoimento, não necessariamente sobre um registro em vídeo ou áudio, pois, de acordo com Lima (2001, p.140), "trata-se de uma verbalização produzida pelo trabalhador quando se confronta com os dados coletados sobre seu comportamento e quando responde a perguntas que incidem diretamente sobre estes dados".

Análise dos resultados

O procedimento de interpretação dos dados teve como referência a técnica da análise de conteúdo de Bardin (1995), porém tomada a partir do refinamento promovido por Turato (2003) dessa mesma técnica, com o objetivo de favorecer as inferências para dar-lhe sentido. 

Segundo Turato (2003), o tratamento e apresentação dos dados da pesquisa devem contemplar as seguintes fases: Preparação inicial do material; Pré-análise; Categorização e subcategorização; Apresentação dos resultados.

Dessa forma, foi possível identificar, no material transcrito das entrevistas individuais abertas, duas grandes unidades temáticas: a atividade 'contrariada' e os impactos na saúde do trabalho médico. A primeira unidade, focando na questão da 'atividade contrariada' foi subdividida em dois temas secundários: a organização das consultas médicas e a ausência de um coletivo de trabalho atuante (gênero profissional). 

Vale lembrar que tal procedimento metodológico preocupa-se, sobretudo, com a busca de elementos essenciais diante objeto de estudo em questão, não ficando necessariamente vinculado à busca por regularidade do surgimento de um aspecto no conjunto do material registrado.Ressalta-se ainda que os dados coletados encontram-se de modo pouco elaborado, devendo o mesmo, submeter-se a novas revisões e interpretações.

 

3 CONCLUSÃO

A análise das entrevistas individuais abertas e parte das entrevistas de autoconfrontação indicaram que o cotidiano de trabalho dos profissionais médicos das Unidades Básicas de Saúde de Jaguariúna caracteriza-se, sobretudo, pelo desenvolvimento de uma atividade 'contrariada' ou 'impedida', favorecida pela impossibilidade desses profissionais em organizar o seu próprio trabalho, pelo enfraquecimento do gênero profissional, pelos múltiplos vínculos empregatícios que os profissionais médicos e pela ausência de programas de gestão que colaborem para restabelecer os recursos dos médicos para ação sobre as situações de trabalho. Entretanto, tais fatores que favorecem o desenvolvimento da 'atividade contrariada', não podem ser analisados separadamente, pois estão articulados, e refletem na saúde dos médicos de Jaguariúna, como os distúrbios psíquicos menores, que não geram afastamentos, que se expressam, sobretudo, na forma de episódios de stress, distúrbios de ansiedade e depressão. Há, ainda, alguns relatos sobre outros agravos à saúde como a hipertensão por exemplo.

As condições e a organização do trabalho nas Unidades Básicas de Saúde

As atividades médicas desenvolvida nas UBS's restringiam-se às consultas, ou seja, à atividade de assistência médica. Praticamente inexistiam programas de prevenção ou promoção de saúde. Os programas existentes, na época, estavam ligados, principalmente, mais a iniciativa pessoal do médico do que a uma demanda explícita do serviço de saúde. Tanto os depoimentos dos médicos, quanto dos gestores confirmam essa condição da rede pública de saúde.

Cada UBS dispunha de recepção, consultórios, sala de curativos, dispensário de medicamentos, sala de ginecologia, copa e cozinha. Não havia área de descanso para os funcionários. Todos estavam instalados em casas adaptadas, com exceção da UBS Central, que se encontrava num antigo galpão, distribuído por divisória de madeira. Nesse sentido, foram bastante frequentes, nas entrevistas, as críticas em relação a esse aspecto, em particular, das condições de trabalho.

- Eu tenho que ser sincero com a pesquisa. Eu trabalho em dois postos de saúde (Miguel Martine e Doze). Eu quero deixar gravado inclusive. Eu quero saber: quem foi o arquiteto que construiu o postinho da Doze? Porque o cara falhou. Ele não vai desenhar nunca uma casa pra mim. As portas abrem pra fora, consultório pequeno, sem ar condicionado, um calor tremendo [...] Você acaba entrando no esquema, mas chega no final do dia naquele estado que você conhece (faz referência ao consultório onde o pesquisador trabalhava) (Médico B). 

- Não tem uma tela na janela para o inseto não entrar. O ideal seria um ar condicionado, mas se você pede um ar condicionado, te chamam de louca (Médica F).

No entanto, em relação aos equipamentos, instrumentos e ferramentas de trabalho do médico, como os exames e demais procedimentos, medicamentos, mesmo os de auto-custo, etc., não houve reclamações.

O trabalho do médico é organizado da seguinte forma: durante a jornada diária, que é de quatro horas, o profissional deve atender dezesseis pacientes, agendados de quinze em quinze minutos. Os pacientes seguem a recomendação das atendentes para dirigir-se ao posto na hora cheia. Por exemplo, se a consulta está marcada para as 15h30min, o paciente deve chegar às três (3) horas, para adiantar caso aconteça alguma desistência.

Trabalho e saúde dos médicos nas Unidades Básicas de Saúde: a atividade 'contrariada'

Até aqui foi possível constatar que se as estruturas físicas das Unidades Básicas de Saúde não são as ideais para o exercício da prática médica, aos menos os equipamentos, ferramentas e demais materiais para auxiliar o profissional médico nos diagnósticos e tratamentos estão disponíveis.

No entanto, a análise das entrevistas individuais abertas e parte das entrevistas de autoconfrontação indicam que o cotidiano de trabalho dos profissionais médicos das Unidades Básicas de Saúde de Jaguariúna caracteriza-se, sobretudo, pelo desenvolvimento de uma atividade 'contrariada' ou 'impedida'.

Na perspectiva da clínica da atividade de Clot (2001, 2006), o trabalho é visto como uma atividade concreta e irredutível, onde é possível identificar a subjetividade. No entanto, as condições reais de exercício do trabalho são comumente colocadas em segundo plano pelos gerentes, mais preocupados com as questões relativas à gestão.  Razão pela qual, atualmente, trata-se mais da prescrição da subjetividade, ou seja, do jeito certo de ser, das competências e habilidades necessárias para o comprometimento e disponibilidade para com os serviços.

Entretanto, contrariando a prática dos gestores da rede pública de saúde de Jaguariúna, não é possível prescindir do real, que obriga os trabalhadores a assumir responsabilidades sem ter responsabilidade efetiva na organização do trabalho.

Essa contraditória solicitação, ou seja, para o trabalhador estar mais presente e comprometido e disponível, mas ao mesmo, sem condições de contribuir para a organização do seu trabalho, promove a amputação de uma grande parte do que se mobiliza para o desempenho de uma atividade, exigindo uma disponibilidade psíquica cada vez maior para agir nas situações de trabalho (CLOT, 2007).

Para superar essa configuração apontada acima, presente em algumas situações de trabalho, busca-se o desenvolvimento de recursos coletivos com vistas à ação, desses trabalhadores, sobre tal contexto de trabalho. Entretanto, muitas vezes, a própria organização, que deveria colaborar nesse sentindo, visando à maximização de sua eficiência, ignora tal necessidade, privando os trabalhadores de meios e recursos para exercer suas responsabilidades sobre a organização do trabalho, que eles assumem, apesar de tudo, contrariando a sua própria atividade, que, em última instância, pode impedi-lo de trabalhar (CLOT, 2006).

O conceito de atividade 'contrariada' ou 'impedida', proposto por Clot (2006), é uma importante contribuição da psicologia do trabalho, e deve ser nuclear nas análises e intervenções em situações de trabalho. Desde Taylor, é possível falar em desconexão do trabalhador com sua iniciativa, quando se impõe um movimento que exige o mínimo de intervenção do trabalhador, tentando privá-lo de sua iniciativa durante seu dia de trabalho. No entanto, mesmo com sua proibição, a atividade do homem não pode ser eliminada, provocando um esforço dissociativo, fatigante e extenuante, um esforço que não se reduz ao que o homem faz para seguir a cadência do trabalho, mas inclui, igualmente, aquele com quem ele deve consentir para reprimir sua própria atividade (CLOT, 2006, p.14).

As atividades suspensas, contrariadas ou impedidas, e mesmo as contra-atividades, devem ser admitidas na análise assim como as atividades improvisadas ou antecipadas. A atividade removida, oculta ou paralisada não está ausente da vida do trabalho. A inatividade imposta ou aquela que o trabalhador se impõe pesa com todo o seu peso na atividade concreta. Deixar tais a atividade 'contrariada' ou 'impedida' de lado, em análise do trabalho, significa ignorar os conflitos vitais dos quais os trabalhadores buscam escapar no real (CLOT, 2001).

No depoimento de boa parte dos médicos, é possível perceber a atividade contrariada, quando se referem ao tempo estipulado para consulta (quinze minutos), da forma como foi descrito, anteriormente, sobre a organização do seu trabalho. O tempo para atender os pacientes como se gostaria, na visão dos médicos, é insuficiente, pois diante da pressão para atender como se deve (trabalho prescrito), consolida-se uma prática onde aparecem elementos que indicam como não se deveriam realizar consultas, impedindo ou contrariando, o que se queria fazer, gerando desgaste, desconforto e insatisfação.

- Ela está muito comercial (a medicina). Hoje, temos que atender a demanda, fazer o serviço e não a medicina. Esse é o problema. A medicina é deixada de lado para atender a demanda. Atender um paciente em quinze minutos, não dá nem pra auscultar o coração de um paciente (Médico B).

- É complicado. Eu estou buscando resolver realmente a questão médica (na consulta). Mas aí vem aquele fator tempo [...] não é possível em 15 minutos. Não tem realmente condições (Médica D).

No entanto, apesar desse tipo de constrangimento presente na organização do trabalho, em alguns realtos aparecem sentimentos de resignação. Nesse caso, o trabalho pode passar a se constituir como uma mera execução de procedimentos. Dessa, mesmo que garante a execução da atividade em questão, o trabalho não exerce mais sua função psicológica.

- Acaba não se tornando tão gostoso como poderia ser (a consulta) [...] Se estiver tranquilo, você consegue ter aquela relação médico-paciente mais gostosa. Dependendo da possibilidade, você acaba gerando um pouco de atraso na sala de espera, para que você possa atender. É meio complicado (respeitar os quinze minutos), mas nunca é do jeito que a gente quer mesmo. Então, eu vejo que atualmente a gente faz o que a gente pode dentro do que é oferecido (Médica C).

- Dentro da consulta de clínica médica precisaria de um pouco mais de tempo porque acaba sendo muito corrido mesmo. Você acaba, às vezes, não conseguindo dar aquela atenção toda que você precisa. Eu não vou terminar nunca a consulta sem resolver e fazer o diagnóstico. Tem paciente que quer morrer lá fora, mas eu fico uma hora com o paciente, até resolver mesmo. Me estressa o resto do dia, porque atrasa tudo (Médico G).

O desgaste aparece como decorrente do esforço desse profissional em ter que adaptar-se a uma regra, que o força a colocar de lado a riqueza de suas atividades. É esse gesto ao mesmo tempo prescrito e interdito que mais custa ao trabalhador. A atividade contrariada é então fator de desgaste para o médico na medida em que está impossibilitado de fazer o que considera importante para o paciente e o que dá sentido a seu trabalho (CLOT, 2006).

Tal regra da organização das consultas aparece como um padrão objetivo de excelência que é conflitante, ao mesmo tempo em que foi elaborada, pelo menos em tese, para melhorar a qualidade do serviço, impede a satisfação do trabalhador de fazer alguma coisa bem feita por conta das pressões da gestão do trabalho (SENNETT, 2009).

Em alguns momentos, quando a condição de impedimento da atividade descrita acima se aprofunda, o trabalhador se vê diante de tantas restrições para o desenvolvimento de sua atividade, que é possível constatar então um desenvolvimento 'contrariado'. Nos moldes da perspectiva desenvolvida pela ergonomia francesa, nesse momento, não há mais recursos físicos, mentais e organizacionais, para dar conta do objeto sem comprometer o resultado final e a própria saúde do trabalhador, gerando assim o sofrimento físico e/ou mental. No entanto, indícios de que algo não vai bem no decorrer do desenvolvimento da atividade, embora sem impedir de trabalhar, aparecem sob a forma do 'stress' (GUÉRIN, 2001; CLOT, 2006).

- Hoje em dia a gente tenta (trabalhar) [...] na verdade, acaba tendo que se adaptar. Um dos problemas aqui da para eu falar sem problemas porque é nítido, é a questão tempo, principalmente se você faz clínica médica, porque clínica médica é assim: acaba sendo muito estressante, demais (Médica C).

- [...] não é nem a queixa, o paciente, assim (a dificuldade da consulta). Se fosse o mesmo contexto (encontrado na consulta), mas, por exemplo, (se tivéssemos) uma consulta de vinte [...] não, dez minutos a mais, tipo meia hora, ao invés de 15 minutos, o stress seria muito menor (Médica H).

Para Clot (2001, 2008), a presença do sofrimento, físico e/ou mental, é decorrente da diminuição do poder de agir do trabalhador, ou até da sua total impossibilidade dessa ação, sobre as situações de trabalho, gerada, muitas vezes, por contas das próprias condições oferecidas pela organização do trabalho, como já afirmado acima, mais preocupadas, em muitos momentos, mais com o controle do médico do que com a qualidade do serviço prestado. 

É notória, entre alguns médicos, a tendência para a 'auto-culpabilização', ou seja, os problemas que impedem o desenvolvimento satisfatório da atividade são por culpa do próprio trabalhador, do próprio médico, que não tem competência, habilidades e, até mesmo, vontade de melhorar o seu desempenho. Aliás, como visto acima, tal posição coincide com o pensamento dos gestores e também, bastante reforçada pelos manuais de gestão de 'pessoas' e auto-ajuda, que lideram a lista das obras mais vendidas no país.

- A gente deveria ter mais tempo para atender cada paciente. Mas eu sou mais lenta mesmo. A gente tem que atender quatro pacientes por hora e para mim, quinze minutos é muito pouco (Médica L).

- Acho que [...] culpa nossa (de ter que se submeter as regras), dos médicos mesmo, a princípio, que começaram a, talvez por ganância, a se vender, vamos falar nesses termos, a se vender muito barato (para o serviço público) (Médico I).

Apesar do foco colocado na atividade 'contrariada', no esforço despendido pelo trabalhador para colocar entre parênteses a atividade que gostaria de fazer, não é recomendável colocar em segundo plano a atividade 'realizada'. Essa deve ser vista como um recurso do real, pois no momento em que a atividade se realiza podem surgem novas opções, novas possibilidades de fazer o trabalho, que permitem o desenvolvimento dessa atividade, dando-lhes novos sentidos (CLOT, 2006). 

Para Clot (2007), ao ser capaz de pensar o trabalho, de elaborar e interpretar sua experiência profissional através da fala, o trabalhador pode encontrar caminhos para estabelecer negociações e agir sobre determinadas situações de trabalho em busca de novos sentidos, criando possibilidades de transformar e desenvolver as condições e a organização do trabalho. Em alguns depoimentos, foi possível perceber essa tentativa de encontrar outras saídas.

É possível afirmar que o sentido dado ao trabalho, particularmente, por cada trabalhador é fundamental para a manutenção dos recursos para a ação sobre situações de trabalho. Se não é possível realizar o que dá sentido ao trabalho, tem-se uma atividade impedida (CLOT, 2001).

Vale ressaltar que a valorização dos sentidos atribuídos pelos trabalhadores, não significa ausência de trabalho prescrito, de organização do trabalho.  Muito pelo contrário, é preciso um bom trabalho prescrito, que permita o desenvolvimento da capacidade de ação coletiva dos trabalhadores sobre os constrangimentos identificados. Sua ausência, sim, representa uma ameaça ao trabalhador, na medida em que se sozinho em sua ação, sem apoio da organização e do coletivo de trabalhadores (CLOT, 2006, 2007).

Enfraquecimento do gênero profissional

A maioria dos depoimentos dos médicos apontou para o enfraquecimento do gênero profissional no interior das Unidades Básicas de Saúde, para a ausência de um coletivo profissional que pudesse servir de apoio para o desenvolvimento das consultas, o que pode contribuir para o problema da 'atividade contrariada', provocando um desgaste social e subjetivo importante. Não há momentos, durante a jornada de trabalho, destinados ao desenvolvimento de um coletivo de trabalho, visando elaborar os objetivos e os recursos da prática profissional.

- Ter uma melhor integração com os colegas (sobre o que está faltando). Os médicos precisam ser mais ligados, mais próximos, acho que é muito individualista (Médica J).

- Cada um faz a sua parte. Cada um no seu quadrado, mas eu acho que esses quadrados deviam ser integrados porque um especialista precisa do outro. Até enfermeira também. Acho que começar a ter um conceito de equipe de trabalho e essa coisa de trabalhar em conjunto, em equipe (Médico I). 

Em um dos depoimentos, o profissional médico ao se referir a um problema das condições de trabalho, que atrapalha o cumprimento da regra dos quinze (15) minutos, revela o fato de não contar com os recursos do gênero profissional e nem mesmo com os recursos do trabalho prescrito.

- Eu acho que a administração tem que girar em torno dos pilares da administração que é programar, planejar, executar e depois avaliar. E pra avaliar, precisa reunir o pessoal. O feedback é importante (repete novamente a ausência da reunião) e até hoje não foi feito nenhuma reunião com os médicos (Médico B).

- Eu fui jogado lá no posto de saúde, não recebi nenhum treinamento. Nem pra preencher os formulários. Isso desgasta. Ai você percebe que é tudo assim com o médico (Médico A).

Quando indagados sobre as estratégias para lidar com as dificuldades do ambiente de trabalho, uma vez que foi evidenciando-se, já no momento das entrevistas, o enfraquecimento do gênero profissional, aparecerem diferentes respostas, nenhuma relacionada ao apoio dos colegas, do coletivo.

- Cada cruz no meu estetoscópio é uma cruz que pesa [...] Talvez eu precisasse de um psicólogo ((sorrindo)) mas a minha esposa é muito companheira, a gente vai conversando. Mesmo o diretor do hospital é muito bacana, a gente conversa muito (se referindo a outro emprego) (Médico B). 

- Eu tenho que chorar um pouco e passa, vou fazer alguma coisa que eu gosto, ver vitrine, por exemplo, passear num lugar em que você possa não ser médico. Isso relaxa. E ter bicho também. Acho que isso alivia (Médico M).

Impactos na saúde decorrente do trabalho médico

Por falta de outras fontes, as entrevistas representaram a única fonte de informações sobre afastamentos e problemas relacionados à saúde dos médicos das Unidades Básicas de Saúde. Entretanto, é possível afirmar que os impactos na saúde estão diretamente relacionados com a atividade 'contrariada', evidenciada nas UBS's de Jaguariúna. Porém, é preciso considerar a influência de outros elementos nessa relação, por conta dos múltiplos vínculos empregatícios estabelecidos pelos médicos, que podem favorecer ou desencadear o desenvolvimento de problemas de saúde.

Na visão dos médicos, a falta de tempo dificulta o reconhecimento dos sinais de que algo não está bem com a própria saúde.

- Eu percebo assim: bom, agora eu não posso desacelerar, agora eu não posso segurar minha agenda, agora eu não posso diminuir o atendimento, eu tenho uma demanda programada para isso daí [...] Dá pra perceber quando o trabalho afeta? Dá, mas você meio que descarta isso logo. Por que não tem jeito, é esse o esquema. Então tudo bem (Médica L).

- De fato, médico não quer saber de médico, preferem não reconhecem ou ignorar a qualidade dos sintomas que apresentam.

Talvez, como aponta outro estudo, essa diferença seja melhor compreendida em razão da dificuldade que muitos médicos possuem em admitir que seu trabalho é estressante, que possuem problemas, que fazem uso de uma bebida ou droga ou que precisam de ajuda. Entende-se que algumas razões para essa condição, dentre os quais podem ser citados os elevados padrões pessoais de quem escolhe a medicina, os temores sobre o trabalho e a incerteza sobre com quem se pode contar (ENGLAND, 2008).

Quanto aos principais agravos relatados, assim como em outros estudos recentes sobre a saúde do médico no Brasil, a maioria dos entrevistados apontou para o problema da pressão alta e para distúrbios psíquicos menores, que apareceram em alguns casos de forma associada (SOBRINHO et al., 2006; BARBOSA et al., 2007).

- Graças a Deus, eu tenho uma saúde boa. Estou atualmente, aí com uma gripe de um mês, que agora contaminou e virou uma sinosite. Ontem eu estava péssimo, o antibiótico começou a fazer efeito, mas nada especial. Eu tenho uma boa saúde e me sinto bem trabalhando (Médico F)

- Sempre tem (Impacto na saúde). Outro dia a pressão subiu. Descompensou (Médico B).

- Lógico que faz mal trabalhar mais do que oito horas por dia num serviço que te exige atenção total e mental. No meu caso, sou hipertenso. Por exemplo, eu tomo três diferentes tipos de anti-hipertensivo e tomo ansiolítico (Médico I).

A negação e o conhecimento precário, acerca da importância de fatores psicológicos e sociais, no processo saúde/doença, contribuem para que a saúde mental dos médicos seja considerada pouco relevante e os problemas dela decorrentes sejam adiados até situações extremas (NOGUEIRA-MARTINS, 2003; ALVES, ARAÚJO, 2007; COHEN; RHYDDERCH, 2006; MILLER, 2009)

- A gente tem um desgaste emocional, que eu acho alto, porque você se envolve emocionalmente com o paciente o dia inteiro e esse é um aspecto que eu acho difícil administrar (Médico O).

- Stress (quando perguntado se teve problemas de saúde), eu já tive um episódio de depressão há sete anos, por aí. Mas era uma depressão com um componente de ansiedade tão grande que se eu parasse era pior, então eu vinha trabalhar. Eu precisava trabalhar (Médica A).

Os relatos coincidem com os achados de Massud, Barbosa e Gouveia (2007), que indicam que quase a metade dos profissionais que exercem a Medicina no Brasil manifesta distúrbios psiquiátricos, os quais são associados, por exemplo, com a ansiedade e a depressão.

Enfim, como foi possível constatar, o sofrimento, tanto físico, quanto mental, é o resultado de uma atividade contrariada e de um desenvolvimento impedido. É o retrato de uma, nas palavras de Clot (2001, p.50), "amputação do poder de agir [...]. Podemos dizer também, de modo mais comum, que se trata de uma atividade envenenada ou intoxicada".

No entanto, é preciso dizer que o desenvolvimento de problemas de saúde não é a única realização possível do real da atividade. A atividade contrariada pode ter outro destino, como apontam algumas pesquisas recentes, o da restauração dos recursos da ação dos trabalhadores sobre a própria atividade, onde o próprio trabalho voltar a ser um momento de ampliar seu raio de ação, a fonte de uma regeneração da atividade conjunta (CLOT, 2001).

O material resultante das entrevistas de autoconfrontação, como descritas na metodologia encontra-se em fase de análise e interpretação. Entretanto, preliminarmente, foi possível constatar também a presença da tanto da atividade 'contrariada', quando da cristalização do gênero profissional.

Todavia, é preciso dizer que, embora, aparentemente, tenha sido possível para o médico, que participou dessa etapa, melhor compreender o seu trabalho, ao ser levado a explicitar o sentido de suas ações, em função da falta de apoio institucional aos métodos que se pretendia utilizar, considerada imprescindível para a execução dos mesmos, não foi possível observar e participar do desenvolvimento do coletivo de trabalhadores médicos, ou seja, da evolução do gênero profissional, da capacidade de ação e negociação sobre as diversas situações de trabalho, como a organização das consultas médicas. 

O trabalho só se torna interessante para o ser humano quando é possível a ele se expressar, inventar-se e se reinventar. E é justamente essa dimensão que fica ameaçada quando a organização do trabalho nega ao trabalhador a realização de motivações vitais e dos valores que o sujeito retira de todas as esferas de sua vida (CLOT, 2006).

 

REFERÊNCIAS

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