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ISBN 978-85-62480-96-6 versão impressa

Sem. de Saúde do Trabalhador de Franca Set. 2010

 

TRABALHO, SEGURIDADE SOCIAL E SAÚDE DO TRABALHADOR

 

A saúde do trabalhador no olho do furacão: interpretação crítica de alguns elementos do pensamento Pós-Moderno

 

 

Ana Cássia Cople FerreiraI; Clara FreitasII; Cleusa SantosIII; Luciano Rodrigues de Souza CoutinhoIV

IAluna de graduação da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contato: e-mail: anacople@yahoo.com.br. Bolsista FAPERJ
IIAssistente Social graduada pela Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contato: e-mail: clarabf@gmail.com
IIIDoutora em Serviço Social. Professora Associada II da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Seguridade social, Organismos Internacionais e Serviço Social" vinculado ao Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre Poder Local, Políticas Urbanas e Serviço Social - LOCUSS/ESS. Contato: e-mail: cleusasantos@uol.com.br Professora orientadora deste trabalho
IVBolsista do CNPQ e Doutorando da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contato: e-mail: lucianorsc@bol.com.br

 

 


RESUMO

As transformações do mundo contemporâneo vieram acompanhadas por teorias explicativas que buscam derrocar os valores racionais sobre os quais se construiu a modernidade. O princípio da totalidade estabelece-se como desafio para pensar a economia política como contraponto da fragmentação pós-moderna.   A análise de seus argumentos, no âmbito da saúde, remeteu-nos à universalidade como um dos fundamentos do pensamento iluminista capaz de contrapor à flexibilização e a modernização da gestão do sistema de saúde brasileiro, alternativas à crise atual do capitalismo. Propomos que tanto o exercício quanto a formação profissional, fundamentem-se na perspectiva teórico-metodológica que sustenta o projeto profissional em curso.

Palavras-chave: Modernidade; Pós-Modernidade; política de Saúde, totalidade, projeto profissional.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Na década de 80 do século XX, observa-se, no âmbito das ciências sociais, uma nova frente de batalha que emerge em razão da enorme repercussão causada pelo lançamento, no final da década anterior, do livro "A Condição Pós-Moderna" de Jean François Lyotard. Trata-se de uma obra que apresenta o surgimento de uma "nova sociedade", qual seja: a sociedade pós-moderna que fundamenta-se na "incredulidade com relação aos metarrelatos" (Lyotard, 2009, p. xvi) e na superação dos valores da sociedade moderna baseada "menos em uma antropologia newtoniana (como o estruturalismo ou a teoria dos sistemas) e mais numa pragmática das partículas da linguagem" (LYOTARD, 2009, p.xvi).

Ainda que para Lyotard essa ruptura tenha sido gestada desde o final dos anos 19501, o "nascimento" da era pós-moderna2 implicaria, necessariamente, na inadequação dos valores da modernidade cujas principais conseqüências seriam o fim da razão e do movimento moderno 3 e a total superação dos seus pressupostos.4 

Este novo "paradigma" põe em questão as clássicas noções de verdade, razão, identidade e objetividade, a idéia de progresso e ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de explicação do real, legados do pensamento iluminista. Esta perspectiva busca tornar tudo suscetível aos mais diversos recortes e diversas interpretações e está baseada em fontes de conhecimento entre as quais a multiplicidade, a fragmentação e a concepção de que todos os discursos são válidos, constituem-se nas suas características nucleares e estão presentes em diversos setores da vida social.

Assim, se considerarmos a política como o elo integrador da modernidade veremos que na cultura pós-moderna a prática política, ação centralizada que garante o planejamento estatal, é reduzida ao poder que o capital tem sobre as ações transformadoras tornando-os mecanismos de alienação, fragmentação e conformismo. Isto nos remete aos limites da cultura pós - moderna que, ao não enfrentar as diversas realidades da economia política, tampouco as circunstâncias do poder global - conforme sinalizou Harvey (1992) - nega qualquer possibilidade de eficácia de um saber totalizante. Além disso, o discurso pós-moderno além de impulsionar a cultura relativista na qual, os interesses de uma classe se sobrepõem aos interesses gerais, visa fortalecer a conjuntura econômica do sistema capitalista redefinindo o Estado Moderno através da lógica do mercado que impõe limites à consolidação das políticas sociais.

Nesta direção, mais do que tratar do sistema de Seguridade Social, este texto busca realizar algumas reflexões sobre as principais idéias da modernidade a fim de confrontá-las com as da pós-modernidade visando subsidiar a reflexão e a intervenção profissional neste âmbito. De modo mais específico, iremos demonstrar como as idéias pós-modernas vêm tomando corpo na política de saúde brasileira abalando o Sistema Único de Saúde da Seguridade Social quando esbarra na universalidade, princípio caro da modernidade.

A fim de problematizar este processo, enfocaremos nossa análise nos programas que estão sendo implementados no Brasil destacando as requisições demandadas aos profissionais de saúde. Entendemos que na proposta de parceria público-privado destaca-se um distanciamento cada vez maior daquelas funções exercidas pelo Estado social-democrata no processo de estabilização e expansão do capital monopolista. Sabemos que nesta fase, tratava-se da fusão entre público-privado, que resultou nas reformas que foram implementadas após a Segunda Guerra e garantiram as conquistas dos benefícios de seguridade so­cial (habi­tação, saúde, previdên­cia, assistência etc.) à classe trabalhadora através do Welfare State. Essa fusão promoveu uma grande mudança na relação capital-trabalho através do "compromisso de classe" firmado entre capital e trabalho e que o keynesianismo, abatido hoje pela globalização do capital, foi o limite da socialdemocracia.  Porém, a história mostrou que estas reformas, em direção à universalização dos direitos sociais, são conquistas proletárias que delinearam os primeiros esboços de políticas sociais públicas. Na gênese desse processo podemos localizar a presença do projeto "político-social do proletariado euro-ocidental" que colocou em cena, conforme demonstrou Paulo Netto, "um projeto anti-capitalista, referencia­do por uma prospecção socialista e uma prática sindi­cal classista" (PAULO NETTO, 1992, p.55).

O contato com uma parcela da bibliografia do Serviço Social que realiza uma reflexão crítica de alguns pressupostos da reflexão pós-moderna apresentados em linhas gerais na primeira parte desse trabalho permitiu-nos identificar as principais polêmicas dos ideais pós-modernos presentes nas diretrizes curriculares da maior parte dos cursos voltados para a saúde coletiva.

1.1 Da Modernidade À Pós Modernidade: situando o debate

A sociedade moderna surge com a superação do antigo regime (Ancien Régime) e tem como fundamentos a racionalização econômica e a superação das suas antigas formas de produção, o surgimento do trabalho assalariado, o fim da ideia de naturalização das relações na sociedade e da "dessacralização das visões do mundo tradicionais (Entzuberung), e a diferenciação em esfera de valores autônoma (Wersphären), até então embutidas na religião: a ciência, a moral e a arte", (Rouanet, 2003, p. 121). Tais mudanças se processam concomitantemente com a ascensão da ordem burguesa, a qual, originalmente revolucionária, ajuda a consolidar a modernidade5.

O questionamento aos valores da modernidade, pelos apologetas pós-modernos, é iniciado com a observação da não realização de algumas importantes expectativas que se havia com o advento da razão moderna. Em consequência disso, a conclusão é que haveria a superação dessa concepção de modernidade. Outro fator de grande relevância para os ideais da pós-modernidade foram as análises realizadas pelo sociólogo estadunidense Daniel Bell, o qual, em uma "tentativa de previsão social", sugere o advento da sociedade pós-industrial 6, a qual levaria a sociedade a um novo arranjo societário. Essas críticas às expectativas não concretizadas pela razão moderna tiveram eco até mesmo em destacados defensores dos valores da modernidade, os quais chegaram a classificar a modernidade como um "projeto inacabado"7.

 

2 ALGUNS PRESSUPOSTOS DO PARADIGMA PÓS-MODERNO

A Pós-modernidade surge nas ciências sociais tendo como principais características a recusa ao sentido da totalidade, dado que para esses teóricos o conceito de classe não mais atenderia aos diversos conjuntos das identidades múltiplas e fragmentadas. Nasce com a premissa de desconfiança, ou ainda uma enorme ojeriza às metanarrativas ou metarrelatos, os quais teriam como objetivo a prescrição de regras de comportamento em relação a toda humanidade. O foco para esses teóricos não seria mais o processo histórico nem a grande política, mas sim o presente, o cotidiano e as micro-relações de poder 8, conforme demonstram os argumentos de Zigmunt Bauman:

Os anos 80 foram uma década de inventividade frenética. Novas bandeiras foram costuradas e erguidas, novos manifestos elaborados, novos cartazes concebidos e impressos. Como a classe não mais oferecia um seguro para as reivindicações discrepantes e difusas, o descontentamento social dissolveu-se num número indefinido de ressentimentos de grupos ou categorias, cada qual procurando a sua própria âncora social. Gênero, raça e heranças coloniais comuns pareceram ser os mais seguros e promissores (BAUMAN, 2005, p. 42).

A discussão da pós-modernidade tem se feito presente e, segundo Evangelista (2002), dentro das Ciências Sociais, tem tido grande vigor o discurso de que vivemos na atualidade uma "crise de paradigma" 9, pois, se considera que as grandes teorias sociais que explicaram os diferentes fenômenos sociais e guiaram até então a nossa sociedade têm apresentado problemas para explicá-los diante da nova configuração da realidade. Em outras palavras, há, para os pós-modernos, uma crise de paradigmas, já que o antigo não se adequa mais a uma "nova e mais complexa realidade" (SOUSA, 2005, p.13). Assim, "para eles não há método a ser privilegiado, uma vez que se deve realizar o diálogo e o entrecruzamento de abordagens variadas" (SOUSA, 2005, p.13).

Neste sentido, Evangelista (2002) diz que, de uma forma geral, essas grandes teorias sociais, como a Positivista e a Marxista, são postas em questão justamente por fazerem análises de caráter macroscópico, por seu caráter generalizante. Dessa forma, o antigo modelo dominante nas Ciências Sociais é acusado de não ser capaz de dar conta de explicar essas "novas dimensões da realidade" sendo, portanto, necessária a criação de um novo paradigma capaz de representar um novo modo de olhar as situações microscópicas, as relações "interindividuais".

Ainda segundo Evangelista (2002), os que acreditam na existência de uma "crise de paradigma" defendem que surgiram "novos sujeitos políticos", como os movimentos sociais, sobretudo a partir da década de 60, que passaram a questionar a ordem social, as instituições, inclusive os sindicatos e partidos operários, deslocando "para segundo plano, o velho movimento operário nas lutas por transformações sociais" (EVANGELISTA, 2002, p. 16).  Deste modo, ele aponta que, para esses autores, há uma grande consideração do cotidiano como locus da dominação, mas também há resistência, representando uma nova forma de fazer política, que não se encontra mais apenas no âmbito do Estado e dos partidos políticos, mas numa "politização do social". A contestação/resistência passa a ser imediata e dirigida a cada ação onde se expressa a dominação o que é chamado de "descentramento da política".

Sousa (2005) aponta que os pós-modernos propõem uma nova maneira de "produzir" a verdade, o conhecimento, através do campo da linguagem, onde há um embate "entre os diversos conhecimentos próprios às práticas sociais" (SOUSA, 2005, p.12). Para os pós-modernos, segundo a autora, o elemento inovador da pós-modernidade é a "complexidade que este processo assume" (SOUSA, 2005, p. 12), tendo em vista que a verdade não se resume ao que diz a Ciência ou o conhecimento, mas ao discurso. Logo, "Não existe verdade e sim verdades, ou seja, não há um referencial objetivo da verdade, pois para estes autores a ciência e o conhecimento científico não refletem mais a realidade" (SOUSA, 2005, p.12). Esses argumentos parecem, em princípio, ir ao encontro ao grande equívoco que está presente, de uma forma geral, nas análises dos pós-modernos que é o desprezo pela dimensão ontológica do real e a conseqüente não consideração do fenômeno da reificação das relações sociais no capitalismo, na qual a realidade aparenta ser fragmentada conforme apontou Evangelista (2002).

 

3  OS VALORES DA PÓS-MODERNIDADE ENTRAM EM CENA NA SAÚDE

O reconhecimento da crescente influência do referencial pós-moderno na saúde brasileira, em especial na saúde coletiva nos obriga admitir a existência de dois projetos em disputa o projeto privatista e o da Reforma Sanitária.

O Projeto de Reforma Sanitária, construído a partir de meados de 1970, tem como preocupação central assegurar que o Estado atue em função das necessidades da sociedade, pautando-se na concepção de Estado democrático e de direito, responsável pelas políticas sociais e pela saúde. Como aspectos significativos destacam-se a universalização das ações, a democratização do Estado e a participação social. O Projeto Privatista está pautado na política de ajuste neoliberal que tem como principais tendências: conten­ção dos gastos com racionalização da oferta, descentralização com inserção de responsabilidade do poder central e focalização (BRAVO; MENEZES, 2007, p. 14).

Como já foi sinalizado, o primeiro tem como finalidade o sucateamento da saúde pública, universal e do Estado, modelo que busca priorizar os interesses do capital, ainda que possa se manifestar em uma vertente mais direta e objetiva como o neoliberalismo ou de uma forma mais sutil como a terceira via, as quais têm uma relação bastante próxima às referências pós-modernas10. Há um segundo projeto que tem como finalidade a socialização do acesso a saúde, cujos elementos norteadores são "a participação política, a referência aos determinantes sociais da saúde e a função do Estado na garantia de ações universais, integrais e públicas" (Masson, 2007ª, p. 83). Dessa forma, autores como Bravo (2006; 2010) apontam que é a questão da universalidade do sistema de saúde que mais causa tensão entre esses projetos.

Importante salientar que não consideramos a pós-modernidade como uma grande massa uniforme, pois há divergências entre os defensores do projeto moderno. Dentre os pós-modernos, Boaventura de Souza Santos, ao criar uma tipologia que divide os seus pares em "pós-modernismo reconfortante ou de celebração" 11 e "pós-modernos de enfrentamento" 12 - nos quais ele próprio se inclui sinaliza para um elemento desses dois modelos que não pode ser ignorado13.  Segundo ele, ainda que com formas e discursos diferenciados, eles combatem a universalidade e defendem o pluralismo. Afirma que ao reforçarem o subjetivismo e colocarem como foco temas como democratizar a democracia14 perde-se o horizonte de enfrentamento aos interesses do grande capital, o que automaticamente implica em uma recusa aos princípios de uma saúde de qualidade e para todos.

As vertentes teóricas pós-modernas passam a influenciar os profissionais da área de saúde coletiva no Brasil nos anos 1990. Os estudos de Bravo (2007) mostram que "alguns autores começam a questionar as concepções teóricas mais abrangentes e ressaltam a necessidade de estudos do cotidiano, das práticas em saúde sem, entretanto, relacioná-las com a Política de Saúde" (BRAVO, 2007, p. 132).

Entretanto, observa-se desde esse período que não é suficiente criar outro paradigma de análise para contrapor a razão do Projeto da modernidade no qual o Movimento pela Reforma Sanitária se gestou.

Para Masson (2007a) as críticas voltadas para a direção social da Reforma Sanitária se dão, fundamentalmente, pela influência da teoria social marxista no Movimento, principalmente pela importância que a historicidade e a totalidade têm no entendimento do processo saúde-doença. Por sua vez,

Estas críticas refletem as posições da filosofia e da teoria do conhecimento na fase de ascensão do imperialismo, quando a função ideológica da 'nova filosofia' elabora a crítica cultural do capitalismo e da ciência e aponta um 'terceiro caminho' - nem capitalismo, nem socialismo. É um ataque ao materialismo e à dialética (MASSON, 2007a, p. 68).

Na verdade há uma crítica ao pensamento marxista e sua influência na saúde. Sustenta-se que se o marxismo que serviu de base para as críticas do movimento pela Reforma Sanitária, nas décadas de 70 e 80, encontra-se em uma crise profunda, logo, a Reforma Sanitária também está em crise. Questiona-se tanto o positivismo quanto o marxismo. Mas, na verdade,

O problema para o qual se quer chamar a atenção é o fato de, ao que parece, serem posições críticas opostas ao materialismo dialético porque tendem a deslocar a força da unidade teoria-prática na perspectiva das lutas de classes para o debate epistemológico (MASSON, 2007a, p.74).

Para a estudiosa, é no contexto atual da saúde brasileira que a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido comprometido, principalmente devido aos impactos dos ajustes fiscais, a perspectiva pós-moderna tem encontrado um amplo espaço. Considera a indiscutível crise do SUS que abre espaços para que este debate se dê pelo viés metodológico (MASSON, 2007b) que irá identificar nos novos modelos de gestão as alternativas para resolução da crise do SUS. Identificando na flexibilização e na modernização da gestão alternativas que atendem interesses do capitalismo internacional, Masson (2007b) enuncia a tendência em desmontar o sentido e os objetivos universalizantes do SUS.

Refletindo acerca das implicações do pensamento pós-moderno no Sistema Único de Saúde, elencamos algumas características dos programas de saúde, implementados pelo governo, para exemplificar o processo de inserção dos ideais pós-modernos na política de saúde brasileira.

A Política Nacional de Humanização da atenção e gestão no Sistema Único de Saúde HumanizaSUS, existente desde 2003, revela o despreparo do SUS para lidar com a dimensão subjetiva nas práticas de atenção. Além do mais, aponta como princípios básicos de sua política, dentre outros, a própria valorização da dimensão subjetiva e social das práticas de atenção e de gestão no SUS, destacando-se o respeito às questões de gênero, etnia, raça, orientação sexual e às populações específicas (índios, quilombolas, ribeirinhos, assentados, etc.), além da co-responsabilidade desses sujeitos nos processos de gestão e atenção à saúde. Sobre isso, Masson (2007) nos fornece as bases para compreender o quanto é fundamental identificar que o grande impasse da política de humanização está na sua formulação que não alcança a essência do problema das "contradições da saúde pública no Brasil" tornando-se, por isso, funcional à manutenção das mesmas, uma vez que ela "tematiza os aspectos imediatos da relação população/profissionais de saúde, atribuindo à vontade dos sujeitos, força determinante na qualidade da assistência" (MASSON, 2007, p. 123).

Assim, a universalidade, por nós defendida, é negada, pois, conforme mostrou Masson (2007) os ideais pós-modernos, ao negar a universalidade, por esta não contemplar as subjetividades, acaba por "[...]  valorizar a setorialidade em detrimento de posições e análises totalizantes e, fundamentalmente, desmobilizar para o sentido socializante da Reforma Sanitária". Sobre isto a autora entende que a ressignificação do "público"15 está orientado pela necessidade de modernização do Estado e pela eliminação de seu caráter patrimonialista. Isto conduz à necessidade de criação de mecanismos para a eleição das demandas da sociedade (MASSON, apud OFFE E HABERMAS). Por outro lado, aponta que o risco do princípio da universalidade pode provocar "o abafamento da subjetividade" (MASSON, 2007 p. 88). Quanto à questão das subjetividades, a autora declara que não se pode perder de vista que as visões dos vários sujeitos envolvidos estão influenciadas por determinantes, portanto, não são neutras. Considerando a importância da política, a autora entende que,

[...] a vontade política deve estar orientada por uma crítica material e ideológica, que favoreça o reconhecimento das variáveis que condicionam os processos reificantes e ultrapasse a imediaticidade dos dados e problemas do cotidiano. Se tratar da vontade dos sujeitos é imprescindível, há que se ter em conta que essa vontade está mediada por condicionantes de classe e de projeto de sociedade. Na aparência, falar em humanização é um avanço; por outro lado, pode vir a ter um efeito funcional às relações dominantes (MASSON, 2007, p. 123).

Assim, reconhecendo que a influência do pensamento pós-moderno na saúde não se limita apenas aos programas do governo, mas se apresenta tanto nas profissões de saúde quanto nos debates sobre a formação profissional, pensamos que as polêmicas geradas em relação à formação profissional de trabalhadores da área da saúde16 precisam ser consideradas neste escopo de reflexões, uma vez que é possível verificar que as Diretrizes Curriculares dos cursos voltados diretamente para a área da saúde, não prevêem como fundamentos os princípios do Sistema Único de Saúde, tampouco os debates sobre o processo saúde-doença que nortearam tanto a construção como também a conformação de uma nova forma de se pensar a saúde, diferentemente do modelo centrado na doença.

A partir dessas considerações, reiteramos a necessidade de investir em uma formação profissional que esteja de acordo com os princípios norteadores do Sistema Único de Saúde, pois, conforme tem enfatizado Vasconcelos (2007), o SUS só tem condições de avançar se a formação e a capacitação profissional estiverem relacionadas com um projeto de sociedade orientado para enfrentar as contradições que se expressam na crise da saúde. Nas palavras da estudiosa, trata-se de

[...] realizar e ampliar a direção social do SUS sua perspectiva socializante e emancipatória depende de formação e capacitação profissional relacionadas a um projeto de sociedade orientado para o enfrentamento das contradições centrais que se manifestam na crise social da saúde (VASCONCELOS, 2007, p. 156).

 

4 CONCLUSÃO

A reflexão até aqui desenvolvida permitiu-nos identificar a presença de valores reatualizados através de velhas práticas que deram sustentação ao desenvolvimento do sistema capitalista. Supunha-se que tais práticas teriam sido superadas pelo pensamento crítico e que a humanidade caminharia em direção à civilização. Porém, o que a contemporaneidade nos mostra é a emergência de valores que ressaltam entre outras coisas a instrumentalização, a desumanização, a fragmentação a desistorização, a individualização etc., caminhando rumo à barbárie.

Assim, não é de menor importância que os valores culturais que creditavam à família a condição de instituição social se desintegraram, deixando para traz o velho sistema de seguridade social e as transformações sociais, ocorridas a partir da década de 1950, puseram à luz as dificuldades de se conviver sem as vantagens históricas herdadas do capitalismo (HOBSBAWM, 1995). Talvez isto explique a preocupação deste historiador quando afirma que nem mesmo a tarefa do "planejamento econômico, que existe tanto em economias capitalistas quanto em socialistas", pode ser objeto de polêmica atualmente sem que se considere "os limites do capitalismo e do mercado sem o controle da ação pública" (HOBS­BAWN, 1995, p.2­23).

No âmbito da Saúde, verificamos que este debate não é alheio ao Serviço Social. Com esta compreensão entendeu-se que não é suficiente defender os princípios do SUS como um direto, é necessário compreender os fundamentos dessas propostas pós-modernas e seus impactos nos princípios do sistema de saúde brasileiro. Assim, se é essencial para a atuação profissional comprometida com o projeto ético-político, a garantia e a ampliação dos direitos sociais - conquistados através de lutas dos trabalhadores também é essencial que se busque compreender a efemeridade e volatilidade do mundo contemporâneo e seus novos valores para fortalecer a luta de classes na defesa de uma sociedade que garanta o direito a vida sem exploração. Para isso, o exercício e a formação profissional não prescindem de uma leitura de realidade que incorpore a perspectiva de totalidade e, portanto, da economia e da política como elementos fundantes da vida social inaugurada pelo pensamento Moderno.

 

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1 "Essa passagem começou desde pelo menos o final dos anos 50, marcando para a Europa o fim de sua reconstrução. Foi mais ou menos rápida conforme os países e, nos países, conforme o ramo de atividade: donde uma discronia geral, que não torna fácil o quadro de conjunto" (LYOTARD, 2009, p.3).
2 Sua hipótese de trabalho é a de que "o saber muda de estatuto ao mesmo tempo em que as sociedades entram na idade dita pós-industrial e as culturas na idade dita pós-moderna" (LYOTARD, 2009, p. 3).
3 "Por essa ótica, o expressionismo abstrato em pintura, o existencialismo em filosofia, as formas derradeiras da representação do romance, os filmes dos grandes auteurs ou a escola modernista na poesia (como institucionalizada e canonizada na obra de Wallace Stevens) são agora vistos como a extraordinária floração final do impulso do alto modernismo que se desgasta e se exaure com essas obras" (JAMESON, 2007, p. 27).
4 Lyotard para exemplificar que os valores modernos estariam superados procura em Marx o exemplo: "Mas a incredulidade resultante é tal que não se espera destas contradições uma saída salvadora, como pensava Marx"  Lyotard (2009, p. xvii).
5 Esclarece a autora que "[...] é na vigência da ordem burguesa que se opera a constituição da sociedade moderna e desta como uma realidade eminentemente social" (SOUSA, 2006, p.2).
6 Esse conceito foi apresentado pelo sociólogo estadunidense Daniel Bell e trata da superação da sociedade industrial, e as implicações que ocorreriam no sistema produtivo, em que haveria o crescimento do setor de serviços com conhecimento teórico e o advento de tecnologias intelectuais.
7 Essa expressão foi utilizada por Habermas, que entendia a modernidade como um projeto inacabado, mas não superado.
8 "É mais seguro entender o conceito do pós-moderno como uma tentativa de pensar historicamente o presente em uma época que já esqueceu como pensar dessa maneira" (JAMESON, 2007, p. 13).
9 "A época em que vivemos deve ser considerada uma época de transição entre o paradigma da ciência moderna e um novo paradigma, de cuja emergência se vão acumulando os sinais, e a que, à falta de melhor designação, chamo ciência pós-moderna. Indiquei então, ainda que muito sucintamente, alguns dos princípios que presidem a construção do novo paradigma" (SANTOS, 2010, p.11).
10  A autora esclarece que "[...] o irracionalismo tem afinidade ideológica com o 'terceiro caminho' e que esta tendência tem levado à perda da dimensão das lutas de classes na saúde pública. O desvio do sentido socializante da Reforma Sanitária favorece a predominância do debate metodológico e a tendência à posições próximas à 'terceira via' na política" (MASSON, 2007a, p. 110).
11 Sobre isto Paulo Netto destaca que "[...] de um lado, há aqueles para os quais o exaurimento da Modernidade significa o colapso final de suas promessas, de quaisquer objetivos transistóricos, com as práticas sociais das sociedades contemporâneas não tendo mais qualquer alternativa [...], seguramente portador do neoconservadorismo outrora denunciado por Habermas" (PAULO NETTO, on line).
12 "localizam-se os que arguem a Modernidade seja cultural, seja sociopoliticamente, verificando 'que as promessas da Modernidade, depois que essa deixou reduzir suas possibilidades às do capitalismo, não foram nem podem ser cumpridas' (idem, ibidem), porém demandando uma nova epistemologia e uma nova socialidade tem-se aí o 'pós-modernismo inquietante ou de oposição' (idem, ibidem), no qual Sousa Santos se vê inscrito" (PAULO NETTO, on line).
13  Apesar das ressalvas ao seu pós-modernismo.
14 "Polemizando especificamente com a noção de democratizar a democracia e reinvenção da democracia, bandeiras presentes nas obras do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, o autor argentino (Atílio Boron) começa a apontar o quanto tais bandeiras apresentam como pano de fundo uma não problematização da relação social fundamental do capitalismo, que é a extração de mais valia via propriedade privada dos meios de produção da existência" (MELO, 2010, p. 323).
15 Este é o debate que está na agenda política do governo.
16 É importante destacar que, em março de 2010 foi aprovado no Ministério da Educação um conjunto de referenciais curriculares nacionais para os cursos de Bacharelado e Licenciatura no Brasil (BRASIL, 2010) e tem gerado algumas polêmicas em relação à formação profissional de trabalhadores da área da saúde.