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ISBN 978-85-62480-96-6 versión impresa

Sem. de Saúde do Trabalhador de Franca Sep. 2010

 

TRABALHO, SEGURIDADE SOCIAL E SAÚDE DO TRABALHADOR

 

O bem-estar subjetivo como dimensão de análise da saúde do trabalhador

 

 

Fabio Scorsolini-Comin1; Léia Maria Erlich Ruwer2

 

 


RESUMO

O objetivo é abordar o bem-estar subjetivo (BES) como forma de se compreender a saúde do trabalhador, construindo possibilidades de intervenção na perspectiva da Psicologia Positiva. Se é por meio do trabalho que o homem pode conhecer seus limites e potencialidades, tal abordagem pode contribuir na assunção das virtudes e características positivas do trabalhador, a fim de que ele atribua um sentido adaptativo ao seu trabalho. Deste modo, este campo científico pode ser utilizado para a promoção da saúde do trabalhador, a partir das noções de coping, flow, resiliência e BES, que visam ao bem-estar em todas as dimensões da experiência humana. 

Palavras-chave: Saúde: Trabalho; Bem-estar; Organizações de trabalho; Psicologia Positiva.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Contando assim a sombria emboscada com o gemente esforço de quem empurra um arado por terra pedreira gastara Gonçalo essa doce semana de setembro. E no sábado, cedo, na livraria, com os cabelos ainda molhados do banho de chuva, esfregava as mãos diante da banca porque certamente com duas horas de atento trabalho, findaria antes de almoço a sua novela, a sua obra! E todavia esse final, quase o repelia, com o seu sujo horror. (Eça de Queirós, A ilustre casa de Ramires, 1897, p. 322).

Quando abordamos a relação entre saúde e trabalho faz-se necessário destacar que há uma pluralidade de sentidos possíveis segundo o prisma teórico-metodológico adotado. Para tanto, é de suma importância que se possa considerar os conceitos de trabalho e de saúde, a fim de realizar um encontro entre essas duas dimensões da vida. Obviamente, a aproximação entre essas duas noções não é algo uníssono na história da construção do pensamento psicológico, sendo muitas vezes vistas como antagônicas. Nesse sentido, o objetivo deste estudo é abordar o bem-estar subjetivo (BES) como forma de se compreender a saúde do trabalhador, construindo possibilidades de intervenção e de reflexão na perspectiva da Psicologia Positiva.

Em relação às definições históricas dos conceitos de saúde e trabalho, Dias (1994) e Minayo-Gomez e Thedim-Costa (1997) destacam que esta articulação remonta há muitos séculos, destacando a sua atual repercussão em função da constatação de  que o trabalhador estaria exposto, em determinadas ocupações, a riscos específicos de adoecer e morrer, devendo ser protegido e cuidado, na prática da medicina do trabalho e outros campos correlatos. A assunção desta especialidade médica, por si só, já revela o modo como esta articulação de conceitos vem sendo absorvida e protagonizada em nossa sociedade, égide do capital. O trabalho, externo ao trabalhador, é muitas vezes visto como perigoso, nocivo, algo que deva ser combatido ou remediado. Assim, torna-se premente que as mazelas (doenças) provocadas pelo trabalho sejam combatidas, gerando a necessidade de que um domínio da Medicina (e da própria Psicologia, da Terapia Ocupacional, Fisioterapia, Educação Física, entre outras disciplinas) se ocupe daquilo que é provocado pelo trabalho.

O conceito de trabalho passou por diversas transformações desde o início da Humanidade até os dias atuais. Assim, para compreender algumas atitudes diante do trabalho, é preciso entender o seu conceito em determinado contexto sócio-histórico. Como exemplo, é possível assinalar que, na Idade Média, o desprezo pelo valor do trabalho significava desprezo social pelos trabalhadores, como maneira de não atender suas necessidades e não compreendê-los como um todo. O desprezo pelo trabalho perdurou durante algum tempo, a fim de manter a hierarquia das classes sociais e, assim, reduzir conflitos ao deixar bem estabelecido o nível social. A partir da evolução das sociedades, esses conceitos foram se alterando. A conceituação de trabalho visto como tortura e maldição deu lugar ao trabalho como fonte de realização pessoal e social, ou seja, ele passou a ser o meio de dignificação da pessoa, como veremos a seguir.

 

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Sentidos para o trabalho

Na perspectiva marxista, é por meio do trabalho que o homem se produz e se reproduz, ou seja, pode desenvolver suas habilidades, sua imaginação, conhecer sua própria força e suas limitações, ter uma ideia do mundo e de si mesmo. Assim como as crianças fazem uso das brincadeiras para se conhecer e explorar o ambiente externo, o homem adulto tem a mediação do trabalho. Portanto, é o trabalho que possibilita compreender o homem e como ele é capaz de transformar a natureza. Nesse sentido, Marx (1988) afirma:

Antes de tudo, o trabalho é um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços, pernas, cabeça e mão, a fim de sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. (...) Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça antes de construí-lo em cera (MARX, 1988, p. 142-143).

Por meio deste fragmento de texto, é possível perceber a relevância do trabalho no processo de constituição do homem, em sua relação com a natureza, com a sociedade e consigo mesmo. É por meio do trabalho que o homem se reconhece, constitui-se como ser social, criativo e reflexivo. Portanto, o trabalho pode ser compreendido como o centro da vida humana. Consequentemente, tudo o que fazemos para o trabalho, estamos fazendo com a própria vida. Nesse sentido, o capitalismo acabou se apropriando do trabalho de uma forma avarenta, mesquinha, mediada pelo lucro e pela concentração de renda cada vez maior, fazendo com que o trabalho fosse explorado em seu grau máximo. 

Tal característica negativa do trabalho é apontada por Marx, bem como a distinção do trabalho como forma de produção específica e determinada historicamente. Deste fato decorre a importância do trabalho na compreensão do homem, pois, para entender o que é trabalho é preciso entender o que é o homem. Pensando nessa direção, o conceito de homem também abarca outra concepção, a de saúde. Primeiramente, a saúde foi vista como a ausência de doença, ou melhor, a ausência de sintomas desagradáveis no aspecto físico, como dores, sensações incômodas e outras limitações 'palpáveis'. Posteriormente, tal definição foi ampliada para a ausência de sintomas desagradáveis também no âmbito psíquico, como ansiedade, raiva, tristeza e outros.

Na contemporaneidade, a Organização Mundial da Saúde (OMS) veicula uma noção de saúde que rompe com os dualismos mente e corpo e assume a integralidade na compreensão do humano. Para este organismo, saúde não é apenas a ausência de doença, mas a situação de perfeito bem-estar físico, mental e social. Para Segre e Ferraz (1997), essa definição, até avançada para a época em que foi realizada, é, no momento, irreal, ultrapassada e unilateral. Trata-se de uma definição irreal pois, aludindo ao "perfeito bem-estar", coloca uma utopia. O que seria este "perfeito bem-estar"?

Adotando-se um referencial objetivista, estaríamos elevando os termos perfeição, bem-estar ou felicidade a categorias que existem por si mesmas e não estão sujeitas a uma descrição dentro de um contexto que lhes empreste sentido, a partir da linguagem e da experiência íntima do sujeito (SEGRE; FERRAZ, 1997). Sendo assim, bem-estar, felicidade ou perfeição seriam atravessadas pelos sentidos construídos pelo próprio sujeito, sua individualidade e subjetividade.

Dessa maneira, a saúde deve ser entendida em um sentido mais amplo, como fazendo parte da qualidade de vida. E qualidade de vida nos remete ao trabalho, pois grande parte da nossa vida acontece por meio dele. Portanto, fazendo uso da linguagem do trabalho, podemos considerar a saúde como um 'bem comum' e não um 'bem de troca', ou seja, é um direito social, e todo indivíduo deve ter assegurados seu exercício e a prática do direito à saúde, a partir da aplicação e utilização de toda a riqueza disponível, dos conhecimentos e da tecnologia, juntamente com as necessidades, a prevenção e reabilitação de doenças. Dito de outro modo, a saúde é um direito inerente ao cidadão, independente de cor, credo ou situação socioeconômica. 

Do ponto de vista das práticas e políticas de saúde, os sistemas de saúde do mundo ocidental têm adotado a ideia de promover a saúde, e não apenas de curar a doença, emergindo daí os conceitos de vigilância da saúde, políticas públicas saudáveis e cidades saudáveis, articulados à noção de promoção da saúde pela mudança das condições de vida e de trabalho da população (MENDES, 1996; PAIM, 2000). Segundo Coelho e Almeida Filho (2002), isso possibilita o surgimento de propostas para uma nova política de saúde centrada em uma formulação positiva de teoria e prática, buscando romper com concepções estabelecidas sobre o processo saúde-doença-cuidado. A partir disso, tem-se buscado refletir sobre a noção de saúde como algo positivo e adaptativo, com foco em sua promoção, o que é um dos pilares da Psicologia Positiva, como veremos a seguir.

2.2 Psicologia Positiva: uma visão positiva sobre o trabalho

A Psicologia, durante muito tempo, deu ênfase às questões relacionadas à doença, não se atendo às discussões sobre a saúde e o bem-estar (DIENER, 1995). É nesta lacuna de investigações que se situa a Psicologia Positiva. Graziano (2005), ao discorrer sobre as origens da Psicologia e, especificamente, da Psicologia Positiva, afirma que a Psicologia enquanto ciência deve contemplar toda a complexidade e diversidade da mente humana e não apenas alguns de seus atributos, positivos ou negativos. Para esta autora, a Psicologia ainda está voltada para a doença, para os aspectos tidos como negativos ou desfavoráveis, uma vez que há intensa dificuldade de romper com este paradigma, que remonta à Segunda Guerra Mundial. Após este período histórico, os estudos em Psicologia se direcionaram para a recuperação e remediação de déficits e patologias. Na sequência, surgiu uma concepção do ser humano baseada e influenciada pela doença mental e pelas disfuncionalidades dos sistemas e organizações, destacando as fragilidades e limitações das pessoas (Marujo; Neto; Caetano; Rivero, 2007; SNYDER; LOPEZ, 2009).

Naquela época, segundo Seligman (2004), a Psicologia era fortemente identificada como um tratamento de doenças mentais, a fim de curar desordens e não vinculada à promoção de saúde e qualidade de vida das pessoas. O foco na doença ajudou a construir uma Psicologia que negligenciou uma importante fatia do estudo dos seres humanos, ou seja, de suas potencialidades e aspectos positivos de desenvolvimento. A partir disso, surgiu um movimento interessado em discutir aspectos como felicidade, bem-estar, otimismo e longevidade, temas que simplesmente eram descartados pelos pesquisadores anteriormente devido ao foco na doença. Assim como apontado no trabalho de Marujo et al. (2007, p. 117), a Psicologia Positiva surge na década de 1990 e se constitui como uma  "[...] área de estudo científica própria, vibrante e multifacetada que vai além de uma abordagem centrada nos problemas e nas patologias, para se endereçar teórica e empiricamente à construção das melhores qualidades de vida, nos âmbitos subjetivo, individual e grupal".

Segundo Sheldon e King (2001), a Psicologia Positiva é o estudo científico das forças e virtudes próprias do indivíduo. Para Seligman (2004), trata-se do estudo de sentimentos, emoções, instituições e comportamentos positivos que têm como objetivo final a felicidade humana. Do ponto de vista de contextualização histórica, a Psicologia Positiva foi desenvolvida por Seligman (2004), que propôs, basicamente, a modificação do foco da Psicologia de uma reparação das "coisas ruins da vida" para a construção de qualidades positivas (SCORSOLINI-COMIN; SANTOS, 2009).

De acordo com Seligman (2004) e Graziano (2005), a Psicologia Positiva se sustenta sobre três pilares principais, a saber: (a) o estudo da emoção positiva; (b) o estudo dos traços ou qualidades positivas, principalmente forças e virtudes, incluindo habilidades como inteligência e capacidade atlética; (c) o estudo das chamadas instituições positivas, como a democracia, a família e a liberdade que dão suporte às virtudes que, por sua vez, apoiam as emoções positivas. A Psicologia Positiva pretende debruçar-se sobre as experiências positivas (como emoções positivas, felicidade, esperança, alegria), características positivas individuais (como caráter, forças e virtudes), e instituições positivas (como organizações baseadas no sucesso e potencial humano, sejam locais de trabalho, escolas, famílias, hospitais, comunidades, sociedades ou ambientes físicos a todos os títulos saudáveis) (SCORSOLINI-COMIN, 2009).

Feita essa breve apresentação e contextualização do quadro teórico-conceitual, pontua-se que a Psicologia Positiva ainda é um campo científico recente que pode ser utilizado para a compreensão e a promoção da saúde do trabalhador. Entre as noções investigadas nessa perspectiva, podemos destacar o otimismo, o coping, a resiliência e o bem-estar subjetivo (BES), que será abordado a seguir.

2.3 O bem-estar subjetivo (BES) e a saúde do trabalhador

Apesar do reconhecimento de grande parte das ciências humanas de que a felicidade é a meta fundamental da vida, ainda há pouco progresso com relação ao entendimento do que consiste a felicidade, em termos científicos. Pesquisas têm revelado que aspectos como segurança material, luxo e dinheiro não são, por si, só, garantia de felicidade, bem-estar e qualidade de vida.

O termo felicidade pode ser associado a muitos conceitos e noções, tornando o objetivo de especificá-lo de forma consistente e abrangente uma tarefa trabalhosa de ser levada a cabo. Neste estudo, não utilizamos o termo para caracterizar a satisfação em relação a eventos específicos da vida, mas sim à vida como um todo. Ele cobre o passado, o presente e o futuro, por meio da antecipação da apreciação de experiências futuras, sendo que às experiências vividas em períodos diferentes podem ser atribuídos pesos diferentes dentro da avaliação (SCORSOLINI-COMIN, 2009).

Segundo Siqueira e Padovam (2008), as concepções científicas mais proeminentes da atualidade sobre bem-estar no campo psicológico podem ser organizadas em duas perspectivas: uma que aborda o estado subjetivo de felicidade (bem-estar hedônico), e se denomina bem-estar subjetivo (BES), e outra que investiga o potencial humano (bem-estar eudemônico) e trata de bem-estar psicológico.

Na linha do BES, alguns estudos o relacionam às condições de trabalho e a indicadores econômicos e culturais (GALATI; SOTGIU; MANZANO, 2006; PIZER; HÄRTEL, 2006). No Brasil, o referencial do BES vem sendo utilizado desde 1993, com maior impulso a partir de 2000. No entanto, na maior parte dessas pesquisas, os autores partem dos conceitos previamente estabelecidos na apresentação de panoramas histórico-conceituais, como o trabalho de Pereira (1997) acerca das subdimensões da qualidade de vida e do BES, ou avaliam o BES de determinados grupos, como professores, idosos, professores e estudantes.  

Assim, o estudo do BES visa a compreen­der a avaliação que as pessoas fazem de suas vidas, podendo receber outras denominações, tais como felicidade, satisfação, estado de espírito, afeto positivo, sendo também considerado por alguns autores uma avaliação subjetiva da qualidade de vida. As definições desses conceitos ainda se encontram em desenvolvimento, o que dificulta a investigação do BES (ALBUQUERQUE; TRÓCCOLI, 2004). 

Apesar das discordâncias teóricas relativas à conceituação de BES, há um consenso quanto às suas dimensões: satisfação com a vida e afetos positivos e negativos (ANGUAS, 1997). Afeto positivo é um contenta­mento hedônico puro experimentado em um determinado momento como um estado de alerta, de entusiasmo e de atividade. É um sentimento transitório de prazer ativo. Afeto negativo refere-se a um estado de distração e engajamento não prazeroso que também é transitório, mas que inclui emoções desagradáveis como ansiedade, depressão, agitação, aborrecimento, pessimismo e outros sintomas psi­cológicos aflitivos e angustiantes. A satisfação com a vida é um julgamento cognitivo de algum domínio específico na vida da pessoa; um processo de juízo e avaliação geral da própria vida; uma ava­liação sobre a vida de acordo com um critério próprio. Este julgamento depende de uma comparação entre as circunstâncias de vida do indivíduo e um padrão por ele escolhido, ou seja, remete-se também a uma comparação com o seu meio social, cultural e histórico (DIENER, 1995; SORSOLINI-COMIN, 2009).

É neste ponto que o conceito de trabalho em nossa sociedade pode ser resgatado como forma de se compreender como o mesmo pode interferir na avaliação que a pessoa faz de seu bem-estar. Tendo em mente que o BES é um construto multicausal, associado ao fato de que o trabalho representa/participa maciçamente da vida contemporânea, podemos delinear que ele contribua para o bem-estar individual, sendo um fator considerado pelo respondente ao relatar sobre a sua satisfação com a vida. Assim como a afetividade, o trabalho acaba sendo uma dimensão representativa da vida do indivíduo, motivo pelo qual não interfere apenas nas condições materiais de existência, mas nos modos de subjetivação desse bem-estar.

Discutindo sobre os fatores que influenciam o BES, Albuquerque e Tróccoli (2004) discorrem que este é um construto que sofre influência tanto cultural (experiências compartilhadas que formam a base de uma maneira similar de se ver o mundo), como da hereditariedade. Pessoas de países mais ricos, com maior liberdade e ênfase no individualismo, tendem a demonstrar maior BES; é possível que os individualistas sejam mais capazes de seguir seus próprios interesses e desejos e, assim, mais frequentemente consigam se autorrealizar. Correlacionando BES e saúde, a literatura aponta que a saúde percebida parece ser bem mais importante para o BES do que a saúde objetiva. 

Por sua vez, este estado de saúde subjetivo pode ser influenciado pelo afeto negativo e pela saúde objetiva. Segundo tais estudos, pessoas com saúde objetivamente ruim podem demonstrar elevado BES, assim como pessoas com baixo BES podem não ter qualquer sinal de doença. Acerca da renda, pelos levantamentos de Albuquerque (2004) e Scorsolini-Comin (2009), as pesquisas mostram que pessoas de nações mais ricas são mais felizes do que pessoas de nações mais pobres e que o aumento da riqueza nacional em nações desenvolvidas não tem sido associado ao BES. Outros resultados são que as diferenças de riqueza em uma mesma nação demonstram pequenas correlações positivas com o BES e que o aumento na riqueza pessoal não resulta em aumento da felicidade em pessoas que desejam fortemente dinheiro e riqueza. 

A partir dessas considerações, o BES pode ser utilizado para se pensar a saúde do trabalhador, na medida em que explora a dimensão individual, ao contrário das propostas que tratam da dimesão coletiva como predominante no campo do trabalho (ALESSI; NAVARRO, 1997; NAVARRO, 2003). Ao trazer o foco para o indivíduo, não desconsidera-se a dimensão social, coletiva, compartilhada, mas justamente busca-se nas condições objetivas e subjetivas de trabalho os aportes responsáveis por levar o trabalhador ao bem-estar e à satisfação. Obviamente, ao considerar o trabalho como fator de reflexão para o homem relatar a sua satisfação ou não, estamos considerando-o como um indicador de felicidade e de realização na vida (MARUJO et al., 2007; SIQUEIRA; PADOVAM, 2008).

O oposto dessa afirmação parece ser o conceito de alienação, em Marx (1993). Para este, a alienação apresenta diferentes aspectos: na relação do trabalhador com o produto do seu trabalho; na relação do trabalho com o ato da produção; na relação consigo mesmo enquanto ser capaz de ter consciência de si mesmo, este último ligado à noção de BES. Por consequência, o homem acaba alienado em relação aos outros homens: "Quando o homem se enfrenta a si próprio, enfrenta-o o outro homem. Na relação do trabalho alienado, cada homem considera o outro segundo medida e a relação na qual ele próprio encontra como operário" (MARX, 1993, p. 69).

Se o homem não consegue se apropriar do próprio trabalho, vendo-o como produtor de sentidos, acaba percebendo que o seu esforço (o seu trabalho) pertence a outra pessoa. Desta ideia surge a relação capitalista, sendo a propriedade privada o produto do trabalho alienado. O trabalho significa, portanto, a fonte de riqueza das nações. As sociedades desenvolveram-se por meio do trabalho produzido por agricultores, pescadores, comerciantes, artesãos e operários.

Assim, como salientado anteriormente, a compreensão de homem não pode ser desvencilhada da concepção do trabalho, pois este é um reflexo da condição humana. E assim acontece com as relações sociais, que têm se constituído como relações de troca econômica e não mais afetivas ou incondicionais. Tal aspecto se expande para a vida do indivíduo como um todo, para seus relacionamentos e vida social, influenciando de maneira direta a questão de sua saúde, tanto em relação ao trabalho, quanto em relação à sua vida de maneira geral, lembrando que o BES é uma avaliação global da vida.

Nesse sentido, sabemos que o indivíduo tem potencialidade para o trabalho, porém, a maneira como o trabalho foi instituído (por meio da propriedade privada e conhecimento tecnológico) acabou por criar entraves ao trabalhador, ao invés de auxiliá-lo. E a ideia que temos de satisfação e de qualidade de vida também está sofrendo modificações, já que o mais importante no mundo contemporâneo é o que podemos ter, o quanto podemos comprar e consumir e o quanto queremos satisfazer nossos desejos mais pessoais. Deixamos para segundo plano os relacionamentos interpessoais e a preocupação com o outro, quase perdemos a noção do que é o altruísmo, e, assim, temos mais dificuldade em perceber o outro como diferente de nós mesmos e com necessidades e desejos distintos dos nossos (esse é um dos grandes motivos de frustração, seja em relacionamentos amorosos ou em relacionamentos profissionais).

A Psicologia Positiva se coloca justamente a serviço dessa mudança, promovendo uma alteração de foco e aviltando a necessidade de que as organizações abram espaço para o desenvolvimento das virtudes humanas como o respeito, o otimismo, a resiliência, a esperança e também a espiritualidade, de modo sério, comprometido e que possa ser avaliado. É a partir disso que poderemos buscar maior qualidade de vida, o que não se restringirá ao trabalho, mas a todas as dimensões. Propomos, desse modo, que a saúde do trabalhador também possa ser vista e assumida como algo que faz parte da ideologia da organização e não como uma forma de se adequar à legislação ou às exigências trabalhistas. Desenvolvendo essas virtudes com os trabalhadores, por meio de programas de treinamento, educação corporativa e de diferentes práticas organizacionais, haverá não apenas maior sentido no trabalho, como prazer, sendo a atuação profissional uma parte importante na constituição do próprio bem-estar do indivíduo.

 

3 CONCLUSÃO

A relação entre saúde e trabalho aparece de maneira mais expressiva apenas após a Revolução Industrial, época em que o trabalho passou a ser visto como meio de produção de mercadorias e de acumulação de capital, fazendo com que o trabalhador passasse a ser considerado também uma mercadoria, ou seja, perdendo sua humanidade e ganhando o status de 'coisa'. Como era considerado 'coisa', sua saúde podia ser deixada de lado, já que o mais importante era produzir e render e não gastar dinheiro buscando melhoria da qualidade de vida.

Apesar da distância considerável que temos em relação à época da industrialização, essa visão parece perdurar na atualidade, em muitos ambientes de trabalho. O objeto produzido pelo trabalho, ou seja, o produto, é valorizado em detrimento de quem o faz, tornando o homem distante e um estranho em relação ao que produziu. Como apontado por Marx (1993), ocorre a 'desrealização' do trabalhador, a alienação, que faz com que o trabalhador seja privado dos objetos de trabalho, bem como dos objetos necessários à sua sobrevivência. Diante de tudo isso, os homens perderam a liberdade, pois há um controle enorme sobre o que satisfaz a necessidade, os valores, os desejos e as pulsões, e isso medeia o nosso comportamento. Como maneira de nos defendermos desse controle autoritário e silente, resta-nos, enquanto trabalhadores, fugir da relação doentia com o trabalho. Essa fuga pode se apresentar de maneira física (como na recusa concreta em trabalhar) ou psicológica (como alienação e somatização). Como a saúde está intrinsecamente ligada ao trabalho, é ela uma das depositárias do modo como o encaramos e o subjetivamos. 

Como apresentado, primeiramente a saúde era entendida como sendo o estado de ausência de doença, e, diante disso, o foco era a patologia em si. O intuito primordial era controlar a doença e estabelecer a cura. Posteriormente, aos aspectos físicos ou biológicos, foram sendo agregados os psicológicos e os sociais, que passaram a ser reconhecidos como causas de doenças. Consequentemente, a saúde, de um simples estado de ausência de doença, passou a ser entendida como sendo um estado de bem-estar físico, mental e social. Tal concepção, ligada aos direitos e deveres humanos, fez com que a saúde passasse a ser vista como um processo de cidadania, ou seja, um processo continuado e interdependente de preservação da vida.

Dessa forma, todos os cidadãos têm direitos, mas têm como dever a responsabilidade por sua manutenção. Dentro dessa concepção, a saúde acontece e é consequência de ações realizadas em toda a sociedade, inclusive da promoção da saúde, um dos pilares da Psicologia Positiva. Tal fato não exclui a participação e responsabilidade do Estado e dos profissionais de saúde, apenas faz com que o indivíduo seja respeitado e mereça condições dignas de vida. Finalmente, essa maneira de compreender a saúde abarca aspectos individuais e coletivos, envolvendo questões ambientais e sociais.

De maneira semelhante acontece com o conceito de trabalho, que deve ser visto a partir da condição humana. Apesar das transformações observadas nesse conceito ao longo do processo histórico, é mister que os pesquisadores possam considerar as polissemias presentes em sua constituição, de acordo com as condições materiais de produção e também a partir de aspectos histórico-culturais do contexto. Acreditamos que, além da jornada de trabalho, do ritmo acelerado de produção e das condições concretas em diferentes contextos organizacionais, a maneira como o trabalho é visto tem influenciado a saúde do trabalhador.

Assim, a partir do prisma da Psicologia Positiva, buscamos, de modo aprofundado, os aspectos positivos, adaptativos e as potencialidades que podem contribuir para a mudança, para a satisfação. Infelizmente, o trabalho continua sendo considerado de forma fragmentada, visto como exaustivo e que oferece um retorno imediato, ou seja, é propício para atender às necessidades urgentes do ser humano, e não como forma de fortalecimento de sua personalidade e caráter. Além do mais, as necessidades mais urgentes nem sempre são as mais essenciais e, em um mundo consumista e efêmero, logo são satisfeitas, gerando outras e um certo grau de insatisfação e descontentamento. Somado a esse fato, muitas pessoas ainda têm a ideia de que trabalho e saúde são dois conceitos distintos que não se cruzam, ou melhor, que se excluem. 

Ainda que não contemple em sua obra, de modo declarado, os pressupostos da Psicologia Positiva, Antunes (1999) traz complementações à fragmentação da díade saúde e trabalho e, consequentemente, do prazer e da satisfação, afirmando que uma vida desprovida de sentido no trabalho é incompatível com uma vida cheia de sentido fora do trabalho. Desse modo, pensar sobre a saúde dos trabalhadores requer que se releve as diversidades epidemiológicas que agravam sua saúde, pensando no contexto de análise. Navarro (2003) complementa esse discurso acerca da importância de se compreender o contexto organizacional e as mudanças tecnológicas, salientando que a intensificação do trabalho tem acarretado diversas consequências, como o aumento das doenças ligadas ao trabalho e o acréscimo de condições que possam causar acidentes aos trabalhadores, corroborando o vínculo entre saúde e trabalho.

Dessa forma, é de suma importância que possamos pensar no conceito de trabalho, e, para tanto, é preciso levantar algumas questões para a sociedade acerca de sua organização, do funcionamento de sua economia, das relações de trabalho e do mercado. Nas organizações, os programas voltados à saúde do trabalhador com o aporte da Psicologia Positiva têm buscado não apenas incentivar uma postura mais positiva e adaptativa diante dos problemas de saúde enfrentados pelos funcionários, mas também promovido estratégias e ferramentas para que se ampliem as potencialidades desses indivíduos, especificamente em aspectos como a resiliência, a esperança, o coping, o flow, o otimismo, entre outras virtudes (SNYDER; LOPEZ, 2009).

É a partir desse movimento de reflexão e de utilização de novos referenciais para se pensar a saúde do trabalhador que poderemos encontrar um sentido para o trabalho, para ir em busca de sua qualidade de vida e encontrar o sentido para sua existência. Conforme atesta Antunes (1999), dizer que uma vida cheia de sentido encontra na esfera do trabalho seu primeiro momento de realização é totalmente diferente de dizer que uma vida cheia de sentido se resume exclusivamente ao trabalho. Se o trabalho se torna autodeterminado, autônomo e livre, é por meio da arte, da poesia, da pintura, da literatura, da música, do uso autônomo do tempo livre e da liberdade que o ser social poderá humanizar-se e se emancipar em seu sentido mais profundo, resgatando as suas virtudes como forma não apenas de ressignificar a sua prática, mas também de lhe conferir maior qualidade, maior esperança e potencialidades para o crescimento, o autoconhecimento e a satisfação, dentro e fora do trabalho.

 

REFERÊNCIAS

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1 Fabio Scorsolini-Comin é Professor da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Psicólogo, Mestre e Doutorando em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Administração Escolar e em Supervisão Educacional. Pesquisador do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde (NEPPS-USP-CNPq). Foi bolsista CAPES e FAPESP (Processo 2010/00244-9), sob orientação do Prof. Dr. Manoel Antônio dos Santos. Contato: e-mail: scorsolini@psicologia.uftm.edu.br
2 Léia Maria Erlich Ruwer é Doutoranda em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Campus Franca. Mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Especialista e Graduada em Administração pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Bolsista CAPES, sob orientação do Prof. Dr. José Walter Canoas. Endereço: Contato: e-mail: leia.ruwer@gmail.com