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ISBN 978-85-62480-96-6 versión impresa

Sem. de Saúde do Trabalhador de Franca Sep. 2010

 

TRABALHO, SEGURIDADE SOCIAL E SAÚDE DO TRABALHADOR

 

A constituição do corpo do doente mental

 

 

Paulo Cesar PeixotoI; Íris Fenner BertaniII

IPsicólogo, especialista em Psicologia Clínica e Mestrando em Serviço Social pelo Programa de Pós Graduação em Serviço Social da UNESP - Universidade Estadual Paulista, campus de Franca/SP. Contato: peixxotto@hotmail.com
IIDoutora pela PUCSP e Livre Docente pela UNESP. Docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós Graduação em Serviço Social - UNESP. Universidade Estadual Paulista Campus de Franca. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Saúde, Qualidade de Vida e Relações de Trabalho  - QUAVISSS, GEMTSSS. Endereço eletrônico: iris@franca.unesp.br

 

 


RESUMO

Este artigo pretende esclarecer, a partir da obra de Michel Foucault, o modo de constituição do corpo da doença mental em sua interrelação com as transformações sociais que deram ensejo à sociedade moderna, e junto a estas a emergência da psiquiatria como projeto ligado à legitimação de um processo de exclusão já em andamento. Neste entendimento o saber psiquiátrico, o manicômio, e o corpo objetivado da doença mental, fazem parte de um mesmo projeto de normalização e ortopedia das massas, e de exclusão dos que escapam deste sistema para se tornarem estorvo ao processo produtivo.

Palavras-chave: Doença Mental. Psiquiatria. Manicômio. Exclusão, Processo Produtivo.


 

 

1 INTRODUÇÃO

Para Foucault (1978) a determinação dos limites do corpo1 do doente mental, a  fixação dessa identidade, a trama que lhe impõe uma determinada forma, e as amarras que lhe  dão uma visibilidade específica, são dadas no processo histórico que constituiu os saberes, as práticas psiquiátricas e a instituição manicomial.

No processo de constituição da materialidade do corpo da doença mental, saberes, poderes, instituições, práticas se organizam. Estes elementos engendram-se mutuamente, articulam-se, constroem-se, e tecem uma trama onde o que se deixa ver finalmente é o corpo como doença, instituições que dele cuidam e disciplinam, que sobre ele versam e erigem uma verdade. A história da loucura é a história da constituição do corpo do doente mental, ao mesmo tempo a composição de um aparato de saber, de poder, de atuações e de instituições que em torno dele constituem-se e também participam de sua edificação. Conforme Foucault (1978), a constituição do hospital, da psiquiatria, do tratamento, e do próprio doente mental fazem parte de um mesmo projeto, onde os elementos se confundem, se misturam, se interferem e se engendram mutuamente.

Foucault mostra que a figura da loucura foi capturada em diversas experiências, e que fora percebida relacionada às mais diversas imagens em diferentes momentos históricos, até tornar se esta figura estática que aparece hoje sob o signo da doença mental. Esta é apenas uma etapa de um enredo maior no qual a loucura tem se desenvolvido. Deste modo, como alerta Foucault, os elementos de uma psicopatologia não podem ser organizadores dos estudos sobre a loucura, ou sobre a doença mental porque assim projetaria verdades terminais onde o que deve acontecer é o entendimento das tecnologias e de verdades que fizeram emergir o louco como doente em um processo histórico.

Conforme Eribon, com a "História da loucura na Idade Clássica" (1978), Foucault se propôs a "mostrar como se estabeleceu a divisão que no início do racionalismo clássico apartou a loucura e como a teoria psiquiátrica inventou, modelou, delimitou seu objeto: a doença mental" (FOUCAULT apud ERIBON, 1990, p.112).

A grande inovação de Foucault nesta obra foi buscar os saberes que torneavam a loucura no momento do nascimento da psiquiatria, e que, de acordo com Foucault, deram condições de possibilidade para o surgimento da psiquiatria como saber sobre a loucura, e da loucura como objeto para esta. Segundo Machado (2006c), os saberes deste entorno não são vistos como elementos de uma pré-história da ciência psiquiátrica, que toma o saber psiquiátrico como evolução e finalização de entendimentos mais grosseiros, e considera esta ciência médica como o desenvolvimento linear a partir de precursores e origens. Sem fazer diferença entre ciência e pré-ciência, Foucault estabelece relações entre os saberes, entendendo-os com positividades específicas, positividades do que foi efetivamente enunciado, isto é sem julgamentos de valor dados a partir de um saber superior, e a partir deles procura entender a história da loucura e sua emergência como erro, como negativo da razão, da norma, da verdade. Momento em que a loucura entra numa relação de absoluta inter-referência com a psiquiatria, tornando se uma razão da outra, uma o porquê da outra.

Outra novidade metodológica inserida por Foucault nesta obra (1978), segundo o que diz Machado (2006c), foi a condição de não se limitar ao nível do discurso para dar conta da questão da formação histórica da psiquiatria. A análise centrou-se nos espaços institucionais de controle da loucura, desde a Idade Clássica, revelando uma heterogeneidade entre os discursos teóricos sobretudo médicos sobre a loucura e outros saberes que ali se põem a funcionar: saber médico, as práticas de internamento, instâncias sociais como a política, a família, a Igreja, a justiça, etc. Foucault mostra como a psiquiatria, em vez de ser quem descobriu a essência da loucura e a libertou, ou humanizou os procedimentos na lida com ela, é a radicalização de um processo de dominação da loucura que se iniciou antes pelas vias da reclusão. Dominação, mas também constituição já que a loucura é aprisionada pelo saber médico que passa a dizer sobre o que ela é: corpo doente. A doença mental vai-se viabilizando a partir das demandas do universo social, de saberes, poderes, práticas e instituições que ao longo da história tomam e torneiam o corpo da loucura, no processo de formação da sociedade moderna.

Como aponta Dreyfus e Rabinow (1995), Foucault não quis contar a história do progresso científico, mas entender como a psiquiatria, a medicina moderna e as ciências humanas, tiveram suas origens em práticas de exclusão e internamento anteriores: "Foucault as interpreta como representando um papel muito mais crucial na especificação e na articulação da classificação e do controle dos seres humanos, do que na revelação de uma verdade mais depurada." (DREYFUS; RABINOW, 1995, p.5).

 

2 DESENVOLVIMENTO

Segundo Foucault (1978), no fim da idade média, principalmente nos séculos XIV e XV, a loucura se ligava a uma multiplicidade de sentidos e gozava de relativa liberdade. Ao louco estavam ligadas tanto imagens glorificadas, quanto animalescas, ele era a verdade esotérica, o saber difícil e fechado, a ignorância bruta, o vazio da existência, o já estar ai da morte, a enunciação do fim do mundo, etc. Essa experiência não estava ligada a um único sentido, e é justamente o polimorfismo de sentidos deste personagem que lhe dava a possibilidade de fazer parte da vida cotidiana do homem dessa época e circular pelo mundo ocidental. O louco estava nos domicílios, mas também vagava pelas cidades, ou era expulso delas, entregue a peregrinos e navegantes, vagava de uma cidade a outra, era cuidado por religiosos, enfim, ele circulava sem posição fixa visto que não tinha ainda uma especificidade, uma condição única.

Segundo Foucault (1978) ao homem dessa época era possível ter essa experiência da loucura sem que isto tivesse qualquer fundamento médico. Ainda que as relações estabelecidas com a loucura fossem em boa parte de exclusão e recusa, o ocidente, até meados do século XVII, era bastante tolerante com a loucura.

Note-se que a multiplicidade de sentidos não se refere a uma experiência fundamental da loucura, com a qual a percepção atual deve ser ressignificada visto que ela não é única, ao contrário, é diversa, múltipla. O que Foucault aponta é uma vasta possibilidade de percepções sobre a loucura naquele momento, ainda que ele indique esta multiplicidade sob uma designação única a de experiência trágica, contrapondo à consciência crítica, como se verá a seguir.

Foucault (1978) fala de duas grandes experiências de percepção da loucura na Idade Clássica, conforme se evidenciarão na pintura ou nos discursos da literatura e da filosofia. A pintura Bosch, Brueghel, Dürer, por exemplo traz imagens carregadas do polimorfismo de sentidos que caracterizou a Idade Média, naquilo que Foucault denominou de experiência trágica da loucura.

No entanto na literatura e na filosofia, como em Erasmo, Brant e Cervantes, a loucura já apresenta outro sentido, não é mais a figura polimorfa, mas é mostrada como erro, vício, o falso da verdade, não-razão. Ela é capturada no negativo: esta seria o que Foucault denominou de consciência crítica da loucura. As duas experiências marcam a Idade Clássica de modo bem definido, uma na ordem das imagens e outra na ordem do discurso, no entanto, conforme o autor, nesta época põe-se em andamento um claro movimento de superação, ou supressão, da consciência trágica pela consciência crítica. A história da loucura a partir de então é a história da quase extinção daquela e o domínio, quase absoluto, da ultima. Entre estas experiências não houve somente dualidade e oposição, mas a vitória decisiva da consciência crítica sobre a experiência trágica. A loucura foi sendo confiscada, a partir da Idade Clássica no negativo da razão. Através de um intenso processo de normatização, a razão confisca a loucura como seu contrário. O diálogo entre loucura e razão é estancado. O discurso da razão sobre a loucura impõe sobre esta um silêncio perene.

O século XVII foi palco de uma série de eventos históricos que processaram rupturas, afunilando a multiplicidade de sentidos na qual a loucura estava inscrita, fazendo com que chegasse à atualidade reduzida ao conceito de doença, situada no intimo do indivíduo.

Naquele momento a sociedade européia demandou por uma assepsia social que implicou, na exclusão de uma massa que não se encaixava nos moldes propostos  pela  nova sociedade. Em atos de higienização do espaço social, o louco e outros personagens como prostitutas, hereges, alquimistas, devassos, suicidas, libertinos, venéreos, homossexuais, jovens que perturbam o repouso das famílias, pródigos, filhos ingratos, pais dissipadores, mágicos, blasfemadores, pretensas feiticeiras, insensatos, cabeças alienadas, espíritos transtornados e acima de tudo, vagabundos e pobres de toda a natureza, foram capturados e encerrados em um tipo de instituição chamada de Hospital Geral. Uma população bastante heterogênea, mas que pode ser pensada a partir de quatro grandes grupos: o grupo das sexualidades imorais, o dos profanadores do sagrado, dos libertinos e dos loucos. São todos eles, segundo Foucault (1978), partícipes de uma única experiência: da desrazão. A percepção social não distingue o louco como uma figura particular, mas o toma como elemento de uma massa maior. Percepção de fundamento moral e não médico: o internamento atinge o louco como elemento da desrazão, e não a loucura como objeto específico da prática de exclusão. Conforme Machado (1981), Foucault mostra que a percepção da loucura na Época Clássica não se dá como 'individuação' por meio de critérios médicos mas, ao contrário, como 'desindividuação'.

Para Machado (1981) as práticas, as instituições, os critérios de internação e mesmo a designação de alguém como louco não dependem, na Idade Clássica, de uma ciência médica, mas de uma percepção do homem como ser social. Neste momento os critérios de definição do estatuto de louco dizem respeito à transgressão, a razão e a moralidade, e inscreve se em uma percepção social dispersa e não situada especificamente no saber médico.

Conforme Foucault (1978), os Hospitais Gerais, nos quais toda a população enquadrada na experiência da desrazão foi encerrada, nasceram nos espaços vazios deixados pela lepra, os leprosários, que existiam aos milhares em toda a Europa durante a Idade Média. A lepra desaparece do cenário europeu por volta do século XV,  mas os signos e as estruturas a ela ligados irão persistir ligados a outro mal. Dois séculos depois, o espaço deixado por ela às margens da sociedade, foi preenchido por essa massa que, com o mercantilismo passou a ser percebida como estorvo à ordem social.

Longe de ser um estabelecimento médico, o Hospital Geral é um aparato a serviço da ordem monárquica e burguesa que se organiza na França neste período.

[...] o Hospital Geral não é um estabelecimento médico. É antes uma estrutura semijurídica, uma espécie de entidade administrativa que, ao lado dos poderes constituídos, e além dos tribunais decide julga e executa. [...] Soberania quase absoluta, jurisdição sem apelações, direito de execução contra o qual nada pode prevalecer -- o 'Hospital Geral' é um estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites da lei: é a terceira ordem da repressão (FOUCAULT, 1978, p. 49).

Essa estrutura do século XVII, o Hospital Geral, foi uma das respostas aos problemas da crise econômica que afetou a Europa, trazidos pelas mudanças estabelecidas nos modos de produção. O declínio dos ofícios artesanais, a instalação das manufaturas iniciais, do campesinato como classe, o cerceamento das propriedades, a dispersão dos dependentes feudais, as modificações no amanho da terra, tudo isto desembocou na fermentação de uma população de mendigos, vagabundos e desocupados que superlotavam as cidades e no campo formavam hordas tomando as estradas em assalto. Conforme a população de pobres crescia verticalmente o Hospital Geral assumia sua significação de repressão original, e fora dos momentos de crise assumia a utilidade de dar trabalho aos internados. De acordo com Foucault (1978, p.70), as internações serviam para absorção dos ociosos em época de desemprego, e mão de obra barata em períodos de pleno emprego e altos salários, tendo assim um duplo papel de, por um lado, agir sobre o mercado da mão de obra ao absorver ou ocultar o desemprego e, de outro, agir sobre os preços da produção, controlando-os quando estes ameaçavam ficar demasiado elevados.

Mas, para Foucault, o sentido econômico não é o sentido fundamental do Hospital Geral. Isto porque o trabalho na época é menos uma categoria econômica do que moral, e a pobreza não se relaciona à escassez de alimentos e desemprego, mas aos maus costumes.

Segundo Machado (1981, p. 64), o Hospital Geral significa a incorporação de um projeto moral a um projeto político que não apenas exclui da sociedade os que escapam a suas regras, mas cria uma população homogênea, de características específicas, como resultado dos próprios critérios que institui e exerce. O trabalho faz sua aparição como imperativo moral e social, tendo em vista os perigos da mendicância para as populações das cidades. 

Segundo Dreyfus e Rabinow (1995, p.6) se em períodos anteriores as cidades se protegiam dos bandos de miseráveis fechando suas portas, agora ela construía lugares intramuros para os mesmos, onde fica estabelecido um acordo em que a sociedade, a expensas do Estado, aceita alimentar ao mendicante desde que este aceite o constrangimento físico e moral do internamento no Hospital Geral. Houve neste momento mudanças na percepção do pobre, e também mudança no entendimento da assistência a estes.

O homem da Idade Média acolhia e alimentava aqueles que batessem à sua porta. Os miseráveis, os desvalidos e entre eles os loucos, que perambulavam pela Europa eram entendidos aí como providência de Deus para que o bom cristão realizasse a caridade, e ascendesse ao reino dos céus, obtendo desta forma uma função no próprio ato da mendicância.

Segundo Foucault (1978, p. 225) a Renascença teria despojado a miséria de sua positividade mística através de um duplo movimento. Em primeiro lugar a Reforma Protestante que aponta ali no desvalido a predestinação: no protestantismo é a riqueza que atesta a gloria de Deus, e o pobre traz o sinal de sua maldição. O segundo movimento refere se ao catolicismo que passa a ver nas instituições de caridade o devido lugar de ordenação da assistência aos pobres, retirando do gesto particular seu mérito, e da miséria sua dignidade santificada. Por este duplo movimento a miséria passa a ser percebida não mais do ponto de vista de sua relação com o divino, mas na sua relação com a desordem e culpabilidade. O pobre, antes percebido em uma positividade santificada, passa a ser visto na negatividade do obstáculo e também do perigo à ordem social. Neste contexto edificou se a poderosa estrutura do Hospital Geral.

Retomando, durante todo o século XVII em um primeiro momento de cisão em que a consciência crítica inicia seu processo de suplantação da experiência trágica -- a loucura, que até então desfrutava da circulação pelas cidades da Europa, esteve encerrada entre os muros dos Hospitais Gerais, no vazio deixado pela lepra, associada à miséria, em meio à massa de estorvos sociais englobada pela experiência da desrazão, para o bem da ordem social.

No entanto, as transformações sociais do século XVIII modificam este quadro e a experiência da desrazão se esfacela: com o início das estruturas que formarão a sociedade capitalista, esta população passa a ser vista como produtora de riqueza seja na condição de força para o trabalho, ou na de massa consumidora.

As mudanças para o modo de produção capitalista trouxeram uma permanente necessidade de mão-de-obra disponível e barata, e massa consumidora, que somada ao alto custo de manutenção dos Hospitais Gerais à coroa, fez com que estes se tornassem grave erro econômico. Desta forma, estas instituições foram esvaziadas de todas as pessoas que pudessem pertencer ao processo produtivo: homens e mulheres com capacidade para o trabalho deveriam voltar à sociedade, os doentes deveriam ser cuidados pelas próprias famílias, e o louco, possível estorvo ao processo produtivo, deveria permanecer recluso.

Aqui cabe a observação de que no século XVIII a percepção do pobre volta a sofrer modificações e consequentemente a assistência voltada a este também. Teve início nesta época, feita por economistas e administradores, uma crítica à assistência à pobreza. Nesta crítica a pobreza era esquadrinhada e categorizada fundamentalmente como: bom e mau pobre, ociosos involuntários e voluntários, pobres que podem trabalhar e inválidos.

Uma análise da ociosidade - de suas condições e seus efeitos - tende a substituir a sacralização um tanto global do pobre. Análise que na prática tem por objetivo, na melhor das hipóteses, tornar a pobreza útil, fixando-a ao aparelho de produção; e, na pior aliviar o mais possível seu peso para o resto da sociedade [...] Delineia-se, assim, toda uma decomposição utilitária da pobreza, onde começa a aparecer o problema específico da doença dos pobres em sua relação com os imperativos do trabalho e a necessidade de produção (FOUCAULT, 2006c, p.196).

Uma nova política assistencial começa a surgir: cabe assistir aos pobres, mas em liberdade e tendo a família como base deste resguardo. O pobre é requisitado a ser produtor-consumidor na sociedade capitalista, mas não o louco: este não só não se enquadra no mundo do trabalho, como representa estorvo ou perigo à ordem, e deve ser mantido à distância, sob constante vigilância.

Mas essa permanência do louco na reclusão traz um problema: a nova sociedade industrial precisava dar garantias institucionais aos cidadãos, e o seqüestro e enclausuramento de uma pessoa atenta contra o princípio da liberdade que está na base desta organização social. Nesta sociedade pós-revolução industrial não pode haver uma instância que arbitrariamente rapte o cidadão comum e o aprisione como acontecia em relação ao Hospital Geral.

Segundo Castel (1978) se, sob o Antigo Regime o rei e o juiz legitimavam demandas das famílias para a seqüestração do louco, interdição de seus bens e sua internação, já para a sociedade contratual que se instaura, estas instâncias não dão conta desse arbítrio. Suprimidas as ordens do rei; não sendo o louco um criminoso de quem a jurisprudência pudesse se encarregar; e não podendo a família tomá-lo em seu encargo fora do âmbito doméstico; resta o louco como uma brecha nos legalismos da sociedade do contrato.

Na sociedade do contrato que se forma, segundo Castel (1978), cada cidadão é soberano para efetivar os contratos junto a outros cidadãos, mas também é sujeitado às regras contratuais cuja garantia é dada pelo Estado. Em uma economia de mercado cabe ao Estado dar garantia e organizar a livre circulação dos homens paralela à circulação dos bens, ou seja, a função do Estado se liga à própria garantia da estrutura contratual. No entanto algumas categorias de indivíduos escapam a essa concepção do direito fundada pela sociedade contratual, entre elas a categoria dos loucos de toda sorte: o louco resiste a entrar neste quadro contratual. No momento da instauração da sociedade burguesa a loucura se mostra como lacuna, como oco, onde as leis que regem a sociedade contratual não conseguem atingir.

À Psiquiatria caberá a resolução deste dilema, e esta nascente especialidade médica transformará a negatividade do sequestro e da reclusão do louco, na positividade da proteção e do tratamento.

É importante citar, como analisa Foucault (2006c, p. 193) que ao mesmo tempo acontece um processo onde a saúde e o bem estar físico da população aparecem como objetivos essenciais do poder político: a saúde deve ser de cada um e objetivo geral. O século XVIII, devido ao grande crescimento demográfico do Ocidente europeu, e a necessidade de integrar essa massa ao processo produtivo e controlá-la, por mecanismos mais eficientes e menos dispendiosos, fez nascer uma tecnologia da população onde o corpo é problematizado: a medicina ganha importância na interface entre uma economia analítica da assistência e uma política geral da saúde. A medicina funcionando menos em torno da cura e remissão das doenças, e mais em função de uma generalidade da idéia de saúde, que cada vez mais toma o corpo social como lócus de sua prática, -- irá assumir um lugar cada vez mais importante nas estruturas administrativas e de poder que no século XVIII surgem e se expandem.

Momento bastante propício para a medicina protagonizar o gesto que irá requerer para si o corpo da loucura, principiando os atos de medicalização do espaço da clausura. Ao final do século XVIII, influenciado pelo Iluminismo, Pinel adentra o espaço da clausura em que restou o louco com a finalidade de humanizar este espaço. Observe-se que além de Pinel havia Tuke, Esquirol, Willis, Cullen, Haslan Colombier, Tenon, Chiarrugi,  Daquin, espalhados por toda a Europa (CASTEL, 1978)  -- e outros logos os seguirão --, mas Pinel será lembrado principalmente pelo gesto teatral protagonizado. Ele entra em cena, soltando as correntes, realizando a medicalização do Hospital de Bicêtre em Paris quatro anos após a Revolução Francesa. Elabora uma primeira nosografia das enfermidades mentais e cria o primeiro modelo de terapêutica, o tratamento moral, consolidando deste modo o conceito de alienação mental e a especialidade profissional do alienista.

Conforme Foucault (1978), se Pinel soltou as correntes da loucura aprisionada no século XVII, foi para mais fortemente atá-la à condição negativa de doença mental, de patologia médica, e atrelá-la definitivamente ao espaço da exclusão. Com o tratamento moral o médico se torna o ordenador não só da vida do paciente, mas também agente da ordem social, da moral dominante.

Mas a idéia de humanização a qual a loucura é atrelada neste primeiro momento do alienismo não é gratuita. Para Castel, antes que a medicina estivesse pronta para receber o mandato da loucura, coube à filantropia a instauração de uma subordinação regulada lá onde os legalismos não conseguem chegar. No alienismo até por volta de 1860, quando a loucura vem a ser capturada em uma racionalidade médica, o que prevalece é humanismo ou paternalismo: "A piedade indica o lugar da lei lá onde a lei não pode se manifestar sob sua forma própria." (CASTEL, 1978, p. 44).

Para Castel (1978, p.44) o humanismo filantrópico que caracterizou os primeiros momentos do movimento alienista é o auxiliar do jurisdicismo um recurso nas situações-limites onde o direito de punir não pode se exercer. Aos incapazes de estabelecer intercâmbios racionais na sociedade contratual a filantropia conduziu à condição de tutelados.

Por essa razão a questão da loucura se revestiu de importância capital no fim do século XVIII e no início do século XIX. Ela se situou no centro de uma contradição insolúvel para a nova ordem jurídica que se instaurava. Aparentemente, a loucura não deveria constituir um grande problema social já que vários outros problemas eram mais importantes e mais urgentes: a mendicância, a vagabundagem, o pauperismo, os menores abandonados, os doentes indigentes, etc., constituem, como já dissemos, populações infinitamente mais numerosas e em grande parte, igualmente perigosas. Contudo, os alienados 'beneficiaram-se' do primeiro encargo sistemático, reconhecido como direito e sancionado por uma lei que antecipa toda a 'legislação social' que virá cinquenta anos depois. Não se compreenderia esta originalidade se não a situássemos na linha divisória de uma problemática fundamental para a sociedade burguesa nascente. Sobre a questão da loucura por intermédio de sua medicalização, inventou-se um novo estatuto de tutela essencial para o funcionamento de uma sociedade contratual (CASTEL, 1978, p. 34, grifo do autor).

Segundo Castel (1978, p.55) ao final do antigo regime a medicalização da loucura se sistematiza. Medicalização que pouco tem a ver com a imposição de uma nosografia médica ou com a presença do médico: trata se antes da ordenação do espaço asilar que é tornado terapêutico e implica também na definição de um novo status jurídico, social e civil de menoridade e tutela do louco definido pela instituição médica.

O fundamento do processo de medicalização não é a relação médico-doente, mas a relação médico-hospitalização, uma tecnologia hospitalar com seu corolário de poder e a aquisição de um mandato social a partir do asilo.

Para Castel (1978, p.186) a relação estabelecida pelo alienismo entre isolamento e tratamento, explicitada na noção de isolamento terapêutico é o operador de uma alquimia onde o sequestro dos alienados é exercido, mas seu sentido é transformado: a sequestração é transmutada em tratamento. O alienismo tem no princípio de isolamento inscrito na instituição asilar o fundamento do tratamento, ao mesmo tempo que campo de pesquisa empírica. Nele o isolamento salva o alienado das causas de sua alienação inscritas na sociedade, visto que a alienação é entendida como desregramento das paixões; e, ao mesmo tempo, é a condição para a observação da loucura, é laboratório onde as reações podem ser observadas, estudadas, os comportamentos descritos, comparados, analisados e classificados.

A medicina mental surge como tecnologia que se põe a legalizar e legitimar um processo de exclusão já em andamento: "ela requer imperiosamente o que o poder administrativo exige absolutamente, a sequestração dos alienados." (CASTEL, 1978, p.188). O alienismo, conforme Castel (1978), ratifica as demandas de exclusão social e põe-se a serviço dela, firmando-se como instância de poder para além da ordem administrativa. A medicalização posta em marcha pelo alienismo transporta a questão que aparecia na ordem administrativo-policial para a ordem médico-humanista, transformando a serie salvaguarda da ordem pública-detenção-sequestro em doença-isolamento-tratamento. O que era do âmbito sócio político global torna-se uma questão técnica de competência de um especialista.

Deste modo, para Castel (1978, p.116) o asilo, é a peça central do dispositivo da primeira medicina mental, o lugar subordinador onde pode se desenrolar a melhor estratégia de intervenção.  Ele é o meio que maximiza a eficácia de uma tecnologia de poder.

Para Foucault (1978), é o isolamento da loucura, na segunda metade do século XVIII, após o esfacelamento da grande categoria da desrazão, que prepara o terreno para o nascimento da psiquiatria. Aqui cabe observar que desde o Renascimento iniciaram-se práticas, embora muito limitadas, de internação de loucos em instituições hospitalares com finalidades curativas, onde a loucura foi objeto de práticas médicas inspiradas na medicina galênica. No entanto Foucault (1978) adverte para o engano de se tomar tais práticas como a pré-história da psiquiatria, onde o louco já era pensado como doente. A prisão do louco na época clássica não se fundamenta em qualquer índice médico, ou condição patológica que lhe seja própria: "Os cuidados médicos são enxertados à prática do internamento a fim de prevenir alguns de seus efeitos, não constituem nem o sentido, nem o projeto do internamento" (FOUCAULT, 1978, p.115).

Com o esfacelamento do domínio da desrazão o louco pôde vir a transformar-se em doente mental. Mas antes a preparação do terreno passou por três operações que constituirão, antes mesmo da existência da psiquiatria, a loucura como interioridade psicológica.

Primeiro a medicalização na reorganização do espaço do isolamento: se antes, o espaço do Hospital Geral era destinado apenas à exclusão e correção, passa agora, como já assinalado, a ter significação médica de agente terapêutico. Foucault (1978) mostra em textos de Tenon a formulação da idéia de que o próprio internamento, ou isolamento, possibilita a eclosão da verdade da loucura: o espaço da exclusão já tem, por si só, virtudes terapêuticas. É a própria condição de instituição que é vista como terapêutica.

A segunda operação é a da objetivação da loucura. Foucault encontra em Cabanis a proposta de que a loucura deva ser objetivada tornando-se objeto de conhecimento no claustro, lugar que incita sua verdade a se manifestar. Os que eram guardiões tornam-se agora os sujeitos do conhecimento a interrogar a loucura, e esta se transforma em objeto para sua percepção.

A terceira modificação que afeta a loucura à época da Revolução Francesa, passa pela via da reorganização da justiça penal que confia ao cidadão, e não mais ao rei, poderes de estabelecer as fronteiras da ordem e da desordem, da moral e da imoralidade, passando este a ser juiz da loucura e, deste modo é inaugurada uma dimensão psicológica.

Eis então os elementos que darão condições de possibilidades ao nascimento da psiquiatria: o claustro medicalizado, a loucura objetivada no espaço da reclusão, e, no espaço público, a inauguração da dimensão psicológica da loucura. 

 

3 Conclusão

Foi o enclausuramento da loucura que deu a possibilidade do nascimento da Psiquiatria: o manicômio nasceu antes da psiquiatria, é um a priori desta, e de sua relação com a loucura. Conforme Machado (1981, p. 74) a prática e o saber médicos que definem o louco como doente mental, não estão na origem, mas no fim desse processo; e as transformações institucionais e a percepção ou a consciência pré-psiquiátrica da loucura que se formula em termos taxonômicos, sociais e políticos foram as condições de possibilidade da psiquiatria.

A negatividade do sequestro e da ação restritiva da liberdade ganharam legitimidade por meio do seu reconhecimento como recurso terapêutico. O nascente saber Psiquiátrico, também se legitima aí, onde dá legitimidade a estas práticas, tomando a loucura como objeto do seu saber, o manicômio como instrumento terapêutico e o louco como doente mental. Tudo isto posto em função do controle social no caminho da implantação de um sistema disciplinar instaurado para servir a nascente sociedade capitalista.

A ruptura possibilita o nascimento da psiquiatria é anterior a ela: é a partir das transformações na instituição asilar que suas condições de possibilidades nascem: o projeto da medicina mental surge a partir de um processo de exclusão já em andamento. "O deslocamento da problemática da desrazão para a da doença mental é institucional, antes de ser teórico. O louco foi circunscrito, isolado, individualizado, patologizado por problemas econômicos políticos e assistenciais e não por exame médico" (MACHADO, 1981, p. 91).

A loucura emerge em uma experiência que se abre como condição de possibilidades para a experiência que a constitui a partir de então como consciência crítica, a qual põe em funcionamento um conjunto de práticas, de estratégias, de técnicas de poder, de instituições e de saberes.

Partindo da idéia de incapacidade de auto-gerência do louco, pela defesa da comunidade, e pela defesa do louco, a Psiquiatria reivindicará para si a loucura como objeto de seu conhecimento. O saber psiquiátrico será reconhecido pelo Estado, pelas instâncias jurídicas e familiares como aquele que diz sobre a loucura, e que justifica e legitima o ato do sequestro e exclusão. Aprisionado na negação da norma, da razão e da saúde, o louco é posto à margem da sociedade desde então, tendo como sua tutora, domesticadora e sua polícia, a Psiquiatria. 

A nova ordem cria novas instituições: orfanatos, casas de correção, e no fim do século XVIII os hospitais vão se voltando especificamente para o tratamento dos doentes. A medicina vai medicalizando esse lugar ao mesmo tempo em que vai se configurando como um saber predominantemente hospitalar. Em meio a isto as instituições manicomiais encontram o ambiente propício à sua rápida multiplicação.

A transformação dos hospitais é operacionalizada principalmente a partir do modelo epistemológico das ciências naturais e, a partir de tecnologias de poder às quais Foucault denominou de disciplinas, entendendo por isto "esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a operação constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade" (FOUCAULT, 2004b, p.118).

Trata se de uma política do detalhe, uma microfísica do poder, implicada em uma produção de saber, uma atuação constante sobre o minúsculo. As disciplinas operam a distribuição espacial, a categorização, o esquadrinhamento e o registro contínuo dos indivíduos em função da vigilância e do controle de seus corpos.

A Época Clássica, segundo Foucault (2004, p.117) descobriu o corpo como objeto e alvo do poder em uma escala jamais vista antes: o poder chega a cada corpo e não mais à massa; é a coerção ininterrupta esquadrinhando o tempo, o espaço e os movimentos de cada um; é a intenção clara de atingir a economia dos movimentos e sua eficácia.

A psiquiatria e todo o campo ao qual ministra, se constituíram com a função clara de legitimar o seqüestro e a exclusão dos marginalizados das sociedades industrializadas, e torná-los dóceis por meio de instrumentos disciplinares. Toda a aparelhagem que fez o entorno da loucura faz parte dessa tecnologia disciplinar que, relacionada à explosão demográfica do século XVIII e ao aparecimento da sociedade industrial, tenta ajustar a multiplicidade dos homens à multiplicidade dos aparelhos de produção. Tecnologias que tornam o exercício do poder menos custoso, levados em seu máximo de intensidade e estendidos o mais possível na malha social fazem crescer ao mesmo tempo a docilidade e a utilidade de todos os elementos do sistema. Toda a estrutura que se monta em torno da loucura no século XVIII visa reverter um estado: ali onde o corpo do louco escapou ao sistema, ela o captura e através de amplos instrumentos disciplinares realiza sobre ele uma ortopedia ou o exclui para longe de se tornar um estorvo ao processo produtivo.

 

REFERÊNCIAS

CASTEL, Robert. A ordem psiquiátrica: a idade de ouro do alienismo. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma tragetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Portocarrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

ERIBON, Didier. Michel Foucault: 1926 1984. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

______. O nascimento da Histoire de la folie: Foucault e Dumesil, I. In:______ . Michel Foucault e seus contemporâneos. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996

FOUCAULT, Michel. Estética: Literatura e pintura, música e cinema. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006a. (Ditos e escritos III).

______. Estratégia, poder-saber. Organização e seleção de textos de Manuel Barros da Motta; tradução Vera Lúcia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006b. (Ditos e escritos IV).

______. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978.

______. Microfísica do poder. 22. ed. Organização, introdução e revisão técnica Roberto Machado. São Paulo: Paz e Terra, 2006c.

MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da arqueologia de Foucault. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1981. 

______. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 22. ed. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. São Paulo: Paz e Terra, 2006c.

 

 

1 Foucault parece usar o termo 'corpo' para fugir da idéia de sujeito. Para o autor o sujeito não existe. Os corpos são constituídos na trama histórica.