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ISBN 978-85-62480-96-6 versão impressa

Sem. de Saúde do Trabalhador de Franca Set. 2010

 

QUESTÃO URBANA QUESTÃO AGRÁRIA E SAÚDE DO TRABALHADOR

 

Exploração do trabalho no corte de cana: breves apontamentos do senhor de engenho à agroindústria canavieira do século XXI

 

 

Marcos Paulo Rocha Fernandes1; Edvania Ângela de Souza Lourenço2

 

 


RESUMO

Este estudo aponta algumas pistas da trajetória do cultivo da cultura canavieira no Brasil. A reflexão está alicerçada no seu processo histórico, como uma lente que possibilita ampliar a realidade presente compreendendo-a a partir das relações econômicas, sociais e políticas. Desse modo, parte-se do inicio do cultivo da cana de açúcar no Brasil, fazendo breves apontamentos acerca do trabalho na Colônia, escravocrata, para entender um pouco os fundamentos das relações sociais de trabalho presentes neste setor ao longo dos tempos. Finaliza-se a discussão destacando que apesar dos avanços tecnológicos incorporados pela agroindústria canavieira, no presente século, ainda pouco se fez e faz pelos trabalhadores, sendo as mortes por exaustão, o pagamento por produção, alguns dos exemplos de como se efetiva o trabalho nos eitos dos canaviais.

Palavras-chave: Mundo do Trabalho. Trabalho Rural. Corte de Cana.


 

 

INTRODUÇÃO

Comandava-a Pedro Álvares Cabral [...] No dia 22 de abril de abril, divisam os marinheiros as primeiras aves. .Ao entardecer avistam terra (HOLANDA,1963, p.35).

A navegação nos séculos do capitalismo comercial não era somente para conhecer a cultura, ou espairecer, mas estava ligada a "arte de lucrar". A abertura de novas frentes de exploração mercantil, de fato, significava o estabelecimento de novas rotas pelo oceano desconhecido, envolvendo insuportável margem de risco e exigindo, sobretudo uma acumulação prévia de capital que as formas de organização empresarial da Idade Média estavam longe de prover (NOVAIS, 1979, p. 65).

Comandava-a Pedro Álvares Cabral. Pouco se conhece da vida desse capitão até iniciar-se a memorável empresa. Sabe-se que nascera em Belmonte pelos anos de 1467 ou 68; teria neste caso, pouco mais de trinta anos quando assumiu o comando da frota [...] numa das recomendações dadas a Pedro Álvares inspiradas na experiência de Gama, teve-se em conta o sistema de ventos nas proximidades da costa africana [...] assim, já na manhã do dia 14 passava a frota entre as canárias [...] a 22 chegava á vista de São Nicolau, uma das ilhas de Cabo Verde [...] prosseguindo a navegação sempre a rumo de sudoeste, aparecem numa terça-feira ervas marinha, indicando terra próxima.No dia 22 de abril de abril, divisam os marinheiros as primeiras aves. Ao entardecer avistam terra (HOLANDA, 1963, p.35).

As origens coloniais fundadas pela penetração dos portugueses no Brasil demonstram a posição ocupada por essas colônias. Novais (1979) mostra que a abertura de novos caminhos para garantir o acesso do capitalismo mercantil arquitetou a posição da colônia, pois a retaguarda metropolitana garantiu o sistema econômico português, a partir da incorporação pela sua burguesia comercial dos subprodutos oriundos das economias de seu domínio.

No Brasil colonial a apropriação do solo além da sesmaria (que correspondia à propriedade plena sobre a terra, livre de quaisquer encargos, exceto a tributação sobre os seus frutos) estava alicerçada em outras maneiras de ocupar o solo como o arrendamento e a posse:

[...] arrendamento, ocorria um contrato entre o proprietário e o arrendatário, pelo qual o primeiro cedia a terra por certo tempo, em troca de uma remuneração em dinheiro ou produto [...] na enfiteuse, instituto também trazido de Portugal, o proprietário-origalmente, um sesmeiro-cedia parte do domínio ao enfiteuta, recebendo em troca um foro, pago anualmente e um laudêmio, prestação que ocorria quando da transferência de um domínio para outro enfiteuta (WEHLING; ARNO; WEHLING; MARIA JOSÉ, 2000, p. 198).

A inserção da cana-de-açúcar na dinâmica mercantil foi observada por Novais (1979, p 77) como conseqüente da exploração ultramarina monopolista que teve sua origem na produção colonial. O primeiro ensaio de colonização propriamente foi, como se sabe, o das ilhas atlânticas, e particularmente da Madeira. A introdução do cultivo da cana e a produção do açúcar nessas ilhas, numa fase em que os recursos do pequeno reino empreendedor se concentravam no alargamento do périplo africano, contou desde cedo com a participação de estrangeiros com seus recursos e capitais; sobretudo os genoveses, que ao que parece estiveram ligados à montagem dessa economia, por meio da qual se rompia o monopólio da oferta do produto até então dominada pelos venezianos. O referido autor coloca que:

[...] Neste sentido, a produção colonial orienta-se necessariamente para aqueles produtos que possam preencher a função do sistema de colonização no contexto do capitalismo comercial; mercadorias comercializáveis na economia central, com procura manifesta ou latente na sociedade européia. São, sobretudo, os produtos tropicais: açúcar, tabaco, algodão, cacau... (NOVAIS, 1979, p.92).

 

OS DONOS DESSE SOLO: A CULTURA DA CANA-DE-AÇÚCAR NO CONTEXTO BRASILEIRO       

Verifica-se que os índios das regiões da Bahia e de Pernambuco trabalhavam no plantio e no beneficiamento da cana-de-açúcar, de 1500 à 1570, assim eles foram pioneiros nas relações de trabalho estabelecidas pelos portugueses, marcadas pela subalternidade, exploração e violência. Neste momento, o índio representou uma força de trabalho barata e acessível, que faz parte dos primeiros movimentos para o desenvolvimento da indústria açucareira brasileira. Entre os povos indígenas que entraram em contato com os portugueses nas duas primeiras décadas da história brasileira, os mais numerosos e amplamente dispersos eram os da família lingüística tupi-guarani, que, na época do descobrimento, controlavam grande parte do litoral, desde o Maranhão até São Vicente, no Sul. O principal grupo tupi na região da futura capitania era o tupinambá (SCHWARTZ, 1988, p. 41).

Esse processo iria editar novas normas para os índios, que até então, viviam baseados em seus costumes. Segundo Schwartz (1988) os tupinambás viviam em aldeias de quatrocentos a oitocentos indivíduos, distribuídos em grandes unidades familiares que residiam entre quatro a oito malocas alongadas. Os índios eram capazes de se adaptarem e sobreviverem às situações novas,

[...] Embora os efeitos da interferência deliberada dos europeus nas práticas tradicionais sejam bastante evidentes, as aldeias jesuíticas também transtornavam os costumes indígenas de maneiras mais sutis [...] as aldeias jesuíticas eram fisicamente organizadas segundo padrões europeus, com uma praça central, uma igreja e fileiras de unidades residenciais flanqueando o espaço aberto. A organização dos tupinambás era bem diferente, possuindo de quatro a oito malocas alongadas, compartilhadas por muitas famílias com laços de parentesco entre si. Nas tribos jês, a taba dividida em moitéis e clãs, com residências separadas para certos grupos etários e por sexo. Os padrões das tabas e das habitações eram representações dos cosmos social e religioso (SCHWARTZ,1988 p.49).

Deve ser dito que os índios foram violentados na sua condição de vida, desde a sua relação com a terra e modo de sobrevivência até a sua espiritualidade, que foi invadida e até certo ponto dominada pelos portugueses, sob o manto da catequização. Populações inteiras foram dizimadas, expulsas e empurradas das suas terras e do seu espaço para lugares longínquos. Foram vítimas também das doenças trazidas pelos portugueses.

 

O TRABALHO ESCURO NOS ENGENHOS

Ambiente inédito e cenas de terror assim se caracterizaram a vinda da massa de escravos no nascente Brasil, sua chegada foi narrada por Gilberto Freyre (1933). Os escravos vindos das áreas mais adiantadas foram um elemento ativo, criador, e quase que se pode acrescentar, nobre, da colonização do Brasil; degradados pela sua condição de escravos. Longe de terem sido apenas animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, desempenharam uma função civilizadora. Eles foram a "mão direita" da formação da economia agrária brasileira (FREYRE,1933).

[...] O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente que lhe fecundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca; que lhe completou a riqueza das manchas de massapé (Vieram-lhe da África "donas de casa" para seus colonos sem mulher branca; técnicos para as minas; artífices em ferro, negros entendidos na criação de gado e na indústria pastoril; comerciantes de panos e sabão [...] por outro lado a proximidade da Bahia e de Pernambuco da costa da África atuou no sentido de dar as relações entre Brasil e o continente negro um caráter todo especial de intimidade (FREYRE,1933, p 30).

O autor fornece o conteúdo explicativo e também denuncia os abusos sofridos pelos "escravos". O alimento, base fundamental para a sobrivência não chegava até eles e quando chegava não era em quantidades suficientes. A vida desses homens era vivida em formas desumanas e se aproximava das condições animalescas. Os escravos comiam de tudo o que lhes caíssem nas mãos. Os canaviais estavam infestados de ratos, e todos os que eram apanhados iam para a panela (FREYRE,1933 p.126).

Para Schwartz (1988) os engenhos adotavam três ou quatro métodos para conquistar e assegurar os cativos nos engenhos, em alguns deles, os escravos dependiam da ração, ou "tamina", fornecida pelos senhores. Em algumas propriedades se permitia que os escravos cultivassem seu próprio alimento, utilizando-se de dias santos e o tempo livre concedidos por seus proprietários. Em outros engenhos usavam uma combinação desses dois métodos. A "tamina" era normalmente insalubre e os escravos preferiam trabalhar para seu sustento, mesmo se o esforço estivesse além da sua capacidade. A presença do Estado se fazia em defesa da escravidão, perseguindo aqueles que fugiam da situação de miserabilidade em que se encontravam, os quais recebiam o rótulo de ladrões. Os senhores de engenho estavam com suas preocupações voltadas para o lucro e não para o um trabalho gerador de qualidade de vida para os trabalhadores. Assim era pintado esse quadro, com gotas abundantes de suor e sangue.

Logo após os dias de cerimônias, a safra começava, e com ela o sofrimento no trabalho. O escravo estava submetido a rígida e intensa jornada de trabalho para se chegar a melhor produção. Schwartz (1988) explica que este era um período de intensa atividade, de idas e vindas: escravos partiam para os canaviais, carros de bois rangendo sob o peso da cana cortada dirigiam-se para a moenda, barcos chegavam ao porto carregado de cana ou lenha dos engenhos ribeirinhos ou do litoral da Bahia, caldeiras ferviam sobre o fogo aceso dia e noite, escravos revezavam-se em turnos na moenda e na casa de purgar, lavradores de cana apareciam para contratar o beneficiamento de sua produção. E, acompanhando tudo isso, o constante ruído da moenda a extrair da cana o líquido que custava tanto suor e sofrimento e que se cristalizaria não só na doçura do açúcar, mas também em riqueza, prestigio e poder dos senhores proprietários de engenhos baseados na exploração do trabalho.

[...] O trabalho em um engenho brasileiro era ininterrupto, sendo as tarefas pertinentes aos canaviais realizadas durante o dia e as atividades da moenda feitas à noite. A moenda ficava em funcionamento normalmente por dezoito a vinte horas, parando por apenas algumas horas para a limpeza do mecanismo. No século XVII, os engenhos baianos, iniciavam a moagem às quatro horas da tarde, prosseguindo durante a noite até as dez horas da manhã seguinte. Durante as poucas horas de folga os escravos tentavam dormir, mas às vezes passavam esses momentos procurando mariscos [...] os cativos faziam turnos dobrados. Seu trabalho era "incrível", e tão intenso que "um desses engenhos poderia ser chamado de inferno". [...] os senhores leigos argumentavam que dar folga aos escravos encorajava-os a ter maus hábitos, bebendo e dançando suas danças lascivas, uma espécie de argumentos do tipo "a ociosidade é mãe de todos os vícios" [...] como a cana tinha que ser cortada e moída efetivamente no verão, disse ele, todo esforço deveria ser feito para que se completasse a colheita antes das chuvas de inverno. Ademais, uma vez cortada, a cana tinha de ser moída dentro de um dia, caso contrário o líquido azedaria. Se o trabalho parasse aos domingos, a cana cortada no sábado ficaria ameaçada, e não haveria cana pronta para ser moída na segunda-feira (SCHWARTZ, ano, p. 97101).

Segundo Freyre (1933) os trabalhos mais imundos eram oferecidos aos negros. Por exemplo, eles carregavam sobre a cabeça, das casas para as praias, os barris de excremento vulgarmente conhecidos por "tigres". Esses barris ficavam por longos dias dentro das casas-grandes das cidades, debaixo das escadas ou num outro recanto acumulando matéria. Quando o negro os levava é que já não comportavam mais nada. Iam estourando de cheios e podres, às vezes largavam o fundo, emporcalhando-se então o carregador da cabeça aos pés.

Outro detalhe que deixa claro a exploração do trabalho e a as desigualdades sociais do período refere-se ao funeral. Havia diferença no formato da cerimônia fúnebre, para o senhor-de-engenho era oferecido todo um ritual, já o negro era relegado ao abandono. Para Freyre (1933) os enterros dos senhores-de-engenho eram realizados à noite com muita cantoria dos padres em latim; muito choro das senhoras e dos negros, que choravam na incerteza da substituição do seu senhor como também de seu destino.

 

A MODERNIZAÇÃO DA AGRICULTURA BRASILEIRA

O passado que se esconde, ás vezes se esconde mal, por trás das aparências do moderno (MARTINS, 1994, p.12).

Em resumo, observa-se que o trabalho foi alvo de projetos capitalistas que a partir da relação da propriedade privada de posse da terra impuseram a escravidão como meio de obtenção da produtividade, nunca dividida ou socializada. Impuseram também um modelo agrário que vai persistir na economia brasileira, que é aquele baseado no latifúndio. Assim, os trabalhadores dos engenhos não passavam de mão de obra escravizada.  Essas bases que alicerçaram as relações de trabalho nos campos brasileiros, infelizmente, não foram totalmente rompidas no século XX e mesmo no atual século, XXI como provam as denuncias de trabalho escravo3. Para Martins (1994) não é possível esconder toda essa tradição de imposição e exploração do trabalho, mesmo quando travestido pelos aparatos da modernidade, que no campo, acabou na expulsão dos trabalhadores, que rumaram as cidades em busca de trabalho, alojando-se, na sua maioria, nos bairros precários e executando os trabalhos de menor remuneração e qualificação. 

Como estudiosos e líderes de movimentos sociais e dos trabalhadores rurais vêm demonstrando, nos diais atuais, o trabalho no corte da cana, parece querer revisitar as formas mais arcaicas de intensificação e exploração do trabalho. Embora existam novos mecanismos para a efetivação desta exploração, que travestidos com roupagens da modernidade consomem a vida útil dos trabalhadores "livres" e, após, os descartam, deixando-os a mercê da própria sorte, sem, contudo, permitir a visibilidade escancarada desta exploração.

No Brasil, a modernização da agricultura pode ser vista a partir do inicio da década de 1960, apesar de que desde a segunda metade dos anos de 1950, inúmeros projetos de desenvolvimento, vinham sendo implantados por meio do "Plano de Metas"4. Como o parâmetro político anda junto com o histórico-social, a renúncia de Jânio Quadros5 e a conseqüente ascensão de João Goulart ao governo abriu possibilidade de reformas beneficiadoras da classe trabalhadora, motivo que, desde o inicio, deixou a elite brasileira temerosa e em conseqüência retardou a posse do então vice como Presidente do Brasil6.

No contexto das mobilizações sociais, em especial, as que estavam ligadas ao campo foram promovidas algumas "reformas de base": um amplo conjunto de medidas, capitaneados pela reforma agrária, cujo principal objetivo era a distribuição de renda.                                                                                     

[...] É preciso não se esquecer dos inúmeros acontecimentos políticos, das pressões por reformas sociais e políticas advindas dos setores de esquerda, trabalhadores urbanos e rurais organizados em todo pais. As ligas camponesas do nordeste, os movimentos pela reforma agrária congregando elementos da igreja, partidos políticos, sindicatos, federações de trabalhadores agitaram a cena política do país, culminando na realização do Primeiro Congresso Nacional de Trabalhadores Agrícolas organizado pela ULTAB (União de Trabalhadores Agrícolas do Brasil) com o considerável respaldo do governo João Goulart (SILVA, 1999, p 63).

O crédito foi oferecido às grandes propriedades que migravam a agricultura brasileira para determinadas culturas, se alimentando do chamado "pacote tecnológico", nas linhas que o crédito oferecia. Já as pequenas propriedades e seus produtores que não detinham capital suficiente se restringiram as terras menos férteis, associadas às praticas tradicionais ou de mão-de-obra familiar.

Estava ocorrendo no Brasil uma crítica ao despreparo no que se referia às pesquisas da qualidade do solo, clima e preparo da terra para o cultivo de algumas culturas. Tais críticas estavam embasadas na visão mercadológica pautada em outros países, onde a produtividade era maior. Casos comprovados com o uso de insumos modernos no Brasil, formulados em outros países, na busca de obtenção de lucros e produtividade em larga escala [...] A agricultura se converteu num ramo de produção industrial, que compra insumos e vende matérias primas para outros ramos industriais (ALVES, 1991, p.14).

Deve ser dito que houve mudanças bastante significativas nos processo de trabalho, além valor da terra. A busca pelo aumento da produtividade se baseou na inclusão de incrementos tecnológicos e, em conseqüência, no desprezo de contingente de trabalhadores, o que resultou na expulsão dos operários da zona rural para a urbana. Silva (1999, p. 63) afirma que: "[...] no período de 1960-1980 foram expulsos mais 2,5 milhões de parceiros, colonos, arrendatários e pequenos proprietários.

A década de 1980 experimentou a progressão das ações do Estado brasileiro para o aumento da produtividade da agricultura, porém os investimentos se deram de modo desiguais, com um verdadeiro prestigio para os grandes proprietários, podendo ser caracterizada como uma "agricultura de poucos" (ALVES, 1991). A agricultura tida como atrasada passa a ser foco de ação estatal, na concessão de créditos, subsídios e incentivos financeiros e legais (arcabouço jurídico que privilegiava os grandes proprietários). Este contexto associado a grave crise econômica mundial, dos anos de 1970, criou o ambiente favorável para a criação do Programa Nacional do Álcool (Proálcool).

O esgotamento nas relações de comercio açucareiro marcaria o inicio de um programa que vendia a imagem de superação da crise, mas como coloca Alves (1991, p.) esse argumento foi o principal instrumento do Estado.

[...] O ano de 1975 marcou o termino de um período de euforia no comercio externo de açúcar, com uma acentuada queda do produto no mercado internacional. Estes preços vinham apresentando uma tendência ascendente desde o final da década de 1960. Depois de ter atingido o seu nível máximo de todos os tempos, em novembro de 1974 (cerca de US$ 1400 TM), as cotações do açúcar demerara foram baixando abrupta e ininterruptamente, alcançando US$ 268 por TM em dezembro de 1975, e fixando-se em torno de US$ 300 ao final do primeiro trimestre de 1976 (ALVES,1991,p.32).

Segundo Alves (1991) as duas fases do Proálcool são definidas: a primeira iniciada em 1975, com a implantação de destilarias anexas as usinas de açúcar existentes, ocorre à preferência pelo álcool anidro para ser adicionado como aditivo a gasolina, essa mesma manobra visava substituir ao poluente chumbo-tetraetila em uma proporção de 20% de álcool para 80% de gasolina para cada litro do produto.

Para Alves (1991) a segunda fase do Proálcool se caracterizou por profundas modificações tanto na produção do álcool, quanto na estrutura do consumo de automóveis, essa fase é marcada pela produção de álcool hidratado para consumo direto dos automóveis, os motores eram projetados ou adaptados para o consumo deste combustível.

[...] de saída, o programa visava obter 3,0 bilhões de litros de álcool anidro e hidratado-isto é, em apenas 5 anos após o lançamento-.A obtenção desta produção se daria através de: utilização da área plantada com cana para açúcar destino a exportação,em descenso, dado o declínio dos preços internacionais ( ALVES,1991,p.37).

Alves (1991) destaca três dimensões presentes no sistema capitalista e adotadas na "modernização da agricultura". A primeira é a do paradigma tecnológico e a de organização social do trabalho, enquanto estratégias para a geração de mais valia e também de subordinação do trabalho ao capital. A segunda relaciona-se ao conjunto de ações que possibilita a eficácia da mais-valia produzida na primeira dimensão, nesta esta embutido a forma na qual se processa o consumo do que foi produzido coletivamente, isto é, um padrão de distribuição e consumo do produto social. A terceira dimensão é o modo de regulação, que compreende as instituições ou entidades criadas pela própria sociedade para gerir o processo de produção e criação da mais-valia.

Francisco Alves (2006, on line) esclarece que houve o aumento da produtividade da cultura agrícola, que no caso da cana de açúcar, saiu de 50 toneladas por hectare para atingir mais de 80, entre as décadas de 1950 e 1980. Cresceu também a produtividade do trabalho no corte de cana, medida em tonelada de cana cortada/dia por homem ocupado. Se na década de 1960 a produtividade do trabalho, era, em media, de 3 toneladas de cana por dia de trabalho, na década de 80 a produtividade media passou para 6 toneladas e no final da década de 90 e inicio da presente década, atinge 12 toneladas de cana por dia (ALVES, 2006, on line). O autor ressalta ainda a partir das denuncias da Pastoral do Migrante que entre as safras de 2004/2005 e 2005/2006 faleceram 10 cortadores de cana na região canavieira de São Paulo, com idades variando entre 24 e 50 anos, todos eram migrantes, que tinham vindo de outras regiões do país (Norte de Minas, Bahia, Maranhão, Piauí, para o corte da cana no interior do estado de São Paulo (ALVES, 2006). Ele explica as condições em que o corte de cana vem sendo realizado:

[...] eu comparo o cortador de cana a um corredor fundista, porque os trabalhadores com maior produtividade não são necessariamente os que têm maior massa muscular, são os que têm maior resistência física para a realização de uma atividade repetitiva e exaustiva, realizada a céu aberto, sob o sol, na presença de fuligem, poeira e fumaça, em alguns casos, e por um período que varia entre 8 a 12 horas de trabalho diário [...] um trabalhador que corta 6 toneladas de cana, num talhão de 200 metros de comprimento, por 8,5 de largura,caminha, durante o dia uma distancia de aproximadamente 4.400 metros, despende aproximadamente 50 golpes com o podão para cortar um feixe de cana, o que equivale a 183.150 golpes no dia (ALVES,2006,p.4).

 

A "MODERNA" RIBEIRÃO PRETO

O animal traçava o solo do campo, os trabalhadores eram potenciais vivos, conhecedores do saber, conhecedores das técnicas. Era uma relação amorosa entre trabalhadores e natureza. O progresso chega, o homem sai errante, em busca apenas do que convêm chamar de sobrevivência.

A região de Ribeirão Preto foi definida pelo Instituto de Economia Agrícola, da Secretária da Agricultura do governo do Estado como Divisão Regional Agrícola (DIRA) de Ribeirão Preto, é composta por 80 municípios e situa-se na região norte do Estado, a produção de cana concentra-se fundamentalmente no seu Centro-Sul,onde destacam-se os municípios de Sertãozinho, Pontal, Barrinha,Guariba,Jaboticabal e Padrópolis,conhecidos como o coração regional da cana, pelo volume de produção apresentado,bem como pela quantidade de trabalhadores mobilizados em todas as fases de produção do produto  (ALVES,1991, p.52).

Segundo Alves (1991) até 1975 na (DIRA) de Ribeirão Preto existiam vinte e cinco destilarias de álcool, sendo apenas uma destilaria autônoma, após a implantação do Proálcool por incentivo governamental, vinte de duas novas destilarias foram criadas e houve um grande impulso na produção de açúcar e álcool. A partir de 1975, houve um crescimento acelerado na área plantada e da produção de cana em todo o Estado de São Paulo, em decorrência dos incentivos financeiros públicos ao Proálcool.

Desse modo, uma nova dinâmica econômica se despertou na região de Ribeirão Preto que, na área agrícola, pode ser observada por meio da Divisão Regional Agrícola (DIRA). Além da estrutura e dos recursos destinados a criação das novas usinas, desenvolveu-se também a mentalidade de primar pelo aumento da produtividade. A agricultura, até então, era considerada atrasada e de baixa capacidade produtiva e, portanto, o seu desenvolvimento passou a ser medido pelo aumento da produção. Para isso foram implantadas inúmeras técnicas de produção e de gestão da força de trabalho, como já enfatizado. Novos implementos agrícolas foram criados, agrotóxicos, cada vez mais potentes, foram usados no combate às pragas e na maturação da matéria prima (cana de açúcar), no interior das usinas, também foram implantados novos maquinários e produtos químicos utilizados desde a moagem da cana até a industrialização do seu produto final (o açúcar e o álcool). Mas, as mudanças não se restringiram ao processo produtivo, uma vez que esse se constitui também da força de trabalho. Dessa forma, implantaram mudanças na gestão das relações de trabalho, assim, a medida que o espaço de trabalho era ocupado por novas máquinas, o trabalho vivo foi sendo substituído e os que ficavam ou conseguiam manter-se empregados foram impelidos a seguir o ritmo das máquinas.

Todas essas mudanças levaram ao aumento da produção, este aumento pode ser visualizado nos índices produtivos dos anos de 1970, 1980, 1990 e 2000, como já demonstrado por Alves (2006).

Além da exploração da força de trabalho há de se pensar também nos impactos ambientais provocados pela monocultura canavieira e também pelo uso de agrotóxicos no cultivo da cana e dos inúmeros produtos químicos usados no processamento industrial. Deve ser dito que tem ocorridos vários questionamentos quanto aos impactos ambientais provocados por esta cultura desde a utilização da queimada das folhas da cana para facilitar o corte até o retorno da vinhaça à terra, além do destino de grande parte das terras produtivas a uma única cultura. Os autores José Mário Ferreira de Andrade e Kátia Maria Diniz (2007) discutem os impactos ambientais causados pela agroindústria canavieira. Explicam que no Estado de São Paulo, é comum retornar a vinhaça ao solo, utilizando uma técnica que se convencionou chamar de fertirrigacão que, segundo os autores, a qualidade das águas nas imediações dos complexos usineiros se comprometem devido ao acumulo de sujeiras depositas nas vias de circulação.   

Além do retorno da vinhaça há de se pensar também no uso intensivo de agrotóxicos, degradando os recursos naturais como a água e o solo. Nas palavras dos autores esse modo de produção da cana gera:

[...] redução da biodiversidade, causada pelo desmatamento e pela monocultura; contaminação das águas superficiais e  subterrâneas e do solo, por meio da prática excessiva de adubação química, corretivos minerais e aplicação de herbicidas e defensivos agrícolas; compactação do solo, pelo trafego de maquinas pesadas,durante o plantio,tratos culturais e colheita, danos a flora e fauna, causados por incêndios descontrolados,consumo intenso de óleo diesel, nas etapas de plantio, colheita e transporte,concentração de terras, rendas e condições subumanas do trabalho do cortador de cana (ANDRADE; DINIZ, 2007,p.34-35).

Alves (1991) menciona que na Região de Ribeirão Preto foram intensificadas as pesquisas biológicas e químicas para maior aproveitamento da cana de açúcar e também houve a expansão do seu cultivo, ocupando espaços considerados ociosos. Em contrapartida, tudo isso ocorreu desprivilegiando a força de trabalho, a qual foi descartada ou impelida a trabalhar mais, o que gerou milhares de vitimas, que se aglomeraram nos arredores do centro urbano em busca de emprego.

Pesquisas biológicas permitiram o uso da cultura em solos anteriormente impróprios. Isto levou a incorporação de terras de cerrado e cerradão, antes ocupadas com pecuária ou matas, porque, ao contrário do que se imagina, a região em foco não é somente de terras roxas (ALVES, 1991, p.71.)

[...] as inovações biológicas não apenas viabilizam, mas, sobretudo potenciam e aceleram os efeitos do progresso técnico, especialmente nos ramos da química e da mecânica. O Brasil, especificamente o Estado de São Paulo, utiliza uma maior quantidade de defensivos por hectare, comparativamente a outros países de agricultura moderna [...]  a velocidade do progresso técnico da agricultura, incentivado pelo Estado e sob o comando das industriais situadas a montante, que induz o crescimento da demanda independentemente das necessidades objetivas (ALVES, 1991, p.71-72).

A pesquisa química segundo Alves (1991) foi crucial para o desenvolvimento da lavoura canavieira, permitindo assim o uso de herbicidas em substituição às carpas manuais ou mecânicas.

Outro fator refere-se a queima da cana. A prática das queimadas para facilitar o corte da cana e aumentar a sua produtividade ocorreu em 1960 e foi uma das primeiras grandes inovações introduzidas na organização do trabalho. Com a queima, a produtividade do trabalho cortador cresce 2,5 toneladas/ Dia para 4,0 toneladas/ Dia. (ALVES, 1991, p.77).

Até 1950, como demonstrado por Alves (1991), o trabalhador cortava e enfeixava a cana, amarrando os fardos com as folhas, quando era executado o corte da cana crua sem ser queimada. Esta cana cortada e enfeixada era transportada nas costas dos homens até os pequenos caminhões, eram de menor tamanho. Cada trabalhador cortava em duas ou três ruas e em cada talhão trabalhava um número reduzido de trabalhadores, em geral residentes nas propriedades.

Em fins da década de 1960, os carregadores foram substituídos pelos guinchos mecânicos, que faziam do serviço de empilhar e carregamento da cana do chão para as carrocerias dos caminhões, que cresceram em tamanho e passaram a levar, em alguns casos um ou mais reboques: os famosos "Romeu e Julieta" (ALVES,1991, p.77-78).

Novas ocupações vão sendo incluídas no processo do corte da cana como, por exemplo, o coringa e o "bituqueiro". Esse último - o bituqueiro tinha que acompanhar a velocidade dos caminhões, como já enfatizado por Alves (1991), assim, a crueldade está na desigualdade das forças e no uso que se fez (e faz) da tecnologia, pois o homem tem mãos e pés, enquanto que as máquinas possuem rodas e motor cada vez mais potente. O trabalho acelera e os bituqueiros correm espremidos pela intensidade advinda da produção, situando-se as sombras das grandes máquinas.

O trabalho na lavoura é constituído de uma variedade de funções específicas em cada época do ano o que pode imprimir caráter de "temporário" a este tipo de trabalho, ainda mais se tratando de uma classe expropriada dos meios de produção. Iamamoto (2001, p. 143) se apoiando em estudos de Ferreira (1982) e Paixão (1994) esquematiza a produção da cana nas seguintes etapas: (a) preparação do solo, que envolve tarefas como desmatamento, homogeneização topográfica, reforma do canavial, correção do índice de acidez do solo, aração e gradeação; (b) plantio propriamente dito, constituindo nas tarefas de corte da cana-semente, semeio, abertura e cobertura de sulcos e adubação de fundação, isto é, dentro dos sulcos; (c) tratos culturais, com operações de limpas dos canaviais e adubação; a colheita ou corte de cana, antecedida de queima de cana, antecedida de partidos de cana, seguida do corte, carregamento em veículos de transporte e envio às unidades processadoras. Essas etapas contam com níveis diferenciados da inserção da força de trabalho, bem como de variedades no uso de tecnologias e, por vezes, também contam com níveis diferenciados de pagamento.

Ao ir desentranhando as relações sociais de trabalho tem-se uma noção da complexa divisão social do trabalho neste setor, as formas de controle e a remuneração revelam que o trabalho, elemento central da vida social, perde, qualitativamente, as possibilidades de objetivação humana ao ser desenvolvido nos moldes da expropriação e exploração.

No caso do corte da cana, o pagamento é essencialmente negociado pela produção, mas o calculo é um tanto complicado, pois é aferido por peso e não por metro. Alves (2006, on line) lembra que o pagamento por metro seria mais justo, à medida que oferece maior controle dos trabalhadores sobre o total produzido "[...] porque o metro é possível de ser aferido por qualquer um. Qualquer pessoa tem noção de distância e pode, utilizando-se de suas pernas e braços, medir". Mas para obter o controle os capitalistas usam do pagamento por peso que é mais complicado e exige "[...] uma balança bem aferida para que não haja grandes variações na quantidade. Como são grandes quantidades de cana "são necessárias balanças grandes" (ALVES, 2006, idem), isso acaba determinando que pesagem seja feita por meio do "deslocamento da carga a ser pesada até a balança, que está localizada na usina" (ibidem).

Alves (1991; 2006) discutiu profundamente essa questão e mostrou que as reivindicações dos trabalhadores na década de 1980, nas greves ocorridas em Leme e em Guariba, buscavam estabelecer a participação e controle dos trabalhadores no processo de conversão dos metros de cana cortada em toneladas. Em Guariba[7], tratou-se também de uma revolta contra os altos preços da água e dos alimentos, mas, sobretudo, os trabalhadores se rebelaram porque os usineiros queriam aumentar o número de ruas de cana a serem cortadas, de cinco para sete. Foi uma resistência contra a exploração e intensificação do trabalho.

O autor explica que o acordo coletivo de 1986 prevê a participação dos trabalhadores no processo que faz a conversão das canas cortadas em metros para toneladas nas seguintes etapas: i) escolha dos três pontos representativos da cana do talhão; ii) medição em metros da cana carregada pelo campeão [caminhão]; iii) fiscalização da pesagem da cana na usina e iv) participação no cálculo de conversão da tonelada (ALVES, 2006, on line).

Entretanto, o fato dos trabalhadores serem remunerados por produção esse acordo coletivo acabou não sendo colocado em prática, uma vez que acompanhar o caminhão, chamado de "campeão", para a pesagem significa em perdas salariais "[...] aqueles que se dispõem a acompanhar as 4 etapas perdem, no mínimo, meio dia de trabalho, e se não trabalham, não ganham. Além disso, aqueles que se dispõem a participar se sentem marcados pelos gatos, fiscais, e pelas usinas e temem perder seus empregos" (ALVES, 2006, on line). Assim, os trabalhadores não sabem o valor do metro, pois, é feito uma amostra e o seu valor vai depender do tipo de cana, como demonstrado pelos trabalhadores entrevistados[8]:

Eles vêm mede tudo, pega o caminhão de cana e leva para pesar, aí eles jogam o preço. Se for uma caninha muito fraquinha o preço dela vai ser baixo, se for uma cana pesada aí o preço dela vai atingir lá pelos vinte e dois, vinte e cinco centavos no máximo (Pré-teste, entrevista com trabalhador rural).

Isso corrobora com os estudos de Alves (1991; 2006) que mostra a imprecisão dos salários e por vezes a falta de conhecimento dos trabalhadores quanto ao valor dos metros, pois depende do tipo de cana "se for uma caninha muito fraquinha". Para o autor a modernização da agricultura traz uma contradição ao manter a prevalência de uma forma de pagamento banida no mundo todo desde o século XVIII, na qual o trabalhador não sabe o valor do que produziu, esse é um meio estratégico das usinas aumentarem a produtividade, ou seja, pela necessidade do salário o trabalhador assume a exigência de manter um ritmo de produção sempre muito excessivo. Algumas usinas têm adotado premiações para incutir a ideologia do aumento da produtividade entre os trabalhadores, se trata do que vem sendo chamado de "podão de ouro", ou seja, os que cortam mais canas são destacados entre os demais, recebendo, inclusive premiações e isso faz com que a pessoa (geralmente muito pobre) interiorize a necessidade de produzir cada vez mais para que possa ter um salário um pouco melhor, além da quebra de solidariedade entre a classe trabalhadora, a interiorização dessa ideologia representa sérios riscos à saúde de quem trabalha, pois trata-se de um esforço sobrehumano para atingir as metas.

Ah, a gente fica imprestável, são muitas dores, mas eu já fui ao médico ele disse que eu não posso mais cortar cana ou fazer um serviço pesado,  mas eu vou fazer o quê? Aqui não tem outra coisa, às vezes, você consegue um servicinho, igual agora eu estou na carpa do eucalipto, mas é por empreita e já está acabando, como vou viver, têm os meus filhos... trabalhando já está difícil, o que a gente faz é para boca, se eu não trabalhar como vamos comer? (Pré-teste entrevista com trabalhadora rural).

A trabalhadora revela a consciência (individual) de exploração e de desgaste da sua energia vital. O trabalho deveria ser o elemento fundante da autonomia e emancipação e não a destruição do ser social, "a gente fica imprestável". Essa é a contradição imanente da relação capital/trabalho, como já evidenciado por Marx (2004), e corrobora com a assertiva que sublinha que o trabalhador só pode existir enquanto trabalhador. Ou seja, a sua sobrevivência está condicionada ao trabalho, que se torna, no sistema capitalista, mero meio de subsistência.

Ao lado dos baixos salários, os empregadores estabelecem o pagamento por produção, o que passa a idéia que o trabalhador que tem que fazer o seu próprio salário, sendo esta, na verdade, uma estratégia que alavanca a geração de mais valia, o que significa maiores lucros para quem contrata, e pode até oferecer uma remuneração mais alta para aqueles que conseguem atingir as metas, passando a impressão de controle da produção por parte dos trabalhadores:

[...] o corte de cana depende muito do cortador, porque enquanto eu estava lá [até nov. de 2007] o corte de cana crua e cana de muda para plantar estava R$ 0,51 centavo o metro. Então têm pessoas que tiram 60 metros, outros tiram 100 metros, outros acima de 100 metros, eu já tirei 160 metros. Modo do caso, esse salário aí tem de basear porque cada pessoa corta mais que o outro, meu salário lá de cana de muda eu já atingi até mais de R$ 1.000 reais livre. Agora o salário é R$ 451,50 reais mensais [refere-se ao ano de 2007] (Pré-teste entrevista com trabalhador rural).

Estabelece-se assim um consenso social para a remuneração da força de trabalho, que apesar de operar coletivamente, é reconhecida individualmente, "eu já atingi até mais de 1.000 reais livres", mas isso não representa o valor real da categoria e, por fim, acaba prevalecendo a idéia do pagamento por produção ser uma "coisa boa".  Cria-se, então, o consenso social para a competitividade no campo e no interior da usina, o que elimina, por vezes, as condições de resistência dos operários, transformando-os em individualidades autônomas, rivais de si mesmo, o que vai eliminando as condições de pensar-agir coletivamente na busca de transformação daquele processo de trabalho. Além disso, o tipo de cana a ser cortada também tem que ser levada em conta, pois o trabalhador fala que o valor de R$ 0,51 centavos era válido apenas para a cana crua, considerando que este foi cortador de cana até o ano de 2007 e em decorrência da sua idade acima de 40 anos não tem conseguido serviço nesta ocupação. Diz ele que a cana queimada já é mais leve e, portanto, mais barata, fica na média de R$ 0,22 ou R$ 0,25 centavos no máximo (idem).

A diferença no pagamento entre cana crua e cana queimada diz respeito ao tempo de trabalho gasto, pois os trabalhadores destacam que a cana crua exige mais esforço e mais tempo de trabalho que a cana queimada.

Para o trabalhador uma cana pesada ele vai cortar em média de 150 metros e a cana levinha ele vai cortar uma média de 300 a 400 metros de cana, é mais ou menos no geral assim. Quando chega a tarde se cortou a cana levinha ele está mais descansado e quando é cana pesada quando chega a tarde ele já está bem cansado porque chega a hora que dói tudo mesmo. Eu mesmo, já deu câimbra em mim na roça cortando cana, não foi porque eu cortei muito não, cortei pouca cana mais era uma cana trançada de oito e meio [peso] aí esforça demais, mais esforça muito e sai pouco. Então por isso que a cana mais grossa ela tem que ser mais cara porque você faz mais força você vai abraçar dez canas fina é um peso e dez canas grossas é outro peso, desgasta muito e rende menos (Pré-teste, entrevista com trabalhador rural).

Eu prefiro cortar a cana queimada é mais leve e também é menos perigoso, porque na cana crua tem muito bicho, cobra, escorpião, você já trabalha tensa, vai abraçar um monte de cana e pode abraçar uma caixa de marimbondo, uma cascavel, sei lá, você corre mais risco e também fica muito mais cansada, quando chega em casa está que não se agüenta (Pré-teste, entrevista com trabalhadora rural).

Assim o corte de cana queimada é um valor, já a cana crua é outro. Dentro do entendimento que o corte de cana queimada é mais leve e, portanto, remunera-se menos. Verifica-se que apesar de ter ocorrido o aumento da produtividade parece que isso não refletiu igualmente nos ganhos salariais, uma vez que segundo pesquisa de José Gilberto de Souza, pesquisador da faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias de Jaboticabal/UNESP, citado por Silva (2008, p. 13) "Na década de 1980, o preço pago por tonelada de cana cortada correspondia em termos comparativos a R$9,00 e em 2005 era apenas R$2,50 o que demonstra a deterioração dos salários em termos reais neste período".

O trabalhador refere melhores condições físicas no corte da cana queimada, inclusive disse ter tido câimbras durante o corte da cana crua, mas com medo de ficar afastado, esperou sozinho passar o mal estar, diz ele: "[...] na usina que eu trabalhava é assim se você sentiu mal estar, fraqueza, qualquer coisa já tem telefone aí eles vêm e buscam e já pega direto, igual no final [refere-se ao período da safra] está todo mundo na Unimed, e levava lá para a Unimed" (Pré-teste, entrevista com trabalhador rural). Como o pagamento é por produção o trabalhador mesmo sentindo mal não se queixou, pois isso implicaria em perdas salariais, pois o atestado médico serviria para garantir o dia estipulado a partir do salário base, o que não inclui o adicional conseguido pelo excesso de produtividade.

Deve-se frisar também que o trabalhador refere que apesar de ter sentido mal, não foi ao médico, isso auxilia na compreensão da baixa notificação dos agravos relacionados ao trabalho, sobretudo, as doenças, pois como o salário é por produção o afastamento pode representar redução no salário, além de sempre ser mal visto pelo empregador.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cana-de-açúcar ao longo da sua história foi vista como possibilidade de desenvolvimento econômico, mas restrito a poucos grupos. Assim, a intenção de evidenciar o processo histórico desta cultura no Brasil, é uma tentativa de mostrar o  outro lado deste setor da economia, que vem sendo alardeada como a "salvadora da pátria", mas que na verdade trata-se de uma antiga estratégia de rendimentos financeiros obtidos a partir da exploração da terra, dos trabalhadores e também dos recursos públicos (financiamentos, entre outros benefícios conseguidos via políticas de governo), além de ter se firmado a partir da concentração fundiária e a ter reforçado constantemente. De "novo" este setor não tem nada, do senhor de engenho a agroindústria canavieira, verifica-se a que a exploração do trabalho tem ficado mais acirrada, claro, existem mudanças, como o contrato de trabalho, o direito a seguridade social, entre outros, mas a exploração do trabalho mantém-se acirrada.

Os cortadores de cana-de-açúcar em nosso tempo são alvos da ingratidão, da exploração e, ainda, da morte antes do tempo e das incapacidades provocadas pelas doenças oriundas deste trabalho, bem como do descarte como uma peça inútil.  Mas nem por isso, os cortadores de cana, como os seus irmãos coloniais, perdem seus sonhos e aspiram lucrar com a vida e não com o dinheiro. O Brasil é muito mais que o capitalismo e seus filhos (índios, escravos e cortadores de cana-de-açúcar) pregaram e pregam pedaço a pedaço desse mosaico sem fim, de trabalho, mas de lutas e de resistências.

 

REFERÊNCIAS

ALVES, Francisco. (2006) 'Por que morrem os cortadores de cana?' Saúde e Sociedade, 15(3): 90-8. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v15n3/08.pdf>. Acesso em: 11 fev., 2008.

______. Modernização da Agricultura e sindicalismo: lutas dos trabalhadores assalariados rurais da região canavieira de Ribeirão Preto. Campinas 1991. Tese de doutorado Instituto de Economia, Universidade de Campinas.

ANDRADE J. M. F.; DINIZ, K. M.. Impactos ambientais da agroindústria da cana-de-açúcar: subsídios para a gestão. 2007. 131 f. Monografia (Especialização em Gerenciamento Ambiental) Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz", Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2007.

BLITZ em Alagoas liberta mais 550 trabalhadores de usinas: força-tarefa encontrou empregados alojados em locais insalubres e sem água potável. Folha de S. Paulo, São Paulo, 29 fev. 2008. Brasil, p. A8.

FAUSTO. Boris. História do Brasil. São Paulo: Universidade de São Paulo. Fundação para o Desenvolvimento para a Educação, 1999.

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IAMAMOTO. Marilda Vilela. Trabalho e Indivíduo Social: um estudo sobre a condição operária na agroindústria paulista. São Paulo: Cortez, 2001.

MARTINS, JOSE DE SOUZA. O poder do atraso: ensaios de Sociologia da História Lenta, Hucitec, 1994.

MARX, Karl. Manuscritos econômicos filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

Novais A. Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1809). São Paulo, Hucitec, 1979.

NOVAES, José Roberto; ALVES, Francisco (org.). No eito da Cana: exploração do trabalho e luta por direitos na região de Ribeirão Preto/SP. Memória Trabalho - Migração Sindicato e Lutas. Rio de Janeiro, 2003.

REPÓRTER BRASIL. Agencia de Notícias. O que é trabalho Escravo. Escravidão contemporânea é o trabalho degradante que envolve cerceamento da liberdade. Disponível em: <http://www.reporterbrasil.com.br/conteudo.php?id=4>. Acesso em: 13, jul., 2008.

SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial 1550-1835. Companhia das Letras, 1988.

SILVA, Maria, Aparecida Moraes. Agronegócio: a Reinvenção da Colônia. In Dossiê SPM sobre o agronegócio, no prelo, 2008, (mimeo).

______. Errantes do fim do século. São Paulo: UNESP, (Prismas), 1999.

 

 

1  Discente da graduação, 2ª ano, de História, da Universidade Estadual Paulista "Julio Mesquita Filho". Faculdade de Direito, História e Serviço Social FDHSS -, Franca/SP. É bolsista PAE extensão I. Pesquisador do Projeto de Pesquisa "O Processo de Trabalho na Agroindústria Canavieira: os desafios para o Sistema Único de Saúde (SUS) e sindicato dos trabalhadores" coordenado pela Profa. Dra. Edvânia Ângela de Souza Lourenço e apoiado financeiramente pelo CNPq, conforme edital 02/2010, processo número 401159/2010-8. É membro do grupo de Estudos e Pesquisas: Mundo do Trabalho: Serviço Social e Saúde do Trabalhador (GEMTSS).
2  Professora do Departamento de Serviço Social UNESP- Franca/SP. Pesquisadora e Coordenadora do Projeto de Pesquisa "O Processo de Trabalho na Agroindústria Canavieira: os desafios para o Sistema Único de Saúde (SUS) e sindicato dos trabalhadores" apoiado pelo CNPq. É líder do Grupo de estudos e pesquisas "Mundo do Trabalho: Serviço Social e Saúde do Trabalhador GEMTSSS", também é pesquisadora dos grupos QUAVISSS e Teoria Social de Marx, UNESP-Franca/SP. Endereço eletrônico: edvaniaangela@hotmail.com
3  "A Convenção nº. 29 da OIT de 1930 define sob o caráter de lei internacional o trabalho forçado como "todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente. A mesma Convenção nº. 29 proíbe o trabalho forçado em geral incluindo, mas não se limitando, à escravidão. A escravidão é uma forma de trabalho forçado. Constitui-se no absoluto controle de uma pessoa sobre a outra, ou de um grupo de pessoas sobre outro grupo social. Trabalho escravo se configura pelo trabalho degradante aliado ao cerceamento da liberdade. Este segundo fator nem sempre é visível, uma vez que não mais se utilizam correntes para prender o homem à terra, mas sim ameaças físicas, terror psicológico ou mesmo as grandes distâncias que separam a propriedade da cidade mais próxima" (REPÓRTER BRASIL, 2008, grifo nosso). Neste sentido, as usinas de cana-de-açúcar têm liderado o ranking das "[...] libertações feitas pelo grupo móvel [Ministérios Público e do Trabalho ] em todo o ano passado (5.877). Em 2007, mais da metade das pessoas resgatadas em condições degradantes ou análogas à escravidão no Brasil (3.117) saíram de usinas de cana-de-açúcar" (BLIZ EM ALAGOAS, 2008,  p. A8).
4  "A política econômica de Juscelino [Juscelino Kubitschek, JK, foi eleito Presidente em 1955) foi definida no Programa de Metas. Ele abrangia 31 objetivos, distribuídos em seis grandes grupos: energia, transportes, alimentação, indústrias de base, educação e a construção de Brasília, chamada de meta-síntese" (FAUSTO, 1999, p. 425).
5 Janio Quadros venceu as eleições para Presidente do Brasil, em 1960 e o primeiro a tomar posse na cidade de Brasília, mas governou por curtos sete meses em decorrência de crise política e econômica. Janio não chegou a esclarecer os reais motivos "forças terríveis" que o levou a renuncia (FAUSTO, 1999).  
6 O militarismo presente, inclusive no Congresso e aliados conservadores, não viam com "bons olhos" a sucessão presidencial de Janio Quadros por João Goulart, fato que retardou a sua chegada a presidência, bem como a criação de estratégias para diminuir os seus poderes. "Afinal, o Congresso adotou uma solução de compromisso. O sistema de governo passou de presidencialista para parlamentarista, e João Goulart tomou posse, com poderes diminuídos, a 7 de setembro de 1961. Desse modo, o parlamentarismo, proposto por muitos como uma fórmula capaz de dar maior flexibilidade ao sistema político, entrou em vigor pela porta dos fundos..." (FAUSTO, 1999, p. 443).
7 '[...] Essa greve foi uma revolta de trabalhadores contra as exigências patronais e a significativa elevação do preço da água no município. A greve foi duramente reprimida. Estávamos no final do regime militar [1984], falava-se em "abertura política', mas isto foi insuficiente para conter a repressão policial e patronal. Final da "Greve de Guariba", a violência e as conquistas econômicas dos trabalhadores fizeram conhecida em todo território nacional e até mesmo no exterior. Tornou-se um marco, uma referência, para outras mobilizações" (NOVAES; ALVES; 2003, p. 11).
8 As entrevistas realizadas fazem parte do projeto de pesquisa "O Processo de Trabalho na Agroindústria Canavieira: os desafios para o Sistema Único de Saúde (SUS) e sindicato dos trabalhadores", apoiado financeiramente pelo CNPq, conforme edital 02/2010, processo número 401159/2010-8, em andamento pelos autores, conforme nota 1. Neste texto, expõem-se alguns dados empíricos colhidos a partir de entrevista semi-estruturada com dois trabalhadores, sendo um do sexo masculino e outro do sexo feminino, ambos têm mais de 40 anos de idade. Eles atuaram quatro anos em uma usina canavieira, localizada na microrregião Alta Anhangüera, mas devido a idade [40 anos é considerado velho para a ocupação de cortador de cana] e também ao tempo de lida nesta ocupação quatro anos- foram demitidos e atualmente desenvolvem serviços diversos na agricultura. A escolha dos sujeitos se deu em decorrência do objetivo de buscar entender o processo de trabalho na agroindústria canavieira.