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ISBN 978-85-62480-96-6 versão impressa

Sem. de Saúde do Trabalhador de Franca Set. 2010

 

QUESTÃO URBANA QUESTÃO AGRÁRIA E SAÚDE DO TRABALHADOR

 

A realidade do trabalho rural canavieiro e a necessidade de políticas públicas compensatórias: um diálogo sobre as condições de trabalho e a mecanização da colheita da cana

 

 

José Roberto Porto de Andrade Júnior

Vínculo Institucional: Graduando do Curso de direito da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Estagiário do Ministério Público. Professora-orientadora: Elizabeth Maniglia. Contato: e-mail: joserobertopajr@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo analisa as conseqüências da mecanização agrícola na realidade do trabalho rural canavieiro, onde gera desemprego estrutural, propondo parâmetros para a atuação normativa compensatória através de políticas públicas. O trabalho de corte manual da cana-de-açúcar é caracterizado em seus pormenores e problemas e a mecanização é entendida mediante a análise de suas reais motivações e concretude. Por fim, são expostos os parâmetros para ação normativa compensatória, que deverá pautar-se pela melhoria das condições de trabalho, requalificação profissional e reforma agrária.

Palavras Chave: Trabalho canavieiro. Mecanização. Políticas Públicas.


 

 

1 INTRODUÇÃO

O setor canavieiro vive, sob a perspectiva micro-econômica empresarial, momentos de euforia em virtude do intenso crescimento. Em 2008 a produção sucroalcooleira nacional atingiu a marca de 571,4 milhões de toneladas de cana-de-açúcar produzidas em mais de 8,5 milhões de hectares plantados. Em vista disso, no referido ano, houve a produção de 32,1 milhões de toneladas de açúcar e 26,6 bilhões de litros de álcool (GONÇALVES; SZMRECSÁNYI, 2009, p. 2-3). O crescimento da produção brasileira, que tem se dado nas mais diversas regiões do país, é especialmente significativo no estado de São Paulo, onde a concentração da lavoura de cana-de-açúcar ocorre de forma mais acentuada.

Entre 2000 e 2007 o crescimento da produção canavieira no estado foi de 56%. Com isso, a área plantada saltou de 2,8 milhões de hectares em 2000 para 4,87 milhões de hectares em 2008, o que elevou a produção paulista ao patamar de responsável por 60% de toda a produção nacional de cana, além de concentrar no estado mais de um terço do número de usinas e destilarias do país. Em nosso estado, a lavoura canavieira já ocupa mais de 65% da área de lavoura total disponível (GONÇALVES; SZMRECSÁNYI, 2009, p. 6). Tal aumento significativo da produção teve como conseqüência direta o aumento substancial dos lucros deste que é um dos setores mais importantes da economia paulista.

Entretanto, quando se fala do setor canavieiro no Brasil e no estado de São Paulo, a realidade demonstra distanciamento frente à maravilhosa situação econômico-social comumente propagada. Para o setor e, em especial, para os atores sociais envolvidos em seu processo produtivo, nem "tudo são flores". Ao contrário, os trabalhadores rurais, que deveriam ser beneficiados pelo aumento da produção e da movimentação econômica do setor, acabam por constituírem-se nos maiores prejudicados, uma vez que parcela significativa do aumento da produção tem se dado à custa da diminuição estrutural de postos de trabalho pela mecanização das etapas produtivas. 

A expansão da produção canavieira teve, historicamente, como contrapartida a expropriação e expulsão dos trabalhadores da terra. Conforme explica Pedro Ramos, foi a estrutura fundiária concentrada que caracterizou a formação e o desenvolvimento do setor e condicionou historicamente a formação de um proletariado rural com baixíssimos níveis salariais, potencializando uma acumulação vigorosa de capitais em virtude do baixo custo de reprodução da força de trabalho (RAMOS, 1999, p. 151). Atualmente, a exploração do proletariado rural canavieiro ganha, ainda, contornos mais deterioradores em virtude da mecanização do processo de produção agrícola, fato que repercute diretamente na rotina dos trabalhadores rurais, demandando atuação compensatória da Sociedade através da realização de políticas públicas conscientes e efetivas.

O objetivo deste trabalho é caracterizar o momento atual vivenciado no trabalho rural canavieiro, tendo como parâmetro central de análise a mecanização da produção agrícola. Para isso, numa primeira etapa dissertaremos sobre a realidade do trabalho agrícola de colheita manual da cana-de-açúcar, principal atividade empregatícia do setor. Posteriormente, a mecanização será entendida em seus pormenores: razões, conseqüências e concretude. Por fim, será discutido o papel a ser desempenhado pelo direito, através de políticas públicas, para regulamentar essa transição produtiva de forma a não prejudicar ainda mais o trabalhador rural canavieiro. 

 

2 O TRABALHO AGRÍCOLA DE COLHEITA MANUAL DA CANA-DE-AÇÚCAR

O trabalho de colheita manual da cana-de-açúcar é, certamente, uma das atividades laborais mais árduas do meio rural. Conforme explica Gonçalves, em tal expediente de produção, cada trabalhador é responsável por um conjunto de linhas paralelas de cana plantada conhecidas como "eito", formadoras do talhão de cana. Nesse conjunto de linhas o trabalhador atua cortando as touceiras de cana e avançando para dentro do talhão. O trabalho consiste em abraçar certo número de canas de forma a separá-las das demais e golpear, rente ao solo, a base deste conjunto com um facão afiado denominado podão. Em seguida, cortam-se as pontas e carrega-se este material para a linha central do "eito", dispondo-as em montes como forma de facilitar a operação das máquinas carregadeiras (GONÇALVES, 2005, p. 120-121).

Gonçalves e Szmrecsányi, citando trabalho elaborado por Alves, explicam que um trabalhador que corte 12 toneladas em um dia, caminha, nesse dia de trabalho, 8.800 metros, despende 133.332 golpes de podão e carrega as 12 toneladas de cana em montes de 15 kg. Para isso, tal trabalhador realiza 800 trajetos e 800 flexões, levando 15 kg nos braços por uma distância de 1,5 a 3 metros. Faz, também, aproximadamente 36.630 flexões e entorses torácicos para golpear a cana e perde, em média, 8 litros de água por dia (ALVES apud GONÇALVES; SZMRECSÁNYI, 2009, p. 8). Em virtude dessa exigência física intensa, o trabalho canavieiro gera uma série de limitações e debilitações na saúde dos trabalhadores rurais.

Ribeiro e Ficarelli afirmam que a pesada carga laboral dos cortadores de cana tem entre suas motivações a postura física exigida para o corte, o uso de ferramentas perigosas, a realização de atividades repetitivas e desgastantes e o transporte de material excessivamente pesado. Tais gravames são, ainda, reforçados por condições ambientais danosas como exposição prolongada ao sol e intempéries, descargas atmosféricas e poluição do ar (FICARELLI; RIBEIRO, 2010, p. 57). Como não poderia deixar de ser, uma carga laboral tão intensa gera nos trabalhadores diversas doenças e manifestações somáticas. Entre elas, destacam-se: dores na coluna vertebral, dores torácicas, lombares e de cabeça, tensão nervosa (stress), dermatites, conjuntivites, desidratação, dispnéia, infecções respiratórias, oscilações da pressão arterial, desidratação, ulceras, hipertensão, alcoolismo, entre outras (ALESSI; NAVARRO, 1997, p. 119).

De forma a agravar mais ainda a situação laboral do cortador de cana, em parcela significativa dos locais de trabalho não há fornecimento de equipamentos de proteção individual para os cortadores (como luvas e perneiras), a despeito da expressa previsão normativa nesse sentido. Dessa forma, a proteção acaba por ser improvisada pelos próprios trabalhadores: meias são utilizadas como luvas, saias são sobrepostas a calças e lenços e outras vestes se tornam a única proteção dos trabalhadores contra as intempéries laborais. Em outros casos, mesmo quando os equipamentos de proteção são fornecidos, eles se tornam elemento dificultador do trabalho canavieiro, uma vez que a completa inadequação dos mesmos, com poucas opções de tamanho e pouca maleabilidade para a carga exigida, é flagrante e constante, prejudicando o exercício do trabalho e tornando-o ainda mais perigoso (ALESSI; NAVARRO, 1997, p. 116).

Outro problema que os trabalhadores canavieiros enfrentam refere-se ao transporte dos cortadores de cana até os locais de trabalho, que é geralmente feito através de caminhões de propriedade dos agenciadores de mão-de-obra (denominados popularmente como "gatos" ou "turmeiros") e não através de ônibus apropriado para o transporte de pessoas. Na maioria das vezes, esses seres humanos são tratados como carga e seu transporte é feito por motoristas inexperientes, até inabilitados, em veículos que, além de inapropriados, tem sua manutenção raramente realizada, dando ensejo a uma alta percentagem de acidentes com graves conseqüências para os trabalhadores (ALESSI; NAVARRO, 1997, p. 117-118).

Para a realização deste árduo trabalho, o sistema de remuneração consiste no pagamento por produtividade diária, calculado por base nos metros de cana colhida, convertidos posteriormente em toneladas. Tal sistema objetiva a maximização do controle da produção por parte dos empregadores, que desejam que o trabalhador desempenhe o máximo de seu potencial produtivo na operação de colheita. Além disso, o sistema garante o progressivo aumento da produtividade do trabalho mediante a seleção reiterada dos cortadores mais produtivos, com exclusão dos cortadores que mantém baixos índices de produtividade, gerando no ambiente de trabalho um clima extremamente prejudicial de pressão para obtenção de resultados (GONÇALVES, 2005, p. 120-123).

Eleutério Langowski afirma que a indústria canavieira reproduz um modelo de relação trabalhista do século XVII, no qual os cortadores de cana vivem à margem da lei e trabalham até o limite da exaustão. Com base em reflexões sociológicas o autor pondera que a relação entre aumento da produtividade do corte manual e mortes por exaustão é direta, relatando a ocorrência de mortes de trabalhadores em São Paulo sob suspeita de excesso de trabalho (LANGOWSKI, 2007, p. 6). A Pastoral do Migrante de Guariba (SP), entre as safras de 2004 e 2008, confirmou a morte de 21 trabalhadores com idade entre 24 e 50 anos. Embora nos atestados de óbitos apareçam apenas laudos inconclusivos, citando resumidamente paradas cardíacas, insuficiência respiratória ou acidente vascular cerebral, amigos e familiares relatam que, antes de morrerem, os trabalhadores reclamavam de excesso de trabalho, dores no corpo, câimbras, falta de ar e desmaios, revelando a relação direta entre a morte dos trabalhadores e o exercício do trabalho canavieiro (GONÇALVES; SZMRECSANYI, 2009, p. 8-9).

Outra característica da dinâmica de produção sucroalcooleira refere-se à utilização de migrantes para abastecimento do mercado de trabalho de colheita manual. Segundo informação atribuída a estudo realizado pela Pastoral do Migrante, citado por Ribeiro e Ficarelli, os migrantes constituem a maioria dos empregados atualmente no corte da cana. Essa estratégia foi adotada pela maior parte das empresas canavieiras porque os migrantes se submetem mais facilmente a trabalhar e morar em condições precárias, semelhantes a do trabalho escravo, dormindo em alojamentos que são, geralmente, barracos ou galpões improvisados, superlotados, sem ventilação ou condições mínimas de higiene. Tal situação não ocorre na mesma facilidade com os trabalhadores locais, que são na maioria das vezes sindicalizados e mais atuantes na defesa de seus direitos (FICARELLI; RIBEIRO, 2010, p. 54).

Não é sem razão que o setor sucroalcooleiro continua registrando anualmente denúncias de trabalho escravo, embora tais casos não se concentrem em São Paulo. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, em 2008 o setor liderou em trabalhadores libertados: 2.553 entre o total de 5.244 trabalhadores (49%) (GONÇALVES; SZMRECSANYI, 2009, p. 8-9). Não é sem razão, também, que Gonçalves e Szmrecsanyi afirmam ser inaceitável a manutenção de empregos degradantes e insalubres como os oferecidos pelo setor para os cortadores de cana, submetidos a jornadas de trabalho desumanas e mortais, promovidas por um sistema de pagamento por produção cruel e ultrapassado (GONÇALVES; SZMRECSANYI, 2009, p. 18).

Entretanto, ao invés de promover melhorias nas condições de trabalho canavieiro, o setor sucroalcooleiro tem promovido a eliminação estrutural dos postos de trabalho mediante a mecanização da colheita, com o que se agrava ainda mais a situação do cortador. Isso porque com a mecanização, o trabalho da colheita manual foi transferido para áreas portadoras de condições desfavoráveis, com cana torta, de menor peso e pior rendimento, localizadas em terrenos de maior declividade ou em condições prejudiciais sob o ponto de vista da produtividade, como áreas pedregosas ou de brejos. Em vista disso, para atingir as metas elevadas de trabalho, os cortadores tem sido obrigados a aumentar a carga laboral, gerando maior desgaste físico e psicológico (GONÇALVES, 2005, p. 124-125).

 

3. A MECANIZAÇÃO DAS ETAPAS DE PRODUÇÃO CANAVIEIRA

A mecanização é uma realidade para o setor canavieiro, fruto da escolha do empresariado desse setor produtivo. Segundo a racionalidade de base mercantil que objetiva unicamente a acumulação de valores monetários, orientadora da ação dos agentes produtivos privados na agricultura científica globalizada, uma escolha óbvia e indispensável. Isso porque, conforme explica Daniel Gonçalves, processos de inovação tecnológica poupadores de gastos com mão-de-obra como mecanização agrícola são etapas comuns no desenvolvimento dos sistemas de produção capitalistas que, apesar de estarem em sintonia com o viés econômico da lógica micro-empresarial, contribuem para proliferação de um processo de exclusão social extremamente penoso para a Sociedade brasileira (GONÇALVES, 2005, p. 96-97).

Ignacy Sachs afirma que vivemos num momento histórico em que investimentos produtivos, ao invés de criarem empregos tendem a substituírem os trabalhadores por máquinas. Dessa forma, a relação entre crescimento e emprego, para alguns setores de produção, sofre uma inversão de sinal: mais crescimento é igual a menos emprego. A modernização da agricultura, por exemplo, é sedimentada em substituição da mão-de-obra através da mecanização, avançando na direção de uma agricultura sem gente, destruidora de empregos e geradora de uma modernização perversa (SACHS, 2007, p. 371). As razões que impulsionam e fundamentam essa escolha do setor produtivo canavieiro são de origens diversas. A mais importante delas, todavia, certamente é a financeira.

A matéria prima sucroalcooleira é produzida no campo, tendo participação significativa no custo final do açúcar e do álcool, ao redor de 60%. Em virtude disso, o progresso técnico agrícola tem papel chave na dinâmica de competitividade setorial, por minorar os custos de produção do açúcar e do álcool e por possibilitar redução nos preços dos subprodutos e co-produtos a serem gerados. Por isso, a mecanização das etapas produtivas agrícolas já é realidade em diversas etapas do processo de produção, como o carregamento e o transporte, sendo a mecanização da colheita a continuidade desse processo de mecanização agrícola, que visa proporcionar redução nos custos de produção sucroalcooleiros, aumento da produtividade do trabalho e viabilização na utilização de outros subprodutos e co-produtos (VEIGA FILHO, 1998, p. 7-14).

Conforme explica Alves, as primeiras atividades mecanizadas na lavoura canavieira brasileira foram o transporte, preparo do solo e plantio, ainda que parcialmente. No final da década de 1960 passou-se a mecanizar, também, o carregamento da cana, através da substituição de trabalhadores braçais por guinchos mecânicos que empilhavam e carregavam a cana do chão para as carrocerias dos caminhões (ALVES apud GONÇALVES, 2005, p. 99). Márcia de Moraes, amparada em informações dos sindicatos patronais, afirma que em São Paulo o carregamento, transporte e cultivo da cana-de-açúcar já eram, em 2007, etapas do processo de produção 100% mecanizadas (MORAES, 2007, p. 881).

Quanto à mecanização da colheita da cana-de-açúcar, é um fenômeno em curso no Brasil desde a década de 1980, inclusive com redação de análises financeiras sobre a dinâmica do processo. Freitas, Gandini, Balbo, Ripoli e Mialhe, são alguns dos autores citados por Alceu Filho que, desde 1981, vem elaborando avaliações quantitativas sobre os custos comparados da produção manual e mecanizada, com e sem queima prévia na cultura de cana-de-açúcar. As análises, desde essa época, apontam para a diminuição de custos na utilização da colheita mecanizada, mais ou menos significativa a depender do custo local da mão-de-obra e da utilização parcial ou plena da capacidade operacional das máquinas (VEIGA FILHO, 1998, p. 18-19).

No final da década de 1980, segundo Graziano da Silva, algumas usinas já haviam mecanizado mais da metade de sua colheita, com significativa redução dos custos de produção, a despeito da necessidade de investimento inicial mais elevado que aquele gerado pelo uso da colheita manual (apud GONÇALVES, 2005, p. 107). A Usina Luciana, de Lagoa da Prata (MG), citada por Daniel Gonçalves, estudando os efeitos financeiros da mecanização integral do sistema produtivo da lavoura canavieira (preparo do solo, plantio, tratos culturais, colheita e transporte), concluiu que a redução nos custos totais deu-se acima da casa dos 50% (GONÇALVES, 2005, p. 115). Mecanizar a colheita reduz os custos de produção canavieira, sendo esta a motivação primordial dessa escolha do empresariado.

Por reduzir custos, encontrava-se a mecanização em curso desde a década de 1980. Segundo Veiga Filho, citado por Daniel Gonçalves, entre as safras de 1988/89 e 1997/98 a área com corte mecânico no estado de São Paulo passou de 98,6 mil hectares (8% do total de área plantada) para 172,8 mil hectares (18%), com crescimento médio de 6,43% ao ano. Já a área com corte manual reduziu-se de 1.123,7 mil hectares (92%) para 777,7 mil hectares (82%) no mesmo período. Na safra 1999/00, a área colhida mecanicamente havia aumentado para 426,3 mil hectares (29%), enquanto a área com corte manual ficou em 1.037, 2 mil hectares (71% do total) (apud GONÇALVES, 2005, p. 115).

Mecanizar a colheita, todavia, não tem motivações exclusivamente financeiras. Além dessas, Alceu Filho aponta razões de outras ordens a incentivar o processo de inovação tecnológica no setor. Um desses fatores é a dificuldade no controle da mão-de-obra canavieira, que posteriormente a 1980 passou por um período de maior organização interna e mobilização, com o fortalecimento da ação dos sindicatos e a obtenção de vitórias em dissídios coletivos. A pressão exercida pelos trabalhadores, ao mesmo tempo em que encareceu a mão-de-obra, promoveu a perda do controle político da massa de trabalhadores pelo patronato (VEIGA FILHO, 1998, p. 22).

Exemplo significativo e marco dessa perda de controle político é a greve de Guariba (SP), em 1984, que consolidou definitivamente o papel ativo dos trabalhadores ao paralisar completamente as usinas de açúcar na luta pelo atendimento de suas demandas (MORAES, 2007, p. 883). A reação contra essa perda de controle, como forma de repressão e de quebra da resistência aos movimentos organizados, contribuiu para a mecanização do corte da cana-de-açúcar, além de ter intensificado o processo migratório, uma vez que as empresas passaram a buscar em regiões cada vez mais distantes os cortadores de cana.

Outra motivação para a ocorrência da mecanização da colheita da cana refere-se à demanda societária pela proibição da queima da cana-de-açúcar. A queima prévia do vegetal é um procedimento agrícola que visa aumentar a produtividade no corte, mas que produz conseqüências extremamente danosas para o meio ambiente e para as comunidades do entorno, além de prejudicar demasiadamente os trabalhadores rurais. Essa demanda por sua proibição manifestou-se principalmente através da pressão popular nos municípios canavieiros, que ganhou contornos institucionais através de decisões judiciais que proibiam a prática e através de legislações estaduais e municipais no mesmo sentido.

Essa demanda societária manifesta-se, também, através da exigência de mercados internacionais consumidores de produtos gerados pelo setor canavieiro pela abolição dessa prática anti-ambiental como condição para ingresso dos seus produtos. Dessa forma, viu-se o setor sucroalcooleiro obrigado a, gradativamente, abandonar a prática de queima prévia, o que implica diminuição da produtividade do trabalho e, conseqüentemente, aumento dos custos de produção. Em vista disso, o empresariado de um setor que historicamente preocupa-se de forma exclusiva com o aumento de seus lucros, considerou indispensável a mecanização da colheita como pressuposto da proibição da queima da cana, obtendo junto ao governo paulista o atendimento dessa demanda através da proibição gradativa da queima.  

Dessa forma, caracterizada por todas as motivações expostas, a mecanização canavieira é uma realidade que possui como conseqüência imediata a perda estrutural dos postos de trabalho rural. Márcia de Moraes, utilizando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que entre 1992 e 2005 houve uma redução de 23% no número total de empregados (permanentes e temporários) do setor sucroalcooleiro. Eram 670.099 empregados em 1992, sendo em 2005 somente 519.197. No mesmo período, houve o crescimento da produção na ordem de 54,6%. A explicação pra isso reside, para a autora, na mecanização das etapas produtivas, em especial da colheita da cana-de-açúcar (MORAES, 2007, p. 896-897).

Ficarelli e Ribeiro consignam que os trabalhadores rurais do setor sucroalcooleiro vivem momentos de incerteza, uma vez que os canaviais constituem fonte de renda importante para uma fração significativa da população de baixo nível de instrução, representando a maior demanda de força de trabalho agrícola no estado de São Paulo, com o equivalente a 35% de toda a força de trabalho agrícola em 2002 (FICARELLI; RIBEIRO, 2010, p. 52).  O trabalho rural canavieiro, que certamente já é um dos mais desumanos labores humanos, vem se desumanizando mais ainda, através da colocação de máquinas em funções anteriormente desempenhadas por pessoas.

 

4 AÇÃO NORMATIVA ATRAVÉS DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Explica Ignacy Sachs que não é aceitável e nem mesmo necessário que os progressos financeiros e econômicos sejam obtidos por meio de desemprego e subemprego estruturais, resultando em fenômenos cada vez mais generalizados de exclusão social e pobreza. Para o autor, a importância de um regime econômico de crescimento amparado e direcionado para o aumento do número de empregos resta clarificada pelo entendimento do funcionamento das empresas privadas que, impulsionadas pela lógica do mercado e da concorrência, tendem "naturalmente" para o crescimento intensivo e mesmo para a modernização perversa (SACHS, 2007, 251-253).

Francisco Alves denomina justamente de "modernização perversa" a atual fase de transição produtiva do setor canavieiro, por concluir que ela modifica a base técnica da produção sem alterar o essencial das relações de trabalho (ALVES, 2010, p. 159). Estas continuam caracterizadas pela exploração extremada e pela imposição de condições precárias de trabalho e de vida aos trabalhadores rurais, que contam agora com o agravante de assistirem a destituição de seus postos de trabalho. Resta evidente que a perspectiva de alteração no sistema de produção do setor sucroalcooleiro é algo bem distante do desenvolvimento, sendo materialmente desprovida de qualquer beneficiamento sócio-econômica aos estratos sociais mais frágeis da relação de trabalho. É mera modernização conservadora a serviço dos interesses das elites econômicas.

Tal situação socialmente problemática demanda uma atuação normativa consciente e efetiva. Atualmente, é indissociável à noção de direito a ação sobre os rumos da sociedade. Tal ação deve estar voltada para o aprimoramento da vida em comum como requisito de legitimidade e de legitimação, uma vez que é o aumento do bem-estar social o objetivo por excelência da organização societária através do direito. Dessa forma, volta-se o fenômeno jurídico a ordenar o presente em direção a determinado futuro socialmente almejado, e não mais a simplesmente ordenar o já estabelecido. Tal ordenação prospectiva é alcançada, principalmente, através das chamadas políticas públicas (MASSA-ARZABE, 2006, p. 51-53).

A idéia de política pública serve para designar, na esteira da lição de Massa-Arzabe, não meramente a política do Estado, mas a política do público, de todos para todos. Trata-se, assim, da política voltada para fazer avançar os objetivos coletivos de aprimoramento da comunidade e da coesão social. Em vista disso, não se limitam as políticas públicas a uma organização da ação estatal na sociedade, mas vinculam, além dos órgãos estatais, também os agentes econômicos, as organizações da Sociedade civil e os particulares, ao estabelecer metas e caminhos para a sua realização (MASSA-ARZABE, 2006, p. 58-61).

No caso do momento atualmente vivido no complexo canavieiro, caracterizado pela precariedade das condições laborais e pela mecanização progressiva e intensa, a ação normativa deve dar-se de forma a proteger os trabalhadores rurais e modificar a situação de debilidade na qual se encontram. O direito deve atuar para reequilibrar as relações sociais desiguais existentes entre os pólos da relação empregatícia rural, atuando como elemento de modificação societária em prol da implantação de ideais vinculados à justiça social. Para isso, cremos que as políticas públicas e a ação normativa deverão pautar-se pela melhoria nas condições de trabalho e pela implementação de políticas públicas compensatórias, caracterizadas principalmente pela requalificação profissional dos trabalhadores canavieiros e pela implantação de projetos efetivos de reforma agrária.

O trabalho na atividade de corte da cana ainda demandará número significativo de trabalhadores na região, por um longo período de tempo, sendo imprescindível a melhoria de sua qualidade com avanços no trato de questões atinentes a segurança, transporte, higiene, alimentação, condições de trabalho e remuneração (GONÇALVES, 2005, p. 232). É imprescindível que, de imediato, se adotem políticas que deverão gerar o fim da terceirização mediante a implementação de um sistema de contratação direta do trabalhador pelos usineiros e fornecedores de cana. Da mesma forma, deve ser modificado o sistema de pagamento por produção, com a fixação da remuneração por salário fixo, baseado em horas trabalhadas. Essas modificações nas relações de trabalho são essenciais, pois significam minorar a super-exploração e impedir a continuidade de um processo de produção cruel, que aleija e mata trabalhadores (ALVES, 2010, p. 174).

É indispensável, também, que a Sociedade encontre alternativas para ocupar os trabalhadores rurais desempregados pela mecanização canavieira, mediante a execução de políticas públicas compensatórias que reponham as vagas de trabalho estruturalmente perdidas. Conforme explica Francisco Alves, é imprescindível que o ritmo mecanização seja igual ao ritmo da adoção das políticas públicas compensatórias, o que significa que deverão ser criados novos postos de trabalho na mesma velocidade em que os postos de trabalho na colheita canavieira são estruturalmente perdidos com a mecanização (ALVES, 2010, p. 166). Em virtude disso, cremos ser necessária a imposição de limites para a mecanização, que não pode traduzir-se em escolha unilateral do empresariado canavieiro, uma vez que seus reflexos atingem toda a Sociedade brasileira.

As políticas públicas compensatórias deverão, a nosso ver, pautar-se pela requalificação profissional e pela implantação de projetos de reforma agrária. A requalificação profissional visa preparar os trabalhadores canavieiros para o exercício de outras funções, dentro do próprio sistema de produção sucroalcooleiro ou em outras áreas. Embora essencial, ela é amplamente insuficiente, não sendo apta a atingir a demanda total proveniente dos desempregados do setor. Para Daniel Gonçalves políticas de requalificação atingirão somente o público de jovens alfabetizados, fração mínima do contingente de trabalhadores canavieiros, que são homens e mulheres de diferentes idades e procedências, marcados pela baixa escolaridade e pela baixa qualificação profissional (GONÇALVES, 2005, p. 230).

Para o autor são necessárias linhas de ação especificamente voltadas para cada segmento ou categoria desse contingente de trabalhadores desempregados ou em situação de desemprego eminente, numa atuação conjunta entre Governo do Estado, Prefeituras, Empresas e Terceiro Setor (GONÇALVES, 2005, p. 230). Cremos que tais ações deverão pautar-se, entre outros objetivos, pela concretização de projetos de implantação de assentamentos rurais. Ribeiro e Ficarelli afirmam que a reforma agrária é uma opção de permanência da população agrária no campo. Tais agricultores, produzindo com base nos princípios da agroecologia, numa produção adaptada às condições naturais de clima e solo da região e com uso reduzido de insumos impactantes ao meio ambiente poderiam trazer inclusão e dinamismo para a Sociedade e economia paulista (FICARELLI; RIBEIRO, 2010, p. 60).

Segundo os autores:

A educação geral e técnica terá papel fundamental no desencadear da inserção dessa população em novos tipos de trabalho, na agricultura, indústria, comércio e serviços. Mas só isso não basta. Projetos de desenvolvimento rural para pequenas comunidades precisam ser implantados, fixando os trabalhadores rurais no campo ou em centros urbanos menores e dotados de infraestrutura. [...] A monocultura de larga escala, fruto de uma ação totalitária do capital agroindustrial no espaço, fragiliza a economia dessas zonas, por se sustentar num só tipo de produto que eventualmente pode sofrer queda de preço e levar toda a população à crise. Por isso, é necessário que haja incentivos às regiões para manter fazendas agroecológicas, visando à sustentabilidade ambiental, social e econômica, diversificando a ocupação do solo, os trabalhos rurais, e atenuando os males da monocultura (FICARELLI; RIBEIRO, 2010, p. 60-61).

A ação jurídica será fundamental na tentativa de resolver a problemática situação na qual se encontram os trabalhadores rurais e deverá pautar-se, em nosso entender, pelos pressupostos ora delineados, sob pena de constituir-se em ação inócua e inefetiva do Poder Público. O direito serve à sociedade e aos interesses sociais, não sendo instrumento de imobilização e reforço de estruturas sociais excludentes e marcadas pela desigualdade social. Se for nesse sentido a ação normativa, não é ela direito, mas justamente o seu oposto, o não-direito. Normas destinadas a excluir, que mantenham a preocupante estrutura social que caracteriza historicamente o complexo canavieiro, e que promovam a "modernização perversa" que se encontra em curso não podem, jamais, serem tidas por jurídicas.

 

5 CONCLUSÃO

O trabalho rural do corte da cana-de-açúcar é atividade laboral das mais degradantes, responsável por impor ao trabalhador condições biológicas e emocionais demasiadamente prejudiciais. Nele, o trabalhador é submetido a uma carga intensa de trabalho e remunerado sob uma perspectiva estritamente exploratória, que visa extrair do trabalhador o seu máximo desempenho, nem que isto custe a sua própria vida. Falta de equipamentos de proteção individual, transporte inadequado, migração, dores na coluna vertebral, stress, desidratação, infecções respiratórias e baixa remuneração são alguns dos substantivos aptos a designar o cotidiano do trabalho rural canavieiro.

Para agravar ainda mais a realidade desse trabalhador, a mecanização da produção agrícola é a tônica atual do setor sucroalcooleiro, no que restou designado por "modernização perversa". Motivada principalmente pelo desejo de redução dos custos de produção, a mecanização também encontra suas razões na vontade do empresariado canavieiro em eliminar a dependência do proletariado rural, que hoje não se encontra mais submisso em absoluto aos seus comandos. A demanda societária pela proibição da queima da cana reforça, também, o interesse econômico na mecanização, uma vez que aumenta os custos de reprodução da força de trabalho. Como não poderia deixar de ser num setor econômico capitalista, razões de fundamentação econômica micro-empresarial governam essa escolha produtiva unilateral que gera conseqüências danosas a toda Sociedade.

De forma a minorar e contornar essa situação problemática deve o direito agir para melhorar as condições de trabalho canavieiro. Com esse objetivo, o fenômeno jurídico deve atuar através da efetivação de políticas públicas compensatórias que impliquem na criação de novos postos de trabalho aptos a substituir os postos de trabalho estruturalmente eliminados com a mecanização da colheita. Essas políticas públicas deverão visar principalmente à requalificação profissional dos cortadores de cana e à implementação de projetos de reforma agrária. As ações normativas, para serem efetivas, deverão basear-se nesse tripé: melhoria das condições de trabalho, requalificação profissional e reforma agrária.

 

REFERÊNCIAS

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