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ISBN 2236-7381 versión impresa

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

A factibilidade da transferência de tecnologia e o spin-off no programa FX-2 da FAB*

 

 

Alcides Eduardo dos Reis Peron

 

 


RESUMO

O propósito desse trabalho é apresentar uma síntese da argumentação no entorno do Programa FX-2 - o qual objetiva a renovação da frota brasileira de caças, a transferência de tecnologia, e a capacitação de empresas locais para a produção autônoma de uma aeronave de caça - buscando compreender em que medida ele seria capaz de promover um desenvolvimento tecnológico e econômico nacional, superando a condição de dependência tecnológica característica de um país periférico. O fio condutor da discussão tem por base a compreensão do processo de transferência de tecnologia a países menos desenvolvidos e do fenômeno spin-off em uma economia como a brasileira, com aspectos bastante distintos daquelas onde se supõe que ele ocorra.

Palavras-chave: Programa FX-2, Transferencia de Tecnologia, Spin-off, Desenvolvimento Econômico


 

 

INTRODUÇÃO

Desde o processo de redemocratização do Brasil, período em que os esforços nacionais concentravam-se em promover um processo de estabilização da economia, há uma demanda dos setores militares para renovar e internalizar a capacidade tecnológica necessária para reproduzir internamente um aparato militar de alta tecnologia. Essa demanda se fundamenta tanto na percepção do papel de destaque construído pelo Brasil na região (e, portanto, na necessidade de se desenvolver uma capacidade bélica para enfrentar as ameaças potenciais) e, principalmente, na compreensão de que o ciclo de vida dos aparatos militares estava se esgotando, tornando necessária a renovação e o reaparelhamento das Forças Armadas.

Nesse contexto é que, nos anos 90, o Programa FX da Força Aérea Brasileira (FAB) começa a ser idealizado, como uma iniciativa que promoveria a seleção de um novo modelo de aeronave de caça em substituição do Mirage III adquirido na década de 70. A necessidade de desenvolver uma superioridade frente aos países latino-americanos levaria, anos mais tarde, a ampliar os objetivos do FX de maneira a priorizar os aspectos relacionados com a transferência de tecnologia. O que, do ponto de vista dos gestores do programa seria uma condição essencial para internalizar as capacidades tecnológicas necessárias para reproduzir as tecnologias compradas. A esse programa ampliado em 2007, foi atribuído o nome de FX-2.

Assim, o objetivo central desse trabalho é compreender se os eventos almejados pelo Programa FX-2 teriam alguma possibilidade de ocorrer, ou ao menos seriam observados em uma economia periférica, de baixa capacidade de geração de tecnologia, como a brasileira. De maneira geral os eventos almejados pelo programa seriam principalmente dois, a transferência de tecnologia das empresas que participam da concorrência internacional, e o spin-off, o transbordamento ou reprodução da capacitação tecnológica adquiridas por elas.

Tal objetivo nos permite avaliar os argumentos apresentados pela Estratégia Nacional de Defesa (END), os quais serviram de base para o esforço de implementação do Programa FX-2. Esses argumentos são compostos pela certeza de que tanto a transferência de tecnologia quanto o spin-off ocorreriam de forma natural no país a partir das compras governamentais e dos acordos assinados com as empresas transferentes. Ao afirmar isso, os idealizadores da END e do Programa FX-2 não consideram a heterogeneidade, e a complexidade do processo de transferência internacional de tecnologia militar. Parecem também ignorar o fato de que a capacidade de absorção de tecnologia pelas empresas nacionais é bastante limitada no país, e de que o spin-off tem a sua ocorrência condicionada a diversos fatores estruturais como um Sistema de Inovação semelhante ao observado nos Estados Unidos no pós Segunda Guerra, que pouco tem em comum com o "Sistema de Inovação" brasileiro.

A partir de então, o trabalho se divide em duas seções mais uma conclusiva. Inicialmente será abordada a relação que se desenvolve entre a END e o Programa FX-2, buscando elucidar como a primeira serve de base conceitual e legitimadora do programa. Em um segundo momento aborda o processo de transferência de tecnologia a países em desenvolvimento, buscando compreender inicialmente a complexidade envolta na transferência de bens e tecnologias militares. Finalmente, a mesma seção analisa ainda os condicionantes do Spin-off , como um fenômeno histórico nos EUA no período posterior à Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que questiona as condições para a sua reprodução no Brasil.

 

1) A TIMIDEZ ESTRATÉGICA DA END

O objetivo dessa seção será expor a forma como o Programa FX-2 é compreendido pela END como um elemento de interface tecnológica entre o setor civil e militar, a partir do qual o processo de revitalização da indústria brasileira de material de defesa (IBMD) se tornaria factível. Em julho de 2000, atendendo a uma reivindicação da Força Aérea Brasileira de 1995, foi aprovado um dispêndio de 3,3 bilhões de dólares para o Programa de Fortalecimento do Controle do Espaço Aéreo Brasileiro, visando a recuperação da capacidade operacional da FAB através da construção e aquisição de aeronaves de caça, de transporte e de helicópteros pesados. Dentro desse esforço, destacava-se o Programa (então "Projeto") FX, orçado em 700 milhões de dólares e destinado à aquisição de até 24 caças que substituiriam os Mirage III, que já se encontravam obsoletos (BASTOS, 2002).

Pouco tempo depois, no ano de 2003, já no governo Lula, inicia-se ciclo de debates conduzido pelo Ministério da Defesa voltado para a atualização do pensamento brasileiro sobre segurança e defesa. Nesse âmbito, desenvolve-se um debate acerca do reaparelhamento das Forças Armadas, as quais estariam em situação de crescente inferioridade frente às demais instituições militares dos países latino-americanos, principalmente no que tange a sua capacidade material, como aponta o ministro da Defesa, Nelson Jobim:

Nossas vulnerabilidades são grandes. Nós não podemos ter operações noturnas, por exemplo. Não temos mísseis antisubmarinos que possam ser lançados de aviões. Há uma série de coisas (...) (CORREIO BRAZILIENSE, 2010).

Diversos atores de setores distintos da sociedade participaram do debate, o qual apontou como uma de suas conclusões a necessidade de reestruturação das capacidades militares de defesa, articulando-as com as novas percepções de segurança do país. Nesse sentido, Costa (2004: 64-65) afirma que:

O nosso maior objetivo, no futuro, deve ser o de aumentar a nossa autonomia estratégica (...) cumpre, portanto, reativar as indústrias voltadas direta ou indiretamente para a aplicação militar e os centros de pesquisas a ela vocacionados.

O entendimento de que a defesa nacional tem por necessidades maior autonomia estratégica e logística e a construção de uma forte capacidade operativa para as Forças Armadas deu o tom do ciclo de debates, também apontando para a necessidade de uma participação mais ativa do Estado na revitalização da indústria nacional de defesa. Assim, seria essencial a elaboração de um documento que representasse os anseios dos vários atores a respeito da reorientação da defesa nacional, ao mesmo tempo em que convergisse com os objetivos econômicos e políticos nacionais, configurando-se como uma proposta de política econômico-estratégica, como aponta Costa (2004: 37) "Uma concepção de segurança é parte integrante de um projeto de inserção do Brasil no mundo que, por sua vez, é parte relevante de um projeto nacional".

Nesse âmbito, em 2008, é desenvolvida a Estratégia Nacional de Defesa (END), a qual se propõe a formular uma proposta de política para o setor militar que tangencia o setor civil, promovendo interações entre a política econômica e de defesa. A Estratégia sintetiza o pensamento de setores do governo brasileiro, de setores da indústria brasileira, e das Forças Armadas em temas relacionados a questões de segurança e defesa. A Carta do Ministro da Defesa que a apresenta reconhece a necessidade de renovação da frota de caças brasileiros, e confere a esse processo um caráter estratégico, destacando alguns pontos cruciais no sentido de justificar sua importância, como destacamos, e a capacidade de gerar benefícios tecnológicos para toda a sociedade em função da capacidade para reprodução da tecnologia transferida pelos programas militares (END, 2008:22).

Destacam-se na END as propostas relacionadas com a reestruturação da indústria brasileira de material de defesa para que o atendimento das necessidades de equipamento das Forças Armadas apóie-se em tecnologias de controle nacional (END, 2008:03). O controle de tecnologias sensíveis no meio militar representaria mais que uma vantagem estratégica ao país, seria um elemento para a promoção da superação da dependência nacional:

Independência nacional, alcançada pela capacitação tecnológica autônoma, inclusive nos estratégicos setores espacial, cibernético e nuclear. Não é independente quem não tem o domínio das tecnologias sensíveis, tanto para a defesa como para o desenvolvimento (END, 2008:07).

Esse interesse na consolidação de uma capacidade tecnológica nacional para o desenvolvimento independente de material militar é um tema já conhecido nos estudos de economia da defesa. Dagnino (2000), por exemplo, aponta para uma tendência de envolvimento dos militares em assuntos relacionados à pesquisa e desenvolvimento (P&D), e por conta disso:

(...) os militares estão adquirindo crescente influência sobre o processo de planejamento e financiamento do desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro. Como resultado, isto tende a lhes proporcionar um virtual poder de monopólio sobre áreas chave, o que no longo prazo poderá vir a aumentar substancialmente seu poder político (DAGNINO, 2000: 150).

Esse envolvimento dos militares com os programas de P&D e com as políticas públicas para ciência e tecnologia, é uma ação legitimada pela evolução da compreensão da independência tecnológica como um tema de caráter "estratégico" ao país, e por isso justifica a atenção dos militares. Dentro desse argumento estratégico, a END tem como um dos principais objetivos promover a almejada independência tecnológica a partir da revitalização da indústria brasileira de material de defesa. Logo, no que respeita o foco dessa etapa, vale destacar o propósito da END de superar as limitações tecnológicas do Brasil, inclusive para a produção de aeronaves de caça, a partir de parcerias ou compras de tecnologia de empresas estrangeiras. Isso, aliada à percepção de que os aviões de combate brasileiros encontram-se tecnologicamente desatualizados, e com a sua vida útil comprometida:

Dentre todas as preocupações a enfrentar no desenvolvimento da Força Aérea, a que inspira cuidados mais vivos e prementes é a maneira de substituir os atuais aviões de combate no intervalo entre 2015 e 2025, uma vez esgotada a possibilidade de prolongar-lhes a vida por modernização de seus sistemas de armas, de sua aviônica e de partes de sua estrutura e fuselagem (END, 2008:22).

O objetivo seria o desenvolvimento de um caça de uma geração mais moderna, (como exemplo, foram selecionadas aeronaves da geração 4.5) por uma empresa nacional, cujo desenvolvimento geraria benefícios para produções tecnológicas militares de diversas origens, ou, em outras palavras o spin-off (END, 2008:22). A rigor, a compra passaria por duas etapas, na primeira seriam adquiridos em torno de 36 aeronaves, na qual estaria previsto o licenciamento das tecnologias ao comprador, e em uma segunda etapa, (que se caracterizaria como o FX-Br) na produção nacional de 56 aeronaves.

A modernização do efetivo da Força Aérea, então, caminharia em paralelo com a constituição de capacidades tecnológicas para o desenvolvimento de um caça próprio. Esse entendimento que evolui a partir da preocupação com a falta de proteção do espaço aéreo nacional, torna essencial a constituição de capacidades no setor de defesa aérea do país (END, 2008:22). A partir de então os promotores da END compreendem como uma solução ao problema apontado, o desenvolvimento de uma estratégia que envolva tanto a aquisição de uma frota moderna de caças, quanto o desenvolvimento de capacidades tecnológicas internas constituídas através de parcerias com empresas estrangeiras, como apontado a seguir:

O princípio genérico da solução é a rejeição das soluções extremas - simplesmente comprar no mercado internacional um caça "de quinta geração" ou sacrificar a compra para investir na modernização dos aviões existentes, nos projetos de aviões não-tripulados, no desenvolvimento, junto com outro país, do protótipo de um caça tripulado do futuro e na formação maciça de quadros científicos e técnicos. Convém solução híbrida, que providencie o avião de combate dentro do intervalo temporal necessário mas que o faça de maneira a criar condições para a fabricação nacional de caças tripulados avançados (END, 2008:22).

Dessa forma essa solução híbrida se caracterizaria pela dupla orientação: a compra de um modelo de caça que atenda à determinados requisitos, e a partir de então, ou em paralelo, constituir internamente uma capacidade de absorção dessas tecnologias e reprodução de novos caças de forma autônoma, superando a dependência tecnológica desse setor. Nesse contexto vem sendo pensado o Programa FX-2, cuja importância estratégica seria suprir as demandas de segurança - em verdade, as extrapolaria - ao adquirir caças suficientemente potentes para, segundo a END (2008:09), salvaguardar o território nacional a partir da dissuasão, frente a um quadro de degeneração do cenário internacional, ao mesmo tempo em que abre a possibilidade de estimular o desenvolvimento das capacidades tecnológicas nacionais a partir do processo de transferência de tecnologia oriundo da compra internacional.

Portando, o lançamento da END dá fôlego à discussão acerca do Programa FX-2 - uma continuidade do Programa FX, que após sucessivas crises e atrasos foi cancelado e ressurge com a alcunha de FX-2 - que já em outubro de 2008 passava a caminhar para a sua conclusão com a divulgação das aeronaves F-18E Super Hornet, da Boeing, Rafale F3, da Dassault e Gripen NG, da Saab como finalistas do processo licitatório. Em meados de 2009, as empresas enviam então suas propostas oficiais que contêm os preços das aeronaves e uma descrição do pacote de transferência de tecnologia e licenciamento de produtos.

 

2) A TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA E O SPIN-OFF COMO FENOMENOS NÀO NATURAIS E LINEARES

De modo geral, ao observar as propostas dos concorrentes do Programa FX-2, percebe-se que todos incluem uma proposta de transferência de tecnologia, assim como uma garantia de que tais benefícios seriam transferidos do setor militar para o setor civil, ocorrendo, portanto o chamado Spin-off. Dessa forma, o objetivo dessa seção seria apresentar, em primeiro lugar, as principais dificuldades envolvidas em um processo de transferência de tecnologia entre países desenvolvidos e menos desenvolvidos, principalmente no que concerne a tecnologia militar, e em segundo lugar, apresentar o Spin-off como um fenômeno característico de um período histórico em um determinado país, tornando, portanto, o processo previsto pelo Programa FX-2 mais complexo do que se prevê na END.

De inicio, é necessário considerar que há uma clara diferença entre a formação econômica dos países centrais e dos países periféricos, o que reverbera em um claro descompasso entre o dinamismo tecnológico de ambos os países. Logo não se pode afirmar que o processo de transferência de tecnologia, assim como o Spin-off, poderiam ser observadas em condição de igualdade com os países centrais. Assim, serão apresentadas a seguir considerações acerca desses processos aos países em desenvolvimento, em especial, o Brasil.

A) A TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA AOS PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO

A partir da análise das propostas do Programa FX-2, observa-se que todas as empresas incluem uma ampla oferta de transferência de tecnologias tidas como críticas, ou essenciais, com o objetivo de internalizar a capacidade tecnológica para a produção das aeronaves de caça de forma autônoma no Brasil.

Em primeiro lugar, de acordo com o Instituto de Fomento e Coordenação Industrial (IFI), a transferência de tecnologia ocorreria a partir do estabelecimento de um contrato formal entre as partes, a ofertante da tecnologia e a receptora, segundo o qual a primeira se comprometeria a transferir integralmente determinadas tecnologias. Diz-se integralmente, pois o processo de transferência ideal de tecnologia, nesse caso, conferiria ao receptor autonomia para promover alterações na tecnologia adquirida, bem como replicá-la para o desenvolvimento de outros produtos essencialmente semelhantes. Desse modo, uma transferência de tecnologia integral pressupõe a capacitação do receptor para absorvê-la e reproduzi-la, implicando no desenvolvimento de um processo de aprendizado tecnológio.

Dessa forma, o que se observa é a necessidade de constituir um Sistema Nacional de Aprendizado (SNA), aos moldes apresentado por Viotti (1997), o que capacitaria os países em desenvolvimento, como o Brasil a absorver as tecnologias importadas e reproduzi-las, algo que como o próprio autor evidencia, não existe no Brasil. Segundo ele, diferentemente da Coréia do Sul, o país desenvolveu um SNI passivo, incapaz de aprender e reproduzir as tecnologias importadas, o que tem comprometido a sua capacidade de mudança tecnológica.

Em segundo lugar, tendo como premissa que, na verdade, a transferência de tecnologia se configura como uma transação comercial, a tecnologia deve ser tratada, como faz Sábato (1979), como uma mercadoria inserida em um sistema econômico específico oligopolizado, protegido, e imperfeito o que implica em uma estratégia comercial distinta - uma vez que se pressupõe uma ampla desigualdade entre o comprador e o vendedor de tecnologia, o que leva a uma capacidade pífia de negociação, traduzindo-se em contratos desfavoráveis aos países em desenvolvimento (SÁBATO, 1979: 77). Assim, o termo "transferência" de tecnologia designaria, na verdade, um processo de compra e venda de tecnologia entre empresas, e esse seria o principal meio de transferência de tecnologia, seja ela incorporada ou não, o que implica em diversos problemas aos países compradores dessa tecnologia.

Entretanto, conforme é possível observar nos gráficos 1 e 2 abaixo, a transferência de tecnologia observada no Brasil, principalmente a partir dos anos 90, ocorre dentro da lógica de sourcing, ou seja, esteve ancorada na transferência proferida entre empresas multinacionais - e em consonância com a sua estratégia de construção de uma cadeia global de valor.

 

 

 

Em grande medida, o IED realizado nesse período pelas multinacionais se direcionou ao setor de serviços, e em menor grau para a indústria, desmistificando de certa forma o seu papel modernizador na industria. Contudo, o que merece grande destaque, é o fato de que o IED se caracterizou principalmente por fusões e aquisições, como exposto no gráfico 2 abaixo, o que reduz em grande medida os seus impactos econômicos e tecnológicos no Brasil.

 

 

Nesse sentido, se considerarmos os dados apresentados pela Diretoria de Transferência de Tecnologia do INPI, poderemos observar que de todos os Certificados de Averbação por Categoria Contratual entre 2000 e 2009, aquelas referentes à transferências para pesquisa e desenvolvimento foram praticamente nulas, se comparadas com as demais. Isso tudo deixa claro que creditar à transferência de tecnologia o ônus de promover o progresso tecnológico brasileiro não se mostrou algo efetivo.

Em terceiro lugar, há uma especificidade no processo de transferência de tecnologia militar aos países em desenvolvimento. A sua negociação, portanto, se torna muito complexa, no momento em que a mercadoria em questão traria uma vantagem política e econômica extremamente importante ao país que a detivesse. Isso fica claro a partir da apreensão da passagem abaixo, em que se destacam as vantagens dos países detentores da produção tecnológica:

Para os países desenvolvidos, a tecnologia representa um meio de projetar seus interesses industriais e econômicos nos mercados e sistemas dos países em desenvolvimento, tirando vantagem de sua posição de força como fornecedores de moderno know-how tecnológico e fonte de recursos (SINGH, 1975:42).

Assim, o processo de transferência de tecnologia assume uma importância muito grande aos países desenvolvidos, de certa forma, atua como um instrumento extremamente relevante para a promoção de um controle político, econômico e militar das nações centrais. Assim, Moraes (2011) compreende que os países que possuem indústrias bélicas com uma expressiva capacidade produtiva fazem uso da transferências de equipamentos militares, como uma forma de projetar poder sobre os demais países, tornando-a uma ferramenta que apresenta expressivas implicações econômicas e políticas, como o fortalecimento de Estados ou movimentos insurgentes aliados; enfraquecimento relativo de Estados ou movimentos insurgentes inimigos; influencia sobre o curso de uma guerra interestatal ou guerra civil; fortalecimento de uma aliança militar por meio da padronização de equipamentos e conseqüente elevação da interoperabilidade; fortalecimento indesejado e um futuro inimigo; perda de um aliado por recusa a um fornecimento de armas. Dessa forma, não se pode afirmar que as tecnologias previstas pelo FX-2 serão integralmente transferidas ao Brasil, pois elas são de uma importância estratégica tremenda, assim como garantem o status quo dos países centrais.

O esforço dessa seção foi de ressaltar a existência de uma complexidade intrínseca ao processo de transferência de tecnologia dos países desenvolvidos aos menos desenvolvidos. Essa complexidade está calcada em tres pontos: em primeiro lugar, na manifestação transferência de tecnologias ao Brasil nos últimos anos, através de IED por parte das empresas multinacionais, o que limita muito a capacidade de transferência, tornando reféns de suas estratégias comerciais e produtivas as empresas nacionais. Em seguida, manifesta-se na inexistência de um SNA ativo, capaz de permitir ao país absorver as tecnologias transferidas de forma integral. Por fim, a especificidade da tecnologia militar garante ao seu detentor um status militar e político-econômico superior aos demais e, portanto, a sua transferência estaria condicionada a uma série de determinantes políticos e conjunturais, e sua reprodução sempre suscetível a anuência dos países produtores.

B) O SPIN-OFF COMO UM FENOMENO ESPECÍFICO DE ECONOMIAS CENTRAIS

O Spin-off seria a transferência dos desenvolvimentos tecnológicos, ou inovações, obtidos na indústria militar nos períodos de paz, para as industrias civis, apenas em situações em que a P&D industrial tenha sido, por várias décadas, pesadamente influenciada pelos militares (TREBILCOCK, 1969:475-6). O debate acerca do termo Spin-off passou por diversas fases de discussão e entendimento ao longo do tempo, constituindo assim, uma linha evolutiva do pensamento acerca do tema, a qual abarca diversos autores e estudos históricos de diferentes períodos. Grande parte desses estudos se origina a partir do final da Segunda Guerra Mundial, momento em que ocorre um considerável aumento do gasto militar estadunidense - o qual condiciona a política de Ciência e Tecnologia em favor da satisfação das demandas específicas do setor militar - se estendendo com igual relevância até os dias atuais, ainda que com diferentes enfoques, como o entendimento de efeitos como o de Spin-in, ou mesmo de tecnologias de uso dual.

Observa-se que a Idéia de Spin-off se fortaleceu com o surgimento do Complexo Militar Industrial (CMI), sendo sustentada por muito tempo como argumento para o alto gasto militar em P&D, nos EUA. De fato, a corrida armamentista da Guerra Fria evolui de uma busca por aumento de poder de destruição, para uma constante busca por uma liderança científico-tecnológica (KALDOR, 1982). Desenvolve-se, assim, uma racionalidade em torno da idéia do Spin-off sustentada por muito tempo, quando passam a surgir trabalhos que contestam o suposto de "naturalidade" do fenômeno, ou seja, de que ele ocorreria de forma automática na economia. Esse questionamento chega ao seu auge em meados dos anos 80, quando os resultados do excessivo gasto militar nos EUA não se traduziam em benefícios economicos de modo geral para o país.

Contudo, não se pode afirmar que o mesmo efeito possa acontecer de forma "natural" em uma economia como a brasileira, por diversos motivos que podem aqui ser discriminados: i) O reduzido gasto militar no Brasil, como pode ser observado no Gráfico 2, principalmente no que diz respeito à Pesquisa e Desenvolvimento no setor; ii) A inexistência de uma estrutura institucional semelhante ao CMI estadunidense, ou mesmo aos moldes de um Sistema Nacional de Inovação conforme apresentado por Nelson (1993), capaz de estimular o desenvolvimento de inovações no setor, e transbordamentos para os demais setores da economia; iii) A inexistência de uma cultura de inovação dos empresários nacionais, expressa principalmente na Pesquisa de Inovação Tecnológica de 2000 (PINTEC) do IBGE, a partir da qual observa que apenas 1/3 das empresas industriais no país introduziu algum tipo de inovação nos anos que vão de 1998 à 2000.

Portanto, sem uma estrutura que favoreça o desenvolvimento nacional de novas tecnologias, e facilite o fluxo de informações, bem como, o estabelecimento de relações bastante consolidadas entre os atores do sistema, será bastante baixa a capacidade de os benefícios tecnológicos desenvolvidos por um setor transbordem para outros setores da economia. Dessa forma, o Programa FX-2, em verdade, teria pouco impacto sobre essas estruturas, e muito pouca influencia sobre o desenvolvimento tecnológico "autônomo" brasileiro.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Toda a argumentação exposta no trabalho apresenta a idéia de que há uma clara desconexão entre os propósitos da END, do FX-2 e a realidade econômica e a estrutura tecnológica existente no país. Isso porque, apesar do Programa FX-2 apresentar uma importância estratégia para as Forças Armadas brasileiras, ele é, senão ingênuo em suas premissas e objetivos, pelo menos, incoerente e incompleto em seu planejamento. Considerando que a superação dos problemas estruturais que permeiam a condição periférica do país e, por conseguinte, a sua capacidade de produção tecnológica, dificilmente se daria por meio da mera aquisição de novas tecnologias de origem militar, a simples injeção de recursos para a reprodução desse tipo de tecnologia dificilmente estimularia o desenvolvimento econômico, e a modernização das empresas do país - ainda que se considere que apenas esses elementos seriam capazes de solucionar os reais problemas econômicos nacionais.

Ademais, no que concerne o planejamento do Programa FX-2, observa-se que ele não se relaciona de fato com demais programas de C&T no Brasil, não prevê - pelo menos a priori, ou documentado - nenhuma política de inclusão de universidades, criação de laboratórios de pesquisa, e mesmo, não se vincula a nenhuma estratégia mais ampla de PC&T que o acompanhe e corrija as deficiências e incoerências das estruturas nacionais de P&D, tornando-se um Programa bastante alheio à realidade nacional.

Essa alienação do Programa FX-2 manifesta-se, conforme observamos, principalmente em dois momentos. Em primeiro lugar, observamos que a Estratégia Nacional de Defesa mantém uma íntima relação ao Programa FX-2, o qual se apresentaria como uma política capaz de permitir a autonomia tecnológica brasileira a partir da internalização da produção das tecnologias transferidas pelas empresas estrangeiras. Nesse sentido, a END não se firma como uma diretriz estratégica de fato, pois não prevê articulação entre diversas políticas, e tão pouco, a constituição de uma estrutura que auxilie o processo de desenvolvimento tecnológico nacional. Em segundo lugar, a possibilidade de propagação dessas tecnologias transferidas do setor militar para os demais setores da economia é bastante remota, uma vez que o fluxo de informações do "incompleto" sistema de inovações existente não permitiria um contato estreito entre os agentes do sistema, como universidades, empresas e agencias publicas.

A considerar o que foi discutido e concluído por esse trabalho, todo o processo no entorno do Programa FX-2 pode ser considerado uma proposta de política pouco impactante para a economia brasileira como um todo, pois tanto a absorção das tecnologias a partir da transferência, como o seu transbordamento ou spin-off ficam comprometidos a partir de um sistema nacional de aprendizado passivo (VIOTTI, 1997), ou mesmo de um sistema de inovações incompleto (ALBUQUERQUE, 1996). Para que o programa de fato se apresentasse como um elemento de transformação da dinâmica tecnológica nacional, fazia-se necessária, ao menos, a elaboração em paralelo uma política específica para a ciência e tecnologia, que envolvesse tanto investimentos financeiros como planejamentos direcionados para a promoção da pesquisa no país, assim como estímulos à inovação e difusão das tecnologias entre empresas e demais agentes capazes de difundir e operar o conhecimento adquirido.

 

REFERENCIAS

ALBUQUERQUE, E. da M. e. "Sistema Nacional de Inovaçao no Brasil: uma análise introdutória a partir de dados disponíveis sobre a ciência e tecnologia". In: Revista de Economia Política, vol 16, n. 3, 1996

BASTOS, Expedito, C. S. "Programa FX: A Força Aérea brasileira rumo ao século XXI". In: Tecnologia Militar. N. 1, Ano 24, 2002. Disponível em: <http://www.defesanet.com.br/noticia/fab/seculoxxi.htm> Acesso em: 21/01/2010.

BENOIT, E "Defence and Economic Growth in Developing Countries". Lexington, 1973.

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DAGNINO, Renato Peixoto. "A indústria de armamentos: o Estado e a Tecnologia". Revista Brasileira de Tecnologia, Brasília, 1983.

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VIOTTI, E.B. "Passive and Active National Learning Systems". New York: The New School for Social Research, 1997.

 

 

* Artigo apresentado no painel "Tecnologia Militar e Indústria Bélica: experiências internacionais e o caso brasileiro" do IPEA, por ocasião do Encontro Nacional da "Associação Brasileira de Relações Internacionais " (ABRI).