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3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

A interação entre a política interna e a política externa: a teoria dos jogos de dois níveis e os temas sociais na política externa brasileira

 

 

Alexandre de Oliveira KappaunI; Vanessa Cristina dos SantosII

IMestrando em Relações Internacionais, PPGRI-UERJ. Bolsista Capes
IIMestre em Teoria Econômica, UEM. Professora e Coordenadora do Curso de Economia, CCSA-UCP

 

 


RESUMO

O trabalho aqui proposto pretende discutir a interação entre a política interna e a política externa, a partir da teoria dos jogos de dois níveis, formulada por Robert Putnam. Para tal fim, junto com uma discussão de ordem mais teórica sobre a relação entre as políticas externa e interna, será analisada a inclusão dos temas sociais, na política externa brasileira, durante a década de 1990, também conhecida como década das conferências, em função das diversas conferências e cúpulas sobre temas globais, que aconteceram, na ocasião, sob a égide da Organização das Nações Unidas (ONU). Na primeira parte, será discutido o contexto geral das relações internacionais e do debate sobre política externa, sobretudo depois das transformações no contexto internacional causadas pelo fenômeno da globalização e o fim da Guerra Fria. Em seguida, a discussão se voltará para a teoria dos jogos de dois níveis de Putnam, seus pressupostos teóricos e sua inovação metodológica. Por fim, examinar-se-á a interação entre as políticas interna e externa brasileiras, durante a década das conferências da ONU.

Palavras-chaves: Política Externa Brasileira; Temas Sociais; PUTNAM, Robert


 

 

Contexto Geral e Debates

Na apresentação do livro Temas de Política Externa Brasileira, Gelson Fonseca (1989) afirma que haveria três principais diretrizes gerais da política externa brasileira, desde os tempos do Barão do Rio Branco: as relações com os Estados Unidos e com a América Latina e o papel que o Brasil viria a representar, num futuro próximo, dentro do cenário internacional (FONSECA, 1989, p. 277). Em termos práticos, talvez possa se dizer que os dois primeiros - o relacionamento com os EUA e a América Latina - tomaram conta do debate a respeito de política externa, no Brasil, durante a maior parte do século XX. A terceira diretriz - acerca do futuro papel do Brasil no mundo - só passa a merecer um destaque mais efetivo, a partir do início dos anos 1990, com o final da Guerra Fria, sobretudo, mais recentemente, com o reconhecimento internacional da ascensão do Brasil ao patamar de potência média.

Na verdade, tal ascensão se dá em um momento de profundas transformações e grandes potencialidades, tanto no contexto internacional, quanto no quadro da política interna brasileira. Externamente, tem-se, não apenas o fim da Guerra Fria, com o fim do socialismo real e o colapso da antiga União Soviética, mas também os avanços tecnológicos, sobretudo nos meios de comunicação e transporte, que tem caracterizado a atual fase do processo de globalização. Internamente, o Brasil vivenciou o fim de sua ditadura militar e o processo de abertura democrática. É importante notar que houve um entrelaçamento entre o externo e o interno. O fim da Guerra Fria e do socialismo real, por exemplo, propiciaram um ambiente mais favorável ao fim das ditaduras militares e à adoção de regimes democráticos liberais, por quase toda a América Latina, incluindo o Brasil e em muitas outras partes do mundo, em um processo que o cientista político norte-americano, Francis Fukuyama (1992), chamou de o "Fim da História". A globalização científico-tecnológica, por sua vez, tornou viável o surgimento de uma incipiente sociedade civil planetária, dando origem ao debate acerca de uma possível "cidadania mundial", que estaria surgindo, atualmente, para ampliar o conceito tradicional de "cidadania estatal" (HEATER, 2002).

A expansão dos regimes democráticos liberais pelo mundo afora reavivou o interesse pelo debate a respeito da relação entre democracia e política externa. Realistas e neorrealistas defendem a tese do Estado como ator unitário no cenário internacional e, portanto, no mínimo avesso às implicações que a ideia democrática acarreta para as relações internacionais. Para esses autores haveria uma distinção qualitativa fundamental entre estas duas esferas da política, a interna e a externa. Uma estaria sujeita aos ditames democráticos, a outra, não. Esta linha de pensamento teria origem na tese defendida por Tocqueville, em A democracia na América, de que, em política externa, as democracias seriam mais propensas a agir por impulso, ao invés de prudência, do que os regimes mais centralizados, devido à contínua invasão da política interna, na externa e da necessidade de se responder aos anseios da opinião pública (EVANS; NEWHAM, 1998, p. 119). Tal visão de mundo fez com que, até bem recentemente:

[...] na maioria das democracias ocidentais, incluindo Estados Unidos e Reino Unido, arranjos constitucionais virtualmente sempre alocassem maior peso, na balança da conduta da política externa, ao executivo, em detrimento de outros ramos do governo, precisamente devido a um reconhecimento do problema enunciado por Tocqueville. Dessa forma, nos Estados Unidos, a presidência é quase sempre "imperial" e no Reino Unido, o parlamento tem um papel decididamente menor do que o do gabinete e o do Foreign and Commonwealth Office. (EVANS; NEWHAN, 1998, p. 120, tradução nossa).1

O mesmo acontecia no caso brasileiro, onde, durante a maior parte do século XX, a política externa do país ficou confinada ao poder executivo, mais especificamente aos quadros do Itamaraty, sem que houvesse o hábito de que a mesma fosse debatida, nem pela sociedade, nem pelas outras esferas do poder político. Tudo isso, ao menos durante o período da Guerra Fria, tornou a hipótese de Tocqueville quase que uma profecia auto-realizável.

O outro lado deste debate sobre política externa e democracia é ocupado pelos defensores da tese kantiana da "paz democrática". Segundo esta, as democracias liberais seriam mais "amantes da paz do que os outros tipos de sistemas e políticos e raramente, quando muito, guerreiam entre si"2 (EVANS; NEWHAM, 1998, p. 119, tradução nossa). Na atualidade, o argumento da "paz democrática" aparece defendido exemplarmente no trabalho de Michael Doyle (1983a, 1983b), onde o autor não apenas desenvolve o seu argumento acerca da importância do Tratado da paz perpétua, de Kant, para a teoria das Relações Internacionais, como também apresenta e analisa dados que comprovariam, empiricamente, a tese kantiana (DOYLE, 1983a, 1983b). Diferentemente dos realistas e neorrealistas, os defensores da posição kantiana

[...] avançaram no sentido da derrubada de barreiras e do abandono do que podia subsistir do dogma hobbesiano segundo o qual teria havido uma diferença de natureza entre os "assuntos de fora" e os de "dentro". (MILZA, 1996, p. 367).

O que, principalmente no caso dos regimes democráticos liberais, tornaria mais complexo o enquadramento teórico, deslegitimando a tese do Estado como ator unitário, devido à interação e ao embate entre os diversos interesses e opiniões representados no processo democrático. No caso do Brasil, como em muitos outros países, diversos atores, tanto no âmbito governamental, quanto no da sociedade civil de maneira geral, tem se somado aos tradicionais - presidência da república e Itamaraty - nos debates acerca dos rumos da política externa brasileira.

Tudo isso acarreta profundas implicações teórico-metodológicas para as análises de política externa. Em primeiro lugar, a "derrubada de barreiras" entre os "assuntos de fora" e os de "dentro", conforme enunciado acima, abala profundamente a hipótese realista e neorrealista de que, em questões de política externa e de relações internacionais, as diferenças de sistema político interno não teriam tanta importância na discussão sobre política externa, já que a lógica da interação entre os Estados, internacionalmente, estaria ligada às características anárquicas do sistema internacional. De acordo com Pierre Milza (1996, p. 367), os

[...] julgamentos diversos segundo a natureza das sociedades e dos regimes políticos interessados, já que a estanqueidade das barreiras entre o interior e o exterior - por menos que essas noções ainda tenham um sentido no momento atual - não é a mesma numa democracia parlamentar e pluralista, sujeita às flutuações do sentimento público, e num Estado autoritário ou totalitário.

Dentre os enfoques teóricos desenvolvidos para lidar com as interações entre o externo e o interno, no interior dos regimes democráticos liberais, uma das formulações mais elegantes e com o potencial de melhores resultados analíticos é a teoria dos jogos de dois níveis, do cientista político norte-americano, Robert Putnam.

 

Teoria dos Jogos de Dois Níveis

A teoria em questão debruça-se sobre o "emaranhamento"3 entre as políticas interna e externa, procurando explicá-lo. A preocupação básica não debater se é a política interna que influencia as relações internacionais ou o inverso. Na verdade, o que realmente ocorre, segundo Putnam, é que ambas se constituem mutuamente, uma determinando a outra e vice-versa. O importante seria determinar "quando" e "como" isso acontece.

A pesquisa do cientista político sugere que, nos processos de negociações internacionais: primeiro, comumente são adotadas políticas diferentes daquelas que os governos chaves teriam adotado isoladamente; e, segundos, os acordos só são possíveis porque uma minoria poderosa, dentro de cada governo, defende, internamente, a política sendo demandada externamente (PUTNAM, 1988, p. 428). Restaria, então, saber "como" e "quando" funcionaria esse processo. É importante ressaltar que, ao contrário da análise de autores realistas e neorrealistas, que acabam desenvolvendo um argumento apolítico, onde os sistemas e os processos políticos não têm tanta importância, Putnam (1988, p. 432, tradução nossa) defende que:

Uma apreciação mais adequada dos determinantes internos da política externa e das relações internacionais deve enfatizar a política: partidos, classes sociais, grupos de interesse (tanto econômico como não-econômico), legisladores e, até mesmo, a opinião pública e as eleições, e não apenas os funcionários executivos e os arranjos institucionais.4

O autor defende que se abra e se examine aquilo que os teóricos realistas e neo-realistas chamam de "caixa-preta" do Estado. Ou seja, que se olhe o Estado a partir de suas forças constitutivas e não como se ele fosse um ator unitário, agindo apenas a partir de uma racionalidade econômica de análise de custos e benefícios. Deve-se tratar o Estado "como um nome plural: não 'o Estado, ele/ela...', mas 'o Estado, eles/elas..." (PUTNAM, 1988, p. 432, tradução nossa).5

Tendo em vista toda essa complexificação das políticas interna e internacional, deve-se ir além da simples constatação que a política interna influencia a política externa e vice-versa, em busca de formulações teóricas que integrem essas duas esferas e expliquem o "emaranhamento" entre elas. Em muitas negociações internacionais, então, a política pode ser definida como um jogo de dois níveis (PUTNAM, 1988, p. 434). Internamente, há, de um lado, diversos grupos de interesse que lutam para ver suas demandas atendidas e, de outro, os políticos, que procuram o poder, construindo coalizões e tentando atender alguns desses interesses. Externamente, os governos buscam aumentar suas capacidades de atender às pressões domésticas, ao mesmo tempo em que tentam minimizar os efeitos danosos do quadro internacional. Vale a pena transcrever a explicação de Putnam (1988, p. 434, tradução nossa) em toda sua extensão:

Cada líder político nacional aparece nos dois tabuleiros. Do outro lado da mesa internacional, sentam os seus equivalentes estrangeiros e, ao seu lado, seus diplomatas e conselheiros internacionais. Em volta do tabuleiro interno, atrás dele, sentam o partido e seus parlamentares, porta-vozes das agências domésticas, representantes de grupos de interesse chaves e os conselheiros políticos do próprio líder. A complexidade inusitada deste jogo de dois níveis é que os movimentos que são racionais para um jogador em um tabuleiro (como aumentar as tarifas energéticas, conceder território ou limitar a importação de automóveis) podem ser imprudentes para o mesmo jogador, no outro tabuleiro. Apesar disso, há grandes incentivos para que haja consistência entre os dois jogos.6

O objetivo, então, seria o de encontrar uma mesma jogada que pudesse satisfazer a racionalidade de ambos os tabuleiros, o interno e o externo, maximizando as capacidades e minimizando os prejuízos. Para poder analisar os jogos de dois níveis, Putnam formula um método de análise baseado em teoria dos jogos. Contudo, no estudo de caso a seguir, discutido de forma preliminar, utilizar-se-á apenas a lógica descritiva da teoria dos dois jogos de Putnam, sem que se chegue a uma utilização mais elaborada dos modelos de teoria de jogos discutidos pelo autor, o que demandaria um estudo mais avançado sobre o assunto, ficando muito além dos objetivos aqui propostos.

 

Estudo de Caso

A assim chamada década das conferências da ONU foi impulsionada, ainda em meados dos anos 1980, pelas mudanças provocadas no Bloco do Leste, durante o período Gorbachev. Na ocasião, já se apontava no horizonte imediato a superação dos conflitos da Guerra Fria. Ademais, acontecia uma "onda democratizante", levando a que "novos temas" e "novos atores" ganhassem destaque, no cenário internacional. Em virtude desses fatores, começaram a ser organizadas, a partir da Assembleia Geral da ONU, uma série de conferências e cúpulas internacionais, para a década seguinte, durante as quais seriam discutidos temas que começavam, então, a ganhar relevo na política internacional (ALVES, 2001, p. 31).

Quanto à denominação de "novos temas" Embaixador José Augusto Lindgren Alves (2001, p. 43), presente a diversas dessas conferências, ressalta que:

Em 1990, os temas globais ainda eram chamados de "novos temas" na agenda internacional. A expressão se aplicava a algumas questões que não eram novas, mas vinham recebendo atenção renovada desde o início da distensão Leste-Oeste, na segunda metade dos anos 80, como o controle de armamentos, o narcotráfico, o meio ambiente e os direitos humanos. Envolvia, por outro lado, assuntos de definição imprecisa, como a democracia e o terrorismo, ou de natureza polêmica, como a prestação de auxílio humanitário externo às vítimas de conflitos civis contra a vontade do governo dominante.

Estes eram os temas no tabuleiro do jogo internacional durante a década das conferências: controle de armamentos, narcotráfico, meio ambiente e direitos humanos, de modo geral. Temas que eram vistos, de um lado, com entusiasmo, por ONGs e países desenvolvidos e, de outro, com desconfiança, pelos governos dos países em desenvolvimento, em função de uma ameaça à soberania nacional destes últimos, advinda de uma suposta "ingerência humanitária", organizada pelos primeiros (ALVES, 2001, p. 43). A qualificação de "novos temas" seria muito mais uma consequência de uma mudança de ênfase dos temas em discussão, do que o surgimento de verdadeiros "temas novos", na acepção da palavra. Na verdade, embora se introduzissem novos elementos, nas discussões, como os conceitos de gênero e raça, tais elementos eram introduzidos em um debate já existente, como o dos direitos humanos.

Algo semelhante poder-se-ia dizer com relação ao conceito de "novos atores". Empresas multinacionais, Organizações não-Governamentais (ONGs) internacionais e organizações intergovernamentais (OIs) não eram algo, tão novo assim, no cenário internacional. De acordo com o professor Williams Gonçalves (2002, p. 13), ONGs e OIs já seriam atores internacionais, desde o século XIX, e as empresas, ou corporações, multinacionais seriam "um produto do capitalismo do pós-Segunda Guerra Mundial". Mais uma vez aqui, a expressão "novos atores" é muito mais uma questão de ênfase do que realmente de "novidade", já que, com a globalização e o fim da Guerra Fria, estes "novos atores" começaram a ganhar um maior destaque na política internacional. Sendo assim, agora, os jogadores no tabuleiro internacional seriam os Estados, as ONGs, as OIs e as empresas multinacionais. Durante as conferências, além das discussões oficiais, das quais os representantes dos diversos governos e seus assessores participavam, ocorriam eventos paralelos, onde membros de ONGs e diversos representantes de uma incipiente sociedade civil internacional debatiam os temas, na tentativa, muitas vezes com sucesso, de influenciar ou auxiliar o debate oficial entre representantes estatais.

Com relação ao tabuleiro doméstico, no caso brasileiro, o Estado vinha adquirindo esta característica plural, desde 1985, com o final da ditadura militar, e 1988, com a promulgação da atual Constituição Federal, mas, sobretudo, a partir da crise do impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello, em 1991. A crise do governo Collor abriu espaço para que o poder legislativo, lobbies militares, empresários e políticos e sociedade civil brasileira - através de suas Organizações não-Governamentais - passassem a ter um papel mais ativo na discussão da política externa brasileira. Conforme colocaram as professoras Mônica Hirst e Letícia Pinheiro (1995, p. 8), houve uma "politização de temas da agenda externa, ampliando notavelmente o escopo do debate interno sobre os mesmos". Um dos efeitos desse processo foi, ainda segundo as duas autoras: uma ampliação da "preocupação em torno de temas como o meio ambiente e direitos humanos". Tal fato demonstra, não apenas a introdução de novos atores, no debate interno, sobre a política externa, no Brasil, mas também a mudança de ênfase com relação a alguns dos temas da agenda externa, como vinha acontecendo no tabuleiro externo.

É interessante notar que nem todos os temas em discussão eram especificamente sociais, como a questão do meio ambiente, mas acabaram adquirindo um víeis social, quando da sua discussão, durante as conferências e cúpulas da década de 1990.

No caso do meio ambiente, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro, junho de 1992) adquiriu sua conotação social, com a utilização do conceito de "desenvolvimento sustentável", que tenta equacionar preservação do meio ambiente e desenvolvimento socioeconômico. Algumas das conferências, com temas mais especificamente sociais, foram as que seguem:

a) Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em setembro de 1994;
b) Cúpula Mundial sobre o Desenvolvimento Social, realizada em Copenhague, em março de 1995;
c) IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim (Beijing), em setembro de 1995;
d) Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (Habitat-II), havida em Istambul, em junho de 1996. (ALVES, 2001, p. 37).

Além dessas, é importante enfatizar a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos (Viena, junho de 1993), que foi um verdadeiro "divisor de águas [...], o elo que estabeleceu a ponte entre todos esses eventos maiores da diplomacia multilateral nos anos 90" (ALVES, 2001, p. 37). Foi ela quem conferiu o viés social que seria adotado nas demais conferências durante a década.

De acordo com o relato do Embaixador José Augusto Lindgren Alves (2001, p. 143), a preparação e a participação do Brasil, nessas conferências e cúpulas internacionais da ONU, demonstraram "a consolidação do processo de aproximação entre o Governo e a sociedade civil na busca de objetivos comuns". A preparação do Brasil, nessas conferências, seguiu a um padrão que tentava envolver a todos os atores interessados nos temas em discussão. Além do Itamaraty, buscava-se envolver outros ministérios e agências públicas, o poder legislativo, o mundo acadêmico e as ONGs interessadas. Eram promovidos seminários e conferências abertas a todos esses atores, onde as questões eram debatidas exaustivamente. Em alguns casos, estudos e relatórios sobre o assunto eram encomendados, a especialistas, pelo governo, de acordo com as recomendações da ONU. Além desses estudos e relatórios oficiais, as delegações brasileiras eram compostas, por diplomatas e representantes do Poder Executivo e por representantes de todos os atores envolvidos, conforme especificado anteriormente. Nessas delegações, não apenas havia pessoas que participariam das reuniões oficiais, mas também aqueles e aquelas que participariam dos eventos paralelos.

O jogo, no tabuleiro interno, servia para consolidar internamente a democracia brasileira, a partir da aproximação entre o Governo e a sociedade civil e dava, no tabuleiro externo, uma posição mais bem fundamentada e fortalecida, ao Governo brasileiro, em sua negociação com os demais governos. Concomitantemente, o jogo, no tabuleiro externo, reforçava, internamente, a posição do Governo e do novo regime democrático brasileiro pós-1985. Ou seja, de acordo com a descrição de Putnam dos jogos de dois níveis, o "emaranhamento" entre as políticas interna e externa serviu para minimizar dos danos e maximizar as capacidades do Governo brasileiro, tanto interna quanto externamente.

 

Considerações Finais

Tendo discutido a interação entre as políticas interna e externa, a partir da teoria dos jogos de dois níveis de Robert Putnam, o presente trabalho procurou aplicar essa teoria no exame da atuação brasileira, nas conferências e cúpulas internacionais da ONU, durante a década de 1990. Embora este estudo tenha tido um caráter preliminar, não tendo utilizado os modelos de teoria de jogos desenvolvidos por Putnam, ficou demonstrado que há um grande potencial em se utilizar tal formulação teórica, para analisar o "emaranhamento" entre as políticas interna e externa, nas democracias liberais. O amplo diálogo entre os diversos setores do Estado e da sociedade civil, internamente, o do Estado, com outros Estados, externamente, acaba criando duas mesas de negociações, ou dois jogos, que devem ser abordados simultaneamente, pelo governo, na tentativa de maximizar suas capacidades e minimizar seus prejuízos. Tal foi o que ocorreu, no caso brasileiro, em relação aos temas sociais da agenda externa, durante a década das conferências.

 

REFERÊNCIAS

ALVES, José Augusto Lindgren. Relações Internaionais e temas sociais: a década das conferências. Brasília: IBRI, 2001.

DOYLE, Michael W. Kant, liberal legacies, and foreign affairs, Part I. Philosophy and Public Affairs vol.12, n.3, Summer, 1983a.

______. Kant, liberal legacies, and foreign affairs, Part II. Philosophy and Public Affairs vol.12, n.4, Autumn, 1983b.

EVANS, Graham; NEWHAM, Jeffrey. Democracy and foreign affairs. In: ______. The Penguin dictionary of International Relations. Londres: Penguin Books, 1998.

FONSECA Jr., Gelson. Estudos sobre política externa no Brasil: os tempos recentes (1950-1980). In: FONSECA Jr., Gelson; LEÃO, Carneiro (Org.). Temas de política externa brasileira. Brasília: Funag/Ipri-Ática, 1989.

FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

GONÇALVES, Williams. Relações Internacionais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

HEATER, Derek. World citizenship: cosmoplitan thinking and its opponents. Londres: Continuum, 2002.

HIRST, Mônica; PINHEIRO, Letícia. A política externa do Brasil em dois tempos. Revista Brasileira de Política Internacional, ano 38, n.1, Brasília, 1995.

MILZA, Pierre. Política interna e política externa. In:RÉMOND, René (org.). Por uma História Política. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

PUTNAM. Robert D. Diplomacy and domestic politics: the logic of the two-level games. In: International Organization, vol. 42, n.3, Summer, 1988.

 

 

1. O texto em língua estrangeira é: "in most Western democracies including the US and the UK, constitutional arrangements virtually always allocate the balance of advantage in foreign policy conduct to the executive over other branches of government precisely because of an awareness of the Tocqueville problem. Thus, in the USA the Presidency is almost always 'imperial' and in the UK, Parliament plays a decidedly inferior role to the Cabinet and the Foreign and Commonwealth Office".
2. O texto em língua estrangeira é: "peace-loving than other kinds of political systems and seldom, if ever, go to war against one another".
3. O termo em língua estrangeira é: "entanglement".
4. O texto em língua estrangeira é: "A more adequate account of the domestic determinants of foreign policy and international relations must stress politics: parties, social classes, interest groups (both economic and noneconomic), legislators, and even public opinion and elections, not simply executive officials and institutional arrangements".
5. O texto em língua estrangeira é: "as a plural noun: not 'the state, it...' but 'the state, they...'".
6. O texto em língua estrangeira é: "Each national political leader appears at both game boards. Across the international table sit his foreign counterparts, and at his elbows sit diplomats and other international advisors. Around the domestic table behind him sit party and parliamentary figures, spokespersons for domestic agencies, representatives of key interest groups, and the leader's own political advisors. The unusual complexity of this two-level game is that moves that are rational for a player at one board (such as raising energy prices, conceding territory, or limiting auto imports) may be impolitic for that same player at the other board. Nevertheless, there are powerful incentives for consistency between the two games".