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Print ISBN 2236-7381

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Os movimentos sociais transnacionais sob a perspectiva da teoria crítica de Robert Cox - movimento contra hegemônico na era da globalização

 

 

Ana Cecília da Costa Silva CoelhoI; Renata Guimarães ReynaldoII

IMestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: acecoelho@uol.com.br
IIMestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: renatareynaldo@gmail.com

 

 


RESUMO

No atual contexto mundial, a globalização, tendo sido pano de fundo do neoliberalismo, induziu o surgimento de uma ordem mundial comandada pelo lucro, na qual as preocupações sociais são relegadas a segundo plano. Assim, se por um lado na política internacional predominam os interesses dos Estados mais poderosos em sua busca - ainda que velada - por riqueza e poder, por outro, as corporações transnacionais ditam as regras da economia mundial baseadas simplesmente pelas leis de oferta e demanda. Diante deste cenário de crise, os movimentos sociais, utilizando-se também dos instrumentos fornecidos pela revolução-tecnológica, adquiriram novas proporções disseminando-se por todos os cantos do mundo em lutas que ultrapassam as fronteiras geográficas e representam a insatisfação e a mobilização dos indivíduos diante de causas comuns. O objetivo do presente artigo consiste em analisar, sob a perspectiva da teoria crítica de Robert Cox, o potencial contra-hegemônico dos movimentos sociais transnacionais diante da ordem mundial vigente e questionar sua possibilidade de alterar a estrutura de poder dominante a partir das forças oriundas da sociedade civil global e de influenciar na formação de regimes internacionais mais democráticos.

Palavras-chave: Movimentos Sociais, Teoria Crítica, Globalização


 

 

1. Sociedade Internacional Contemporânea

Na segunda metade do séc. XX e início do século XXI, observa-se o deslocamento do antigo sistema anárquico internacional para um mundo multipolarizado e interdependente, composto por várias coletividades dispostas à cooperação e integração num sistema internacional mais integrado e institucionalmente regulamentado.

As relações de interdependência e fluxos acima das fronteiras nacionais se intensificaram a partir da segunda guerra mundial, criando-se cada vez mais entre as sociedades múltiplos canais de comunicação.

Um dos elementos que contribuiu enormemente para esta nova configuração da sociedade internacional foi o surgimento de novos atores internacionais. Portanto, falar em sociedade internacional contemporânea requer considerar elementos de conformação histórica do processo de amadurecimento da interação entre os atores1 que compõem essa sociedade.

Os atores passaram então a contribuir na articulação de políticas comuns, realização de acordos e regimes técnicos, constituição de redes de cooperação em vários âmbitos, aumento dos fluxos de comércio e financeiros, dando início à conformação da sociedade internacional contemporânea (BEDIN, 2001)

Outro aspecto importante que deve ser considerado é o fato de a sociedade atual estar ligada na forma de rede. Oliveira aponta que a delimitação geográfica não é um fato que determina a conexão entre atores.

O mundo globalizado deixa de ser espacialmente delimitado. Todos os eventos e fatos nele produzidos afetam todo o Planeta, o que leva à necessidade de reorganizar o eixo-local global, podendo a globalização significar um processo que "produz as conexões e os espaços transnacionais e sociais, que revalorizam culturas e põem em cena terceiras culturais, onde globalização significa negação do Estado mundial, ou melhor dizendo, sociedade mundial sem Estado mundial, sem governo mundial, sem poder hegemônico, sem regime político (OLIVEIRA, 2004, p. 477).

A globalização, tanto quanto o surgimento de novos atores internacionais e a interdependência, foi fundamental para a crescente complexidade das relações internacionais, transformando o planeta em território de todos. As fronteiras se relativizaram, os meios de comunicação, transporte, produção e consumo se agilizaram universalmente, consolidando-se uma nova etapa de desenvolvimento da humanidade, que redefine noções de tempo e espaço e configura uma grande mudança histórica na humanidade (BEDIN, 2001)

Para Oliveira, as principais dimensões do processo da sociedade global, em rede da globalização são (i) os avanços tecnológicos: materiais produzidos em laboratórios, não mais retirados da natureza, ou seja, houve uma independência da disposição de riquezas para gerar tecnologia; (ii) a rede de comunicação instantânea; (iii) as informações instantâneas: poder da imagem em escala mundial; idioma global; o inglês é a língua do computador, da mídia, da ciência; (iv) a internacionalização do capital financeiro: lucro pode ser maior na movimentação financeira do que na produção; (v) a mudança na divisão do trabalho e no modo de produção e (vi) a debilidade do Estado-nacional como centro de poder absoluto (OLIVEIRA, 2004, p. 478).

O fenômeno global que observamos atualmente pode ser historicamente situado, no entender de Giovanni Olsson, a partir do recente e importante avanço tecnológico nas comunicações e informática, tendo como pano de fundo o modo de produção capitalista e sua busca por expansão. Enquanto a busca pela superação de dificuldades nas comunicações, transporte e processamento de dados em larga escala motivou os investimentos em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias de telemática, os avanços daí decorrentes realimentaram e impulsionaram a expansão do capitalismo, principalmente do capital financeiro, para locais cada vez mais distantes e em tempos cada vez mais curtos (OLSSON, 2003).

Sob esta perspectiva, o processo de globalização apresenta termo inicial recente, sendo ainda inegável a relação do fenômeno com a expansão do modo de produção capitalista, iniciado com o intuito de maximização de lucro.

A revolução tecnológico-informacional e a reestruturação do capitalismo fizeram surgir uma nova forma de sociedade ¾ a sociedade em rede ¾ caracterizada por sua forma de organização em tramas, pela globalização das atividades econômicas, pela instabilidade e flexibilidade do emprego e individualização da mão-de-obra, por uma cultura de virtualidade real e pela transformação do tempo em intemporal e do espaço em espaço de fluxos como expressões das atividades e elites dominantes (CASTELLS, 1999).

Contudo, como bem ressalta Gilmar Bedin,

A configuração do mundo como um sistema global é, sem a menor dúvida, um dos mais significativos acontecimentos políticos, econômicos e sociais das últimas duas ou três décadas. Por isso constitui-se, em si mesmo, um "marco simbólico-referencial indicativo da emergência de um novo século, o século XXI, e também de uma nova e complexa fase da história humana" (BEDIN, 2001, p. 328-328). [...] "o fenômeno da globalização é muito mais o resultado de uma longa, lenta e quase que imperceptível evolução da sociedade moderna, do que o desfecho imediato e inexorável de um fato isolado, por mais relevante que ele seja" (BEDIN, 2001, p. 332).

Depreende-se do exposto que a globalização possui várias prováveis e possíveis causas ¾ das quais se destacam o fim do comunismo, desenvolvimento tecno-científico, explosão populacional pós-segunda guerra e a multipolarização do mundo. Um cenário histórico propício, aliado aos grandes desenvolvimentos e investimentos realizados no campo científico e tecnológico pelas grandes potências mundiais, foram os propulsores do fenômeno, irrompido no campo econômico.

Observa-se, desta feita, a preponderância da esfera econômica no processo de globalização, por ser o âmbito no qual este fenômeno se desenvolveu e foi impulsionado, antes de se propagar às mais diversas esferas da vida social (política, cultural, social, ambiental, entre outras), tornando-se, assim, um fenômeno multidimensional.

Dado o exposto, pode-se concluir que o surgimento de novos atores internacionais e o fenômeno da globalização acabaram por fragilizar os fundamentos da sociedade internacional moderna, originando uma nova sociedade internacional, agora tratada como sociedade internacional contemporânea.

 

2. Globalização Econômica Neoliberal

A globalização, tal qual se apresenta nos dias de hoje, teve por base uma reestruturação econômica global associada ao neoliberalismo, que se caracteriza pela proposta e sustentação de medidas como o fluxo livre de capitais, o reforço da disciplina fiscal, o corte de gasto em bens públicos, o fim do estado de bem-estar e a liberalização, a privatização, a desregulamentação econômica (FALK, 1999).

As agências financeiras multilaterais transformaram, ainda, o receituário neoliberal em condições para renegociação de dívida externa pelos programas de ajustamento estrutural, sendo de fato os países periféricos e semiperiféricos os mais afetados e sujeitos às suas imposições (SANTOS, 2005). Exemplos desses programas são o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, criados no pós-guerra com o objetivo de, inicialmente, reconstruir a Europa, e promover a cooperação monetária global.2

De acordo com Coelho, o Banco Mundial é ator relevante do processo de transformações nas últimas décadas do século 20, partindo do pressuposto que essa organização tem servido como "intermediária simbólica das relações entre os países centrais e periféricos" (COELHO, 2002, P. 11). No caso da América Latina, os países que saíam de ditaduras militares encontravam-se emaranhados nas políticas econômicas e financeiras que tiveram como opção para tentar reerguer suas economias, e sociedades. Segundo o autor:

A confirmação desse suposto implica uma diminuição, consentida, da soberania dos Estados periféricos, ou uma diminuição da capacidade de controlar, a partir da determinação das políticas domésticas, os rumos do desenvolvimento, o que tem reforçado o poder das instituições que servem como instrumentos dos interesses do Estado hegemônico, no caso os Estados Unidos da América. Por sua vez, o aumento do grau de influência externa (leverage) reforça a estrutura assimétrica do poder no Sistema de Estados. Daí a dinâmica da reprodução das desigualdades, que é inseparável da construção de uma "narrativa", de um aparato simbólico que lhe dê sustentação (COELHO, 2002, p. 11).

Por fim, estes aspectos da globalização ditados pela doutrina neoliberal estão associados com o modo pelo qual as forças transnacionais de mercado dominam a cena política, pela imposição da disciplina do capital global aos governos para que promovam políticas economicistas em cenários nacionais de decisão, acentuando o sofrimento de regiões e povos vulneráveis e desfavorecidos em decorrência da subjugação dos partidos políticos, dos líderes, das elites e das posições dos próprios governos. Assim, a despolitização do Estado torna o neoliberalismo a única alternativa, o que resulta na consolidação da doutrina neoliberal, oposta aos gastos sociais do setor público voltados para a assistência, criação do trabalho, proteção ao meio ambiente, educação e diminuição da pobreza (FALK, 1999).

Todas as esferas da via social acabam por ser afetadas ou até mesmo determinadas pelas características da globalização dominante, ou globalização econômica neoliberal.

 

3. Movimentos Sociais Transnacionais

O Estado-nação foi o cenário de surgimento dos modernos Movimentos Sociais, e por muitas décadas a atuação destes se restringiu ao âmbito estatal. Contudo, conforme discorrido no item 1, as mudanças observadas no mundo a partir da segunda metade do século XX reconfiguraram a Sociedade Internacional, apresentando aos Estados desafios externos e internos.

No atual contexto histórico-social mundial, caracterizado pelas revoluções tecnológicas da Era da Informação e pela transnacionalização das relações internacionais, a globalização, aliada ao neoliberalismo e ao surgimento das corporações transnacionais, fez surgir um movimento crescente de homogeneização cultural e busca desenfreada por lucro. Com seu papel enfraquecido diante da ascensão das empresas transnacionais e da fluidez e dinâmica do capital internacional, os Estados tiveram sua atuação social reduzida, conferindo ao capital global o poder de ditar com supremacia as regras do jogo.

As redes informais se espalharam além das fronteiras e as políticas econômicas neoliberais aumentaram o poder das corporações transnacionais, ao mesmo tempo em que reduziram o poder do Estado de controlá-las. Diante deste cenário, os Movimentos Sociais, utilizando-se também dos instrumentos fornecidos pela revolução tecnológica, adquiriram novas proporções, ultrapassaram as fronteiras estatais e passaram a representar a insatisfação e a mobilização da Sociedade Civil Global3 diante de causas comuns.

Segundo a definição de Alberto Melucci, "um movimento social é uma ação coletiva cuja orientação comporta solidariedade, manifesta um conflito e implica a ruptura dos limites de compatibilidade do sistema ao qual a ação se refere" (MELUCCI, 2001, p. 35).

Sobre como os Movimentos Sociais estão reagindo às mudanças de poder, Della Porta e Tarrow afirmam que, mais recentemente, uma corrente crescente de pesquisa sobre Movimentos Sociais identificou três importantes processos de transnacionalização: difusão, domesticação e externalização. Difusão quer dizer a disseminação das ideias, práticas e moldes dos movimentos de um país a outro; domesticação quer dizer a disputa em território doméstico de conflitos que tiveram sua origem externamente; e externalização significa o desafio a instituições supranacionais para intervir em problemas ou conflitos domésticos.

[...] Estes processos são todos importantes e parecem estar disseminados. No entanto, a recente evolução do foco dos movimentos sociais focando em 'justiça global', paz e guerra, ou ambos, sugerem alguns processos adicionais. O mais importante deles, [...], é o que nós chamamos de 'ação coletiva transnacional'. (DELLA PORTA; TARROW, 2005, p. 2, tradução nossa).

Os movimentos sociais, portanto, sofreram e sofrem processos de transnacionalização por meio, dentre outros fatores, da ação coletiva transnacional, tornando-se possível falar atualmente em movimentos sociais transnacionais4.

Ao discorrer sobre o tema, Melucci afirma que na sociedade internacional contemporânea, caracterizada pela forte interdependência, os movimentos sociais - enquanto uma forma de ação coletiva - apresentam novos meios de organização, consistindo no que o autor chama de redes submersas de grupos, pontos de encontro e circuitos de solidariedade. Tratam-se, portanto, de fenômenos coletivos organizados em redes (MELUCCI, 2001).

Os movimentos sociais transnacionais, portanto, organizam-se em forma de redes e têm se tornado mais descentralizados e mais proximamente conectados com as rotinas diárias de um grande número de pessoas. Assim, grupos locais e nacionais podem participar mais diretamente dos processos políticos transnacionais do que poderiam no passado, processo este facilitado pelos avanços na tecnologia da informação e também pela profissionalização e integração da força de trabalho global. Ademais, ao facilitar a comunicação e a transmissão entre espaços políticos diferentes e níveis de ação, as redes transnacionais ajudam a relacionar as práticas e ideias em contextos locais a instituições e processos em nível global (GOODWIN; JASPER, 2009, p. 245, tradução nossa).

Sobre o caráter transnacional das mobilizações, Jackie Smith declara que certamente não se pode esperar que as pessoas se organizem transnacionalmente em torno de todas as questões possíveis, mas antecipa-se que elas se organizariam em torno de problemas que requerem respostas internacionais para sua solução. As primeiras questões que atraíram a atenção de organizações de movimentos sociais transnacionais foram direitos humanos, meio ambiente, direitos das mulheres, paz e justiça econômica (SMITH, 2007, p.122-123, tradução nossa).

Vivemos, nas palavras de Smith, a era da justiça global, caracterizada pelo ativismo transnacional preocupado em conferir preocupações sociais ao processo de globalização, a atingir conquistas sociais, ambientais e culturais, contrapondo-se ao modelo à globalização neoliberal. Este ativismo constitui o chamado "movimento pela justiça global", iniciado com o fim da guerra fria e marcado: pelo aumento do confronto entre sociedade civil e instituições internacionais e aumento dos protestos populares nos encontros das instituições financeiras globais; objetivos anti-capitalistas; e combate às empresas transnacionais, vistas como a causa de muitos problemas. O avanço nas tecnologias observado na atualidade permitiu ainda uma estrutura organizacional descentralizada dos movimentos sociais e a amplificação das vozes dos marginalizados (SMITH, 2007).

 

4. A Teoria Crítica de Robert Cox

Com base nos estudos de Gramsci, Robert Cox transporta para a teoria das relações internacionais, com o intuito de revisá-la, conceitos como hegemonia, sociedade civil e contra hegemonia, construindo uma teoria crítica das Relações Internacionais, quer dizer, uma teoria mais reflexiva sobre o processo de teorização em si e que vislumbra a possibilidade de escolher uma perspectiva diferente com o intuito de transformar a realidade (COX, 1996).

De acordo com Cox, "as idéias de Gramsci sempre estiveram relacionadas ao seu próprio contexto histórico" (COX, 2007, p. 102), que abrangeu os conselhos operários do início da década de 1920 e sua oposição ao fascismo. Sendo assim, analisando a realidade social da época, Gramsci baseou-se na burguesia para construiu seu conceito de hegemonia, afirmando que foram necessárias concessões por parte da classe burguesa para subordinar classes em troca de sua liderança. Com sua hegemonia entrincheirada na sociedade civil, a burguesia não precisaria administrar o Estado. Este, por sua vez, teve sua noção ampliada para incluir as bases da estrutura política da sociedade civil, cuja aquiescência passou a ser fundamental para a hegemonia da classe dirigente baseada, no caso, na burguesia (COX, 2007).

Preocupado em encontrar a liderança e uma base de apoio para uma alternativa ao fascismo, Gramsci via ainda a hegemonia, enquanto forma de poder, como desvinculada de alguma classe social histórica, que prevalece enquanto o aspecto consensual do poder está em primeiro plano, enquanto o aspecto coercitivo se encontra sempre latente, aplicado a casos anômalos (COX, 2007).

Ao aplicar o conceito gramsciano de hegemonia à ordem mundial, Cox afirma que este conceito não se baseia apenas na regulação do conflito interestatal, mas também em uma sociedade civil concebida globalmente, quer dizer, na geração de vínculos entre classes sociais dos países envolvidos em um modo de produção global. Uma hegemonia mundial é uma expansão da hegemonia interna ou nacional para o exterior (COX, 2007).

Tendo por base as idéias gramscianas, Cox desenvolve ainda seu próprio conceito de hegemonia aplicável à ordem mundial, definida como uma conjunção coerente entre uma configuração de poder material, a imagem predominante coletiva da ordem mundial (incluindo certas normas) e um conjunto de instituições que administram a ordem com uma aparência certa de universalidade (isto é, não apenas como instrumentos de dominação manifesta um estado em particular) (COX, 1996, p. 103, tradução nossa).

Dadas as bases para compreensão da hegemonia na teoria de Robert Cox, desenvolvida a partir dos estudos da obra de Gramsci, passa-se à análise da atuação dos movimentos sociais em uma processo de contra hegemonia.

4.1 Movimentos sociais: um exemplo de contra hegemonia

A partir na concepção de hegemonia desenvolvida pelo autor com base no pensamento gramsciano, perfeitamente aplicável à sociedade internacional contemporânea, torna-se possível, portanto, falar em contra hegemonia, sendo esta um processo de combate à hegemonia mundial posta por meio da formação de uma estrutura forte capaz de substituí-la.

A crise econômica mundial ocorrida entre as décadas de 1960 e 1970, segundo Cox, foi favorável a processos que poderiam levar a um desafio contra-hegemônico.

Nos países centrais, as políticas que se traduziram em cortes na transferência de recursos para grupos sociais que sofrem privações e que geraram muito desemprego abriram as perspectivas de uma grande aliança entre os desfavorecidos e contra os setores do capital e do trabalho que se apoiavam na produção internacional e na ordem mundial liberal-monopolista. [...] É necessário uma organização política eficaz [...] para reunir as novas classes operárias criadas pela produção internacional e para construir uma ponte que leve aos camponeses e aos marginalizados urbanos. (COX, 2007, p. 122).

Para Cox, portanto, os problemas sociais gerados pela nova ordem internacionais gerariam condições para uma contra hegemonia, desde que houvesse uma organização política eficaz - o que se pode obter por meio dos movimentos sociais.

A sociedade internacional contemporânea, conforme disposto no item 2 do presente artigo, vive um processo de globalização econômica neoliberal, fenômeno caracterizado pela sobreposição da esfera econômica às demais e pela ocorrência de conseqüências sociais e culturais nocivas. Neste cenário, opõem-se - como bem ressalta Boaventura de Sousa Santos - os grupos hegemônico e subalterno, sendo que o consenso obtido por aqueles acabou por ditar as características dominantes da globalização na atualidade (SANTOS, 2005). Para se sobrepor a este modelo de globalização e às consequências sociais daí decorrentes, os subalternos, ou seja, aqueles prejudicados pelo fenômeno, passaram a se unir por meio da ação coletiva transnacional, no âmbito da qual se situam os movimentos sociais.

A Sociedade Civil Global organizada, enquanto coletivo mundial, de pronto já seria detentora de um dos pilares da hegemonia, qual seja, a imagem predominante coletiva da ordem mundial. Outro pilar, as instituições, aos poucos já adequam suas políticas e atuação em decorrência do ativismo transnacional, o que poderá ser intensificado com o aumento da atuação e organização política dos movimentos. Já o terceiro pilar, o poder material, poderá se voltar à favor da maioria reivindicante à medida que saiba usar seu poder político para fazer com que o poder material trabalhe a seu favor, ou ao menos não suplante seus direitos sociais. Observa-se assim, a possibilidade de uma contra hegemonia advinda da sociedade civil para desestruturar a hegemonia vigente, a exemplo das reivindicações sociais que propiciaram o surgimento do estado de bem-estar social na primeira metade do século XX.

Comprova-se, portanto, a possibilidade de aplicação da teoria crítica de Robert Cox à atuação dos movimentos sociais transnacionais, que representam, portanto, uma contra hegemonia, uma organização política para fortalecimento das classes sociais oprimidas e alteração da ordem vigente.

4.2. Materialização de movimentos sociais: regimes internacionais

A conformação dos movimentos sociais como prática para a tentativa real de mudança na agenda internacional pode ser verificada a partir dos problemas e pressupostos das relações internacionais. Dentre eles, estão as questões relativas à materialização dos movimentos sociais, ou seja, como tornar possível a ação dos movimentos com resultados tangíveis.

O questionamento central para isso é como fazer com que a cooperação seja vista como algo benéfico para os atores optarem por envolverem-se? Como garantir que os acordos serão cumpridos, dado que os indivíduos têm interesses particulares, dado que são racionais e capazes de ação intencional, e têm preferências, portanto, são capazes de ordená-las e de escolher meios alternativos para realizá-las com o menor custo, sem, necessariamente, considerar o outro ator.

Considera-se também que os atores não se comunicam e não há uma autoridade externa assegurando o cumprimento dos acordos. A condensação desses elementos é extrato da teoria dos jogos, que pode ser aplicada para a suposição de interações futuras, ou seja, é possível prospectar interações e resultados futuros, com base nos elementos supracitados.

Entretanto, a aplicação da teoria dos jogos vê-se possível quando da formalização das regras do jogo, os chamados regimes internacionais. Princípios, crenças, normas, regras (prescrições e proscrições específicas), procedimentos de tomada de decisão (regras de escolha coletiva), tácitos ou explícitos, que possibilitam a convergência das expectativas dos atores. Os regimes servem para superar problemas de ação coletiva, evitando resultados sub-ótimos produzidos por decisões independentes e permitindo processos de decisão que favoreçam resultados melhores, assim como ampliam o horizonte do cálculo das ações dos atores, permitem a coordenação das ações dos Estados e reduzem os custos de transação5. (KRASNER, 1983; KEOHANE, 1988b)

Sob o ponto de vista de Robert Cox, no campo das Relações Internacionais, a teoria dos jogos é utilizada como uma "teoria de solução de problemas" (COX, 1986) para tratar de problemas relacionados às questões de segurança e interações no campo econômico. Assim sendo, ela joga luz sobre a caracterização de interações e sobre possíveis padrões de conduta e permite a elaboração de estratégias de ação. Ao caracterizar padrões de conduta e formas de interação, a teoria dos jogos pode auxiliar os agentes na construção de instituições internacionais ordenando os jogos por meio da criação de normas e regras de conduta, ou seja, a mesma pode auxiliar tanto no entendimento e compreensão das interações internacionais, como na reforma e criação de regimes internacionais. (KRASNER, 1983, p. 2)

Com o desenvolvimento da teoria da interdependência complexa, onde se assume a importância do papel dos "novos atores" (ONGs, multinacionais, organismos internacionais), as investigações sobre as interações em contextos complexos ganha maior relevância. Neste aspecto, chama a atenção a ênfase dada pelos autores da interdependência à emergência de um contexto internacional com novos atores, não estatais, que passam a interagir em situações de relações de poder assimétrica. Os estudos sobre regimes passam a explorar de forma crescente a problemática institucional e os problemas de cooperação e conflito. (COELHO, 2010)

Dessa forma, consideramos que os movimentos sociais conformam-se como regimes internacionais mais democráticos, pois, de forma tácita, são um potencial contra-hegemônico capaz de questionar a ordem mundial vigente, por meio da influência na estrutura de poder dominante a partir das forças oriundas da sociedade civil global, verificada, por exemplo, na realização dos Fóruns Sociais Mundiais, responsáveis pela mobilização em torno dos temas discutidos nos encontros, os quais, dada sua magnitude, atraíram a atenção de organizações internacionais e governantes do mundo todo para questões essenciais.

 

Conclusão

Embora a visão de globalização conhecida como neoliberalismo seja apresentada como o único caminho em direção ao progresso e desenvolvimento, grupos de cidadãos e seus aliados têm demandado uma visão completamente diferente de integração global, a qual se inicia não com mercados, mas com seres humanos. Estes grupos têm trabalhado para construir estruturas democráticas para governar mercados, tornando-os responsáveis a necessidades sociais mais do que às lei de oferta e demanda. O ativismo contemporâneo para justiça global se constrói sobre uma rica história de ação política transnacional (SMITH, 2007, tradução nossa).

Diante da realidade da amplitude da organização dos movimentos sociais, o que se observa é uma necessidade de trabalho em conjunto. A disputa por espaço: sociedade X Estado acaba atrapalhando a autonomia e o alcance que os movimentos sociais podem atingir. O caráter contra-hegemônico dos movimentos sociais Pode ser observado a partir da intensificação e da autonomia dos movimentos sociais. Os Estados já incluem em suas agendas a participação da sociedade. Exemplos podem ser vistos com a realização do Fórum Social Mundial, e da participação esperada de ativistas nos Fóruns econômicos.

Sendo assim, e por todo o exposto, na senda da teoria crítica de Robert Cox - desenvolvida a partir dos estudos de Gramsci transportados às relações internacionais - torna-se possível constatar a existência do potencial contra-hegemônico dos movimentos sociais transnacionais enquanto mobilizações políticas perante a presente ordem mundial. Por meio de suas ações transnacionalizadas e atuando em forma de rede capaz de conectar indivíduos em todo o planeta e fortalecer a sociedade civil global, os movimentos sociais representam a possibilidade de mudança na estrutura política vigente, por meio da busca de direitos e conquistas sociais. Sua atuação possibilita ainda a formação de regimes internacionais mais democráticos, mediante a reivindicação da sociedade civil e influência de suas manifestações nas ações de governos, organizações internacionais e ONGs.

 

Referências

BEDIN, Gilmar Antônio. A Sociedade Internacional e o Século XXI. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 2001.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Tradução de Klauss Brandini Gerhard. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

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______. Gramsci, Hegemonia e Relações Internacionais: um ensaio sobre o método. In. GILL, S. (org.) (2007). Gramsci, materialismo histórico e relações internacionais. Rio de Janeiro: UFRJ, pp.101-123.

COELHO, Jaime Cesar. Economia, poder e influência externa: O Grupo Banco Mundial e as políticas de ajustes estruturais na América Latina, nas décadas de oitenta e noventa. Campinas. Universidade Estadual de Campinas, Tese de Doutorado, 2002.

COELHO, Jaime Cesar; COELHO, Ana Cecília da C. S. Uma análise da aplicação da teoria dos jogos aos regimes financeiros internacionais. Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política: Política, desenvolvimento e inclusão social no Brasil: desafios da próxima década. 4 a 7 de agosto de 2010; Recife. Disponível em <http://cienciapolitica.servicos.ws/abcp2010/arquivos/12_7_2010_18_20_57.pdf> Acesso em 30 jun. 2011.

DELLA PORTA, Donatella; TARROW, Sidney. Transnational Protest and Global Activism. Oxford, UK: Rownan & Littlefield Publishers, INC., 2005.

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OLSSON, Giovanni. Relações internacionais e seus atores na era da globalização. Curitiba: Juruá: 2003.

SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). A globalização e as ciências sociais. 3. Ed. São Paulo: Cortez, 2005.

SMITH, Jackie. Social Movements for Global Democracy. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, 2007.

 

 

O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes-Brasil

 

1. Entendemos como ator internacional o conceito apresentado por Robert Keohane e Joseph Nye, sendo o Estado o ator principal das relações internacionais, contudo, dividindo espaço com novos atores como as ONG's, organizações internacionais e empresas multinacionais. Com a rede de interações mais complexa e o declínio relativo do poder militar como poder determinante das relações internacionais, o Estado assume um papel diferente do que até então desempenhava e passa dividir espaço com os demais atores na cena internacional. KEOHANE, Robert; NYE, Joseph. Power and Interdependence. 2a ed. Harper-Collins Publishers, 1989, p. 31.
2. Ver mais em LICHTENSZTEJN, Samuel; BAER, Mônica. Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial. São Paulo: Brasiliense, 1987.
3. Para John Keane, a "Sociedade Civil Global se refere a uma vasta, ampla constelação não governamental de muitas estruturas institucionalizadas, associações e redes dentro das quais atores individuais e coletivos estão inter-relacionados e funcionando interdependentemente". In: KEANE, John. Global Civil Society?. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 11. Complementando o conceito, Richard Falk afirma que Sociedade Civil Global campo de ação e pensamento ocupado por iniciativas cidadãs individuais e coletivas, de caráter voluntário e sem ânimo de lucro, tanto dentro dos Estados como em escala transnacional. In: FALK, Richard. Globalización Depredadora. Cambridge: Polity, 1999, p. 199.
4. A expressão "Movimentos Sociais Transnacionais", de cunho recente, é utilizada por Jackie Smith em sua obra "Social Movements for Global Democracy", e será adotada no presente trabalho.
5. Entende-se por custos de transação: os custos de informação, de avaliar alternativas, de fiscalizar e fazer cumprir contratos, ou seja, são a chave das imperfeições do mercado.