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ISBN 2236-7381 versión impresa

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Justiça ambiental global: uma metateoria de justiça para a análise da crise mundial de alimentos

 

 

Anahi de Castro Barbosa

Mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento - PRODEMA - UFPB. Mestranda em Relações Internacionais - UEPB

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O fenômeno das mudanças climáticas vem sendo considerado pela comunidade científica como a mais séria ameaça para todas as formas de vida do planeta. No Relatório de Brundtland (1987), a percepção da dicotomia Terra/Mundo é emblemática, o que demonstra como as percepções das ações humanas estão separadas da idéia de meio ambiente. Tais percepções são base para implementação de políticas públicas (nacionais e internacionais) e indicam uma teia de significados que perpassam a crise da política ambiental. Ao enfocar essa crise, é possível identificar uma problemática constante: É possível a construção da justiça ambiental global ante o sistema internacional vigente? O presente trabalho tem objetivo avaliar em que medida as políticas de ajuste estrutural contribuem para a justiça global. Para tanto é desenvolvida uma metateoria de justiça que é validada de acordo com o grau de aplicabilidade de justiça (infra-positiva, positiva ou supra-positiva). Nesse contexto, são apresentadas as feições do meio internacional e as percepções sobre a natureza. Em seguida, é trançado todo o arcabouço teórico da metateoria de justiça que servirá de base para a análise da crise mundial de alimentos de 2008 associada à iminência de nova crise e em que medida o Banco mundial e as políticas de ajuste estrutural contribuíram para justiça global. Finalmente, apresenta-se um projeto normativo que propõe uma nova ética a exemplo de tantos outros trabalhos que vêm anunciando um novo paradigma que vai retratar a nova relação homem-Natureza.

Palavras-chave: Justiça Ambiental Global; metateoria de justiça; mudanças climáticas; crise de alimentos


 

 

Pressupostos para uma Metateoria de Justiça Ambiental Global

Em O Mundo como vontade e representação, Schopenhauer entende que a representação do mundo material é tudo aquilo que aparece na mente como imagem que é associada a um entendimento. É uma forma de se falar que a realidade é construída pela imagem que se têm do mundo exterior, mas o mundo exterior, em essência, não é a imagem. O presente trabalho parte de premissas semelhantes. A percepção que se tem da realidade forma o conjunto de pressupostos com base nos quais o indivíduo age. Não é a realidade em si que vai ser referencial para as atitudes de alguém, mas a percepção que se tem dessa realidade. Wendt (1999) mostra que embora a Grã-Bretanha apresente um arsenal militar muito superior ao da Coréia do Norte, aos olhos dos EUA, ela não parece mais ameaçadora que o país asiático. Como as decisões são tomadas tendo como base essas percepções, faz-se necessário estudar esse aspecto subjetivo da realidade.

O aspecto material da realidade se interrelaciona com a ação humana, há uma co-constituição mútua nessa relação. O fruto do intercâmbio entre o mundo das percepções (subjetivo) e o mundo dos aspectos materiais (objetivo) é o mundo das percepções materializadas (subjetividade objetivada). Essa divisão é baseada em Kratochwil (1986) que envolve respectivamente: o mundo dos fatos brutos, o mundo da intencionalidade e significados e o mundo dos fatos institucionais. O meio internacional não pode ser entendido, portanto, analisando apenas a disposição de recursos entre os agentes (aspecto material), mas também a partir das percepções desses agentes (mundo subjetivo próprio a cada agente) e da relação destes com o mundo das percepções materializadas cuja maior expressão são as práticas coletivas institucionalizadas.

O mundo das percepções materializadas - o mundo ao qual pertence as formas de institucionalização do meio internacional - será especialmente analisado, na medida em que se procura evidenciar como as formas de institucionalização promovem justiça ambiental global. Uma vez que se desenvolve uma teoria das percepções de justiça, tem-se como conseqüência uma metateoria que abarca a justiça material, justiça das percepções e justiça das formas institucionalizadas. O critério de validação dessa teoria seria a contrapartida dada pelo teste da cultura internacional, isto é, a validade dessa metateoria deve estar de acordo com as percepções e idéias compartilhadas pelos agentes internacionais.

Quando os agentes internacionais compartilham idéias que afetam seu poder e interesses e que geram tendências de comportamentos no sistema internacional (Wendt,1999), pode-se dizer que compartilham uma mesma cultura. A cultura internacional é, então, fruto da interconexão e superposição das culturas presentes no meio internacional.

Quando há uma predominância da cultura de inimizade no regime analisado, há uma tendência à desconfiança mútua entre agentes, provavelmente os temas relacionados a segurança, defesa, guerra sejam tidos como prioridade. Não há, contudo, uma linearidade exata nos comportamentos, e sim, tendências de comportamentos. Dessa forma, os mesmos agentes que em determinado regime pautam sua ação tendo como base preceitos de desconfiança, ao serem abordados em outra área, podem agir segundo preceitos favoráveis à cooperação. Assim a cultura observada em um regime específico pode ser considerada um forte indício dos comportamentos dos agentes envolvidos naquele regime.

 

Percepções sobre Justiça

Não há um sentido absoluto de justiça que permeie todas as sociedades e todas as culturas. As especificidades de cada sociedade, cada comunidade e cada indivíduo refletem entendimentos diferentes de justiça, sendo essas distintas percepções intrinsecamente relacionadas com o contexto histórico, social, econômico e psicológico em que se enquadram esses sujeitos, por isso é importante analisar o papel das idéias e crenças sobre justiça global e como elas afetam a política mundial.

Justiça global compreende uma série de percepções legitimadas por princípios éticos e valores morais que promovem o entendimento sobre aspirações a direitos, equidade e igualdade. Essas percepções são permeadas por subjetivismo e particularidades construídas nas mais diversas esferas de atuação da sociedade.

Como não é possível materializar perfeitamente as percepções sobre o ideal de justiça, as demandas por justiça serão a base para identificar seus sujeitos reivindicadores. No meio internacional, podem-se encontrar três esferas demandantes de justiça: justiça inter-estatal, justiça transnacional e justiça humana. O Estado, a sociedade civil transnacional e o indivíduo são os reivindicadores cujas percepções vão conformar um conceito tridimensional de justiça. Essas percepções competem entre si e se complementam pro meio de relações de influência mútua, o que torna a realidade perceptível complexa.

 

 

Para identificar as demandas e os significados de justiça (percepções dos sujeitos demandantes) serão analisadas as normas do direito internacional (percepções materializadas), no âmbito das quais as atitudes desses sujeitos adquirem significado.

Justiça não se limita ao direito, mas a partir do direito é possível apreender percepções sobre justiça. As percepções de justiça dos estados estão relacionadas ao princípio da soberania (aspecto formal) e à distribuição de recursos no meio internacional (aspecto material).

 

Construindo uma idéia de Justiça Ambiental Global

Justiça global não pode ser entendida como um contraponto à justiça local ou regional, mas a uma série se idéias e percepções de justiça baseadas em valores compartilhados por uma sociedade global, mas não universal. Isto é, são preceitos aceitos em uma escala que ultrapassa as fronteiras nacionais, mas que não são vistos como legítimos por toda a humanidade. O parâmetro utilizado para se afirmar que existe uma sociedade global é a existência de um vasto número de documentos (tratados, convenções internacionais) ratificados por várias entidades políticas (Estados, Organizações internacionais) que expressam ideais comuns. Entretanto não se pode falar em sociedade universal, na medida em que há muitas sociedades políticas e econômicas organizadas (Estados, crime organizado, organizações terroristas etc) compartilham um arcabouço de valores e ideais de justiça diferentes dos ideais dominantes.

Justiça Ambiental Global, então, seria o conjunto de percepções legitimadas por aspirações a direitos, equidade e igualdade compartilhadas no âmbito do regime internacional de Meio Ambiente. Este foi especificamente desenvolvido para regular as formas de produção, distribuição e uso dos recursos, a desertificação da Terra, poluição dos mares, emissão de gases causadores do efeito estufa, emissões e outros males que possam atingir os ecossistemas. O escopo da Justiça ambiental global não se resume aos temas diretamente envolvidos com o viés "ambiental", de modo que está relacionado com tudo que trouxer implicações ao meio ambiente.

A justiça ambiental global é um tema muito vasto que atinge a todos, de modo que é perpassado por uma série de relações sociais, econômicas, ambientais e culturais em níveis múltiplos. Tais relações se delineiam em três níveis: sistêmico, nacional e transnacional. No nível sistêmico, observam-se as interações de conflito e cooperação entre os agentes internacionais (Estados, Corporações transnacionais, Organizações Internacionais). No nível nacional, pode ser identificada a competição entre os grupos de interesse que procuram influenciar a agenda da política externa do estado. E, no nível transnacional, é perceptível a atuação de uma série de agentes que desenvolvem redes de influência e comunicação que não passa pela diplomacia oficial (redes transnacionais de advocacy, ONGs, CTNs, indivíduos etc), mas têm poder de influência, na medida que utilizam recursos midiáticos para exercer pressão junto à opinião pública internacional.

Esses níveis não são estanques, na realidade, não podem ser separados, visto que todas essas esferas influenciam e são influenciadas no processo da governança global. Os significados e valores compartilhados dos agentes internacionais em níveis múltiplos vão legitimar e priorizar determinadas ações. No âmbito da governança ambiental global, é possível identificar uma série de regimes internacionais voltados para a proteção ambiental internacional.

 

Aplicabilidade da Justiça

Do ponto de vista teórico, é possível identificar três graus de aplicabilidade da justiça global enquanto projeto normativo, o que foi denominado de justiça suprapositiva, justiça positiva e justiça infrapositiva.

A partir das normas do direito internacional e dos discursos dos agentes internacionais foi possível identificar percepções, valores e normas que compõem o ideal de justiça global nas três dimensões analisadas (inter-estatal, transnacional, humana). Quando há um entendimento generalizado de que o ideal de justiça compartilhado está efetivamente positivado no direito vigente, o grau de aplicabilidade atingido é denominado de justiça positiva. Segundo esse entendimento, os interesses dos agentes internacionais - claramente expressos pelas normas - coincidem com os princípios de justiça. O grau máximo de justiça que pode ser atingida é fruto da interação e dos ajustes mútuos resultantes da interdependência e complementaridade das dimensões inter-estatal, transnacional e humana.

 

 

Nesse sentido, os preceitos que estão positivados nos tratados internacionais são justos e o máximo de justiça que se pode almejar coincide com os princípios incristos nessas normas. Essa interpretação abarca apenas o entendimento de justiça formal. Isto é, como a norma é justa, não há motivos para mudar o status quo. Nesse caso, o ideal de justiça coincide com a justiça positiva. As demandas por justiça distributiva, por exemplo, não têm muita visibilidade. As percepções que orientam as atitudes compreendem como justo o sistema de distribuição de vantagens do meio internacional. Não existe um regime puro que apreenda apenas um grau de aplicabilidade de justiça, mas o sistema da OMC pode ser caracterizado pela justiça positiva. Na medida em que suas regras garantem certa estabilidade, previsibilidade e executabilidade, há uma tendência das regras da OMC terem uma aplicação conforme os procedimentos formais exigidos, atingindo o grau positivo de aplicabilidade.

Quando as percepções generalizadas compreendem que sequer o que foi convencionado nos tratados internacionais podem ser referenciais para encontrar os princípios orientadores de justiça da sociedade, há um entendimento de que o ideal de justiça não pode ser atingido. O grau máximo de aplicabilidade de justiça é algo inferior ao que se encontra positivado no direito internacional, por isso denominou-se justiça infra-positiva.

 

 

Justiça compreenderia o reconhecimento de direitos e deveres mediante um processo de intercâmbio ou barganha, pelo qual indivíduos ou grupos admitem os direitos dos outros de forma recíproca (Bull, 2002). A interação das dimensões de justiça e os ajustes mútuos resultantes das negociações complexas e assimétricas não permitem atingir sequer o nível da justiça positiva. Pode-se dizer que o ideal de justiça encontra-se positivado, mas o grau de aplicabilidade não chega a atingir o que foi acordado. O sistema de segurança coletiva previsto pela Liga das Nações pode ser um exemplo de justiça infra-positiva. A guerra, na época, foi declarada pelo direito internacional vigente como atividade ilegal, o que não impediu que a segunda guerra mundial emergisse.

Quando o ideal de justiça supera o que é esperado pela justiça positiva, tem-se um entendimento de justiça supra-positiva. Nesse caso, acredita-se que os ajustes e interesses envolvidos no delineamento das normas internacionais não têm aplicabilidade plena no meio internacional. A diferença entre a justiça infra-positiva e supra-positiva está no ideal de justiça almejado. Enquanto a primeira se satisfaz com a aplicabilidade inferior à justiça positiva, a segunda almeja um ideal de justiça superior ao grau de justiça aplicável ao meio internacional. Outro ponto que caracteriza a justiça supra-positiva é a não limitação da aplicabilidade do projeto de justiça ao nível infra-positivo, isto é, a depender do regime analisado, o grau de justiça alcançado pode atingir o nível de justiça positiva.

 

 

O regime de proteção aos direitos humanos pode ser caracterizado por almejar um ideal de justiça supra-positiva, muito embora a aplicabilidade do grau de justiça varie entre a justiça positiva e infra-positiva. A depender do observador e do regime internacional analisada, o grau de aplicabilidade do projeto de justiça global pode variar segundo os níveis de justiça abordados.

 

História da Emergência dos Regimes Internacionais de Proteção Ao Meio Ambiente

A poluição industrial do século XIX não fez surgir na época uma preocupação maior pelas questões sociais e ambientais. Os problemas ocasionados por horas a fio de trabalho repetitivo e alienante, além dos graves danos à saúde (ex: silicose) que as economias movidas a carvão da primeira Revolução industrial traziam aos operários não eram levadas em conta. A poluição do século XIX só atingia as camadas mais populares, o que tornava a tragédia das classes trabalhadoras, um drama mudo e em preto e branco, como o cinema que assim surgia na época.

Somente no século XX, a poluição passa a atingir as classes mais favorecidas. Por conseguinte, grandes transformações da relação do homem com a natureza, sobretudo com relação às percepção sobre a natureza e os problemas ambientais (Camargo, 2003). Três fatores podem ser ressaltados como de grande influência para a mudança de mentalidade: as duas grandes guerras mundiais, e, principalmente, a capacidade de destruição que o homem atingiu com as bombas atômicas que foram lançadas sobre o Japão.

Esse olhar diferenciado com relação à natureza surge inicialmente nos países desenvolvidos e vai se expandindo paulatinamente por todo o globo. Antes da década de 50, algumas manifestações e movimentos começaram a surgir tornando explícita a preocupação com o meio ambiente. Mas é justamente na década de 1950 que a problemática ambiental passa a ser estudada por cientistas. Surge no âmbito da temática ambiental o que ficaria conhecido no estudo das Relações Internacionais como comunidades epistêmicas: redes de cientistas com autoridade relevante para a definição de políticas em áreas específicas (meio ambiente, no caso), trazendo implicações para a organização institucional da ciência e para as prioridades de cooperação internacional. As comunidades epistêmicas compartilham de crenças normativas, crenças causais (relações entre políticas e resultados), noções de validação de conhecimentos e envolvimento em práticas associadas a conjuntos de problemas (Haas, Peter. 1992). Assim, a fundamentação teórica por parte de cientistas para que os olhos da humanidade se voltasse para a Terra, trouxe novas perspectivas para a proteção internacional para o meio ambiente.

Paralelamente, na década de 60, surgem preocupações ecológicas que dão início aos futuro movimentos sociais, dessa forma, atores sociais passam a criticar não só a forma com que a economia se reproduz, mas as percepções sobre a vida. Em 1961, foi criada a primeira organização não governamental de âmbito mundial a WWF (World Wildlife Fund). Em 1962, é publicado um livro polêmico, mas que trouxe a temática ambiental para a agenda: a "Primavera Silenciosa" de Rachel Carlson, denunciando os problemas decorrentes do uso do DDT e outros agrotóxicos. Em 1968, ocorreu a Conferência Intergovernamental para o Uso Racional e a Conservação da Biosfera.

Na década de 1970, registrou um grande aumento no número de organizações internacionais voltadas para discussão de problemas ambientais em âmbito mundial, além dos primeiros movimentos ambientalistas organizados começarem a atuar transnacionalmente.

O ano de 1972 é emblemático três fenômenos podem ser assinalados como decisivos para a temática ambiental: o relatório do clube de Roma; a criação do PNUMA; e o surgimento da ecologia profunda. O Clube de Roma divulgou o primeiro Relatório (Os limites do crescimento) que assinalava a insustentabilidade dos níveis de industrialização, poluição, produção de alimentos e exploração dos recursos materiais. Da Conferência de Estocolmo - que oficializa a preocupação internacional sobre os problemas ambientais, surge o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). O nascimento da ecologia profunda vem questionar densamente os pressuspostos a partir dos quais a civilização tem se desenvolvido. Fundada por Arne Naess, introduziu-se um novo modo de perceber a natureza e as questões ambientais, o que passou a inspirarpartidos, associações, movimentos sociais (ex: veganismo, straight edge etc) e ONGs como Greenpeace e o Earth First!.

A Declaração de Cocoyok (1974) afirmava que a explosão demográfica tinha como origem a pobreza, que por sua vez gerava a destruição desenfreada dos recursos naturais. Foi enfatizado a responsabilidade dos países industrializados no agravamento dos problemas ambientais devido aos altos índices de consumo. O Relatório Dag-Hammarsköld e a Declaração de Cocoyok fazem grandes críticas à sociedade industrial e aos países industrializados.

Em 1980, ocorreu um "move to institutions" (Ruggie,1998), com o dos tratados, documentos e leis que regulamentavam a atividade industrial no que se refere à poluição. O fenômeno das mudanças climáticas passou a ser considerado pela comunidade científica como uma das mais sérias ameaças para todas as formas de vida do planeta. As mais recentes descobertas científicas (Intergovernamental Panel of Climate Change - IPCC1, 2007) indicam que o aumento da concentração de gases do efeito estufa (GEE) emitidos por fontes antropogênicas está alterando significativamente o equilíbrio do sistema do clima.

O Relatório de Brundtland (1987) foi fruto de uma das primeiras conferências voltadas para a temática ambiental. Em Nosso Futuro Comum, a percepção de desenvolvimento sustentável ficou estabelecida como "o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades". Tal documento, contudo, também salienta a dicotomia Terra versus Mundo, que passa a ser um ponto emblemático perpassando todos os fora que enfocam a temática ambiental:

"Há só uma Terra, mas não só um Mundo. Todos nós dependemos de uma biosfera para conservar nossas vidas. Mesmo assim, cada comunidade, cada país luta pela sobrevivência e pela prosperidade quase sem levar em consideração o impacto que causa sobre os demais" (Brundtland, 1987)

Essa visão (Terra versus Mundo) mostra como as percepções das ações humanas estão separadas da idéia de meio ambiente. Há um choque entre um espaço idealizado - construído e modificado pelo homem de acordo com seus valores e crenças (Mundo) - e o espaço constituído pelo conjunto de relações entre organismos e sistemas vivos cujo homem também faz parte, a Biosfera (Terra).

Tais percepções são base para implementação de políticas públicas (nacionais e internacionais) e indicam uma teia de significados que perpassam a crise da política ambiental. Ao enfocar essa crise, é possível identificar uma problemática constante: É possível a construção da justiça ambiental global ante o sistema internacional vigente?

A Conferência Rio 92 chamou a atenção do mundo para a dimensão global das ameaças para todas as manifestações de vida na Terra, além de ressaltar a necessidade de uma aliança entre todos os povos em prol de uma sociedade sustentável (BRÜSEKE, 2001). Vários projetos normativos resultaram desta conferência: Declaração do Rio de Janeiro sobre o meio ambiente e o desenvolvimento; Convenção sobre mudanças climáticas; Declaração de princípios sobre florestas; Agenda 21- um pacto para o desenvolvimento e meio ambiente da Terra entre os três setores da sociedade: o governamental, o produtivo e o civil organizado (Camargo, 2003).

Em Joanesburgo (2002), a Conferência que ficou mais conhecida como Rio +10 realizada na África do Sul analisou a efetividade das metas presentes nos acordos fixados na Rio-92, tendo como referência a Agenda 21. A Conferência de Joanesburgo mostrou que ainda não se atingiu sequer os passos estipulados em direção ao que se denominou desenvolvimento sustentável. Na medida em que ainda prevalecem os interesses individuais de países os blocos de países. Em tese, todos parecem ser favoráveis ao desenvolvimento sustentável, contudo, poucos se propõem, de fato, a promove-lo.

 

Políticas de Ajuste Estrutural do Banco Mundial

Criado em 1944, no pós Segunda Guerra Mundial, o Banco Mundial continua sendo uma importante instituição no cenário atual. Com o objetivo de melhorar fornecer assistência técnica e financiamento para os programas de redução da pobreza nas áreas de saúde, agricultura e infra-estrutura básica, O Banco tem trazido conseqüências importante na adoção de políticas econômicas.

Na década de 1980, uma série de mudanças na economia política mundial permitiu a emergência de um paradigma neoliberal, o que trouxe forte implicações nas políticas adotadas pelo Banco Mundial e consequências importantes nos países em desenvolvimento (PEDs). O acirramento da competição econômica internacional; a falência contínua das empresas públicas; a passagem pelo período marcante da guerra fria com a emergência "triunfante" do capitalismo; além de outros problemas enfrentados pelas sociais-democracias, tornaram o momento oportuno para a ascensão do neoliberalismo. Os primeiros chefes de Estado a adotar as políticas: Thatcher (Reino Unido), Reagan (EUA), koln (Alemanha). Na América latina, Peru e Chile foram pioneiros.

O Consenso de Washington apresentou um conjunto de medidas - que se compõe de dez regras básicas - formulado em novembro de 1989 por economistas de instituições financeiras baseadas em Washington, como o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. As regras básicas eram: disciplina fiscal; redução dos gastos públicos; reforma tributária; juros de mercado; câmbio de mercado; abertura comercial; investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições; privatização das estatais; desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas); direito à propriedade intelectual.

Assim, esteve com maior evidência o tom de crítica ao financiamento do desenvolvimento, bem como aos governos do terceiro mundo e ao rent seeking. As políticas de ajuste estrutural tendo como foco aumentar a eficiência das economias dos países em desenvolvimento, a despeito das saúde e serviços sociais. Além do chamamento aos PEDs para que se responsabilizassem pelo pagamento do serviço da dívida.

 

Crises de Alimentos

Tem se testemunhado crises periódicas de alimentos como a de 2007-2008 e a de 2011, com menor impacto. Tais fenômenos compreendem crises na produção e no nível dos estoques, gerando aumento dos preços dos alimentos, trazendo impactos que restringem o consumo de determinados países. Tais crises não são monocausais, compreendendo fenômenos complexos, contudo, acredita-se que as políticas de ajuste estruturais propaladas pelo Banco Mundial trouxeram reflexos importantes para a compreensão das crises de alimentos.

A elevação no preço do petróleo; uso de terra agricultável para produçãobiocombustível; o crescimento do consumo de alimentos por parte de populações que têm experienciado ampliação do seu poder de compra como China, Índia e Brasil; todos esses fatores são apresentados como elementos que influenciam a emergência das crises de alimentos. Os fatores naturais como as mudanças climáticas, que entre vários outros impactos, promovem o aumento das áreas desérticas.

Em 2010, o Índice de preços de alimentos da FAO aumentou atingindo em 2011 os valores de 2008. Associado a este fenômeno, tem-se a emergência de protestos sociais em particular nos países do Médio Oriente e Norte de África.

A produção de biocombustível é certamente um dos fatores fundamentais para a compreensão das altas nos preços dos alimentos. Contudo, acredita-se que o principal fator tenha sido a conversão de países cujas economias que eram auto-suficientes em produtos alimentícios em países importadores de produtos alimentícios. Nesse caso, o Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e Organização Mundial do Comércio (OMC) figuram como elementos impulsionadores desses movimentos..

A história tem testemunhado um processo contínuo de desestabilização dos produtores rurais por meio dos programas de ajuste estrutural do Banco Mundial. Os governos nacionais retiraram os investimentos das zonas rurais, para investir na diversificação da economia dos seus países, o que representou em massa de recursos da agricultura para alimentar outros setores da economia. Não havendo agentes privados interessados em investir na agricultura, o que se viu foi a retirada de investimentos da área agrícola desses países, sem a contrapartida privada.

O caso Africano é tristemente emblemático. No período da descolonização, na década de 1960, a África não era apenas auto-suficiente em produtos alimentares, mas, na verdade, era um exportador líquido de alimentos (BELLO, 2008). As suas exportações giravam em média de 1,3 milhão de toneladas por ano entre 1966-70. Atualmente, o continente importa 25% de suas fontes alimentícias, de modo que quase todos os países passaram a ser importador líquido de alimentos. A fome tornou-se um fenômeno recorrente.

Nos últimos anos, o Chifre de África, o Sahel, África do Sul e a África Central vêm enfrentando uma série de situações de emergência. A agricultura enfrenta crises periódicas cujas causas múltiplas variam desde guerras civis à propagação da AIDS. No entanto, o fator fundamental para o desencadeamento dessas crises alimentares foi a eliminação gradual do controle que os governos exerciam e a adoção dos programas de ajuste estrutural. Tais ajustes eram o preço para obter ajuda do FMI e do Banco Mundial com o serviço da dívida externa.

Uma vez de desencadeados os ajustes estruturais, a África obteve cada vez menos investimentos, houve aumento do desemprego, redução das despesas sociais, reduziu o consumo, e de baixa produção, combinando tudo para criar um ciclo vicioso de estagnação e declínio. A elevação dos preços de fertilizantes e, simultaneamente, um corte no sistema de crédito agrícola simplesmente conduziu a uma diminuição de rendimentos na área agrícola.

A realidade se recusou a obedecer a expectativa da doutrina neoliberal, visto que a retirada do estado não se dinamizou a agricultura. A retirada do Estado contribuiu, sim, para o desmonte total do setor. Além disso, o pequeno produtor rural tem de competir com os grandes produtores, como se estivessem em pé de igualdade. Outro problema seriíssimo se deve ao fato de a população rural ser bastante dependente dos recursos naturais que estão em seu entorno. E, não havendo uma coordenação séria entre as políticas para o desenvolvimento, mitigação da pobreza e manejo ambiental sustentável, não será possível ver um ciclo virtuoso emergindo.

Assim, a sociedade civil transnacional deve desempenhar um papel na remodelação e expansão das atuais políticas e práticas de apoio ao desenvolvimento sustentável, tendo em vista à redução da crescente influência de interesses corporativos, e tentar diminuir os interesses do Norte no processo de desenvolvimento (Reed, 2002).

Em um contexto de competição e cooperação intensa entre os demandantes de justiça Estado, sociedade civil transnacional e indivíduo, o máximo de justiça aplicável é inferior ao que é estipulado pelos documentos, tratados e discursos que tratam da proteção ambiental internacional e, mais especificamente, as políticas de ajuste estrutural não têm contribuído decisivamente com a redistribuição de recursos internacionais para os países mais necessitados. Assim, conforme o arcabouço teórico proposto, o nível de aplicabilidade de justiça no âmbito das políticas de ajuste econômico do Banco Mundial para as zonas Rurais e a Proteção Ambiental é de Justiça ambiental infra-positiva.

Na figura 5, intentou-se apresentar a análise das Políticas de ajustes estruturais do Banco Mundial para as regiões rurais e proteção ao Meio Ambiente.

 

 

Nova ética

Segundo Toledo (1992), o estudo das relações entre um grupo de pessoas, os demais seres vivos e o meio ambiente pressupõe a análise de três domínios inseparáveis: natureza, cultura e produção. A civilização atual, herdeira da razão instrumental tão combatida pelos estudiosos da escola de Frankfurt, se propõe a dominar e imperar sobre a natureza. Gonçalves (1996.) critica a dominação da natureza em nome da ciência, a qual reduziu aquela a um objeto a ser dominado e estudado por meio do método. Essa visão antropocêntrica vem sendo paulatinamente desconstruída pelos partidários de uma nova ética ambiental (Pelizzoli,2002, Capra, 1982).

Na percepção da crise ecológica foi sendo configurado um conceito de ambiente como uma nova visão do desenvolvimento humano, que reintegra os valores e potenciais da natureza, as externalidades sociais, os saberes subjugados e a complexidade do mundo negados pela racionalidade mecanicista, simplificadora, unidimensional e fragmentadora que conduziu o processo de modernização (LEFF, 2001).

Segundo Ponting (1995), 99% da história humana se passa em um contexto de total dependência da natureza. Esse período marcado pela subsistência através da combinação entre caça de animais e coleta e acúmulo de gêneros alimentícios foi o modo de vida mais flexível e bem adaptado já vivido pelos seres humanos. A Revolução Agrícola se deu aproximadamente há cerca de 10.000 anos e, como conseqüência, a sedentarização de grupos humanos veio formando a base para a estrutura da sociedade atual. A história da humanidade teria passado por dois momentos decisivos: a agricultura e a sedentarização; e mudanças nos usos das fontes de energia.

Atualmente, a humanidade se depara com uma crise de percepção, que nada mais é do que uma crise de paradigmas. É fundamental que a construção da justiça ambiental global se paute por um projeto normativo que proponha uma visão integrada dos fenômenos. O que abre espaço para a emergência de uma nova ética (Boff, 2006) que promova uma nova consciência sobre as percepções do homem e natureza. Essa consciência não pode ser permeada por mediações explicativas complexas apresentadas "de cima para baixo".

Segundo Boff (2006), essa nova ética é composta de quatro princípios - afetividade, cuidado, cooperação e responsabilidade - e quatro virtudes - hospitalidade, convivência, respeito a todos os seres vivos, comensalidade. 1) Princípio da Afetividade: Segundo Heidegger, a estrutura primária do ser humano não é a razão (logos), e sim, a sensibilidade (pathos). Assim, Boff apresenta uma teoria da ética em que só se é possível almejar valores se há sensibilidade. Onde há indiferença quanto às questões ambientais e sociais só há espaço para uma parca ética utilitarista. 2) Princípio do Cuidado/ Compaixão: A essência do ser humano é o cuidado, na medida em que é a condição prévia construtora do ser. Desse modo, o homem deve resguardar aprender a cuidar da terra e ter compaixão profunda por tudo e por todos. 3) Princípio da Cooperação: Esse princípio parte do pressuposto de que todas as energias e todos os seres cooperam uns com os outros para que se mantenha um equilíbrio dinâmico que garanta a biodiversidade. 4) Princípio da Responsabilidade: Responsabilidade é ter a consciência de seus atos para que não seja construído um princípio da auto-destruição.

 

Conclusão

A racionalidade utilitarista e instrumental própria do velho paradigma da relação Homem-Natureza tem sido responsável pela propagação da idéia de um crescimento ilimitado baseado na idéia de recursos ilimitados. Contudo, silenciosamente emerge uma nova mentalidade subversiva que vem questionando essa ideologia antropocêntrica. Há uma paulatina mudança de foco e a vida se torna centro novamente. Esse novo paradigma traz um imperativo na mudança do pensar e agir em consonância com o mundo.

Políticas de ajuste estrutural têm cometido graves equívocos, na medida em que pautadas por uma racionalidade utilitarista de curto prazo, não prevê os desastres decorrentes da interpretação unilateral da produção. De modo que o máximo de justiça que se atinge sequer alcança o que está previsto nos tratados e documentos legitimados internacionalmente. Assim, a justiça infra-positiva é emblemática na ineficiência de políticas baseadas em um velho paradigma. O desafio, agora, é conseguir implementar políticas pautadas pela ótica de uma nova ética ambiental as quais contribuam decisivamente para a justiça social, econômica e ambiental.

 

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência:
Residente à Rua José Gonçalves Júnior, 79, Ap. 205,
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