3, v.1O Mercosul e os impactos econômicos e políticos da adesão da VenezuelaAcomodação estratégica? As relações entre o Brasil e os Estados Unidos durante o governo Lula (2003-2010) author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




Print ISBN 2236-7381

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

A União Européia e a sua diplomacia dos direitos humanos

 

 

André Luis Nascimento dos Santos

Doutorando em Administração pelo NPGA - EAUFBA e pesquisador associado ao LABMUNDO (Laboratório de Análise de Políticas Mundiais)

 

 


RESUMO

No mundo do pós guerra fria, a experiência comunitária vivenciada pela União Européia sugere um novo modelo de participação política dos Estados nacionais na ordem internacional. A partir da construção de uma organização internacional sui generis capaz de gerir os interesses comuns dos seus Estados membros, seu modelo organizacional parece diferir do que se apresenta como o modelo padrão das organizações internacionais tradicionais. Nesse sentido, a experiência européia, para além da integração regional pela via comunitária, tem sido bastante habilidosa em se firmar como verdadeiro novo ator do sistema internacional contemporâneo. Nessa miríade de idéias e de realidades que se entrecruzam, a UE parece ser a promotora de algumas agendas globais contemporâneas, tais como o ambiente, o desenvolvimento, o humanitarismo, a democracia e, sobretudo, os direitos humanos. Esta última temática, fruto do desenvolvimento político proporcionado pela projeção internacional dos princípios da Carta das Nações Unidas (1945) e da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), encontra no projeto europeu um espaço privilegiado, uma vez que inspira os objetivos dessa organização, seja internamente, dentro dos seus processos de integração, seja no plano externo, a partir da formulação paulatina de uma verdadeira política estrangeira da Europa (Convenção Européia dos Direitos Humanos (1950), Ato Único (1986), Maastricht (1992), Amsterdã (1997), Nice (2001), Carta dos Direitos Fundamentais da UE (2001)). Assim, podemos afirmar que na política estrangeira da União Européia há uma verdadeira diplomacia dos Direitos Humanos, donde seus valores e práticas transformaram a UE em um ator relevante na cena internacional (Petiteville, 2006). O presente trabalho, fruto de uma pesquisa ainda em andamento, buscará refletir acerca dos principais debates que circundam essa temática.

Palavras-chave: União Européia - Diplomacia - Direitos Humanos - Diplomacia dos Direitos Humanos


 

 

Introdução

No mundo do pós guerra fria, a experiência comunitária vivenciada pela União Européia sugere um novo modelo de participação política dos Estados nacionais na ordem internacional. Se outrora, a predominância das estratégias de uma soberania una e indivisível marcava o modo da ação publica dos Estados em favor de sua própria sobrevivência, a prática européia aparece nos nossos dias como um modelo distinto que provoca a curiosidade da ciência política do internacional, azeitando uma rica agenda de pesquisas no campo das relações internacionais (Petiteville, 2006 ; Belot, 2008 ; Saurugger, 2009 ; Courty et Devin, 2010). A partir da construção de uma organização internacional sui generis capaz de gerir os interesses comuns dos seus Estados membros, seu modelo organizacional parece diferir do que se apresenta como o modelo padrão das organizações internacionais tradicionais. A disposição das suas normatividades, dos seus modelos de gestão, da sua organização de poderes e responsabilidades sugere uma feição ora eminentemente interestatal (modo que a aproxima das OIs tradicionais), ora pelo viés supranacional (sobretudo quando dialoga com elementos próximos do federalismo e da confederação).

Nesse sentido, a experiência européia, para além da integração regional pela via comunitária, tem sido bastante habilidosa em se firmar como verdadeiro novo ator do sistema internacional contemporâneo. Não à toa, as suas orientações institucionais regidas pelo direito dos Tratados tem paulatinamente forjado a construção de uma política externa própria em nome da coletividade como é o caso dos tratados de Maastricht (1993), de Amsterdam (1997), de Nice (2001) e de Lisboa (2009) (Petiteville, 2006; Koechlin, 2009). Nesse sentido, assim como os tradicionais estados nacionais, esse novo ator do sistema internacional é capaz de manejar a sua própria diplomacia, cunhar as suas moedas, estabelecer um espaço de segurança coletiva, construir modelos práticos teóricos para se relacionar com outros estados e, na medida do possível, criar uma ficção (ou ficções) acerca de uma identidade territorial (o ser europeu). Obviamente, esses tantos atributos só são possíveis pelo consentimento dos seus membros em ceder parcelas significativas de suas soberanias em favor deste ator capaz de falar em nome de todos.

É justamente diante desses tantos atributos que a União Européia se apresenta para o mundo enquanto uma potência mundial, capaz de se impor seja pela economia, seja pela norma e, por vezes, pela força (militar), esta, exercida a partir da moderação e dialogo dos seus membros. Nesse contexto, uma série de correntes de análise tenta dar conta da dimensão discursiva da União Européia, sugerindo adjetivos tais como: a potência civil (Duchene, 1993), a potência normativa (Manners, 2002; Laïdi, 2008), o soft power (Nye, 2004),  a potência tranquila (Todorov, 2003), dentre outras.  Essas noções exprimem o fato de que a UE se transformou em um ator relevante para a condução da política mundial, condução esta centrada na idéia de uma governança que não se centra em primeiro lugar na força como elemento principal.

Nessa miríade de idéias e de realidades que se entrecruzam, a UE parece ser a promotora de algumas agendas globais contemporâneas, tais como o ambiente, o desenvolvimento, o humanitarismo, a democracia e, sobretudo, os direitos humanos. Esta última temática, fruto do desenvolvimento político proporcionado pela projeção internacional dos princípios da Carta das Nações Unidas (1945) e da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), encontra no projeto europeu um espaço privilegiado, uma vez que inspira os objetivos dessa organização, seja internamente, dentro dos seus processos de integração, seja no plano externo, a partir da formulação paulatina de uma verdadeira política estrangeira da Europa (Convenção Européia dos Direitos Humanos (1950), Ato Único (1986), Maastricht (1992), Amsterdã (1997), Nice (2001), Carta dos Direitos Fundamentais da UE (2001)). Assim, podemos afirmar que na política estrangeira da União Européia há uma verdadeira diplomacia dos Direitos Humanos, donde seus valores e práticas transformaram a UE em um ator relevante na cena internacional (Petiteville, 2006).

Se por um lado, este exercício diferenciado da potência pela UE encontra nos Estados em desenvolvimento uma porta aberta para o exercício de sua diplomacia dos Direitos Humanos, de outro, encontra, também, verdadeiros laboratórios sociais que são portadores de iniqüidades históricas, violências e extremo desrespeito pela pessoa humana e pelas instituições democráticas. Os Estados da América Latina, por exemplo, durante o século XX viveu uma série de regimes ditatoriais seguidos de violência às pessoas e grupos sociais e políticos e, hoje, esta região ainda vive déficits democráticos e clivagens sociais. Nesse panorama, uma dupla relação de dialogo e dependência moral se entrecruza: do lado da União Européia, a vontade de "ajudar" e estabelecer sua zona de influencia (quiçá estabilizar suas periferias), da América Latina, por sua vez, dentre outras questões pertinentes, a necessidade de realizar uma interlocução com este ator estratégico para equilibrar as clivagens geopolíticas causadas pela paix americana. Contudo, essas relações de troca e diálogos não são relações entre iguais.

As bandeiras da UE em relação às iniqüidades do mundo, sobretudo nos países em desenvolvimento, não parece ser desprovido de senso e de interesses. No jogo das relações internacionais, discursos, interesses e valores parecem marchar juntos. Assim, a partir das questões "como, porque, quando e partir de que atores (governamentais, institucionais, sociais, etc.) a política externa da União Européia mantêm uma diplomacia dos Direitos Humanos?", o presente trabalho que ora se apresenta buscará responder uma questão um tanto quanto mais específica, qual seja: Como essa diplomacia dos Direitos Humanos da União Européia se exprime em relação à América Latina?

Esta questão é pertinente na medida em que Europa e América Latina são antigas conhecidas. No curso dos séculos, elas alimentaram e ainda alimentam uma longa história de relações internacionais que compreendem desde os processos de colonização, a configurações de relações de dependência econômica, os fluxos migratórios, as trocas comerciais, as solidariedades culturais e, sobretudo, as clivagens entre o norte e o Sul (Prado Junior, 1993). Esta relação é ainda hoje alimentada por uma conjuntura geopolítica construída pela cena mundo do pós guerra na qual a Europa foi constrangida a se ambientar a um novo cenário mundo onde as praticas coloniais foram postas em desuso, ao menos do ponto de vista formal. Nesse cenário onde a América Latina há muito não mais vivia sobre o pacto colonial, continuou sendo destinatária privilegiada dos olhares europeus quanto à viabilidade de parcerias na seara econômica, na construção e composição de consensos nos espaços multilaterais, bem como, na transferência de ideários ocidentais de matriz eminentemente européia. Não à toa que, desde o pós 45, a Europa dos Direitos Humanos, seja a partir dos seus Estados, seja a partir dos seus atores não governamentais, faz ressoar sob o mundo latino-americano os ecos de sua visão política e ideológica quanto aos abusos aos Direitos Humanos aqui perpetrados.

Partimos do pressuposto que a diplomacia dos Direitos Humanos praticada pela UE se apóia sobre os registros teóricos e políticos que compreendem: a) a dimensão ética dos Direitos Humanos, uma vez que o passado europeu vivenciou duas grandes guerras; b) a necessidade deste bloco em se estabelecer como potência pela via da normatividade mundial; c) a presença de uma lógica de interesses em um jogo no qual Bertrand Badie qualifica por "Diplomacia dos Direitos Humanos", diplomacia mais preocupada com os ganhos reais (políticos, econômicos, midiáticos, etc.) que necessariamente o fortalecimento de uma regulação mundial ().

Dadas as suas múltiplas facetas, esta diplomacia se exprime de diversas maneiras em função das regiões ou países como os quais este ator nutre relações. Nesse sentido, esta diplomacia pode apresentar de maneira dialógica (quando se engaja por propor e animar diálogos com outros Estados e conjuntos regionais sobre o tema dos direitos humanos), prescritiva (quando ela prescreve normas e modelos para ajudar na melhoria das condições da democracia e dos direitos humanos em outros Estados e Regiões) e, até mesmo, intervencionista (quando por conta dos Direitos Humanos e causas humanitárias promove intervenções militares e civis em outros Estados para restituir a paz, a democracia e os direitos humanos. Nesse sentido, este poder da União Européia em exportar normas de direitos humanos repousa sobre alguns pilares, quais sejam: a) As relações de necessidade dos Estados que aceitam e demanda por ajuda; b) As redes de solidariedade que são criadas entre doador e receptor da ajuda1; c) As lealdades que resultam das solidariedades jogadas; d) As relações de dependência que são mediadas entre os Estados periféricos em relação a este ator bem sucedido no processo de integração.

No caso latino americano, esta diplomacia dos Direitos Humanos da UE parece ser uma mistura de diálogo e prescrições, no qual os motes respondem aos interesses diretos do ator que exporta as normas. Assim, consideramos como hipótese de pesquisa que, em relação à América Latina, o discurso da potência normativa é predominante em relação a praticas mais intervencionistas. Este comportamento esta sujeito as variações em função de uma lógica de interesses presentes nos componentes da ajuda. Nessas condições, as condicionalidades da cooperação dão o tom das contradições e paradoxos. De um lado, o discurso universalista dos Direitos Humanos, discurso na qual a Europa se apresenta como tutora, de outro, os usos políticos e os abusos deste vocabulário, notadamente em termos de uma potência retórica.

 

A gramática dos Direitos Humanos, uma emergência do mundo contemporâneo... o nascimento de uma diplomacia singular

Se ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, a gramática dos direitos humanos começou a ser paulatinamente escrita em sentido moderno no vocabulário da ciência política contemporânea, sobretudo a partir dos movimentos sociais constitucionalistas ocorridos na Inglaterra2, nos Estados Unidos3 e na França4 (MIRANDA, 2002; CANOTILHO, 1995). É somente no pós segunda guerra mundial que essa gramática ganhou status de intangibilidade na ordem jurídica e política internacional, vez que os horrores do totalitarismo terminaram por constranger a civilização ocidental a realizar uma verdadeira ruptura nos seus paradigmas jurídicos e filosóficos, a fim de reconstruir uma nova ordem dos direitos humanos (LAFER, 1988).

É justamente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, editada em 1948, que essa ruptura é categoricamente expressa pelo direito internacional. A criação de um tratado internacional vinculando os Estados a protegerem e garantirem os direitos humanos dos seus governados, de certo, encarna, ao menos do ponto de vista retórico, um constrangimento, até então nunca experimentado pelos Estados Nacionais. Nesse sentido, essa ruptura nos paradigmas jurídicos filosóficos atinge decisivamente as soberanias dos Estados, na medida em que erode, paulatinamente, a competência reservada dos governos em matéria de direitos humanos (LAFER, 1988, 1994).

Ademais, essa carta de 48, engendrará o nascedouro de uma série de outros documentos internacionais, bem como calorosos debates sócio-jurídicos e políticos em matéria de Direitos Humanos que influenciarão toda a ordem política contemporânea. Nesse sentido, os entrecruzamentos entre os direitos humanos e as questões relacionadas à divisão do poder político em esfera internacional alimentarão uma extensa e rica agenda de pesquisa envolvendo as ciências sociais aplicadas, tais como a ciência política, o direito, a gestão, a sociologia, bem como, as relações internacionais.

No campo teórico das relações internacionais, por exemplo, a agenda de direitos humanos do pós 2ª guerra será elevada à condição de um verdadeiro regime internacional, capaz de regular toda a área, sem necessariamente, a existência de uma autoridade central (DONNELLY, 1986).  Todavia, um grande debate se dará em torno do grau de importância que a ordem política contemporânea conseguirá dispensar para este regime específico. O que são os direitos humanos para o sistema regulatório internacional? Em qual lógica estarão eles inseridos? A quem interessa o discurso dos direitos humanos?

Segundo a teoria dos regimes, o sistema internacional é formado por uma série de regimes (issue-area) preocupados em regular questões relevantes no plano internacional, sendo desta maneira, de grande valia para diminuição da anarquia do sistema internacional e, assim, criar espaços para a formulação de uma verdadeira agenda de governança (DONNELLY, 1986; ROSENAU et al, 2000). Desta forma, a idéia de existência de regimes é aceita, praticamente, por todas as teorias majoritárias das relações internacionais, diferenciando-se, contudo, quanto ao grau de relevância nos debates dessas correntes.

Donnelly (1986), em um primoroso artigo que trata da condição de regime internacional dos direitos humanos, nos explica que para as correntes realistas e neomarxistas, por exemplo, o poder seria o principal atributo das Ris, restando aos regimes a condição de epi fenômenos, sendo, portanto, costurados, dentro de uma lógica de solft power, sem grandes interferências na ordem. Escolas mais próximas do ideário grocciano5, por sua vez, tais como o construtivismo e o interdependentismo, entendem que na ordem política internacional, tudo está intimamente ligado a identificação, construção e fortalecimento de regimes. Por fim, seguindo uma linha de ordem mais estruturalista, tais como os neo-realistas, liberais, neo-liberais e funcionalistas, há a predileção por um posicionamento mais intermediário, ora reconhecendo e exaltando os regimes, ora os colocando a segundo plano em relação ao poder formal dos Estados, sobretudo.

Diante dessa multiplicidade de olhares em torno da importância dos regimes na formulação da política internacional, depreende-se que a agenda de direitos humanos também sofre das mesmas intempéries, ficando à mercê do olhar de quem as analisa e as valora. Neste sentido, o campo dos direitos humanos sugere ser um palco fecundo e privilegiado para análise da política internacional de Estados e blocos econômicos desenvolvidos, vez que, utilizando-nos dos argumentos de Arrieta (2003), neles podemos observar múltiplas "boas intenções6".

No entanto, antes de ser um campo de estudo das relações internacionais e, em certa medida, da gestão7, os direitos humanos tem sua matriz na filosofia do direito, vez que é a partir desse campo filosófico que a academia e a militância humanista irá construir o seu meanstream ao longo do "breve século XX8".

Essa construção filosófica, segundo alguns autores que já foram citados nesta revisão, será fruto de uma ruptura nos paradigmas jurídicos filosóficos militados até a segunda guerra mundial, restando para diante um longo caminho de direitos a serem construídos pela via da positivação de normas (ARENDT, 1948; BOBBIO, 1995; LAFER, 1988). Seguindo essa mesma linha de raciocínio, mas com um tom mais reflexivo (e certamente mais enriquecido de dados, pelo fato de ainda estar vivo), o argentino Emilio Garcia Mendez (2004) observará que grande parte do empobrecimento do debate dos direitos humanos se deve à concentração do discurso em torno do seu caráter filosófico metafísico9, esquecendo-se, assim, da sua natureza histórica e contingente. Nesse sentido, a defesa dessa legitimidade metafísica dos direitos humanos é uma armadilha teórica capaz de conferir solidez aparente ao debate, haja vista a transcendência e a reificação desses direitos, em face das suas vicissitudes, jogos de interesses e possibilidades de instrumentalização. Não por outra razão, este autor seguirá a tradição inaugurada por Arendt (1949, 1979, 1981) e Bobbio (1995), qual seja, a natureza positiva10 e construtivista11 dos direitos humanos.

Foi justamente diante deste misto de transcendência e positivação que a sociedade internacional do pós guerra, a partir de uma lógica eminentemente vestfaliana, iniciou a construção desse modelo regulatório de direitos humanos, do modo como nos chega hoje.

Todavia, essa empresa não fora realizada sem conflitos. Se na declaração de 48 temos o início de um novo modo de manejo dos direitos humanos, não podemos nos olvidar que esse documento fora escrito dentro de uma lógica de solft law, tão somente proclaratória de normas, sem a devida cogência12 jurídica (LAFER, 1994). Não à toa que a contenda leste-oeste, própria do cenário de guerra fria, ao que pese o caráter indivisível dado pela carta de 48 aos DH, saberá muito bem cingir esses direitos em dois pólos, encarnando assim o respeito e a disputa entre as hegemonias compartilhadas dos Estados Unidos e da antiga União Soviética.  Do lado do primeiro, a garantia expressa e aguerrida dos direitos civis e políticos, expressão do sistema de liberdades próprio do capitalismo, do outro, os direitos econômicos, sociais e culturais, orgulho da ideologia socialista propugnada pelo bloco comunista. Esses dois pólos dos direitos humanos, por sua vez, só conseguirão ser escritos dentro de uma lógica de hard law a partir de 1966, com a aprovação de dois grandes pactos internacionais, estes, sim, dotados de algum poder de constrangimento dos estados pactuantes.

Esses debates ideológicos em torno da hierarquia dos direitos humanos terão desdobramentos na evolução desses direitos e, sobretudo, no modo como eles nos chegam aos dias de hoje.  Se por um lado, a indivisibilidade dos DH fora propugnada pelos meios acadêmicos, pela militância política do movimento de DH e, sobretudo, pela retórica de algumas das agências do sistema ONU, tais como a UNESCO e o PNUD, não restam dúvidas que nas agendas de cooperação dos estados e das próprias agencias interestatais, houve prevalência de uma noção em relação à outra.

Nesse sentido, Mendez (2004) aponta para o paradoxo de que com o final da guerra fria e, consequentemente, o desmantelamento do bloco soviético, pode-se observar a vitória do ideário soviético no que tange a prevalência dos direitos econômicos, sociais e culturais em relação aos direitos civis e políticos. Daí, para o autor, a superficialidade do conceito de indivisibilidade construídos ao longo desse breve histórico dos Dhs na ordem mundial, terminou por relativizar a importância dos direitos políticos em um mundo não mais bipartido por modelos distintos de Estados.

Ademais, acrescenta o autor (2004), que as agendas de direitos humanos pautados direitos econômicos e sociais são mais propícias para se costurar agendas de cooperação, haja vista a sua pouca conflitualidade, em relação às questões de ordem política e civil. Sendo, assim, agendas muito mais palatáveis para condução de modelos programáticos, que facilitam o fazer das diplomacias e, sobretudo, das organizações internacionais na condução da governança mundial.

Mas o que venha a ser essa governança mundial que precisa ser conduzida pelas diplomacias e pelas organizações internacionais? O que é que dela emana para o plano internacional? Qual a ligação desse ideário de governança com a agenda de Direitos humanos que vem sendo praticada no cenário mundial contemporâneo?

O termo governança, longe de significar consenso de sentidos, viceja múltiplas interpretações, cada uma das quais cravejadas de diferentes ideários que lhe dão causa. Essa imprecisão de conceito, por certo, constrange o estudioso do tema a categorizar os sentidos de acordo com os contextos em que o termo é aplicado. Não por acaso, ao longo dos últimos anos, ora a comunidade acadêmica, ora a comunidade internacional revezam-se na emissão de sentidos e conceitos para o termo (ROSENAU et CZEMPIEL, 2000; SMOUTS, 1998).

O que se tem de consenso, é o fato de que as teorias da governança nas relações internacionais aparecem como modo de completar a teoria dos regimes, na medida em que a sua maior abrangência de sentidos é capaz de explicar múltiplos fenômenos que ocorrem na ordem internacional contemporânea, tais como interdependência de temas, multiplicidade de atores, temporalidades distintas, etc (ROSENAU et CZEMPIEL, 2000; SMOUTS, 1998). Vale ressaltar que essa necessidade de compreensão, para além dos arroubos acadêmicos, é uma reivindicação muito própria de um mundo modificado pelo fato histórico do fim da guerra fria, adicionado ao fenômeno complexo da globalização. (SMOUTS, 1998; BADIE, 1995, 2000; ROSENAU et CZEMPIEL, 2000; SMOUTS, 1998).

Dentre as teorias da governança mais tradicionais, o sentido inglês do termo está intimamente ligado a noção de um mundo contemporâneo onde os Estados soberanos já não conseguem dar conta das demandas relativas à condução do cenário nacional e internacional, sendo obrigados a vivenciarem um jogo de atores diversos. Nesse jogo, estão presentes os governos nacionais, os organismos internacionais, as organizações financeiras internacionais, enfim, múltiplos atores imbuídos por múltiplos interesses, sejam eles de ordem econômica, ideológica, cultural, entre outros (VILLACORTA, GALLICCHIO, 2006). A partir dessa linhagem argumentativa que fora advogada por Rosenau e Czempiel (2000), sobretudo na década de 90, a governança se caracteriza por um conjunto de regulações, não emanados de autoridades oficiais (Estados), fruto de um mundo cada vez mais interdependente (ROSENAU, 2000; SMOUTS, 1998). Aos olhos de Rosenau (2000), "a governança sem governos" é uma realidade do mundo pós-guerra fria, tanto no plano das entidades supranacionais, como nos grupos subnacionais. Existe para este autor, um movimento constante de deslocamentos de autoridades que mitigam os governos em detrimento das governanças.

Seguindo outra raiz discursiva, as agências de desenvolvimento, também propagaram os seus ideários de governança na década de 90 (VILLACORTA, GALLICCHIO, 2006). Sob os auspícios desses discursos, a governança para agências como o Banco Mundial, o PNUD, dentre outras, criaram nos seus programas verdadeiras metodologias para a perseguição da chamada "boa governança". O PNUD, por exemplo, na década de 90 transformou o seu programa MDD (Menagement Development Division) em MDGD (Menagement Development and Governance Division), incluindo assim em sua agenda a busca pela governança. O Banco Mundial, por sua vez, desde 1994, publica periodicamente documentos dando conta de quais são os indicadores de boa governança para o Banco. Estes índices e planos, na sua maioria, endereçados aos países em desenvolvimento, tem como condão influenciar os Estados para que esses encampassem nas suas gramáticas práticas de accontability e responsabilidade dos governantes (SMOUTS, 1998).

Por fim, outra linhagem envolvendo o discurso da governança aconteceu logo após a queda do muro de Berlim, momento histórico que dá termo a guerra fria. Neste momento, sob a influência do ex chanceler alemão Willy Brandt, uma comissão de governança Global tentou inserir na agenda da comunidade internacional a noção de uma governança construída pelos indivíduos e instituições públicas e privadas em torno dos interesses comuns. Para essa governança não há uma opção pela anarquia do sistema internacional e, quiçá o aprisionamento a um conjunto regulatório pré-estabelecido, nela há a síntese de um processo de construção constante, no qual todos os atores devem estar imbuídos em um processo de trocas, negociações e ajustamentos mútuos (SMOUTS, 1998).

É curioso notar que, muito embora movidas por diferentes ideários, nessas três linhagens da governança existe um elo comum (ou um consenso), qual seja, a necessidade de um animus cooperandi.  Nesses três modelos de análise e de compreensão do mundo contemporâneo, a cooperação é a noção que dá causa a gestão do sistema internacional pautado em valores diferentes da anarquia.

Nesse sentido, a agenda de direitos humanos, para além de um mero regime internacional, é conditio sine qua non para a condução da governança mundial, na medida em que, no mundo pós bipolaridade, ela se insere no rol dos temas mais relevantes da ordem internacional, como é o caso dos temas ambientais (ALVES, 2003). Por essa via de raciocínio, juntamente com outros temas globais, os direitos humanos são encarados como prioritários, temas que encarnam em si, o sentido de "dever ser" dentro da conjuntura estrutural da "governança sem governos".

Por esse viés, o diplomata brasileiro José Augusto Lindgren Alves (2003), em sua obra "os direitos humanos como tema global", explica-nos que, ao contrário das questões ambientais, que de pronto são compreendidas na dimensão da sua relevância global13, o caso dos direitos humanos é um pouco mais complexo. Para este autor (2003), para além dos casos transfronteiriços de lesão de DH, os casos mais relevantes ocorrem dentro dos estados nacionais, em tempos de paz. Em sendo assim, Alves (2003) nos adverte que só com o fim da bipolaridade que esses casos vieram à tona no plano internacional, haja vista que uma série de conflitos nacionais, até então escamoteados pela guerra fria, tornaram-se mais transparentes, alertando ao mundo as possibilidades de instabilidade decorrentes do estado deplorável dos direitos humanos em vastas massas territoriais.

Dessa forma, Alves (2003) advoga a tese de que os direitos humanos são um tema global relevante e estratégico, na medida em que lesões recorrentes desses direitos são o estopim de guerras, não interessando para uma ordem liberal este tipo de instabilidade. Ademais, o autor (2003), alerta, também, que do ponto de vista econômico, os países ricos sabem muito bem utilizar-se dos DH, a fim de aumentar as suas condicionalidades imputadas aos estados do terceiro mundo e para os países em desenvolvimento, pela via da cooperação para os DH; por outra via, os países pobres e em desenvolvimento, também, se mostram sequiosos por essas ajudas.

Advogando tese semelhante, Bertrand Badie (2002) em "La diplomatie dês droits de l'homme: entre éthique et volonté de puissance14 "problematizará o jogo dos direitos humanos na ordem contemporânea. Nesse sentido, os Estados, para além dos fins meritórios dos direitos humanos, manejarão as suas cooperações para os DHs em prol do aumento dos seus interesses egoístas, próprios de uma concepção anárquica das relações internacionais. Essa característica, por certo, também, aplicará às estratégias regionais de integração, como é o caso da União Européia, do MERCOSUL, da UNASUL, dentre outros laboratórios de integração.

Diante desse breve panorama envolvendo a evolução dos direitos humanos, a sua percepção enquanto tema da governança global e as possibilidades do jogo diplomático em torno das agendas de direitos humanos, resta-nos nessa breve revisão, analisar a União Européia enquanto plaiyer dessas agendas. Como tem essa infante união de estados nacionais manejado a sua diplomacia em torno dos diretos humanos? Existe uma diplomacia dos direitos humanos pré definida e pré delimitada? Como ela tem sido construída ao longo dessa aventura comunitária?

 

A União Européia e a sua diplomacia dos Direitos Humanos: Abuso na terminologia?

Pensar o que é a política externa da União Europeia é, por si só, um exercício de ampliação semântica do vocábulo "diplomacia" em favor da compreensão das ações externas da Europa Unida. Ampliação, sobretudo, porque nesse fazer político há uma verdadeira apropriação de um campo de atuação historicamente limitado aos Estados Nacionais e as suas soberanias, soando, por vezes, ainda impróprio o uso do termo quando relacionada à ação externa de Organizações Internacionais intergovernamentais ou não governamentais.

Ainda pensando nas ampliações semânticas acerca da existência de sua ação externa pela via diplomática, a UE nos convida a refletir as maneiras de expressão do seu poder no cenário mundial contemporâneo. Não deve ser negligenciado o modo como essa sui generis instituição exercita alguma potencialidade mundial, sendo capaz de se impor pela economia, pela norma, bem como, pela força militar, ainda que limitada a vontade governamental dos seus Estados membros.  Nesse sentido, algumas correntes de análise tentam dar conta dessa dimensão discursiva de UE, sugerindo adjetivos tais como: potencia civil (Duchene, 1993), potência normativa (Manners, 2002; Laïdi, 2008), Soft Power (Nye, 2004), potencia tranquila (Todorov, 2003), etc. Essas noções exprimem o fato de que a UE se transformou em instituição relevante na conduta da política mundial, produzindo a idéia de uma governança que não responde à força como primeiro elemento da sua rotina internacional.

A busca por uma ação externa por parte da UE remonta desde os seus primórdios quando da CED15 (Comunidade Européia de Defesa) e do plano Fouchet16, duas experiências que, embora fracassadas nas suas operacionalidades, se constituíram em primeiros passos desse esforço coletivo de se construir um consenso em matéria de política externa (Petiteville, 2006).

A partir da década de 1970, ainda sob o cenário da guerra fria, a União Européia inicia de modo informal uma prática intergovernamental de cooperação política no plano da política externa. Nesse sentido, a Cooperação Política Européia - CPE se constituiu em um verdadeiro espaço de diálogo entre as diplomacias européias, forjando, assim, alguns hábitos em torno de uma concertação diplomática entre os Estados, a harmonização de posições nacionais sobre questões internacionais e as primeiras ações comuns. Todavia, essa cooperação, ao contrário de outros enclaves da vida comunitária, como a exemplo da cooperação monetária, sofreu limitações ao longo dos seus 20 anos de existência, restando um aparato extremamente isolado das instituições comunitárias, limitada aos Ministérios de Relações Estrangeiras e ao Conselho Europeu (Petiteville, 2006).  Isolamento e informalidade: essa será a gênese de uma rede de aparelhos diplomáticos em torno de temas comuns e transversais, algo que mais tarde será formalizado pelo Ato Único (1986) e pelo Tratado de Maastricht (1992).

No pós guerra fria, os processos de fortalecimento institucional da União Européia não se limitará ao plano interno, razão pela qual se buscará, também, alguma ação política com o fito de se firmar uma imagem pública internacional dotada de alguma credibilidade em matéria de política externa. Em um mundo recém liberto da bipolaridade, nada mais oportuno para as antigas potencias que a busca pela redefinição dos espaços no cenário mundo recém inaugurado.

É justamente a partir do Tratado de Maastricht (1992) que a política estrangeira europeia sofrerá ajustes institucionais ganhando assim o status de uma verdadeira diplomacia, uma vez que ela avança do "domínio reservado" das soberanias para uma visão comum em política externa. São justamente a partir das disposições de Maastricht em relação a uma política comum externa e de segurança (a Política Externa de Segurança Comum) sob a responsabilidade do Conselho que a União Européia irá construir suas estratégias comuns de alcance continental, estratégias essas que serão balizadas a partir de condicionantes normativas capazes de criar normas para direcionar os comportamentos dos Estados signatários. Não à toa, figurarão como objetivos de Maastricht a manutenção da paz e da segurança internacional, a promoção da cooperação internacional, o desenvolvimento, a democracia, bem como, os Direitos Humanos. É justamente nesses objetivos que residem os aparatos jus-filosófico para uma prática diplomática diferenciada, uma prática que se impõe por um exercício coletivo meritório, um "abandono" da força em favor da "boa governança", da "boa norma", enfim, do bom direito internacional ungido pelas benesses do multilateralismo.

Nota-se que, embora tenha provocado uma verdadeira revolução copérnica na cooperação européia em matéria de política externa, sobretudo porque promove a sua institucionalização, Maastricht não conseguiu forjar uma diplomacia completamente integrada à vida comunitária, ficando a PESC um braço ainda à parte da estratégia comum, tal como nos tempos da CPE. Será, justamente, a partir de Amsterdã (1997) que novas ferramentas serão inseridas na PESC, tornando-a, assim, um instrumento da vida comunitária, para além, de uma tática intergovernamental. Dentre essas estratégias, Koechlin (2009) aponta:

a) As estratégias comuns, uma ferramenta normativa que lança para o Conselho a obrigação de definir por consenso quais seriam os interesses comuns dos Estados membros, a fim de que os mesmos sejam guiados por uma estratégia comum fornecida pela União Européia. Essa estratégia se constituirá, assim, em um norte comum a todos, capaz de unificar os discursos e as ações em termos de política externa;

b) A chancelaria da PESC, um cargo criado com poderes direcionados para a articulação da política estrangeira da União. Assim, a política estrangeira da UE passa a ser regida pelo triunvirato composto pelos seguintes atores: Ministro das relações externas do país que preside a União Européia, o alto comissariado responsável pela política estrangeira e o "Senhor PESC";

c) Abstenção construtiva, ferramenta que permite ao Conselho colocar em prática uma decisão, ainda que alguns dos Estados tenha se abstido. Essa ferramenta permite que a abstenção não seja tomada como um impasse, mas, sim, como uma oportunidade de reflexão para concordância posterior.

Todavia, a PESC não fora capaz de evitar a impotência européia face aos conflitos de sua própria periferia. Para tal, era necessária uma parcela de força, um braço militar que prolongasse e legitimasse a PESC, dando a ela alguma efetividade para além do discurso. Não à toa, o compromisso franco-britanico de Saint Malo em 1998 de mobilizar uma Força de Reação Rápida (FRR) de soldados e meios civis para gerar crises e ajudar a reconstrução de Estados colapsados dá o pontapé inicial para formulação da Política Europeia de Segurança e Defesa - PESD. Um pouco mais à frente, essa será uma política referendada pelos tratados subsequentes, tais como o de Nice (2001) e o de Lisboa (2009).  Essa política de cooperação militar tem como traço curioso a junção da força com as tecnologias sociais de manutenção da paz e reconstrução de Estados, um argumento que a torna palatável e coerente com o discurso normativo.

Para além de uma política externa formal, tal como a PESC e a PESD, outras ferramentas compõem a política externa comunitária. Essa é uma das fortes características de uma ação internacional que não se limita a quadros institucionais determinados e é marcada por uma pluralidade de atores (Smouts, 2006). Não à toa, a ação internacional da União Européia, para além da política externa e de segurança (PESC), compreende a institucionalização de outros dois domínios, quais sejam: a política comercial (que por se só já comporta um estudo de caso à parte) e as políticas de cooperação com os Estados e regiões.

É justamente nessa segunda esfera de institucionalização da sua ação internacional, a chamada diplomacia cooperante, que a UE realiza um fazer diplomático que complementa e se imbrica com a própria PESC, cobrindo, assim, as suas lacunas e ausências (Petiteville, 2006). Essa diplomacia cooperante abrange os acordos de cooperação, as parcerias institucionais, as ajudas para o desenvolvimento, a diplomacia dos DHs, enfim, uma extensa agenda de práticas que pretende, segundo os documentos oficiais, ser pautadas no diálogo, nas pressões diplomáticas e, sobretudo, na exportação de valores, comportamentos e normas para os outros atores da sociedade internacional, sobretudo, os mais condicionados.

É com esse braço da ação externa que a UE busca fortalecer a sua imagem pública de potência civil, uma vez que nela está contido um fazer externo que mescla o rol dos interesses comunitários à vontade de influir para além das suas fronteiras nos principais temas da contemporaneidade. Assim, essa diplomacia cooperante está muito bem conectada com as preocupações da "boa governança" descritas na primeira parte deste caso, preocupações, essas, que se colocam nas temáticas do desenvolvimento, nos processos de fortalecimento das democracias, na defesa dos direitos humanos, na ação humanitária em espaços colapsados, nas questões ambientais e na solução pacífica dos conflitos. Nesse sentido, essa diplomacia cooperante tem um espectro mundial a partir de uma imbricada teia de relações com as suas periferias, as grandes potências, as Organizações Internacionais e, sobretudo, a ação prática dos atores não governamentais, sobretudo, das ONGS e das empresas.

Nesse sentido, a promoção dos Direitos Humanos pela União Europeia, por sua vez, tem lugar  relevante no seu discurso relativo à sua diplomacia cooperante para o desenvolvimento. É essa bandeira que torna a sua presença importante nessa fauna habitada pelos múltiplos atores da cena internacional contemporânea. Todavia, a matriz econômica dessa Europa comunitária que se transforma em "organização dos Direitos Humanos", para além dos méritos, nos convida a uma série de questionamentos no que concerne às suas imparcialidades e influências.

Ao bem da verdade, ainda que não com esse nome, os Direitos Humanos já se fazem presentes nos documentos da UE desde a sua gênese dada à vinculação do Conselho da Europa aos termos da Convenção Europeia de Direitos Humanos de 1950, algo que condicionava a Europa comunitária aos DHs, ao que pese o silêncio do Tratado de Roma (1957). Ademais, no plano jurídico, a Corte de Justiça da Comunidade Européia - CJCE, a fim de compor as lacunas do Tratado de Roma, formulou uma jurisprudência vinculando os direitos fundamentais como sendo princípios gerais do direito comunitário. Não à toa as dificuldades de Espanha, Portugal e Grécia de adentrarem à comunidade enquanto viviam sob o julgo das ditaduras (Petiteville, 2006).

Muito embora seja no Ato Único que os "Direitos Humanos" finalmente passam a compor a redação dos tradados comunitários, é justamente em Maastricht (1992) que toda comunidade passa formalmente a se vincular à Convenção Européia de Direitos Humanos. Ademais, é justamente em nesse momento que os DHs são colocados como objetivo central da PESC e da cooperação européia para o desenvolvimento. Algo que será aprofundado pelos tratados de Amsterdã (1997) e de Nice (2001).

Dentre as manifestações dos Direitos Humanos na agenda cooperante da UE, aponta-nos Petiteville (2006): a) cláusulas de condicionalidade democrática inseridas nos acordos e cooperações, bem como, nos programas de ajuda para o desenvolvimento; b) posições comuns da PESC no que concerne ao acompanhamento de processos eleitorais, bem como, regiões sob suspeita de violação dos DHs; c) financiamento de ONGs de Direitos Humanos que estão no quadro da "Iniciativa Européia pela democracia e a proteção dos Direitos Humanos"; d) diálogo político institucionalizado pela via bilateral (a exemplo da China) ou pela via regional (ASEAN, América Central, etc); f) manutenção de esforços diplomáticos no sentido de se enviar altos representantes da UE para mediar questões que envolvam os DHs; g) política institucional de sancionar os Estados que violentam de maneira manifesta os DHs e os princípios democráticos; h) construção de consensos junto às diplomacias nacionais dos Estados membros em matéria de PESC, buscando manter certa coerência nos debates havidos no seio das Nações Unidas em temas relacionados aos Direitos Humanos, em particular, no Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Ao que pesem os méritos desse protagonismo presente nos documentos da UE, e não ser essa uma bandeira presente na maioria das instituições atuantes na cena internacional, observa-se o uso das conveniências e oportunidades em favor dos interesses geopolíticos de uma UE potente, mas ao mesmo tempo, limitada. Um jogo, nas palavras de Petitieville (2006), de geometria variável, no qual vigora a lógica de "um peso para duas medidas".  Nesse sentido, uma primeira análise das condicionalidades da UE em matéria de Direitos Humanos, bem como, das suas políticas de sansões sugerem maior comprometimento desse ator com as suas lógicas de interesses que necessariamente uma preferência radical pelos Direitos Humanos. Porque o tratamento desse ator é tão diferente em relação às violações de Direitos Humanos perpetradas por estados como os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, a Rússia, a China e demais estados da Associação do Sudeste Asiático - ASEAN, ao passo que se autoriza a ser tão pouco indulgente com a África Subsaariana? É justamente nessa ambiguidade que reside um amplo campo de pesquisa acerca da politização dos Direitos Humanos, campo que ainda carece maior atenção acadêmica.

 

Considerações finais

O presente estudo, a partir da sua narrativa e análise, buscou refletir sobre a construção de uma nova expressão da política contemporânea a partir dos elementos presentes na cena do internacional, elementos estes que exercitam, a todo o momento, o jogo dos entrecruzamentos e da interdependência. Esse é o elo que une e media a diplomacia cooperante da UE para o desenvolvimento e os consensos construídos a partir da década de 1990 nos fóruns de negociação internacional.

Nesse jogo de xadrez, o fim da bipolaridade parece ter sido o evento desencadeador de uma jogada magistral capaz de alimentar o sonho Europeu de reconstituir a sua condição de potencia à luz de um multilateralismo mágico que lhe permite exportar produtos, solidariedades e modelos normativos de boa conduta. Todavia, esse ainda não foi o momento do cheque mate, no jogo em curso, alguns eventos que marcaram a década de 1990 e o início dos anos 2000, tais como as crises do Leste europeu e o onze de setembro parecem ter alterado a disposição das peças no tabuleiro. Nesse lócus em que a Europa busca se afirmar como uma rainha de potência normativa crível, ela ainda deve driblar os peões da quase falida ACP, uma vez que estes ainda são resistentes às mudanças nas antigas regras do jogo. Deve, também, se municiar de melhores instrumentos para impor aos Estados Unidos, Rússia e China, grandes torres de marfim, todos os "consensos" pactuados com a opinião pública internacional, bem como nos espaços sagrados do livre comércio. Mas ela também não pode esquecer-se de domar os saltitantes "intrusos" cavalos ilegais que disputam com as diplomacias o espaço da cena internacional, são eles os terroristas, os neo piratas, traficantes, contrabandistas, dentre tantos outros equinos que, por tanto pulularem, são difíceis de serem identificados e nomeados. Kadaffis, Mubarakes, Ahmadinejades, dentre tantos outros ditadores, ainda continuam sendo os bispos impertinentes que insistem em proteger a rainha branca da realpolitics, em detrimento da rainha negra do liberalismo soft.

 

Referências

BADIE, Bertrand. 2000. Um mundo sem soberania, os Estados entre o artifício e a responsabilidade. Lisboa: Instituto Piaget [Coleção Economia e Política] (Introdução, pp. 9-18; capítulo 4: As soberanias perdidas, pp. 123-174).

------------------------. La Fin des Territoires, essai sur le désordre international et sur l'utilité sociale du respect. Paris: Fayard, Collection L'Espace du Politique,1995.

-----------------------  La diplomatie des droits de l'homme: Entre éthique et volonté de puissance. Paris: Fayard, Collection L'Espace du Politique, 2002.

-----------------------  Le diplomate et l'intrus: l'entrée des société dans lárène internationalle. Paris: Fayard, Collection L'Espace du Politique, 2008.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 7ª ed., Brasília, DF, Editora Universidade de Brasília, 1995.

CANOTILLO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e a Teoria da Constituição. Coimbra, Almedina, 5ª edição, 1995.

COURTY, Guillaume et DEVIN, Guillaume. La Construction européene. Paris, La écouverte, 2001.

DONNELLY, Jack. International human rights : a regime analysis. International Organization, vol 40, nº 3 (Summer, 1996), pp 599-642.

DUCHENE, François. La communauté européene et les aléas de l'interdependance. In : Kohnstamm, Max et HAGER, Wolfgang. L'Europe avec un grand E. Robert Laffont, Paris, 1973.

FONTAINE, Pascal. A União Européia em 12 lições. Série: Documentação Européia, Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Européias, 2003.

KOECHLIN, Jérôme. L'Europe a-t-elleun adresse? La politique étrangère de l'Union européenne. Georg, Collection « L'Europe en perspective«, Genève, Paris, 2003.

LAFER, Celso. A reconstrução dos Direitos Humanos: Um diálogo com o pensamento de Hannanh Arendt. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.

___________ Prólogo. In: LINDGREN ALVES, J. A. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: FUNAG/Perspeciva, 1994.

LAÏDI, Zaki. La norme sans La force. Paris, SciencesPo, 2008.

LINDGREN ALVES, J. A. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: FUNAG/Perspeciva, 1994.

MENDEZ, Garcya. Origem, sentido e futuro dos direitos humanos: reflexões para uma nova agenda. In: SUR, Revista Internacional de Direitos Humanos, ano 1, 1º semestre, edição em Português, 2004.

MANNERS. Ian. Normative Power Europe: A contradiction in Terms ? In: Journal of Common Market Studies, June, 2002;

MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Editora Forense, Rio de Janeiro, 2002.

MILANI, Carlos R. S. e LANIADO, Ruthy Nadia. 2006. Transnational Social Movements and the Globalisation Agenda: a methodological approach based on the analysis of the World Social Fórum. Artigo premiado pelo Centro Edelstein de Estudos Sociais e Associação Brasileira de Ciência Política, 26 p.

MORGENTHAU, Hans J. A política entre as nações: a luta pelo poder e pela paz. Brasília: Edunb, IPRI; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003.

MUÑOZ, Enara Echart et, SANTAMARIA, Antonio (orgs.). África en el horizonte: Introducción a La realidad socioeconômica Del África Subsahariana. Instituto universitario de desarrollo, Madrid, 2006.

NYE. Joseph. Soft power. The means to success in world politics, Public Affairs, New York, 2004.

PETITEVILLE, Franck.La politique internationale de l'Union Européenne. Paris, SciencesPo, 2006.

RISSE-KAPPEN, Thomas (org.). 1995. Bringing Transnational Relations Back In, non-state actors, domestic structures and international institutions. Cambridge: Cambridge University Press.

SMOUTS, Marie-Claude. Les nouvelles relations internationales: pratiques et théories. Paris, Presses de Sciences Po, 1998.

 

 

1. Sur la solidarité, regarder l'ouvre de Marcel Mauss: "Essai sur le don".
2. O movimento constitucionalista inglês foi fruto da continuidade histórica desde o século XIII, quando começaram a surgir os primeiros documentos de natureza constitucional. Nesse sentido, enquanto movimento, não se traduziu em uma ruptura política, mas, sim, em uma constante construção normativa pautada pelo ideário da limitação  do poder do Estado em relação aos direitos dos cidadãos e a ordenação dos poderes.
3. O movimento constitucionalista americano nasce da contestação anti colonial e teve seu apogeu em 1787, quando da independência americana e a promulgação da sua constituição.  Esse movimento teve como legado para os Direitos humanos a importância dada aos valores democráticos.
4. Este movimento é caracterizado pela ruptura política proporcionada pela Revolução Francesa. Dentre os legados desse movimento para a agenda dos direitos humanos, encontra-se os ideários de liberdade e igualdade dos homens e dos cidadãos.
5. Referência a Hugo Groctius, autor fundador do Direito Internacional no século XVII, sobretudo a partir da obra De iure belli ac pacis (Do Direito da Paz e da Guerra).
6. "Las buenas intenciones: Intervención humanitária em África".
7. É campo e preocupação da gestão sim, na medida em que grande parte das novas agendas dos estudos organizacionais irão se pautar em temas relacionados aos Direitos Humanos. Vide as bases da economia solidária (direitos ao desenvolvimento social), aos poderes locais (direito a participação e a democracia), dignidade no ambiente de trabalho (dignidade da pessoa humana), enfim, temas próprios do século XX, desenvolvidos, precipuamente, pela filosofia do Direito e abraçada pela gestão.
8. Alusão a obra de Eric Hobsbaw (1994) "O breve século XX".
9. Essa natureza metafísica está intimamente ligada a tradição do direito natural, que tende a acreditar que o direito é algo dado aos homens por algo que lhes é superior.  Nessa tradição, ao longo da historia do direito, se identificam três donatários do direito de um modo geral: a) visão panteísta - o direito é um dado da natureza; b) visão teológica - o direito é dado por Deus, ou pelos Deuses; c) visão racionalista - o direito é dado pela razão humana.
10. Esses autores seguirão a tradição do positivismo jurídico, ou seja, os direitos são construídos a partir da expertise humana de confeccionar leis, a partir dos seus processos sócio políticos.  Ele, o direito, ao contrário do paradigma natural, não é dado, é construído paulatinamente. Assim, as leis surgem para normar comportamentos da vida coletiva.
11. Construtiva aqui no sentido de que os direitos são construídos dia a dia.
12. Cogência no sentido de obrigatoriedade e vinculação jurídica. Desse modo, no vocabulário jurídico, cogente é a regra que é absoluta e cuja aplicação não pode depender da vontade das partes interessadas (no nosso caso acima ilustrado, os Estados). Tem que ser obedecida fielmente; as partes não podem excluí-la, nem modificá-la.
13. As questões ambientais são perceptíveis por todos habitantes do planeta. Aquecimento global, chuvas ácidas, diminuição da camada de ozônio, ou seja, uma série de eventos ambientais transnacionalizados que alteram o cotidiano das populações do mundo.
14. A diplomacia dos direitos do homem (tradução nossa).
15. A CED (Comunidade Européia de Defesa) (1950-1954) foi uma iniciativa francesa para barrar o rearmamento alemão no pós guerra.
16. O Plano Fouchet (1961 e 1962) foi uma proposta do General De Gaulle propondo uma cooperação em matéria de política externa. Essa proposta foi recusada pelos países de menor amplitude geográfica, sobretudo pelo medo de um retorno a política de concerto europeu (a Bélgica e os Países Baixos).