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Print ISBN 2236-7381

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Acomodação estratégica? As relações entre o Brasil e os Estados Unidos durante o governo Lula (2003-2010)

 

 

André Luiz Reis da Silva*

Doutor em Ciência Política (UFRGS). Professor Adjunto de Relações Internacionais do Departamento de Ciências Econômicas da UFRGS. Pesquisador do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT/UFRGS), com apoio da FAPERGS e do CNPq. Contato: reisdasilva@hotmail.com

 

 


RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo analisar as relações do Brasil com os Estados Unidos durante o governo Luis Inácio Lula da Silva (2003-2010), em especial as possibilidades de cooperação e conflito no contexto regional e global. Discute a idéia de "acomodação estratégica" para interpretar as relações bilaterais Brasil-Estados Unidos na ultima década. Com relação aos Estados Unidos, o governo Lula realizou uma inflexão, amparada nas mudanças paradigmáticas ocorridas na política externa brasileira na ultima década. Os Estados Unidos passaram, diante da ascensão do Brasil no cenário internacional, a considerar o país como um importante interlocutor na política externa para a América do Sul, realizando uma "acomodação estratégica", embora matizada. Já no âmbito global, fortificou-se o "diálogo estratégico" entre as duas nações. No entanto, essas relações não afastam a perspectiva de dificuldades nas relações entre os dois países, em amplas agendas que passam por temas variados, como os conflitos no Oriente Médio, a integração regional, os contenciosos na OMC e temas de segurança.

Palavras-chave: Brasil; Estados Unidos; política externa; governo Lula


 

 

Introdução

Na década de 1990, o Brasil sofreu uma mudança na matriz de sua política externa, alterando um padrão de continuidade que remontava a década de 1970. A matriz emergente de inserção internacional do Brasil nos anos 1990 assumiu o processo de globalização e a adoção de políticas neoliberais como paradigma de desenvolvimento, que seria capaz de permitir a superação da crise econômica e da estagnação dos anos 1980. Esse movimento paradigmático, que atingiu diversos países da América Latina, foi acompanhado em parte pelo Brasil, reorientando sua inserção internacional, que desde o final da década de 1980 substituiu sua matriz de política externa desenvolvimentista pela matriz neoliberal. Os governos posteriores a Fernando Collor, embora mantendo em grande parte as reformas preconizadas pelo Consenso de Washington no plano interno, na política externa priorizaram a integração regional e revalorizaram o Mercosul como opção de inserção internacional.

Neste contexto sem discutir a hegemonia norte-americana no sistema mundial, o governo Cardoso (1995-2002) procurou aumentar sua liberdade de atuação, ampliando sua inserção em outros espaços. Assim, não buscou uma integração com os EUA que pudesse lhe colocar em uma situação subalterna. O governo brasileiro também entendia que a integração - através da Alca - não poderia diluir acordos anteriores, como o Mercosul, o que conferia a este uma posição privilegiada neste processo. Por outro lado, a resposta à crise do Mercosul (1999) e à nova ofensiva diplomática norte-americana veio com a proposta brasileira de integração da América do Sul, região definida pela diplomacia brasileira como seu espaço de interação primordial (SILVA, 2009)

Na ultima década, a política externa brasileira foi se estruturando sobre uma nova matriz de inserção internacional, que constitui a superação do modelo de inserção internacional do país dos anos 1990. A nova matriz de política externa tem como principais características o aprofundamento da integração regional (seguido de uma mudança de enfoque), a retomada da tradição multilateral do Brasil, um novo perfil critico das relações assimétricas entre os Estados, a busca de parcerias estratégicas com países similares em todos os continentes e uma reaproximação aos países subdesenvolvidos, bem como a manutenção de relações com os países desenvolvidos.

Neste contexto de acirramento da política externa americana do governo Bush (unilateralismo e securitização) e com a ascensão do governo Lula, imaginou-se que o conflito com os Estados Unidos seria acirrado, dado que a política externa brasileira estava a sofrer uma nova reorientação. Entretanto, verificou-se que, embora tenham ocorrido diferenças de posição em diversas áreas, estes ficaram limitados e não comprometeram as relações bilaterais.

 

Estratégia brasileira na relação com os Estados Unidos

Paulo Batista Jr. considera que houve uma notória perda da influência e de prestígio norte-americanos em relação ao Brasil e aos demais países da América do Sul. A situação atual é diferente daquela que prevaleceu na década de 1990, quando a maioria dos países latino-americanos era governada por políticos alinhados à doutrina norte-americana em maior ou menor intensidade. Na virada do milênio, esse quadro inverte-se, já que forças políticas de centro-esquerda obtêm vitórias eleitorais consistentes. O caso brasileiro, na transição para o governo Lula, não é diferente e, nesse sentido, as estratégias de política econômica e política externa foram alteradas, influenciando a relação bilateral.

Nos últimos anos, tanto no campo comercial como no financeiro, o Brasil reduziu consideravelmente a sua vulnerabilidade internacional, bem como sua dependência econômica em relação aos Estados unidos. Dessa forma, o Brasil pôde desempenhar um papel central na integração gradual dos países sul-americanos, além de alterar os rumos das negociações da ALCA e de painéis da OMC. A estratégia para a América Latina, mantida pelo governo Bush teve participação decisiva nesses acontecimentos:

"A inabilidade da administração Bush e a sua tendência a atitudes unilaterais e impositivas alimentaram o ressentimento contra o poder de Washington e facilitaram a implementação de estratégias de resistência na América do Sul, assim como em outras partes do mundo. O governo Bush deu, assim, importante contribuição involuntária ao renascimento das preocupações com a autonomia nacional e a integração sul-americana." (BATISTA JR., 2008, p. 229.)

Devido as suas dimensões, o Brasil não necessita, a rigor, do resto da América do Sul para construir seu projeto de crescimento socioeconômico. Mesmo que houvesse um hipotético alinhamento e subordinação total dos vizinhos em relação aos Estados Unidos, o Brasil não precisaria acompanhá-los. No entanto, não há dúvidas de que o processo de integração regional reforça o potencial desse desenvolvimento e fortalece cada vez mais a imagem brasileira no plano internacional. Assim, a transformação da América do Sul em um pólo coeso e dinâmico potencializa a posição internacional do Brasil (BATISTA JR., 2008, p. 238).

Para Ricardo Sennes, a expansão da presença internacional brasileira foi resultado da consolidação democrática, ocorrida na década de 1990, e da crescente participação das empresas - principalmente estatais, como a Petrobrás, no mercado global. O perfil e a política externa do Brasil foram se alterando e "ese proceso no está relacionado con uno u otro gobierno o política, sino principalmente con los cambios estructurales en el sistema político, en la economía y en el perfil de la élite brasileños." (SENNES, 2008, p. 91)

Neste contexto, ocorreu uma redefinição do papel dos Estados Unidos na agenda exterior brasileira. No que concerne à América do Sul, a tendência é que ambos os países atuem, implicitamente, em parceria. Esse "acordo tácito", como define o autor, permitiu que os dois países ampliassem a sua presença naquela região sem que isso acarretasse tensões ou conflitos. Para explicitar a questão de que os interesses são sutilmente convergentes, Sennes lança mão do exemplo colombiano:

"El aumento de la presencia de Estados Unidos en América del Sur, más allá del Plan Colombia, su base de inteligencia en Paraguay y las bases implantadas también en Ecuador y en otros países, no fue percebida por Brasil como contraria a su propria política para la región." (SENNES, 2008, p. 84)

Segundo Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni, as relações com os Estados Unidos, tanto nos governos Fernando Henrique Cardoso quanto de Lula da Silva, remetem a diretrizes já expressas neste campo ao longo da história brasileira. O primeiro, através de uma "amizade" com os Estados Unidos e uma estratégia de "autonomia pela participação" (a manutenção da "margem de manobra" com a ampliação da interdependência econômica) são referências às "escolas diplomáticas" de Rio Branco (1902-1912) e de Aranha (1938-1943).

Por outro lado, o governo Lula da Silva realiza uma política de defesa à soberania e aos "interesses nacionais", criando, eventualmente, conflitos potenciais com os norte-americanos. Essa chamada "política externa independente" foi desenvolvida por San Tiago Dantas (1961-1963) e ratificada por Azeredo da Silveira (1974-1978). Essa estratégia conduziu o Brasil à condição de líder regional da América do Sul (VIGEVANI & CEPALUNI, 2007 p. 276).

De acordo com Frank Braun (2009) A opção de dizer "não" aos Estados Unidos é um indicador significativo da nova posição ocupada pelo Brasil no sistema internacional: não só um líder regional, mas também uma potência global. Essa nova realidade é revelada através da atuação brasileira em fóruns internacionais, como o G-20, centradas na figura do presidente Lula. O líder brasileiro é visto como capaz de superar as barreiras ideológicas e unir os países emergentes, além de constituir-se como mediador nas questões da América do Sul (BRAUN, 2009, p. 239).

Essa postura mais autônoma por parte do Brasil foi fortalecida pela crise econômica mundial, no momento em que os Estados Unidos encontravam-se em recessão. Enquanto o resto do mundo ainda lutava para suplantá-la, o Brasil apresentou baixa vulnerabilidade. Devido a esse resultado satisfatório, o presidente Lula passou a defender com mais ênfase que as nações emergentes devem ter uma maior influência nos rumos das instituições financeiras mundiais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. O embaixador brasileiro Antônio Patriota enfatizou essa opção de dizer "não", apontando que a crise resultara das ações capitalistas dos norte-americanos e que, portanto, não devem ser seguidas. O Brasil deve pensar por si próprio e não simplesmente acompanhar a potência do norte:

"Patriota said, when the world assumed that 'the Americans understood capitalism, that they knew what they were doing. But [following] the meltdown [of] the financial system...the Americans showed that they didn't know what they were doing. So, for us to follow American advice [on economic matters]? No, we will do what we think best.'" (BRAUN, 2009, p. 241)

Apesar da sua maior participação na agenda mundial, o Brasil ainda não pode guiar-se exclusivamente pela sua própria orientação. Ao mesmo tempo em que busca ser reconhecido como imune às pressões norte-americanas na sua região, o país ainda tem interesse na manutenção do diálogo positivo com os Estados Unidos, visando a uma maior participação nos debates acerca das mudanças climáticas e das reformas nas instituições internacionais.

Assim, o Brasil procura traçar um delicado caminho estratégico que promova a integração sul-americana, sem deixar, simultaneamente, que os seus vizinhos que adotam políticas anti-Estados Unidos (como Bolívia, Venezuela e Equador) entrem em conflito direto com os norte-americanos. Dessa forma, o Brasil observa cuidadosamente a aliança desses países com forças extra-regionais, como a China e Rússia, porque se gerariam pressões ostensivas por parte dos norte-americanos, que poderiam sufocar a ascensão brasileira na região (BRAUN, 2009, p. 245).

José Luis Fiori considera que, a partir do século XXI, houve um amadurecimento político-econômico, através do processo de integração e das relações comerciais com a China, que coloca fim ao que chamou de "adolescência assistida" da América do Sul. Dessa forma, a região adquire uma gradual e relativa autonomia em relação aos Estados Unidos. A não ser que o Brasil opte por se manter na condição de "sócio menor" dos Estados Unidos, respeitando o espaço econômico "supranacional" dos norte-americanos, as prováveis conseqüências desse novo quadro são o aumento dos conflitos dentro da própria região e um agravamento da competição hegemônica entre os dois países (FIORI, 2009, p. 39).

Segundo o autor, ao longo da história brasileira, nunca houve uma tentativa expansionista que se opusesse aos interesses, num primeiro momento, da Grã-bretanha, e, posteriormente, dos Estados Unidos. Não obstante, Fiori aponta para uma alteração significativa:

"Mais recentemente, entretanto, depois de 2002, a política externa brasileira mudou de rumo e assumiu uma posição mais agressiva de afirmação sul-americana e internacional dos interesses e da liderança brasileira - como na prioridade que vem sendo dada à integração sul-americana e às relações mais próximas com alguns países da África e da Ásia, em particular, China, Índia e África do Sul." (FIORI, 2009, p. 40)

Mesmo assim, para o autor, devido à grande diferença de magnitude político-econômica entre Brasil e Estados Unidos, o primeiro não é reconhecido estrategicamente como um adversário. Em segundo lugar, o autor condena a desorganização dos investimentos brasileiros, em ambos âmbitos público e privado, que resultou num crescimento tímido da economia nas últimas décadas. Por fim, a força política brasileira, interessadas na consolidação do papel de "sócio menor", surge como freio para um potencial desafio brasileiro em relação à potência do norte (FIORI, 2009, p. 40).

Por outro lado, Brasil e Estados Unidos consideram-se mutuamente parceiros estratégicos importantes, sem, entretanto, renunciar aos seus interesses particulares. As relações, que envolvem várias áreas, como os acordos comerciais e até mesmo as pretensões brasileiras de reformas organismos internacionais, evoluíram, passando da "autonomia" (entre 1999 e 2004) ao estágio atual, chamado por Cristina Pecequilo de "diálogo estratégico". (PECEQUILO, 2008)

Quanto ao primeiro período, a Pecequilo (2008) argumenta que não houve avanços nem recuos significativos, caracterizando as relações bilaterais como em estado de espera. A autora argumenta que isso se deveu à agenda neoconservadora da Doutrina Bush, que delegava notória prioridade estratégica à Eurásia. Essa estagnação é exemplificada no caso das negociações acerca da ALCA, que não avançaram, passando por um momento de inflexão:

"Na ALCA, compartilhando a presidência do arranjo, o Brasil e os EUA enfrentaram os mesmos dilemas existentes desde 1994, sem disposição para mudar. Mais duas reuniões de cúpula foram realizadas em 2004 (Monterrey) e 2005 (Mar del Plata), adiando o projeto sem previsão de retomada (mesmo as alternativas da ALCA light que propunham a abertura gradual e diferenciadadas economias não tiveram ressonância)." (PECEQUILO, 2008, p. 98)

Em 2003, quando da eleição do presidente Lula, temia-se que as relações passassem do marasmo ao conflito, já que alguns analistas associavam a retórica de Lula à de Hugo Chávez, crítico da política norte-americana. Não obstante, essa expectativa não se concretizou, esclarecendo as diferenças entre os governos brasileiro e venezuelano. Nesse sentido, a autora aponta:

"Passou-se a ter uma percepção mais realista do que os EUA poderiam oferecer ao Brasil, encarando-se pragmaticamente o papel da nação hegemônica no mundo como o de líder, mas pressionado por outros pólos e na economia" (PECEQUILO, 2008, p. 98)

Ao aproximar-se dos vizinhos do Mercosul e dos demais países emergentes (como Índia, Rússia e China), o Brasil desvencilhou-se gradualmente da influência norte-americana, adquirindo indiretamente mais autonomia em relação aos Estados Unidos. Mais respeitado e tido definitivamente como uma potência de alcance regional, as possibilidades de intercâmbio bilateral com aquele país ampliaram-se.

A conjuntura altera-se com o segundo mandato de Bush. Se, no primeiro, as opções unilaterais conduziram os Estados Unidos ao isolacionismo e encolheram os contatos com os Brasil, no segundo, estabeleceu-se o "diálogo estratégico". Isso permitiu uma aproximação política entre as partes, embora as tradicionais diferenças tenham permanecido. A autora sintetiza essa nova fase de relacionamento:

"Comprovou-se que o diálogo é mais forte quando ambos buscam suas prioridades e tradições, respeitando interesses. Para o Brasil, isto representa uma avaliação madura do bilateralismo como uma, e não a única, de suas alternativas, respeitando suas potencialidades e limites, assim como as de seu parceiro. A reafirmação da parceria com os EUA passa por uma elevada dose de pragmatismo direcionado aos canais do intercâmbio e ao reforço positivo das relações com as outras nações desenvolvidas, países emergentes e de menor desenvolvimento relativo, atrelada a uma política independente e confiante" (PECEQUILO, 2008, p. 102-103).

Para Seelke e Meyer, a posição de única potência regional na América Latina é refletida nas diretrizes da política externa do Brasil. Líder entre os países em estágio de desenvolvimento, esse país engaja-se na cooperação econômica e na segurança coletiva da região, apoiando-se numa diplomacia multilateral, que, às vezes, serve de freio para as ambições norte-americanas. Ressaltam os autores:

"Brazil's independent approach to foreign policy has led to periodic disputes with the United States on trade and political issues, including how (and whether) to create a Free Trade Area of the Americas (FTAA) and Brazil's vocal opposition to the war in Iraq and the U.S. embargo of Cuba." (SEELKE & MEYER, 2009, p. 12.)

Nesse sentido, a partir de um prisma comercial, argumenta-se que, para sustentar sua autonomia e liderança, o Brasil prioriza as relações com os membros do Mercosul e demais países em desenvolvimento se comparadas àquelas com os países já desenvolvidos (como o bloco europeu e os Estados Unidos).

 

Estratégia dos Estados Unidos em relação ao Brasil

Para Ricardo Sennes, essa nova presença internacional do Brasil é bem-vista pelo governo estadounidense. Embora não seja considerada uma área estratégica prioritária, a potência do norte aprova o desempenho brasileiro como o ponto-de-equilíbrio e o principal agente mediador da América do Sul, incentivando-o para garantir a estabilidade da região. Para o autor, destacam-se quatro focos de tensão, divididos em dois grupos, em que tanto Brasil quanto Estados Unidos têm interesse comum em solucioná-los em nome da ordem no continente. O primeiro grupo, representado pela guerrilha colombiana e pelo ciclo venezuelano de Hugo Chávez, caracteriza-se por uma ação política mais objetiva e direta por parte dos EUA. A ajuda brasileira é tímida, não obstante que venha crescendo ao longo dos anos:

"Brasil manifesta que tiene um mayor interés en apoyar la solución del problema de la guerrilla en Colombia, principalmente por su potencial de desestabilizar a la región (...) Tanto Estados Unidos como Brasil ajustaron sus estrategias iniciales y adoptaron posiciones más pragmáticas em relación con el juego político chavista, tanto interna como regionalmente." (SENNES, 2008, p. 88-89).

Em se tratando do segundo grupo, a crise de unidade boliviana e a decomposição do sistema político e de representação na Argentina, o Brasil é o ator envolvido de maneira mais direta. Segundo Sennes, isso acontece porque os Estados Unidos delegam essa posição atuante privilegiada ao Brasil para evitar que os sentimentos antiestadounidenses, fortemente presentes nesses territórios, venham a se intensificar. Muito embora não sejam áreas de interesse vital norte-americano, o "acordo tácito" manifesta-se na escolha do Brasil como preferencial interlocutor nesse cenário (SENNES, 2008, p. 89).

Durante a campanha eleitoral de 2002, havia fortes temores dos setores mais conservadores dos Estados Unidos acerca da potencial eleição de Lula da Silva para o governo brasileiro. Acreditava-se que, por sua retórica e ideologia, o novo governo faria uma excessiva oposição aos interesses norte-americanos, o que o risco Brasil elevar-se até 2 mil pontos. Apesar disso, em outubro de 2002, logo após a vitória nas urnas, o então presidente George W. Bush telefonou para o futuro presidente brasileiro convidando-o a ir aos Estados Unidos ainda antes da sua posse. O encontro foi positivo, e Lula da Silva teve então a oportunidade de sinalizar o desejo de que sua política externa fosse pragmática e afastada de qualquer motivação ideológica. Em dezembro de 2005, há a visita de George W. Bush ao Brasil, consolidando o ambiente de diálogo e demonstrando uma certa "simpatia mútua" entre os dois líderes. De acordo com Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni,

"A imagem, inicialmente desfavorável a Lula da Silva em 2002, nos Estados Unidos, do mesmo modo como havia sido em ocasião das candidaturas anteriores (em 1989, 1994 e 1998), foi dissipando-se ao longo da campanha eleitoral. Em sua fase final, já não contava com forte oposição nos Estados Unidos, ainda que não houvesse simpatia por ele, a não ser em setores da American Federation of Labor and Congress of Industrial Organizations (AFL-CIO), de alguns grupos sociais, culturais e religiosos. As previsões de antagonismo recíproco não se tornaram realidade" (VIGEVANI; CEPALUNI, 2007, p. 307).

Por outro lado, Paulo Nogueira Batista (Batista, 2008) aponta que, devido ao impasse nas negociações acerca da ALCA (entre 2003-2004), a atuação dos Estados Unidos na América do Sul voltou-se para tratados bilaterais de livre comércio (firmados, por exemplo, com o Chile e com a Colômbia). A fórmula desses acordos é semelhante em todos os casos e consagra um quadro de dependência em relação aos Estados Unidos. Trata-se de poucas concessões em termos de acesso adicional ao mercado norte-americano e grande perda de autonomia em diversas áreas cruciais, tais como política industrial, serviços, tratamento do capital estrangeiro, compras governamentais, propriedade intelectual, entre outras (BATISTA JR., 2008, p. 227).

Essa estratégia vai de encontro ao processo de integração defendido pelo Brasil, qual seja, o fortalecimento do Mercosul. Os Estados Unidos aproveitam-se de pequenas divergências entre os países-membros, fazendo o possível para alargá-las. Para o autor, Washington nunca verá com bons olhos a consolidação de um bloco independente na América do Sul (BATISTA JR., 2008, p. 237.)

Para Fiori, os Estados Unidos exercem historicamente três "direitos de intervenção" auto-atribuídos em relação à América do Sul, quais sejam i) em caso de "ameaça externa"; ii) em caso de "desordem econômica"; e, iii) em caso de "ameaça à boa democracia". Ainda que a estratégia internacional passe por um processo de reorganização a partir das eleições presidenciais norte-americanas de 2008, é muito pouco provável que os Estados Unidos abram mão desses direitos, mesmo os utilizando em menor grau. O autor ressalta, também, que a política externa norte-americana direciona-se no sentido do apoio às forças políticas conservadoras e a opinião pública contra os governos tidos por "populistas autoritários", que seriam ameaças à democracia (FIORI, 2009, p. 41).

Por fim, as ideias de Kissinger são lembradas. Fiori argumenta que o antigo Secretário de Estado considera que o principal rival da atuação norte-americana na América do Sul se concentram, "No plano econômico, a ameaça vem dos projetos de integração regional que excluam ou se oponham à ALCA, e no plano político, dos populismos e nacionalismos que estão renascendo no continente" (FIORI, 2009, p. 44).

Para Seelke e Meyer, as relações entre Estados Unidos e Brasil podem ser caracterizadas como amigáveis. O governo de Washington vê com bons olhos a consolidação brasileira como núcleo de poder regional, especialmente no seu exercício de força estabilizadora da América Latina. O Brasil tende, na perspectiva norte-americana, a ser descrito como um país de governo esquerdista moderado. Dessa forma, um bom relacionamento e uma crescente cooperação entre as duas nações são interessantes aos Estados Unidos, porque facilitam os diálogos com países latino-americanos cujas orientações políticas seguem direções semelhantes à brasileira, ou até mesmo mais radicais. A estabilidade na região e o alívio das tensões são os objetos políticos envolvidos (FIORI, 2009, p. 44).

 

Temas da Agenda bilateral

As questões comercias são chaves na relação Brasil-Estados Unidos, já que ambos os países estão constantemente envolvidos em negociações de âmbito subregional, regional e global. O Brasil busca não só fortalecer os acordos com as nações vizinhas, mas também se aproximar cada vez mais do bloco europeu. Os Estados Unidos, por seu turno, estiveram envolvidos ativamente nas rodadas de Doha e na fracassada tentativa de criação da ALCA. Ambos, não obstante, são parceiros importantes bilateralmente, como mostram os números:

"Bilateral trade between the United States and Brazil totaled $63.4 billion in 2008, with U.S. exports to Brazil increasing 34% to $32.9 billion and U.S. imports from Brazil increasing 19% to $30.5 billion." (SEELKE; MEYER, 2009, p. 14)

Igualmente, o papel exercido pelo Brasil nas negociações de Doha é importante, mas encontra-se no lado oposto dos Estados Unidos. Aquele país é líder entre os países em desenvolvimento e clama pela redução e eventual eliminação dos subsídios agrícolas como parte essencial do bom andamento das negociações. Em julho de 2004, a OMC julgou possível realizar tais discussões, mas os debates cessaram dois anos depois, devido à divergência na questão das tarifas agrícolas. Em 2007, em conversa de caráter informal, os representantes de Brasil e Índia recusaram-se a abrir ainda mais seus mercados nacionais se Estados Unidos e União Européia mantivessem a política subsidiária. No ano de 2008, no encontro de ministros em julho, nos debates acerca da NAMA, e no encontro do G-20 em novembro, novamente as partes não chegaram a um denominador comum.

No âmbito da OMC, o mesmo tema é recorrente, e o governo brasileiro, em 2004, moveu uma ação contra os altos índices de subsídio do algodão norte-americano. Embora tenha havido apelação, os brasileiros sagraram-se vencedores. O congresso americano se viu obrigado a alterar suas taxas de ajuda aos agricultores, acabando com as retaliações por parte do Brasil. No entanto, esse tema é controverso até os dias de hoje. Em dezembro de 2007, a OMC aceitou as acusações brasileiras de que o programa de auxílio ao agricultor norte-americano excedeu seis vezes, desde 1999, a taxa permitida e abriu investigações.

Outro ponto polêmico levantado pelos autores versa sobre o Generalized System of Preference, que prevê tarifas mais brandas a certos produtos comercializados por países em desenvolvimento com os Estados Unidos. No 109º encontro do Congresso, a renovação do acordo foi posta em xeque, uma vez que países como Brasil e Índia eram apontados, por suas posturas irredutíveis, como principais responsáveis pelos fracassos em Doha. Entretanto, no 110º Encontro, a parceria foi estendida até 31 de Dezembro de 2009 (SEELKE; MEYER, 2009, p. 15)

Do ponto de vista da segurança, os autores dão especial destaque às questões relacionadas com o combate ao tráfico de drogas e a campanha anti-terrorista. O Brasil não é considerando um país com extensa produção de drogas ilícitas, muito embora figure no roteiro de distribuição de tais substâncias, servindo como ponto de trânsito entre as áreas consumidoras. Dessa forma, os Estados Unidos têm contribuído (nos anos de 2008, 2009 e 2010) com 1 milhão de dólares anuais para financiar ações do governo brasileiro no sentido de impelir o tráfico. Resultado dessa união, em parceria com as autoridades colombianas, foi a prisão de um líder do cartel Norte Del Valle em 2007. Ele foi extraditado aos Estados Unidos pela polícia federal brasileira para ser julgado, sob acusações de tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e assassinato (SEELKE; MEYER, 2009, p. 10).

Sobre o terrorismo, a preocupação norte-americana recai principalmente sobre a zona da tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai. A região tem um histórico de contrabando de armas, lavagem de dinheiro e outras atividades ilícitas. Além disso, investigações do Departamento de Estado Norte-Americano sugeriram que o Hamas e o Hezbollah angariavam fundos de simpatizantes e de comunidades muçulmanas fixadas na área. O Hezbollah teria, segundo essa investigação, arrecadado mais de 10 milhões de dólares por ano através de atividades ilegais na região. Nesse sentido, os Estados Unidos uniram-se aos outros três países e formaram, em 2007, uma Junta Central de Inteligência para combater crimes de natureza transfronteiriça. Outra proposta é a criação de um Centro Regional de Coordenação, composto pelos mesmos quatro países, para melhor alocar esforços, capacidades, e inteligência no combate ao terrorismo e na prevenção da proliferação de armas químicas e nucleares (SEELKE; MEYER, 2009, p. 11)

Em relação à questão nuclear, o presidente Lula intermediou, em maio de 2010, um acordo entre o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, e o primeiro-ministro da Turquia, Tayyiq Erdogan. O acerto previa o envio de 1,2 mil quilos de urânio iraniano para a Turquia, que estocaria o material enquanto França e Rússia o enriqueceriam em 20% - tratamento insuficiente para o uso militar do elemento. Esta posição contrariou os interesses dos Estados Unidos, que negaram o acordo e pressionaram o Conselho de Segurança da ONU para implementar sanções ao Irã.   .

No que concerne à questão energética, o Brasil é apontado como um promissor líder mundial. A descoberta do campo petrolífero de Tupi e os maciços investimentos em fontes alternativas implicam esse título. Brasil e Estados Unidos são os dois maiores produtores globais de etanol e a cooperação bilateral se dá principalmente através dessa matéria. Em março de 2007, ambos assinaram o memorando de entendimento, para promover a ampliação da cooperação nesse campo. O acordo prevê: (1) compartilhamento de tecnologia entre as duas nações; (2) estudos de viabilidade e assistência técnica à instalação de indústria de biocombustíveis em países terceiros; e (3) esforços multilaterais para o desenvolvimento e avanço dos biocombustíveis numa perspectiva mundial. O acordo levou a tecnologia de tais fontes alternativas para diversos países da América Latina, como Guatemala, Haiti, El Salvador e se estendeu para países africanos como Senegal e Guiné-Bissau. Em face ao sucesso, os governantes norte-americanos comprometeram-se em destinar 6 milhões de dólares no ano de 2010 para incrementar essa cooperação com o Brasil. Não obstante, a tarifa cobrada sobre o etanol brasileiro é o principal entrave:

"The United States currently allows duty-free access on sugar-based ethanol imports from many countries through the Caribbean Basin Initiative, Central American Free Trade Agreement, and the Andean Trade Preferences Act, among others. Some Brazilian ethanol is processed at plants in the Caribbean for duty-free entry into the United States, but exports arriving directly from Brazil are currently subject to a 54-cent-per-gallon tax, plus a 2.5% tariff." (SEELKE & MEYER, 2009, p. 13)

 

Considerações finais: Obama, Brasil e América Latina

O Presidente dos Estados Unidos, Barak Obama, que assumiu em janeiro de 2009, herdou uma extensa lista de problemas internacionais para resolver: as Guerras no Iraque e no Afeganistão, os choques entre israelenses e palestinos, o programa nuclear iraniano, as relações tensas com Moscou, os impasses na relação com a Coréia do Norte, a ascensão chinesa e as dificuldades no relacionamento com o mundo islâmico poderiam ser rapidamente elencados.

Já as preocupações com o Oriente Médio, durante o governo Bush, haviam dado maior margem de manobra para os países da América Latina, que neste período vivenciou a ascensão da esquerda em vários países da região.  Desde que assumiu a presidência, Obama procurou dar sinais que sua política externa se basearia na combinação de diversas estratégias políticas, mas com a busca de ampliação de diálogo, inclusive com os opositores dos EUA. Por outro lado, verifica-se um interesse renovado na agenda latino-americana dos EUA. Ou seja, Obama significa uma reatualização dos interesses dos norte-americanos, bem como uma renovação de seus métodos.

Desde a posse, Obama tem dado mostras que reconhece o crescente papel do Brasil como liderança regional com inserção global. De fato, o Brasil é considerado como o país chave para a estabilidade da América do Sul, seja pelo peso de sua economia como de sua atuação diplomática. O Brasil também é visto, desde o governo Bush, como um freio e um contrapeso ao governo Hugo Chávez, da Venezuela, bem como uma ponte para dialogar com outros governos de esquerda na América Latina, como o de Evo Morales, na Bolívia.

Entretanto, o Brasil tem um projeto próprio de inserção internacional. E esse projeto requer um espaço de atuação mais amplo do que ser representante dos interesses dos Estados Unidos na América Latina.  A diplomacia brasileira resistiu ao projeto dos Estados Unidos de formação da ALCA nos anos 1990. O Brasil acenava seu projeto próprio de integração da América do Sul e o fortalecimento do Mercosul e evitava os riscos maiores de uma integração sob hegemonia americana. Atualmente, o Brasil tem feito pesados investimentos econômicos e diplomáticos na América do Sul.  Agora, com a retomada do interesse norte-americano sobre a América Latina, estamos diante do encontro de dois projetos para as Américas. Seus encontros e desencontros conferirão a dinâmica deste processo.

Já considerado como líder da América do Sul, o Brasil agora vem ampliando suas capacidades de atuação em âmbito global. Ao se aproximar dos países em desenvolvimento e ao estreitar os laços comerciais e diplomáticos com estes países, o Brasil tem sua importância relativa aumentada no cenário internacional.  Com relação aos Estados Unidos, o governo Lula realizou uma inflexão, amparada nas mudanças paradigmáticas ocorridas na política externa brasileira na ultima década. Os Estados Unidos passaram, diante da ascensão do Brasil no cenário internacional, a considerar o país como um importante interlocutor na política externa para a América do Sul, realizando uma "acomodação estratégica", embora matizada. Já no âmbito global, fortificou-se o "diálogo estratégico" entre as duas nações. No entanto, essas relações não afastam a perspectiva de dificuldades nas relações entre os dois países, em amplas agendas que passam por temas variados, como os conflitos no Oriente Médio, a integração regional, os contenciosos na OMC e temas de segurança.  Nesse sentido, ao ter posições diferenciadas dos Estados Unidos nessas questões, o Brasil exercita sua opção de dizer "não" aos Estados Unidos, aprofundando e cristalizando a sua nova política externa, em defesa da multipolaridade e do multilateralismo.

Assim, nos marcos deste trabalho, considera-se que a experiência das relações entre o Brasil e os EUA tem sido marcada por um crescente diálogo estratégico, mas buscando redefinir continuamente os seus termos. O governo brasileiro foi assumindo as posições no sistema internacional que considerava necessárias para o prosseguimento de seu projeto de desenvolvimento. As oscilações entre momentos de distanciamento e aproximação aos Estados Unidos estavam vinculadas à posição concreta que os EUA representavam para esse projeto.

 

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* O autor agradece ao bolsista do Nerint Alexandre Saleh pela colaboração na pesquisa bibliográfica.