3, v.1Teoria das alianças e os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China): uma análise de sua formação e dinâmicaAtuação diplomática brasileira nas negociações internacionais do meio ambiente author indexsubject indexsearch form
Home Pagealphabetic event listing  




Print ISBN 2236-7381

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Democracia e política externa*

 

 

Ariane C. Roder Figueira

Professora e pesquisadora da UFRJ

 

 


RESUMO

A democracia passou a ser uma realidade política muito recente na história de alguns países da América Latina, que ainda experimentam fórmulas que se adequem as peculiaridades e a complexidade cultural, social, política e institucional de seus povos. O Brasil aderiu ao regime democrático na década de 1980, momento em que princípios como a autodeterminação dos povos, o respeito à soberania e aos direitos humanos e a promoção da democracia passaram a ser fundamentos normativos da Constituição de 1988, atribuindo desde então um novo legado a diplomacia brasileira.

Diante disso, o propósito é debater o papel desempenhado pelo Brasil na promoção da democracia na América Latina nas duas últimas décadas, considerando para isso o desafio de lidar com a complexidade regional e com a dualidade que possa representar a promoção da democracia e o respeito à soberania e a autodeterminação dos povos. Outro fator a ser destacado no debate são as próprias características da democracia brasileira, que ainda carece de instrumentos que garantam o equilíbrio entre os poderes na produção de políticas; espaços de interlocução entre Estado e sociedade civil, transparência e participação política.

Palavras-chave: Democracia, América Latina, Política Externa


 

 

1. Mudam-se os tempos, mantém-se os desafios: a atuação da diplomacia brasileira na promoção da democracia 

Depois de longos anos vivendo sob a égide imperial e o antigo sistema de colonização, as histórias trilhadas pelos países latino-americanos não foram menos conturbadas, permeadas por recorrentes crises políticas, culminando com freqüência em golpes de Estado e na instalação de regimes autoritários, na maioria das vezes, liderados por militares. O mais recente golpe às instituições democráticas no Brasil ocorreu em 1964 e perdurou por longos 21 anos. O poder preponderante e, por alguns momentos, exclusivos do Executivo durante esse período e o sistema altamente repressor criado para lidar com as manifestações de oposição traçaram o perfil do país no sistema internacional nessa fase, impactando diretamente em sua credibilidade.

Embora inicialmente conveniente devido à percepção de disseminação da ameaça comunista na região com o acirramento das rivalidades entre as potências na Guerra Fria (URSS e USA), a partir da década de 1970, diferentemente, os regimes ditatoriais passaram a sofrer fortes pressões internacionais para a restauração da democracia, especialmente por parte dos Estados Unidos.  Os crescentes movimentos de proteção aos direitos humanos e pela democracia ajudaram a desgastar a imagem brasileira no exterior nessa fase. Associados a deteriorização dessa imagem, o autoritarismo na América Latina auxiliou no aumento das desconfianças entre os vizinhos, mais particularmente de Brasil e Argentina, dois países que historicamente disputaram uma posição de liderança na região.

Embora resistentes por longos anos, essas ditaduras aos poucos foram cedendo espaços às instituições democráticas e à restauração de direitos que haviam sido usurpados. A transição no Brasil foi realizada de forma coordenada por militares e civis, sem grandes rupturas, deixando com isso a herança de velhos padrões de concentração de poder em instituições em que a prevalência deveria ser de equilíbrio. De qualquer forma, embora minimalista, a democracia instaurada no país a partir de 1985 e consolidada com a promulgação da nova Constituição em 1988, passa a prever a defesa da democracia, dos direitos humanos, do meio ambiente, da autodeterminação dos povos, da paz, dialogando, dessa forma, não apenas com a população brasileira, mas traduzindo ao mundo o novo perfil que o país adotaria a partir daí.

Houve, portanto, a partir do governo Sarney, uma readequação da postura do país em relação a alguns temas da agenda internacional, a começar pela democracia e direitos humanos. Com o propósito de restaurar sua imagem no exterior aumentando sua credibilidade internacional, o Brasil adere aos principais instrumentos internacionais nessas áreas. Assim, também, buscou alterar sua posição em relação aos temas de proteção ambiental. O país, maior detentor da biodiversidade no mundo, porém com atitudes iniciais relutantes aos acordos que gerassem compromissos aos países em desenvolvimento, passa nessa nova fase a atuar de forma mais assertiva em relação ao tema, aproveitando-se de sua posição de privilégio no assunto. (Lago, 2007)

As alterações estruturais no sistema internacional influenciaram esse novo rumo adotado pelo Brasil em diversos temas da agenda global contemporânea. O final da Guerra Fria e a vitória do capitalismo levaram a hegemonia dos Estados Unidos no mundo e, junto disso, os valores defendidos por essa nação passam a guiar os passos de grande parte dos Estados, especialmente dos seus tradicionais aliados como o Brasil. A defesa dos direitos humanos, da democracia, do meio ambiente, da desnuclearização, da liberalização econômica entre outros valores foram disseminados e arraigados na estrutura cada vez mais interdependente do sistema internacional (Lafer; Fonseca Jr, 1994). Além desses princípios, a América Latina também ganhou posição de destaque nas opções estratégicas brasileira para inserir-se na nova era global.   .

A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. (Constituição Federal, 1988, art. 4)

A superação de antigas rivalidades regionais especialmente entre Brasil e Argentina possibilitou a emergência de ações cooperativas e integracionistas entre vizinhos. A redemocratização desses países, a proclamação de valores pacifistas, além dos crescentes movimentos de integração regional no mundo para lidar com o aumento da competitividade e melhor aproveitar as oportunidades do sistema internacional globalizado levaram a constituição do Mercosul.  Integrados, os países da Bacia do Prata passaram a conviver com novas normas e condutas, a começar pela democracia. (Cervo, 2008)

Embora o Mercosul só tenha adotado a cláusula democrática em 1998, os Estados Partes (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), também como membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), já estavam submetidos a esse fundamento instaurado em 1991 pela instituição.  O regime democrático como condição de permanência ou ingresso na organização marca a nova característica e papel das instituições regionais no pós-Guerra Fria, pois passa a ser visto como um elemento que compõem não apenas o destino da ordem doméstica dos Estados, mas também a segurança continental, já que gera maior estabilidade às instituições políticas, o aumento da confiança e da reciprocidade  dos Estados, melhorando, consequentemente, a imagem externa e a credibilidade internacional. (Villa, 2006)

No âmbito da OEA o debate sobre democracia continental e os compromissos com o tema ocorrem primeiramente em 1991 com Compromisso de Santiago com a Democracia e a Renovação do Sistema Interamericano e a Resolução 1080 (AG/RES, 1080 XXI-O/91), cujo propósito é agir coletivamente no âmbito da organização caso algum membro venha sofrer de uma irregular e súbita ruptura do processo democrático ou do governo democraticamente eleito. Um instrumento complementar de 1992 prevê ainda a suspensão de um membro da organização caso um governo seja derrubado a força, demonstrando claramente oposição a qualquer movimento que venha ferir a estabilidade das instituições políticas nesses países. Acrescentou-se a esses termos a Carta Democrática Interamericana de 2001, que foi influenciada pela ocorrência de mudanças constitucionais que afetaram a ordem democrática no Peru e pela falta naquele momento de respaldo legal e de mecanismos coercitivos da organização.  (Villa, 2003) Desse modo, foi um documento criado como propósito de cobrir esse vácuo normativo, que visa lidar com situações em que a democracia seja ameaçada, mas ainda não tenha sido interrompida.

Não menos importante para a região foram os instrumentos normativos criados pelo Grupo do Rio - Mecanismo Permanente de Consulta e Concertação Política da América Latina e do Caribe-, tais como: a Declaração de Quito (1995), a Declaração a respeito da Manutenção da Democracia (1997), o Compromisso Democrático de Cartagena (2000) e a Declaração de São José (2002), que juntos firmam compromissos dos países com a ordem democrática e prevêem reuniões de emergência entre Estados membros em caso de haver interrupção do regime e o estabelecimento de diálogo entre as partes envolvidas no conflito. (Santiso, 2002)

Ainda correspondente ao cenário americano, o Mercosul incorporou em 1998 a cláusula democrática entre seus fundamentos através do Protocolo de Ushuaia, que prevê "no caso de ruptura da ordem democrática em um Estado Parte do presente Protocolo, os demais Estados Partes promoverão as consultas pertinentes entre si e com o Estado afetado (art. 4)" e considerarão a natureza e o alcance das medidas a serem aplicadas (...)" (art. 5).

O mais recente movimento multilateral na região pró-democratização foi na União de Nações Sul-Americanas (Unasul) com o debate sobre a cláusula democrática e de mecanismos de coerção aos países onde houver desestabilização da ordem institucional vigente, tais como: fechamento de fronteiras, suspensão do comércio, do tráfego aéreo, etc.

Todavia, mesmo com a incorporação da cláusula democrática em diversas instâncias multilaterais no continente, muitos países da América Latina ao longo dessas duas décadas (1990-2010) passaram por processos de ruptura ou quase ruptura em suas instituições políticas democráticas, que ainda são muito fragilizadas, com tradições autoritárias e deficiências nos mecanismos de controle e equilíbrio entre os poderes, além de baixa institucionalização de canais de diálogo entre a sociedade civil e o Estado.

 

2. A década de 1990 e os desafios para manutenção do regime democrático na região

Já tradicional entre os princípios defendidos pela diplomacia brasileira ao longo dos anos é a autodeterminação dos povos, que privilegia a soberania na definição dos rumos que os países pretendem trilhar, ou seja, o respeito a não intervenção nos assuntos domésticos dos Estados, fator chave para a garantia da estabilidade do sistema internacional. Mas, em um pouco mais de duas décadas, outros princípios foram acrescentados aos objetivos internos e externos do Brasil, o que levou o país a lidar com dilemas entre preceitos nem sempre harmônicos como a defesa à autodeterminação dos povos e a promoção da democracia. Além desse desafio de lidar com valores que na prática podem gerar contradições, outra equação é o cálculo estratégico das vantagens e desvantagens que o país assumiria defendendo uma posição ou outra, já que a instabilidade democrática pode ocorrer em parceiros diplomáticos importantes, fundamental no cálculo da realpolitik.

Desse modo, o objetivo é observar a atuação da diplomacia brasileira em situações dessa natureza, a coerência de suas ações em relação aos princípios defendidos e as ações empreendidas sob o comando de diferentes Chefes de Estado.

Nos desafios da primeira década sob o comando do governo Collor, a região passou por alguns processos conturbados de interrupção da democracia como foram os casos do Haiti e do Peru.

No Haiti, em 1991, ainda quando os valores democráticos estavam iniciando seu processo de institucionalização nas organizações regionais como na OEA, ocorreu no país um golpe de Estado orquestrado pelo general Raúl Cedras, que destituiu do cargo presidencial, Jean-Bertrand Aristide. O país, que havia em menos de um ano realizado eleições livres após sucessivos regimes ditatoriais, mergulhava novamente em um cenário de autoritarismo e repressão política. Em resposta, a OEA manifestou-se sobre a situação acionando a recém criada Resolução 1080, que não reconhecia o novo governo instituído e recomendava o retorno à vigência do regime democrático. Nesta instância o Brasil teve participação importante com o Secretário-Geral Baena Soares, representante do corpo diplomático brasileiro, que acionou, imediatamente ao ocorrido, os instrumentos legais recém criados para lidar com situação. Mas, no âmbito da OEA, o Brasil foi contrário a qualquer tipo de intervenção e embargo realizados por alguns países da região e liderados pelos Estados Unidos. Com a falta de consenso sobre as punições a serem adotadas e o fracasso na tentativa de saída da crise pela organização, os membros resolveram levar a questão para o âmbito das Nações Unidas. Como representante rotativo do Conselho de Segurança naquele momento, o Brasil posicionou-se favoravelmente as medidas de estabilização propostas pela Resolução 841, solicitadas pelo presidente Aristide, que reforçava o embargo e o bloqueio naval ao país. Neste caso, é possível observar que o Brasil apoiou a solução proposta pela ONU em detrimento das intervenções unilaterais norte-americanas anteriores. (Câmara, 1998)

A crise humanitária no Haiti permaneceu e se agravou. O Conselho de Segurança da ONU em resposta aprovou a Resolução 940 de 1994, que estabeleceu uma força multinacional para lidar com a crise, que poderia fazer uso de todos os meios necessários para restaurar a legalidade democrática no país. Nesta situação, o Brasil absteve-se na votação da resolução, embora no discurso tenha demonstrado claramente sua oposição em relação à decisão. Nesta ocasião, sob o comando do governo Itamar Franco, o Brasil manifestou-se favorável a utilização de todos os recursos diplomáticos para a resolução da crise no Haiti, o que significa que era contrário ao uso da força. Declarou ainda que a ONU deveria apoiar a utilização progressiva de mecanismos de dissuasão e aguardar pelos efeitos, sem recorrer ao uso da violência. Ainda nesse contexto, Itamar Franco encaminhou uma carta ao presidente dos Estados Unidos, Clinton, demonstrando sua preocupação com a intervenção no Haiti e na possibilidade de abertura de precedentes para ações futuras dessa natureza na região (Câmara, 1998). Através dessas iniciativas, o governo brasileiro demonstrou sua posição favorável ao legalismo e ao princípio da não-intervenção, alegando que a promoção da democracia deveria ser realizada por meio de recursos diplomáticos e não pelo uso da força.

Concomitante a instabilidade presente no Haiti, o Brasil lidou também com a situação de desestabilização ocorrida no Peru em 1992. O Presidente eleito em 1990 Alberto Fujimori proclamou um auto-golpe com o fechamento do Congresso e a suspensão da Suprema Corte, sendo este ato estimulado pela crescente polarização ideológica que dividia o país no período, acarretando paralisia decisória. O descontrole sobre a crise institucional do país associado aos crescentes índices negativos da econômica, como a alta inflação, auxiliaram a fragilização do governo. A OEA em resposta convocou o Conselho Permanente da organização e acionou a Resolução 1080. Com isso, além de visitas ao Peru durante o ano da crise, a instituição promoveu a intermediação nas negociações e buscou restaurar a democracia, apoiando a organização de eleições para Assembléia Constituinte (Santiso, 2002).  Mas mesmo com essa situação em seu primeiro mandato, Fujimori conseguiu se reeleger.  Neste caso de crise, o Brasil adotou uma postura contrária às sanções ao Peru, argumentando que poderia agravar a situação do país que vivenciava, além de graves problemas políticos, uma crise econômica significativa. Essa postura diplomática brasileira tímida em relação à situação peruana deve ser analisada à luz do conturbado ano do país, que passou por crises que acarretaram no impeachment do presidente Collor, também demonstrando a fragilidade da recém constituída democracia brasileira.

Durante o mandato de Itamar Franco, além de ter que adotar uma posição em relação à continuidade da crise haitiana iniciada em 1991, o governo também teve que lidar no campo diplomático com o golpe ocorrido na Guatemala em 1993. Neste caso, assim como no Peru, o presidente Serrano dissolveu o Congresso, exerceu intervenção no Judiciário, revogou a lei eleitoral e os partidos políticos. Do mesmo modo que na situação anterior, a OEA respondeu a situação acionando a resolução 1080; mas neste caso, a crise institucional sofreu uma involução, já que além das pressões externas houve manifestações internas demonstrando a falta de apoio às medidas adotadas pelo presidente, levando-o a reconhecer a derrota e a fugir do país. Restaurou-se, desse modo, a ordem democrática através de novas eleições. Neste caso, o Brasil repudiou o ato, mas com o retorno breve da situação de normalidade, evitou outras manifestações sobre a questão em destaque.  (Santiso, 2002)

Também calcado no tradicional autoritarismo e corrupção arraigados nas instituições políticas, o Paraguai em sua história contemporânea coloca-se o desafio de manter-se afastado dos perigos eminentes de golpes de Estado que caracterizaram sua história.  Após trinta e cinco anos de ditadura de Alfredo Stroessner, destituído do cargo mediante ao golpe de Andrés Rodriguez, que foi o responsável pela transição democrática paraguaia, o país ainda convive com situações de risco de rupturas na ordem institucional.

Durante o governo de Fernando Henrique, em 1996, houve a primeira tentativa de golpe no Paraguai pós-redemocratização, orquestrado por Lino Oviedo, antigo parceiro do então presidente eleito Juan Carlos Wasmosy. Em resposta a tentativa de quebra na institucionalidade, Wasmosy encaminha-o para julgamento no Tribunal Militar Extraordinário que decreta dez anos de prisão. Após o ocorrido, tanto a OEA como o Grupo do Rio acionaram seus instrumentos para apoiar o governo democrático do país. O Brasil teve uma atuação mais assertiva neste caso em comparação aos demais citados, já que se tratava de um vizinho com quem possui diversos acordos de cooperação tanto bilateral como multilateral, além da importância estratégica do país para a definição do quadro de liderança regional.  Além disso, como membro do Mercosul, qualquer movimento de instabilidade política poderia acarretar prejuízos ao bloco, tanto no aspecto político, envolvendo a credibilidade internacional, como econômica, com fuga de capitais da região devido a instabilidade presente. Desse modo, o Brasil manifestou sua preocupação com a situação do vizinho, colocando-se favorável ao governo democrático constituído; Fernando Henrique destacou ainda sobre o risco da instabilidade política no Paraguai acarretar o comprometimento nas relações bilaterais. (Figueira, 2005) Empenhou-se do mesmo modo para aprovação da inclusão da cláusula democrática no Mercosul, condicionando a participação e a permanência de países no bloco à manutenção do regime democrático.  .

Mas essa situação de instabilidade retornou tão logo ocorreram as novas eleições presidenciais no país com a vitória de Raúl Cubas, pois Oviedo, por ser aliado, consegue ser libertado da prisão, devido a revisão solicitada pelo presidente da pena de dez anos para três meses. Isso levou a uma relação conflituosa entre os poderes Executivo e Legislativo, sendo que este último já movimentava-se para pedir o impeachment presidencial. Para acirrar ainda mais a rivalidade entre os grupos políticos do governo e a instabilidade institucional, Arganã, vice-presidente e inimigo declarado de Oviedo, é assassinado e as suspeitas recaíram sobre seu principal inimigo político (Lino Oviedo). Com isso, as pressões para renúncia ao cargo do Presidente Raúl Cubas tornaram-se mais freqüentes. Com receio de que a instabilidade política do país vizinho se agravasse, o presidente Fernando Henrique Cardoso sugeriu a Cubas que deixasse o cargo, já que no Congresso paraguaio havia maioria favorável à sua destituição; oferece-lhe em seguida asilo político no Brasil. Em resposta as sugestões brasileiras e diante da crise, Cubas deixa o cargo e quem assume até a constituição de novas eleições é o presidente do Congresso Luiz Gonzalez Macchi. Mesmo após esses eventos, o Paraguai, até as eleições de Nicanor Duarte Frutos em 2002, seguiu em processo de instabilidade e risco freqüente de ruptura da ordem democrática.  (Figueira, 2005)

Outro caso recorrente de instabilidade das instituições políticas democráticas é o Equador, caracterizado pela sua política polarizada e pelas dificuldades presidenciais de manter-se no cargo até o final do mandato. De 1990 a 2000 é possível citar duas ocasiões em que a interrupção do mandato ocorreu e que preocupou a comunidade internacional. Primeiramente em 1997, sobre a queixa de incapacidade mental, o presidente Abdalá Bucaram sofreu o impeachment. Mas embora a legalidade do ato tenha sido questionada por diversos países, o Brasil, na ocasião, com base em seu princípio de não interferência nos assuntos internos de outros Estados, decidiu não se manifestar, embora tenha se mantido atento aos possíveis desdobramentos do caso. Mas diferentemente da postura adotada em 1997, no ano de 2000, o Brasil respondeu criticamente a derrubada do poder do presidente eleito em 1998, Jamil Mahuad. O governo brasileiro juntamente ao Mercosul, a OEA e ao Grupo do Rio repudiou o ato, declarando-se favorável ao reestabelecimento da ordem democrática e constitucional do país, exercendo forte pressão sobre os militares. A retomada do poder civil pelo vice presidente ocorreu brevemente, respondendo às pressões. (Santiso, 2002)

Contudo, as instabilidades políticas e institucionais permaneceram em alguns desses países na década seguinte, assim como outros novos casos surgiram, demonstrando, além de processos democráticos inacabados e culturas políticas fundamentadas em padrões autoritários, a limitação da eficácia punitiva das instituições internacionais.

 

3. A continuidade dos desafios na nova década

Os problemas vigentes no Equador não cessaram com a virada do milênio. Em 2004, o presidente Gutierrez, que havia sido eleito em 2002, fez uma reestruturação na Corte Suprema de Justiça alegando irregularidades, demitindo 27 dos 31 juízes. Essa situação sucedeu ao apoio atribuindo pela Corte à oposição para destituir do cargo o presidente por motivos de corrupção. As demissões promulgadas por Gutierrez desencadearam uma nova crise política no país, acirrando ainda mais os ânimos da oposição, levando à manifestações e a decisão do Congresso pelo impeachment presidencial. O refúgio de Gutierrez ocorreu na casa do embaixador brasileiro no país Sergio Florêncio Sobrinho, sendo concedido posteriormente asilo político pelo Brasil. Novamente a interrupção do mandato foi questionada pelas instituições internacionais como a OEA, pois não havia 2/3 dos parlamentares presentes na votação, o que significa que o número exigido constitucionalmente não foi atingido. Além disso, assim como previsto, o presidente deveria ter tido direito a se manifestar sobre as acusações, ou seja, ter o direito a defesa, o que também não ocorreu nesse caso. O Brasil novamente posicionou-se contrário ao processo que destituiu o presidente, alegando inconstitucionalidade da ação. Além disso, foi responsável por liderar a missão política encarregada de intermediar o conflito e restabelecer a ordem democrática no país. (Coelho, 2007)

Mas a restauração da estabilidade política e institucional no Equador foi provisória. Em 2010, Rafael Correa, presidente do Equador, após diversos movimentos de oposições e de confrontos com o governo, declarou estado de emergência, denunciando que havia tentativa de golpe sendo orquestrada no país. Os Estados da região, através da Unasul e da OEA, demonstraram-se preocupados com a situação, encaminhando comunicado oficial para as forças políticas do país, pressionando-as para manter a estabilidade das instituições e garantir a vigência da ordem democrática. (OPSA, 2010)

Outro Chefe de Estado que denunciou recentemente tentativas de golpe foi o presidente Fernando Lugo do Paraguai. Eleito em 2008, opositor do Partido Colorado que dominou politicamente o país por longos anos, passou também por dificuldades de governar devido a frágil base de sustentação de seu partido no Congresso Nacional. Alegando que personagens das forças armadas estavam em conjunto com alguns políticos como o ex-presidente Nicanor Duarte Frutos e o ex-general Lino Oviedo orquestrando sua destituição do cargo, demonstrando para a imprensa sua preocupação com a estabilidade democrática do país. O presidente Lula, em resposta ao pronunciamento, declarou seu repúdio a qualquer tentativa de golpe e ruptura democrática, manifestando todo apoio ao presidente eleito.  (OPSA, 2009)

Assim também, Peru e Haiti que já haviam demonstrado sua fragilidade política no início da década de 1990, novamente passam por graves instabilidades na virada do século. O caso do Peru foi um pouco diferente dos demais e abriu precedente para se pensar em novos tipos de ação no âmbito da OEA para casos de interrupção ou ameaça de interrupção à democracia. O presidente Alberto Fujimori do Peru tentou manter-se no cargo por um terceiro mandato consecutivo em 2000, além de acusações de fraudes no processo eleitoral, que não atingiu os padrões mínimos exigidos internacionalmente. Mas neste caso, como não havia respaldo normativo no âmbito da OEA para lidar com esse tipo de situação, houve cisões entre seus membros. De um lado, estavam os países que apoiaram a aplicação da resolução 1080, de outro, estavam países como o Brasil que justificaram sua posição contrária, devido ao não enquadramento da resolução à situação presente no Peru. De qualquer forma, a OEA encaminhou uma comissão de apoio a estabilidade no país e atribuiu recomendações para o reestabelecimento da ordem institucional.  A crise foi encerrada após a renúncia de Fujimori.

O Haiti também retomou seu quadro de instabilidade. Aristide que assumiu o cargo presidencial em 2000 sob fortes acusações de fraude eleitoral, vivencia uma grave crise iniciada em 2003, por levantes de grupos oposicionistas. A insustentável situação de conflito entre facções políticas levou o presidente a deixar o país. A pedido do presidente do Supremo Tribunal, o Conselho de Segurança da ONU aprovou mais uma Resolução para lidar com a crise haitiana. A Resolução de número 1529 que estabelecem a missão de paz no Haiti empreendida por forças multinacionais foi apoiada pelo Brasil que, não apenas manifestou-se favorável, mas também se ofereceu como liderança dessa ação. Essa postura adotada diverge da ação de relutância à intervenção das Nações Unidas de 1994 no Haiti, ocasião em que o Brasil demonstrou-se contrário a qualquer tipo de uso da força para restauração da paz e da ordem democrática (Sousa, 2010). Essa nova atitude brasileira é observada por muitos analistas como parte das estratégias adotadas pelo país com a finalidade de conquistar uma vaga permanente do Conselho de Segurança. Essa disposição já se manifestava no decorrer de outros governos, mas nas gestões de Lula, o Brasil adota posturas estratégicas mais assertivas para atingir tal finalidade. Por fim, vale destacar que a situação do Haiti está distante da normalidade institucional; após um terremoto de proporções catastróficas no país ocorrido em 2010 e o processo eleitoral com fortes acusações de fraudes ainda mantém o país em situação agravante e com um futuro de incerteza.

A situação de instabilidade institucional na Venezuela também foi freqüente nessas duas últimas décadas. Após uma tentativa de golpe de Estado em 1992, Chavez é eleito em 1998 e no decorrer de seu mandato fez alterações constitucionais importantes como, por exemplo, o direito a reeleição presidencial e mandatos de oito anos. Essas e outras alterações polêmicas levaram ao acirramento do conflito político com a oposição. O golpe contra Chavéz em 2002 levou a OEA a reagir, buscando intermediar o diálogo entre o governo e a oposição. O Brasil, nesta situação, sob o comando do governo Fernando Henrique Cardoso e com respaldo do Grupo do Rio, anunciou sua preocupação com a instabilidade naquele país, exigindo o retorno da ordem democrática; demonstrou ainda que a normalização do regime e da constitucionalidade no país eram fatores essenciais para o que o mesmo pudesse manter-se membro das organizações regionais. (Botelho, 2005) Em busca por uma resposta rápida e consensual entre os membros da organização, o Brasil conquistou um papel de articulador político neste caso. A normalidade constitucional foi retomando após dois dias, quando Chavéz reassume o comando do governo.    .

Também fruto de acirramento dos ânimos políticos entre governo e oposição após mudanças no ordenamento jurídico do país, a Bolívia passou por uma crise institucional em 2008.  A lei dos hidrocarbonetos que alterou a equação sobre repasses de receitas petrolíferas levaram os departamentos regionais afetados à manifestações violentas, chegando a atingir o gasoduto Brasil-Bolívia. Em resposta aos diversos episódios da crise, o Brasil declarou sua disposição em promover o diálogo entre as partes envolvidas no embate, com objetivo de alcançar uma solução sem quebra de institucionalidade. Assim também, a Unasul articulou-se para demonstração de apoio à Morales e aos fundamentos soberania, normalidade institucional e estabilidade democrática. Após esses eventos, as conversações entre as partes foram reiniciadas. (OPSA, 2008)

Mais recentemente, em 2008, Honduras esteve no palco das preocupações regionais. A crise democrática começou após a demonstração de interesse por parte do presidente Manuel Zelaya em realizar um plebiscito para verificar a possibilidade de aprovação do direito à reeleição presidencial. A proposta de reforma provocou várias manifestações de oposição no próprio governo, como no Congresso e no Judiciário, alegando ser o mandato único presidencial cláusula pétrea na Constituição de Honduras. Os militares também demonstraram sua oposição à decisão presidencial, impedindo a retirada das urnas para a realização do pleito. Essas ocorrências acabaram por gerar uma grande instabilidade política no país; em resposta, a Suprema Corte de Honduras solicitou ao presidente que entregasse o cargo; a negativa por parte de Zelaya levou ao golpe de Estado e a expulsão do presidente do país. (OPSA, 2008)

As pressões por parte dos Estados começaram a chegar por todo o lado, em apoio à constitucionalidade e ao retorno de Zelaya ao cargo presidencial. A OEA expulsou o país da organização e os Estados membros não reconheceram o governo golpista como legítimo. Essa situação levou o país a organizar novas eleições presidenciais em novembro desse mesmo ano. O resultado das eleições dividiu opiniões, pois o Brasil juntamente com os países membros do Mercosul e Unasul não reconheceram de imediato o novo governo eleito, ao contrário do que fizeram Estados Unidos, Canadá, Colômbia, entre outros. O Brasil, que abrigou Zelaya em sua embaixada, posicionou-se a favor do retorno dele ao cargo e, por isso, recusou-se a reconhecer o resultado das novas eleições. (OPSA, 2009) Mas, em junho de 2011, após dois anos de desconforto nas relações bilaterais, Brasil deu sinais de um futuro reconhecimento, escolhendo seu novo embaixador para atuar em Honduras. A OEA, neste contexto, também propôs revisar sua decisão e possibilitar o reingresso do país na instituição.

Destarte, esses eventos de ruptura ou quase ruptura da ordem democrática nas duas últimas décadas na América Latina são exemplos de que os regimes democráticos na região são realidades nascentes, em que os países ensaiam tentativas de suprimir os anseios autoritários e instaurar mecanismos políticos de participação social. Mas esses desafios ainda encontram inúmeros obstáculos, pois o remédio utilizado para lidar com crises políticas na região ainda são os tradicionais golpes de Estado.

 

Considerações finais

O que se pode observar ao avaliar os diferentes casos de crises das instituições democráticas nas duas últimas décadas na América Latina é a presença do dilema da promoção da democracia e a defesa da autodeterminação dos povos na atuação da diplomacia brasileira. Com a capacidade de pressionar limitada e com interesses políticos envolvidos, respondendo aos casos com diferentes intensidades, o Brasil, este contexto, vem tentando encontrar um caminho coerente de firmar sua posição de liderança sem constranger-se com seus parceiros. Um dilema difícil de ser equacionado.

Além disso, embora tenha sido um líder em defender a inclusão de cláusulas democráticas nos diferentes sistemas normativos americanos, fortalecendo a inserção desse valor como fundamento da ação diplomática, o país ainda esbarra em suas próprias limitações, devido a não superação de deficiências graves nos mecanismos de accountability horizontal e vertical.

 

Bibliografia consultada

AMORIM, Celso Luiz Nunes; FONSECA, Gelson Junior e CASTRO, Sérgio Henrique Nabuco (Orgs.). "Uma diplomacia voltada para o desenvolvimento e a democracia". In: Temas de política externa brasileira II. Vol. 1. São Paulo: IPRI/Paz e Terra, 1994.

BOTELHO, J. C. A instabilidade democrática na América Latina do século XXI: os casos da Argentina e da Venezuela. Londrina: Revista Meditações, V. 10, N. 2, P.11-23, JUL./DEZ, 2005.

CÂMARA, Irene Pessoa de Lima. Em nome da democracia: A OEA e a crise haitiana

1991 - 1994. Brasília: Instituto Rio Branco; Fundação Alexandre de Gusmão; Centro de Estudos Estratégicos, 1998.

CERVO, A. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008.

COELHO, André Luiz. Instabilidade presidencial e a polarização entre os atores no Equador. In: Observatório Político Sul-Americano, vol. 2, número 11, 2007.

FIGUEIRA, A.C.R. A agenda externa brasileira em face aos ilícitos transnacionais: o contrabando na fronteira entre Brasil e Paraguai. São Paulo: Dissertação de Mestrado, USP, 2005.

LAFER, Celso e FONSECA, Jr. "Questões para a diplomacia brasileira no contexto

internacional das polaridades indefinidas." In : Temas de Política Externa Brasileira II, vol1,Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994.

FONTOURA, Paulo Roberto Campos Torres da. O Brasil e as Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas. Brasília: Instituto Rio Branco: Fundação Alexandre Gusmão: Centro de Estudos Estratégicos, 1999.

HIRST, M; PINHEIRO, L. A política externa do Brasil em dois tempos. Revista Brasileira de Política Internacional, 38 (1): 5-23, 1995.

KENKEL, K. "Democracia, ajuda humanitária e operações de paz na política externa brasileira recente: as escolhas de uma potência emergente. In: O Brasil no contexto político regional. Cadernos Adenauer, n. 4, 2010.

LAFER, Celso. A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado, presente e futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001.

LIMA, Maria Regina Soares de. "Instituições Democráticas e política exterior" Contexto Internacional. Rio de Janeiro, vol. 22, n. 2, julho/dezembro, 2000.

____________; HIRST, Monica. "Contexto internacional, democracia e política externa. Revista de Política Externa, vol. 11, número 2, 2002.

----------------------. Decisões e Indecisões: um balanço da política externa do primeiro governo do presidente Lula. Rio de Janeiro, Observatório de Política Sul-Americana/Iuperj, 2006

SANTISO, Carlos. Promoção e Proteção da Democracia na Política Externa Brasileira. Rio de Janeiro: Contexto Internacional, vol. 24, nº 2, julho/dezembro 2002.

SOUZA NETO, D. M. Operações de Paz e Cooperação Regional: O Brasil e o Envolvimento Sul-Americano na MINUSTAH. Rio de Janeiro: Revista da Escola de Guerra Naval, n. 15,2010.

VILLA, Rafael. A questão democrática na agenda da OEA no pós Guerra Fria. Curitiba: Revista de Sociologia e Política, 20, p. 55-68, jun. 2003.

----------------------. Política Externa Brasileira: Capital social e discurso democrático na América do Sul São Paulo: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.21 n.61,  2006.

Sites consultados:

www.mre.gov.br

http://observatorio.iesp.uerj.br/boletins.php

 

 

* 3º Encontro Nacional ABRI (de 20 a 22 de julho de 2011, São Paulo, SP). Painel: "As relações regionais sul-americanas após 20 anos de Mercosul: balanço, desafios e perspectivas".