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Print ISBN 2236-7381

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Reavaliando as transições: apontamentos sobre a política externa da África do Sul pós-apartheid*

 

 

Bernardo Ramos Bahia

Aluno e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas. Membro do Grupo de Pesquisas do Atlântico Sul

 

 


RESUMO

Processos de transição do regime autoritário suscitam a quebra de certa institucionalidade e a construção de outra ao longo do tempo. Nesse ínterim, as estruturas de tomada de decisão podem vir a modificar-se, para acomodar novas demandas, ou mesmo como resposta a pressões de parte da sociedade. Portanto, a transição de regimes autoritários é considerada um importante marco para mudanças na configuração da política externa. O presente trabalho tem o intuito de compreender os desdobramentos do processo de transição política para estruturas de tomada de decisão em política externa, trazendo algumas observações prévias sobre o caso da África do Sul.  Tendo isso em vista, pretende-se delinear alguns balizadores teóricos que sustentam a pesquisa e fazer algumas reflexões sobre o caso da África do Sul.

Palavras-chave: Democratização; Política externa pós-apartheid; tomada de decisão em política externa


 

 

1 Introdução

O fim do século XX observou uma onda relativamente abrangente de transições políticas. Muitos países deixaram para trás seu passado autoritário e caminham rumo a democracia. Resultado de negociações e lutas internas, processos de transição de regimes autoritários trazem importantes desdobramentos para a política doméstica e internacional desses países. Isto é, trajetórias e processos de transição carregam muitos dos elementos para se compreender a história de países recém-democratizados.

Esses processos de transição do regime autoritário suscitam a quebra de certa institucionalidade e a construção de outra ao longo do tempo. Nesse ínterim, as estruturas de tomada de decisão também se modificam para acomodar novas demandas, ou mesmo como resposta a pressões de parte da sociedade. Constituída por uma estrutura de tomada de decisão, a política externa está sujeita a influência desse processo.

Portanto, a transição de regimes autoritários é considerada um importante marco para mudanças na configuração da política externa. Tal processo parece funcionar como um catalisador de práticas já utilizadas, de forma incipiente, no passado e, ao mesmo tempo, como um impulso criador de práticas e regras compatíveis com o novo regime político. Assim, é intuito desse trabalho examinar, teórica e empiricamente, os desdobramentos do processo de transição política para estruturas de tomada de decisão em política externa, tendo como balizador o caso da África do Sul.

A África do Sul passou por recente processo de transição nas décadas de 1980 e 1990. O regime do apartheid acabou sucumbindo a pressões domésticas e internacionais e implementou medidas de liberalização política para, logo em seguida, iniciar as negociações acerca da democratização com a oposição formada por representantes de amplas parcelas da população negra, que fora excluída por esse regime. Percebe-se, pois, a possibilidade de se relacionar as variáveis (a) transição e (b) tomada de decisão em política externa.

A transição do regime do apartheid parece ter comprometido uma estrutura de decisão em política externa já pouco institucionalizada no período anterior.  Grandes disputas inter-burocráticas aliadas à incorporação de novas perspectivas e demandas ao governo, principalmente do Congresso Nacional Africano (CNA) - movimento de libertação liderado por Nelson Mandela1, criaram certa acefalia à política externa pós-apartheid (DÖPCKE, 1998; HAMILL; LEE, 2001; GALLAS, 2007).

Como processos de transição se relacionam com mudanças em estruturas de tomada de decisão em política externa? Cabe a esse trabalho, portanto, lançar as bases teóricas para responder a essa pergunta, baseando-se em alguns insights da recente história da África do Sul. Para tanto, algumas considerações teóricas são apresentadas, a partir de dois grandes eixos. Primeiro, a respeito de transições, para que se possa referenciar tal movimento, seus processos e variáveis. Em segundo lugar, uma abordagem de política externa capaz de fornecer ferramentas analíticas que enquadre a política externa como processo de tomada de decisão. Após esse esforço de abstração teórica, o trabalho se debruçará para o caso da África do Sul, estabelecendo alguns argumentos e hipóteses a serem analisados.

 

2 Transições no sistema político, na sociedade e nas unidades de tomada de decisão

Como processos de transição se relacionam com mudanças em estruturas de tomada de decisão em política externa? Para responder a essa pergunta faz-se necessário, em primeiro lugar observar como o processo de transição, tido como processo histórico, constitui um novo contexto social capaz de informar novas estruturas de formulações de política externa. É um empreendimento compreensivo, no qual as mudanças na estrutura de política externa na África do Sul são dotadas sentido por meio do exame do processo histórico em pauta.

Para examinar esse processo, estabelecer-se-á, com base em análise de literatura prévia, uma relação entre três variáveis. Para tanto, cabe um breve digressão. Como Weber (1989) aponta, noção de compreensão e seu emprego no estudo do sentido nas ciências sociais pode se utilizar de relações de regularidade - adequadas - entre variáveis. "Ocorre que o estabelecimento de tais regularidades não é a finalidade, mas sim o meio do conhecimento" (WEBER, 1989, p. 95). Em outras palavras, a relação causal que se propõe constitui-se como um instrumento da compreensão. Nesse sentido, pressupõe-se uma regularidade - causal - entre a variável independente - transição -, a variável interveniente - configurações internas (sociedade e sistema político) - e a variável dependente - estrutura de tomada de decisão em política externa.  Vejamos a seguir como isso é operacionalizado.

2.1 As transições do regime autoritário

Quando um regime político movimenta-se em direção a outro, diz-se haver uma transição.

As transições se delimitam, de um lado, pelo início do processo de dissolução de um regime autoritário e, de outro, pela investidura de alguma forma de democracia, pelo retorno a algum tipo de regime autoritário ou pela emergência de um regime revolucionário (O'DONNELL; SCHMITTER, 1988, p. 22).

O termo transição refere-se, pois, a um momento no qual há grande incerteza e as regras do jogo ainda não estão definidas. Regras essas que definirão os recursos e os atores capazes de participar na arena política (O'DONNELL; SCHMITTER, 1988).

Ademais, o movimento de transição em direção à democracia traz consigo dois processos independentes que guardam, contudo, certa relação entre si: democratização e liberalização. A liberalização é o processo que dá ou restabelece aos indivíduos e aos grupos certos direitos que os protegem de arbitrariedades do Estado e de terceiras partes, diminuindo os custos da livre expressão e da ação coletiva. Tais direitos derivam da tradição liberal e corresponderiam a: habeas corpus, privacidade, liberdade de movimento e expressão, direito a defesa, entre outros (O'DONNELL; SCHMITTER, 1988).

O processo de democratização, por sua vez, refere-se à criação de regras e procedimentos que incorporem o indivíduo ao sistema político, reconhecendo seu status de cidadão. Entende-se por cidadania o direito de ser considerado igual e o dever dos governantes de serem responsáveis e abertos a questionamentos por todos os membros da comunidade. Ao mesmo tempo, os dirigidos devem respeitar a legitimidade de escolhas coletivas e delegar aos governantes autoridade para implementar as decisões de maneira efetiva e proteger a integridade da comunidade. Por conseguinte, "democratização refere-se aos processos mediante os quais as regras e procedimentos da cidadania são aplicados a instituições políticas previamente dirigidas por outros princípios" (O'DONNELL; SCHMITTER, 1988, p. 26), ou são expandidas para incluir mais pessoas ou outras temáticas.

Algumas observações a respeito dos dois processos delineados acima devem ser introduzidas. Tanto liberalização quanto democratização podem ser considerados como categorias que apresentam gradações na realidade observada. Ademais, como observado por O'Donnell e Schmitter (1988), ambos os processos são independentes, podendo ocorrer em concomitância ou não.  Considera-se, assim, que o processo de transição abarca esse dois subprocessos, que "interagem ao longo do tempo, cada um dos quais com suas próprias hesitações e reversões, e com motivos e alcances intercambiáveis" (O'DONNELL; SCHMITTER, 1988, p. 29).

É interessante lembrar que, durante a transição, os dois processos supracitados ocorrerão de maneira mais ou menos rápida e constante, ou até de modo mais ou menos abrangente, a depender de como as interações entre situação e oposição ocorrem. Apesar da possibilidade de abertura unilateral do regime autoritário, seja por decisão do governo debilitado, seja pela tomada de poder a força pela oposição, as transições parecem tomar a via média, sendo objeto de seguidos pactos entre uma gama de atores. Portanto, é interessante se compreender as transições por meio de pactos, avançando em prestações e revelando um cenário de interdependência no qual cada ator ou grupo não pode impor aos outros seu interesse ou solução preferida.

Um pacto pode ser compreendido como:

[...] um acordo explícito, mas nem sempre publicamente explicado ou justificado, entre um conjunto de atores na busca de definir (ou redefinir) regras cujo sentido orienta seu comportamento político com base em garantias mútuas relativas aos 'interesses vitais' dos participantes no pacto (O'DONNELL; SCHMITTER, 1988, p. 67).

Em se tratando das transições ruma à democracia, os autores acima concebem três momentos principais em que esses pactos ocorreriam, definindo de qual forma os processos de liberalização e democratização iriam tomar: militar, político e econômico. O momento militar envolve as condições sob as quais os militares aceitam a liberalização e começam a deixar o governo. Para isso, a presença de um líder esclarecido dentro do regime, normalmente, dentre os brandos é essencial. Será ele que buscará 'notáveis' representantes da luta para libertação para iniciar as tratativas para liberalização e a futura democratização.

A primeira abertura traz a tona novos atores e novos interesses que não foram contemplados no pacto anterior. A grande ideia do novo pacto ou conjunto de pactos - do momento político - é estabelecer o bottom line para o compartilhamento do poder durante e após a transição.  Está em jogo, "[...] uma distribuição de posições de representação e de colaboração entre incumbentes autoritários e partidos políticos [...]" (O'DONNELL; SCHMITTER, 1988, p. 72-3). Esse pacto incluiria, entre outros, limitação da agenda de alternativas políticas, compartilhamento proporcional da distribuição de benefícios entre pactantes, restrição ao uso da intervenção militar e da mobilização das massas como maneira de pressionar um dos lados.

Por fim, o momento econômico contempla as modalidades de pacto sócio-econômico. Devido a emergência de demandas originárias de clivagens de classe (que muitas vezes e baseiam em desigualdades socioeconômicas replicadas ao longo do regime), faz-se necessário pactuar como órgãos do governo, sindicatos e empresários se comportarão. Uma das pautas mais importantes desse tipo de pacto seria um compromisso de classes que garanta, ao mesmo tempo, que os direitos de propriedade da burguesia não sejam afetados no futuro, e que as demandas dos trabalhadores por maior justiça social serão atendidas.

A grande ideia inerente aos pactos é a concessão mútua de garantias de direitos e interesses tidos como fundamentais de todos os grupos que participarão da tomada de decisão durante e após a transição para democracia. É irônico pensar, como bem apontam O'Donnell e Schmitter (1988), que os pactos tem o intuito de avançar rumo à democracia, mas são inerentemente não democráticos, uma vez que "[...] Esses pactos são negociados, tipicamente, entre um pequeno número de participantes que representam grupos ou instituições estabelecidos [...]" (O'DONNELL; SCHMITTER, 1988, p. 68).

2.2 Política externa como tomada de decisão

Segundo Carlsnaes (2008), haveriam duas maneiras de se abordar política externa: como política ou como processo. A primeira abordagem se propoõe analisar as principais causas, e influências, de variáveis externas para ações tomadas por um estado internacionalmente. Grande parte dos estudos que segue esse tipo de abordagem buscam responder por quê certo curso de ação foi escolhido por meio de uma ou mais variáveis independentes.  A segunda abordagem busca responder a pergunta 'como' e, sua resposta acaba desvendando também a pergunta 'por quê'. Portanto, concentrando-se na tomada de decisão em política externa, as abordagens que se baseiam no processo quebram com a visão de um Estado unitário e dota indivíduos e grupos de capacidade de agência. Seguiremos pelo caminho da segunda abordagem.

Para se compreender ação e reação entre Estados faz-se necessário analisar como determinado curso de ação foi decidido e quem, em última instância, tomou essa decisão. Dessa maneira, a Análise de Política Externa (APE), um subcampo das Relações Internacionais (RI), se atenta ao exame dos infinitos aspectos envolvidos na tomada de decisão em política externa. APE é, pois, complementar às Relações Internacionais, uma vez que se concentra no estudo da escolha política para toda uma coletividade: o Estado-nação (HUDSON; VORE, 1995).

Assim, a APE leva em consideração uma gama de diferentes variáveis que influenciam o processo de tomada de decisão. Ela se refere, em outras palavras, a um processo complexo com vários níveis, no qual um ou mais atores, em certo contexto, e levando consigo diferentes preferências, se juntam, interagem e tomam uma decisão (KUBALKOVA, 2001).

Como se observa acima, a APE referencia-se sempre na tomada de decisão, concentrando-se principalmente nos atores e processos. Dessa maneira a APE quebra com a visão monolítica do Estado presente em algumas teorias das RI. A escolha, ou tomada de decisão, em grupo ou individual é, portanto, a fonte principal da política internacional (HUDSON; VORE, 1995).

Sendo o intuito desse trabalho compreender os desdobramentos do processo de transição política para estruturas de tomada de decisão em política externa, cabe ainda fazer uma consideração teórico-analítica sobre essa estrutura para subsidiar a compreensão do objeto em estudo. Vale ressaltar que, ao se mencionar uma estrutura de tomada de decisão, refere-se, mais precisamente, à análise das unidades de tomada de decisão, locus de onde partem as diretrizes para a ação internacional de um Estado.

Uma unidade de tomada de decisão é um recurso analítico que tem por objetivo definir as principais características estruturais e contextuais de dada situação/decisão. Tal unidade de tomada de decisão se encontra em relação direta às configurações domésticas e internacionais; isto é, eventos sociais, políticos, econômicos, etc., podem gerar implicações para a tomada de decisão (SNYDER; BRUCK; SAPIN, 2002). O trabalho proposto aqui é exatamente o de examinar as implicações, para a tomada de decisão em política externa, de uma mudança nas configurações internas - transição.

A identificação e definição de uma unidade de tomada de decisão elucidariam os atores envolvidos na tomada de decisão, sua relação com os demais tomadores de decisão sobre a matéria, a natureza de sua participação nesse processo, a distribuição de poder e informação. Tal esforço apontaria ainda para a localização dessa unidade no processo político doméstico mais amplo - partidário, burocrático, entre Legislativo e Executivo. Snyder, Bruck e Sapin apresentam algumas das características principais da unidade de tomada de decisão: (a) tamanho; (b) estrutura interna; (c) localização no contexto institucional; (d) relação com outras unidades de tomada de decisão; (e) duração; (f) objetivo. A estrutura da tomada de decisão seria, portanto, melhor descrita a partir do exame das várias estruturas individuais das distintas unidades decisórias em política externa.

Por fim, a idéia de esferas de competência é essencial para o desenho tanto interno quanto externo dessa unidade. Por competência entende-se "a totalidade daquelas atividades do decisor que são relevantes e necessárias para a realização do objetivo da organização" (SNYDER; BRUCK; SAPIN, 2002, p. 91, tradução livre)2. No interior das unidades de tomada de decisão, encontrar-se-iam três diferenciações no que tange as competências dos atores. A primeira dessas diferenças é de autoridade, expressando a relação de um ator com os demais atores na tomada de decisão. A segunda, diz respeito ao grau de generalização e especialização do ator, que definiria mais precisamente sua função, ou especificações do seu trabalho. Por fim, a terceira diferença refere-se à natureza da participação do ator na tomada de decisão. A participação de um ator na tomada de decisão poderia ser caracterizada como membro/associado, representacional ou consultiva (SNYDER; BRUCK; SAPIN, 2002).

Como trabalhar conjuntamente os dois eixos apresentados acima? Em primeiro lugar, a transição, desdobrada em liberalização e democratização influencia de modo diferente as configurações internas.  A liberalização gera impactos na sociedade, o que segundo Hill (2003) possibilita a fluência de inputs advindos principalmente de grupos organizados - como grupos de interesse e movimentos sociais.

A democratização, por sua vez, mira as instituições políticas - processos governamentais, regras e instituições, possibilitando que as fontes domésticas de política externa sejam cada vez mais influentes. Ou seja, a democratização demanda que as instituições políticas adotem responsabilidade e accountability como suas características, o que torna mais comum o papel do Legislativo, a grande atenção dada à opinião pública, a maior exposição à mídia e maior abertura à participação extra-eleitoral (HILL, 2003).


Como se observa, os atores da sociedade e as regras e processos do sistema político se conformam como importantes fontes domésticas de input e constrangimentos sobre a PEX (HILL, 2003). Entretanto, como observar a canalização desses inputs e constrangimentos? Isso se dará a partir do exame da estrutura de tomada de decisão, mais especificamente, das unidades de tomada de decisão em política externa.

Como já observado anteriormente, as unidades de tomada de decisão possuem uma série de características, dentre as quais, a estrutura, mais especificada nas diferenciações de esferas de competência, que seria a mais importante para esse trabalho. A análise se iniciaria pelo mapeamento dos atores envolvidos e de suas respectivas procedências (burocracias, legislativo, grupos da sociedade civil, etc.). A partir daí, apontar-se-ia para sua posição relativa aos outros atores no interior da unidade de tomada de decisão, desenhando-se a estrutura de autoridade do mesmo. Em seguida, analisar-se-ia a estrutura funcional da unidade, apontando para diferenças de especialização/generalidade entre os mesmos. Por fim, buscar-se-ia identificar a natureza da participação de cada ator.  A Figura 1 (acima) resume o modelo teórico do trabalho.

 

 

4 A transição do regime do apartheid na África do Sul   .

O processo de transição do apartheid em direção a um regime democrático na África do Sul foi possível devido a confluência de dois fatores principais que influenciaram em grande parte a mudança de status quo tanto da elite branca (africâner), quanto dos movimentos negros de libertação. O primeiro deles é o esgotamento do modelo de produção no qual o regime do apartheid se assentava, baseado na geração de excedente de mão-de-obra nos bantustões3 para suprir a  atividade econômica4 dos africâneres. Tratava-se de um mecanismo importante para se conseguir mão-de-obra básica e relativamente barata, garantindo-se assim a competitividade e a não concorrência por emprego com os africâneres. Ocorre que a economia sul-africana, principalmente nas cidades, passou a demandar mais mão-de-obra qualificada, que não era suprida pela elite branca, o que, de certa maneira, virou a balança em favor dos trabalhadores negros. Nesse sentido, as organizações de trabalhadores - como a COSATU5 -, aliados ao CNA, ganharam força frente ao governo e à população (BECK, 2000; BOND, 2000; PEREIRA, 2010).

Além disso, tal fato levou empresários, antes defensores do regime, a pensar em soluções para liberalizar o apartheid, ou até mesmo acabar com ele. O empresariado já começara a contratar negros para funções mais qualificadas e gerenciais. Entretanto, o conjunto de restrições à livre circulação, acesso separado em espaços públicos, habitação e educação apartadas dificultavam essa prática, e assim, a competitividade de atividades econômicas (BECK, 2000; BOND, 2000).

O segundo deles é o conjunto de sanções internacionais, de natureza diversa, mas principalmente econômica, que a partir do fim da década de 1980 começam a ser impostas ao governo do apartheid. Uma série de países, entre eles os Estados Unidos da América (EUA), membros da Commonwealth, fecharam as fronteiras para o comércio com a África do Sul e recomendaram o fim dos investimentos externos diretos e operações financeiras naquele país. De fato, o governo africâner sofreu quando percebeu que não poderia mais financiar seus gastos com repressão e defesa e intervenções externas6, tendo que decretar moratória da dívida. A recessão econômica foi agravada pela a saída de empresas transnacionais do país e pela fuga de capitais (BECK, 2000; BOND, 2000; PINTO, 2007). .

Esses dois principais fatores tiveram grande importância para a mudança no status quo do regime apartheid, cujos líderes já percebiam a inviabilidade de se despender mais recursos para restaurar o regime e seguir em frente suas políticas de desenvolvimento separado. Por outro lado,

Enquanto o principal movimento de libertação [CNA] gozava inquestionavelmente de expressivo apoio popular, e enquanto ele era indubitavelmente capaz de perturbar a ordem do estado, nem a luta armada, nem a campanha para tornar o país ingovernável chegaram perto de forçar o regime à rendição incondicional (GINSBURG, 1996, p. 79, tradução livre)7.

A solução encontrada para evitar o deadlock foi a transição negociada ou pactuada. Apesar de ser de natureza sub-ótima tendo em vista os interesses de ambas as partes, o pacto entre o governo do apartheid (Partido Nacional) e os libertacionistas negros era visto como a única maneira de se garantir a manutenção dos recursos aos brancos - principalmente a propriedade privada e, mais genericamente, o capitalismo - ao mesmo tempo em que se incluía os negros no processo político. À revelia de grupos extremistas de direita, no caso do Partido Nacional, e à esquerda, no caso do movimento de libertação, o que ocorreria, portanto, seria uma transição conservadora ou moderada (GINSBURG, 1996; BECK, 2000).

As negociações iniciaram em resposta a uma sinalização, por parte da população branca, a favor das mesmas. O empresariado se mostrava a favor da transição e iniciara, antes mesmo do Partido Nacional, conversas e reuniões com líderes do CNA exilados no exterior (BECK, 2000). Na abertura dos trabalhos do Parlamento em 1990, o presidente De Klerk, sucessor de Botha, anunciou uma série de medidas de liberalização política para os negros. Tais medidas incluíam a soltura de Nelson Mandela e a legalização dos movimentos de libertação. Foi o gatilho para o início da transição, que teve dois momentos principais: as negociações e o governo interino.

As negociações duraram de 1990 a 1994, quando da realização da primeira eleição da nova democracia não-racial. O início das negociações foi duro e caracterizou-se por certo estranhamento entre os dois lados. Não havia disposição para ceder. Mandela continuava a defender as sanções internacionais contra o apartheid como forma de garantir que a transição ocorresse de fato. O Partido Nacional, por sua vez, instigava a violência local entre grupos negros rivais e demandava mais participação no governo interino a ser formado. Entre avanços e percalços, chegou-se a solução para a constituição de um governo interino de coalizão (power-sharing), por meio de eleições diretas livres. Tal concessão por parte do CNA integrava os sunset clauses, que assegurariam ainda os cargos dos servidores públicos brancos (BECK, 2000).

As tratativas estabeleceram ainda uma constituição interina, delineando previamente princípios gerais que regeriam o governo interino e a Assembléia Constituinte a ser formada. Princípios esses que deixavam a propriedade e outros recursos de poder nas mãos dos que mantiveram esse privilégio ao longo dos séculos: a elite africâner (GINSBURG, 1996).

Em 1994 foram realizadas as eleições e o CNA obteve a maioria dos votos (62,65%) e Mandela ascendeu à presidência, mas não atingiu os dois terços necessários para aprovação da Constituição sem apoio de outros partidos. O Partido Nacional ganhou 20,4% dos votos e teve direito de indicar o vice-presidente, cargo preenchido por De Klerk. O governo interino tomou posse em maio do mesmo ano e iniciou o trabalho desafiador de construção da nova Constituição, de iniciar os julgamentos dos abusos da época do apartheid (Verdade e Reconciliação) e de arrefecer a situação socioeconômica herdada de séculos de exploração de viés racial, e piorada pela crise econômica presente desde o fim da década de 1980 (BECK, 2000).

Como se observa, a transição na África do Sul é multifacetada, e conta com a participação de atores que se mantêm no processo governamental e político - como é o caso do Partido Nacional, da burocracia do apartheid e do empresariado africâner. Ao mesmo tempo, ela traz para o jogo político novos atores, de amplo espectro político, que participavam dos movimentos de libertação. Estabelecemos a seguir alguns apontamentos para guiar o estudo sobre os desdobramentos da transição do regime do apartheid na estrutura de tomada de decisão em política externa.

 

5 Compreendendo a reestruturação da tomada de decisão em política externa na África do Sul pós-apartheid: alguns apontamentos

A política externa sul-africana pós-apartheid certamente está sendo informada pelos desdobramentos do recente processo de transição política vivenciado. Nesse sentido, os resultados da liberalização e da democratização, bem como a maneira com que eles foram 'processualmente' implementados pelos pactos entre situação e oposição, devem ser compreendidos em sua totalidade. A título de conclusão, apresentamos duas linhas de argumentos a serem desenvolvidas em futuros estudos.

Primeiro, os atores mais ativos e influentes durante o processo de negociação da transição passam a figurar de maneira mais influente em decisões em política externa. Em que medida as regras pactuadas durante a transição são capazes de dar mais acesso a um grupo de atores à política externa? Nesse sentido vale analisar o papel do empresariado branco em decisões de política externa: os esforços do empresariado no sentido de começar a transição se traduziram em capacidade de influência nas decisões do novo governo? Como?

O ANC também é peça-chave na compreensão de atores influenciando na política externa. Sabe-se que esse movimento de libertação, que mais tarde veio a se tornar um partido possuía ampla rede de representação no exterior, podendo-nos imputar a ele uma política externa. A vitória para as primeiras eleições diretas universais na África do Sul permitiu que esses adquirissem número representativo de cadeiras, além da presidência. Isso se refletiu em termos de influência sobre tomada de decisão em política externa? Como fazer um paralelo entre esse fato e os termos da negociação do momento político do pacto - a respeito das regras das eleições e do governo interino?

Segundo, o grau de institucionalização da estrutura de tomada de decisão em política externa é importante para arrefecer ou fortalecer pressões advindas do processo de transição. Isto é, mais institucionalização gera mais estabilidade durante processos estruturais de mudança no sistema político. Nesse ponto é importante pensar as negociações que, durante a transição, permitiram manter intactos os servidores públicos do apartheid. Tal discussão suscita também a questão de transparência e imparcialidade no serviço público: em que medida uma burocracia formada por indivíduos que trabalhavam dentro da arquitetura do apartheid pode ser capaz de trabalhar para uma democracia não-racial? Que implicações são vislumbradas com a manutenção dessa burocracia "não-representativa" para estruturas tomadas de decisão em política externa?

O presente trabalho teve o intuito de lançar as bases teóricas de uma pesquisa mais ampla a respeito de como mudanças domésticas informam a política externa. O estudo aprofundado do caso da África do Sul será de grande valia para balizar o conhecimento teórico desenvolvido, bem como adicionar certo valor empírico ao mesmo.

 

Referências bibliográficas

BECK, Roger B. The history of South Africa. Westport, Conn.: Greenwood Press, 2000.

BOND, P. Elite transition: from apartheid to neoliberalism in South Africa.   Londres: Pluto Press, 2000.

CARLSNAES, Walter. Actors, structures and foreign policy analysis. In.: SMITH, Steve; HADFIELD, Amelia; DUNNE, Timothy. Foreign policy: theories, actors, cases. Oxford [Inglaterra]: New York: Oxford University Press, 2008. Cap. 5, pp. 85-100.

DOPCKE, Wolfgang. Uma nova política exterior depois do apartheid? Reflexões sobre as relações regionais da África do Sul, 1974 - 1998. Revista Brasileira de Política Internacional,  Brasília,  v. 41,  n. 1, jun. 1998.   Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v41n1/v41n1a07.pdf>. Acesso em:  25  jul.  2010.

GALLAS, Daniel R. A política externa da África do Sul de 1994 até hoje: condicionantes internos e limites externos. 2007. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

GINSBURG, D. The Democratisation of South Africa: Transition Theory Tested. Transformation, n. 29, 1996.

HAMILL, James; LEE, Donna.A middle power paradox?South African diplomacy in the post-apartheid era.International Relations, v. 15, n. 4, abr. 2001.

HILL, Christopher. The changing politics of foreign policy. New York: Palgrave Macmillan, 2003

HUDSON, Valerie M.; VORE, Christopher S. Foreign Policy Analysis Yesterday, Today, and Tomorrow. Mershon International Studies Review, v. 39, n. 2, p. 209-238, Oct. 1995.

KUBÁLKOVÁ, V. Foreign Policy, International Politics, and Constructivism. In.: KUBÁLKOVÁ, V. (Ed.). Foreign policy in a constructed world. Armonk: M. E. Sharpe, 2001. Chapt. 1, p. 15-37.

O'DONNELL, Guillermo A.; SCHMITTER, Philippe C. Transições do Regime Autoritário: primeiras conclusões. São Paulo: Vertice, 1988.

PEREIRA, Analúcia D. África do Sul independente: segregação, Apartheid e transição pactuada (1910-1994). In: VISENTINI, Paulo G. F.; PEREIRA, Analúcia D.(org). África do Sul: história, estado e sociedade. Brasília: FUNAG/CESUL, 2010. Cap. 2, pp. 35-64.

PINTO, S. M. R. Justiça transicional na África do Sul: restaurando o passado, construindo o futuro. Contexto Internacional, v. 29, p. 393-421, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-85292007000200005&nrm=iso >. Acesso em: 26 Mai. 2011.

WEBER, Max. A 'objetividade' do conhecimento nas ciências sociais. In.: COHN, Gabriel (org.). Max Weber: sociologia.  São Paulo: Ática, 1989. Cap. 3, pp. 79-127.

SNYDER, Richard Carlton; BRUCK, H. W.; SAPIN, Burton M. Foreign policy decision-making (revisited). New York: Palgrave, 2002.

 

 

* Esse trabalho incorpora os empreendimentos iniciais de elaboração da dissertação de mestrado do autor. Portanto, constitui-se um trabalho ainda preliminar a ser melhor desenvolvido nos meses que se seguem.
1. Nelson Mandela foi um dos principais líderes do movimento anti-apartheid e foi chamado para as negociações que levaram ao seu fim.
2. [...] the totality of those activities of the decision-maker relevant and necessary to the achievement of the organizational objective.
3. Os bantustões, ou homelands, consistiam em espaços territoriais demarcados destinados aos negros, que eram separados dos territórios onde a elite branca vivia. Tal regulação era a expressão do princípio de desenvolvimento separado (ou apartado), central para o apartheid, que considerava que raças diferentes possuem potenciais de desenvolvimento diferentes.
4. Durante o período do apartheid, a economia sul-africana era, em grande parte, primário-exportadora, baseada na exploração de ouro, diamante, e outros minerais. De todo modo, esse período foi marcado por um processo de industrialização por substituição de importações, que modificou a atividade econômica nesse país.
5. Congress of South African Trade Unions.
6. Durante as décadas de 1970 e 1980, a África do Sul, através de sua política de desestabilização regional, envolveu-se fortemente em conflitos na região, lutando contra regimes comunistas, e libertacionistas que forneciam apoio e exílio ao CNA em Angola e Moçambique. Despendeu-se muito na área de defesa com essa política, principalmente a partir da década de 1980, quando da ascensão de Botha à presidência, que implementou a Total National Strategy.
7. While the principal liberation movement unquestionably enjoyed overwhelming popular support, and while it could undoubtedly disrupt the normal affairs of state, neither the armed struggle nor the campaign to make the country ungovernable came close to forcing the regime into unconditional surrender.