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ISBN 2236-7381 versión impresa

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

A "estatização" do trabalho humanitário no pós-guerra fria: o "novo humanitarismo" e o dilema da cooperação entre humanitários e estados

 

 

Bruno Heilton Toledo Hisamoto

Mestrando do Instituto de Relações Internacionais/Universidade de São Paulo (IRI/USP) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)

 

 


RESUMO

Um dos aspectos mais relevantes observados dentro da estrutura humanitária nas últimas décadas é a crescente presença governamental, através doações a organizações não-governamentais, pelo trabalho de agências intergovernamentais, ou pela atuação direta (política e/ou militar) em situações críticas. Ainda que remonte aos anos 1970, este processo se intensificou com o fim da Guerra Fria, a partir da associação neoliberal entre direitos humanos e política internacional, que influenciou a agenda de segurança coletiva e o humanitarismo. Entretanto, da mesma forma que a presença estatal fortaleceu a causa humanitária com mais recursos, resultou também na sua politização e militarização, submetida aos interesses de doadores e governos em detrimento das vítimas, e contradizendo fundamentos do humanitarismo, como independência, neutralidade e imparcialidade. Este trabalho observa esta gradual "estatização" do humanitarismo, enfatizando como este processo foi percebido dentro da reflexão sobre ação humanitária pós-Guerra Fria e suas consequências na discussão e na prática humanitária no mundo pós-2001.

Palavras-chave: ação humanitária, direitos humanos, segurança coletiva, intervenção humanitária


 

 

Introdução

O Estado sempre foi um personagem ambíguo dentro da reflexão sobre humanitarismo e ação humanitária, um tipo de ator difícil de pensar dentro de um universo complexo e problemático, como é o universo humanitário. Por um lado, os Estados são os principais garantidores do Direito Internacional Humanitário, através da ratificação das Convenções de Genebra, as pedras fundamentais do humanitarismo moderno, assumindo responsabilidades referentes à proteção dos direitos básicos à integridade e à dignidade de seus cidadãos - e mais recentemente, assumindo compromissos ainda mais profundos, no sentido de proteger estes direitos não apenas em seu próprio território, mas também nos de outros Estados que porventura cometem abusos contra suas populações. Os Estados também são os grandes financiadores de agências humanitárias intergovernamentais e não-governamentais, num volume de recursos que vem crescendo nas últimas duas décadas e permitindo uma expansão histórica na rede internacional de assistência humanitária, refletida no crescimento no número de organizações voltadas para a ajuda e na capacidade das principais agências humanitárias de se fazer presente em quase todos os lugares críticos ao mesmo tempo. Por outro lado, os Estados trazem à arena humanitária um elemento estranho e problemático para o pensamento moderno sobre humanitarismo - a política. Tradicionalmente, o humanitarismo se observa como um universo não-político, onde considerações estratégicas sobre política não devem influenciar a atuação dos agentes na entrega da ajuda às vítimas. Esta preocupação se reflete nos conceitos basilares do humanitarismo moderno, criados e preservados até hoje pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e suas instituições nacionais: humanidade (atenção a todos os povos), imparcialidade (ajuda baseada na necessidade da vítima, sem outras clivagens), neutralidade (a ajuda não deve atender aos interesses, explícita ou implicitamente, das partes beligerantes ou de qualquer outra força em questão), e independência (a ajuda não deve estar ligada a nenhuma das partes beligerantes nem a outros atores).

Principalmente nos últimos vinte anos, estes princípios vem sendo questionados à luz das experiências humanitárias do pós-Guerra Fria (as famosas "emergências humanitárias complexas") e da absorção do discurso e da prática humanitária pelos principais governos, dividindo opiniões dentro da comunidade humanitária internacional. De um lado, aqueles que enxergam as crises recentes como razão e oportunidade para o humanitarismo sair da simples ajuda emergencial para se tornar parte de um projeto mais profundo, de reconstrução das sociedades afetadas, envolvendo esforços de médio e longo prazo, e aproveitando os novos recursos disponíveis e o apoio decisivo dos Estados neste sentido. Para eles, os princípios tradicionais devem ser compreendidos como instrumentos práticos do humanitarismo, os quais nem sempre devem ser utilizados, tendo em vista a dinâmica e a violência da crise humanitária. Ou seja, propõem um novo tipo de humanitarismo, mais ligado à agenda de direitos humanos e à de segurança coletiva internacional e, consequentemente, mais politizado. Do outro lado, aqueles que defendem a abordagem tradicional do humanitarismo, minimalista, focada na responsabilidade de ajudar as vitimas e menos em reconstruir suas vidas, mantendo distância da arena política e militar e dos Estados, presa aos princípios humanitários tradicionais. Para eles, o humanitarismo deve manter-se não-politizado, sob pena de se tornar um mero instrumento de política externa dos Estados, um motivo ético para um tipo de "imperialismo humanitário" por parte dos principais governos do mundo, voltado para os interesses destes países e ignorando a real motivação do humanitarismo, a atenção sobre as vítimas e suas necessidades emergenciais.

A linha entre estes grupos não é tão tênue, dada a vastidão e complexidade da rede humanitária internacional, mas é forte o bastante para criar conflitos internos profundos dentro desta comunidade. As experiências do pós-Guerra Fria foram essenciais para aflorar questionamentos sobre a natureza do humanitarismo, sobre sua função e sobre suas responsabilidades perante as vítimas e perante os doadores. No fundo disso tudo, a presença crescente do Estado na arena humanitária, não apenas como fiador e financiador da ajuda, mas também como planejador e executor da ação humanitária, principalmente nesta última década - ou seja, o surgimento de um "humanitarismo estatal". É exatamente esta "estatização" do humanitarismo o cerne deste trabalho. Observaremos como os Estados aprofundaram sua participação na rede humanitária internacional, na esteira do pós-Guerra Fria e da emergência de uma agenda política de direitos humanos nas considerações sobre segurança coletiva. Principalmente, observaremos como este processo foi percebido e racionalizado dentro da reflexão sobre humanitarismo, e como estas experiências e as consequências do debate sobre fundamentos e práticas humanitárias do pós-Guerra Fria influenciaram a ação humanitária em si, derrubando dogmas e estabelecendo novos (e problemáticos) paradigmas para o humanitarismo do começo do século XXI1.

 

O Direito de Ingerência Humanitária e o "Novo Humanitarismo"

Ainda que a discussão sobre um "novo humanitarismo" tenha se desenvolvido principalmente nos anos 1990, alguns traços deste debate remontam aos anos 1970, quando houve a primeira "ruptura" dentro da estrutura de ação humanitária moderna desde sua constituição, com a criação do CICV em 1863. Entretanto, as guerras mundiais, e principalmente o silêncio guardado pela Cruz Vermelha durante o Holocausto na Segunda Guerra Mundial, já haviam colocado em xeque os fundamentos humanitários preservados pela organização.

A neutralidade - que impõe aos agentes humanitários não submeter sua ajuda aos interesses de nenhuma dos beligerantes, nem de outros tipos de atores além das vítimas, e sem proceder nenhum tipo de juízo de valor - está no centro das polêmicas no humanitarismo desde o final dos anos 1940. Para o CICV e suas organizações, a neutralidade é um dos principais instrumentos do humanitarismo, ao procurar garantir às partes beligerantes a isenção da ajuda, sem que isso tenha implicações na dinâmica particular do conflito. Ela garante aos agentes humanitários um espaço de trabalho - físico ou meramente discursivo - onde apenas os interesses das vítimas orientam as suas atividades, livres de pressões ou de interesses externos. Sem este "espaço humanitário", a ajuda perde seu foco e se submete à dinâmica da guerra e aos interesses dos beligerantes ou de outras forças, corrompendo consequentemente os demais princípios do humanitarismo - humanidade, independência e imparcialidade2. Esta limitação do humanitarismo ao seu "espaço" se reflete também no foco de suas atividades: a ajuda deve priorizar a emergência, a provisão de alimentos, remédios e cuidados médicos para vítimas - ou seja, eram objetivos pouco ambiciosos e bastante limitados.

Já entre os anos 1910 e 1940, diversas organizações de natureza humanitária, criadas no contexto pós-guerras mundiais - como a Save the Children (1919) e a Oxfam (1942), na Inglaterra, além do CARE (1945) nos Estados Unidos, além das instituições ligadas às Nações Unidas, como o UNICEF (UN International Children's Emergency Fund), a FAO (Food and Agriculture Organization) e o ACNUR (Alto-Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) - passaram a desenvolver atividades mais permanentes, voltadas não apenas para crises humanitárias decorrentes de conflitos ou de tragédias naturais, mas principalmente para países em desenvolvimento. Esta foi uma primeira aproximação entre o humanitarismo e desenvolvimento econômico, que no decorrer das décadas, e principalmente nos anos 1990 teriam suas agendas de ação praticamente compartilhadas (Chandler, 2001). Ainda assim, a primeira crise séria dentro da comunidade humanitária viria apenas no final dos anos 1960 e começo dos 1970, com o conflito separatista em Biafra, na Nigéria.

Havia certa percepção entre as principais organizações humanitárias durante a Guerra Fria de que o conflito bipolar limitava ainda mais o poder de ação dos agentes humanitários em situações de conflito, o que levava a valorizar ainda mais o princípio da neutralidade. A experiência da Guerra da Coréia, nos anos 1950, onde o governo norte-coreano impediria os trabalhos da Cruz Vermelha, acusando-a de parcialidade, tornou esta impressão ainda mais forte, principalmente dentro da própria Cruz Vermelha (Rieffer-Flanagan, 2009). Mas Biafra colocaria esta percepção em xeque. No final dos anos 1960, separatistas de Biafra lutavam contra as tropas federais nigerianas, mas os combates evoluíram rapidamente para massacres, dada a disparidade entre as forças de Biafra e as nigerianas. Além disso, as restrições impostas pelo governo a Biafra acabaram por disseminar a fome e doenças na região, tornando-a uma crise humanitária grave. O CICV atuou mais uma vez respeitando seus princípios, e não emitiu nenhum tipo de condenação ao governo nigeriano, mesmo quando este limitava a ajuda entregue às populações do território separatista. Entretanto, muitas agências humanitárias e trabalhadores em campo não conseguiam observar esta conduta do CICV como "ética" diante do massacre, e passaram a criticar abertamente o governo nigeriano e a atuação da Cruz Vermelha na crise de Biafra. A cobertura da mídia ocidental do conflito na Nigéria também teria um papel fundamental, por ter sido a primeira crise humanitária noticiada com certa simultaneidade entre os fatos e as noticias, pressionando ainda mais o CICV e o governo nigeriano. A falta de atenção dos principais governos mundiais e das Nações Unidas à crise em Biafra, aliada a confidencialidade da Cruz Vermelha, colocaram as ONGs humanitárias e muitos setores da própria Cruz Vermelha a favor da causa separatista.

Por consequência disto, diversos funcionários da Cruz Vermelha francesa presentes em Biafra deixaram a organização para criar os Médecins Sans Frontières (MSF) em 1971, liderados inicialmente por Bernard Kouchner. O surgimento do MSF foi fundamental para estabelecer um novo conceito de humanitarismo, baseado não apenas na necessidade da vítima, como advogado pelo CICV, mas também nos direitos dela. O humanitarismo baseado nos direito se sustentava a partir de dois novos conceitos, o da "liberdade de crítica ou denúncia", que permite aos agentes expor publicamente abusos contra os direitos humanos das vitimas por parte das forças beligerantes, e o do "direito de intervir" ou "direito de ingerência humanitária", uma elaboração teórica feita por Kouchner e Mario Bettati em que os agentes humanitários têm o direito de ajudar as vítimas de crises humanitárias, mesmo sem a autorização dos governos envolvidos3. Nos anos 1980 e 1990, estes conceitos seriam refinados à luz das experiências do período4, e sustentariam aquilo que passou a ser chamado de "novo humanitarismo": a ajuda passa a ser uma forma de intervir politicamente na crise humanitária, ao estabelecer estratégias de médio e longo prazo, envolvendo instrumentos de denúncia pública, projetos de ação voltados para o pós-guerra (peacebuilding) em áreas como educação, saúde, direitos humanos, justiça e administração pública. Além disso, o imperativo humanitário passa a ser ainda mais forte, relativizando a soberania enquanto limite para a ação humanitária.

Este "novo humanitarismo" - abrangente, politizado e ambicioso - está intimamente ligado à emergência, principalmente após o fim do conflito Leste-Oeste, de uma agenda política de direitos humanos nas relações internacionais5. A influência do pensamento neoliberal sobre direitos humanos, que no campo da segurança coletiva resultaria em maior poder (ou vontade) de intervenção do sistema internacional sobre Estados "críticos", que abusam de suas populações civis, gerou dentro do humanitarismo uma preocupação com a defesa dos direitos das vítimas, onde a simples ajuda emergencial pouco significaria para o resgate da dignidade e da integridade destas pessoas. Mais do que ajudar, a ação humanitária deve se preocupar em melhorar a vida das vítimas, a partir de iniciativas mais estruturadas, com objetivos mais amplos e menos momentâneos. Por serem processos concomitantes e muitas vezes interligados, é impossível pensar neste "novo humanitarismo" sem pensar na emergência dos Estados na arena humanitária internacional no pós-Guerra Fria.

 

"Humanitarismo Estatal": Estado como ator humanitário

O envolvimento crescente dos Estados em questões humanitárias tem sido exaustivamente analisado sob o ponto de vista de seu projeto mais polêmico e visível no âmbito político-estratégico: as "intervenções humanitárias", ou seja, o envio de tropas militares em situações de conflito (ou pós-conflito) com graves implicações humanitárias6. No entanto, o envolvimento de militares por parte dos Estados em crises humanitárias representa apenas um aspecto do Estado na arena humanitária internacional. Pode-se dizer que nas últimas duas décadas o papel do Estado no humanitarismo deixou de ser algo vago - um financiador momentâneo e sem maiores relações com as agências humanitárias em campo - tornando-se um ator evidente não apenas no financiamento da ajuda, mas também em seu planejamento, em sua observância e, mais recentemente, em sua execução. Para as agências humanitárias deste começo de século, pensar o humanitarismo sem o Estado, ou marginalizando-o, parece inviável. Algumas coisas deixam isto evidente.

Primeiro, houve uma expansão histórica no volume de recursos destinados pelos principais governos para ajuda humanitária. Ainda que os dados não sejam completos, de acordo com as informações da OCDE sobre oficial development assistance (ODA), que também engloba gastos com ajuda emergencial, os principais países do mundo quase triplicaram o montante financeiro destinado para este tipo de ajuda, de US$ 2,1 bilhões para US$5,9 bilhões entre 1990 e 2000, e chegando a US$ 10 bilhões em 2006 (Fearon, 2008). Em quinze anos, os recursos destinados para ajuda humanitária oficial quase quintuplicaram. Ao mesmo tempo em que os Estados colocaram mais dinheiro em ações humanitárias, os critérios para sua utilização por parte das agências também se tornaram mais claros e restritivos. Se antes o financiamento era pontual e sem maiores observações, e beneficiavam majoritariamente as instâncias multilaterais de ajuda e entidades mais tradicionais (basicamente as agências das Nações Unidas e o CICV), os recursos atuais possuem responsabilidades contratuais entre os humanitários e os doadores - as chamadas contribuições earmarking, recursos destinados pelos doadores para situações especificas, com critérios de planejamento e aplicação por parte das agências humanitárias - e tendem a se pulverizar entre diversas ONGs, que normalmente não tem condições de discutir condições de ajuda com os doadores. É o que muitos analistas chamam de "bilateralização" da ajuda humanitária: um aumento no volume de recursos destinados à ajuda, mas condicionados de acordo com critérios definidos pelos doadores, e destinados principalmente para agências que não tenham condição de questionar estas observações (Macrae et alli, 2002). Isto também acarretou num aumento acentuado no número de agências humanitárias, principalmente ONGs, a partir dos anos 1990: se na década de 1980 o número de ONGs humanitárias em atividade não passava dos 40 (no auge da crise dos refugiados cambojanos na Tailândia), em 1995 já passavam dos 250 (presentes na antiga Iugoslávia), e em 2002 já eram mais de dois mil (no Afeganistão pós-intervenção norte-americana). Segundo estima o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o total de organizações não-governamentais relacionadas com trabalho humanitário passa de trinta mil7. A maioria esmagadora destas agências é de pequeno porte, com campo de ação bastante limitado, mas que se sustentam através destes acordos de cooperação com doadores governamentais (Polman, 2010).

Este tipo de financiamento leva a um segundo elemento em torno do "humanitarismo estatal": o envolvimento dos governos no planejamento da ajuda, não apenas nos escritórios centrais das agências, mas também em campo. Resultado direto desta preocupação dos Estados com a transparência do gasto de suas doações, muitos dos contratos estabelecidos entre doadores e organizações humanitárias exigem um acompanhamento por parte dos governos do processo de definição das estratégias de aplicação destes recursos em campo, indo desde as tratativas nas sedes destas organizações até seus QG em campo. Isto tem duas implicações sérias: primeiro, submetem as estratégias de ação dos agentes humanitários às preocupações contratuais dos doadores e à necessidade de manter o fluxo de recursos para a sobrevivência da agência; e segundo - e, de certo modo, resultante do anterior - permite a concentração de recursos em determinados campos, em detrimento de outros em situação tão grave quanto os anteriores (Macrae et alli, 2002).

Um terceiro elemento da tendência "estatizante" do humanitarismo recente se relaciona diretamente com o elemento militar presente nas intervenções humanitárias pós-Guerra Fria. Cada vez mais, principalmente em localidades onde as condições de acesso e de segurança por parte das agências humanitárias são bastante precárias, observa-se a atuação de agentes estatais na condição de agentes humanitários em si: ou seja, planejando e entregando ajuda para as populações necessitadas, sem "intermediários". Isto é bastante característico das operações militares realizadas nesta última década sob a égide da "guerra contra o terror", onde as forças interventoras utilizam-se do discurso e da prática humanitária para justificar sua presença e para obter apoio local aos ocupantes.

Por exemplo, tanto no Afeganistão quanto no Iraque, as forças interventoras estabeleceram escritórios e equipes de campo relacionadas com ajuda humanitária. No primeiro caso, a coalizão liderada pelos Estados Unidos constituiu grupos de trabalho chamados Provincial Reconstruction Teams (PRTs), formados por soldados e oficiais militares, que tinham como objetivo primordial apoiar o governo afegão em "zonas difíceis" através da entrega de ajuda humanitária e da execução de tarefas de reconstrução, muito similares às atividades realizadas por diversas ONGs presentes no país. No caso iraquiano, uma das primeiras providências tomadas após a queda de Saddam Hussein por parte da Autoridade Provisória da Coalizão foi criar o Centro de Assistência Iraquiano (IAC) em Bagdá para coordenar os esforços humanitários e as ações de reconstrução pós-guerra, acompanhado de três Centros de Coordenação para Assistência Humanitária (HACCs), em Bagdá, na Jordânia e no Kuwait. Em outras situações, onde as condições de segurança também são delicadas, mas a atenção dos interventores não é tão impositiva quanto nos casos anteriores, as tropas interventoras servem como garantia de segurança para os agentes humanitários realizarem seu trabalho, acompanhando as equipes humanitárias em campo, principalmente aquelas que não possuem recursos para contratar empresas de segurança privada ou que estão diretamente ligadas (financeira e contratualmente) com os países interventores - ou seja, a maior parte das agências humanitárias atualmente.

 

O dilema da cooperação: o "custo-benefício" do Estado enquanto ator humanitário

A aproximação entre Estados e agências humanitárias subverteu profundamente os princípios tradicionais que sempre guiaram o humanitarismo, desde meados dos anos 1860. Principalmente, trouxe à arena humanitária exatamente seu fantasma mais problemático: a política. Para alguns autores e especialistas, a neutralidade, pensada da forma como o CICV sempre defendeu desde sua fundação, é impraticável neste começo de século XXI8. Primeiro, porque a dinâmica dos conflitos armados do pós-Guerra Fria é diferente das guerras tradicionais: os "novos conflitos" se desenrolavam na periferia do sistema mundial, dentro de Estados em crise, envolviam uma gama de diferentes tipos de forças beligerantes (desde exércitos regulares até guerrilhas, passando por milícias paramilitares, entre outros atores não-estatais), onde a violência era muito alta e invariavelmente acabava vitimando populações civis. Segundo, e consequência do anterior, as condições de trabalho (leia-se "espaço humanitário") eram limitadas, e mesmo a observância dos princípios humanitários tradicionais garantiam a segurança dos agentes humanitários. Isto se reflete numa tendência observada por diversos autores, no aumento do número de funcionários de organizações humanitárias assassinados em campo desde meados dos anos 1990 (Hubert & Brassard-Boudreau, 2010). A preocupação em ajudar as vítimas passou a dividir as atenções com a necessidade de garantir que esta ajuda de fato seja endereçada, sem nenhum prejuízo (humano, financeiro e material) para as agências9.

Neste sentido, o envolvimento dos Estados em crises humanitárias a partir dos anos 1990 também atendeu a um interesse das principais agências de garantir as condições para que o "espaço humanitário" fosse preservado e a ajuda fosse realizada. Esta cooperação entre agentes humanitários e Estados se intensificaria no decorrer daquela década, resultando num tipo de associação mútua que interessava a ambos, ainda que de maneiras diferentes. Pelo lado humanitário, a presença estatal resultou em mais recursos financeiros, tecnológicos e materiais para a realização de suas atividades, permitindo inclusive expandir suas atividades e seus objetivos. Ainda que de maneira indireta, os critérios estabelecidos pelos governos doadores para a utilização de suas doações forçaram as principais agências humanitárias a se profissionalizar, aumentando e aperfeiçoando seu corpo de funcionários. Graças a este envolvimento, a rede humanitária internacional foi ampliada de tal forma que poucos são os lugares do mundo onde a ajuda não pode ser entregue quase que imediatamente após a eclosão da crise. Do lado dos Estados, esta parceria serviu como uma forma de legitimar suas considerações sobre direitos humanos na constituição de suas políticas externas. Além disso, as agências humanitárias, principalmente as menores e mais recentes (ou seja, a maioria delas), foram instrumentalizadas pelos governos doadores, submetendo suas atividades aos interesses estratégicos destes países.

Entretanto, os custos desta cooperação parecem ser tão grandes quanto os benefícios. A politização e a militarização do humanitarismo, resultantes desta situação, parecem ter piorado ainda mais as condições de trabalho dos agentes em campo. Primeiro porque, inseridos na lógica do conflito através de sua associação com os interventores, os trabalhadores humanitários deixaram de ser neutros e passaram a ser encarados - não apenas pelos combatentes, mas também pelas populações necessitadas - como atores políticos, com um papel importante na evolução prática dos combates. A dependência que algumas agências teriam em relação aos recursos financeiros e materiais de seus governos doadores - e, porventura, também interventores - aprofundaram ainda mais esta percepção, principalmente quando esta dependência também envolvia a utilização de tropas militares interventoras para a realização da ajuda humanitária. A instrumentalização do humanitarismo pelos governos, em favor dos seus interesses e em detrimento das necessidades das vítimas, também comprometeu a imagem de neutralidade, independência e imparcialidade que as agências mais tradicionais possuíam. Estes problemas se aprofundaram após 2001, com as operações norte-americanas no Afeganistão e no Iraque, e a utilização explícita do discurso e da prática humanitária em favor dos interesses de Washington - como Colin Powell, então secretário de Estado norte-americano, ao defender as ONGs como "forças multiplicadoras", alinhadas com os objetivos da política norte-americana pós-11 de setembro10. Os atentados contra o escritório da missão das Nações Unidas no Iraque e o da Cruz Vermelha em Bagdá, em agosto e outubro de 2003, parecem ter sido o resultado mais violento e agudo deste processo de politização e militarização do humanitarismo.

 

Conclusão

O pós-Guerra Fria trouxe à arena política internacional conceitos e ideias novas que influenciaram o pensamento e a prática das relações internacionais nos anos 1990, mantendo-se relevantes no começo dos anos 2010. A entrada de uma agenda política de direitos humanos na arena política influenciou profundamente os processos políticos internacionais a partir da queda do comunismo soviético, alimentando discussões sobre um projeto de governança global, baseado na intensificação dos processos de globalização neoliberal, no fortalecimento das instituições e dos regimes internacionais, e tendo os Direitos Humanos como valores universais morais de referência para as relações internacionais.

No plano da segurança coletiva, a realidade da primeira metade dos anos 1990 - conflitos armados sangrentos, guerras civis, em localidades pobres e periféricas do globo - impelia os membros do Conselho de Segurança e os analistas de segurança internacional a refletir sobre a necessidade de mudar a percepção do que era "segurança": o foco deixava de ser a questão da segurança do Estado, enquanto ator principal das relações internacionais, e passava a ser o indivíduo, em uma perspectiva que recuperava em parte a reflexão kantiana tradicional sobre a importância de um direito cosmopolita, que assegurasse o direito de cada pessoa à vida e à sua integridade. A partir da ideia de "segurança humana", permitiu-se pensar na segurança coletiva no nível dos indivíduos, e não apenas no nível dos Estados. Esta reflexão embasou as iniciativas do Conselho de Segurança das Nações Unidas a partir deste período, resultando em uma modificação no formato, no mandato e nos instrumentos das missões de paz patrocinadas pela entidade - das missões de peacekeeping (focadas na observância de acordos de paz) para peacebuilding (focadas também na construção de condições que garantam a paz, ainda que isto signifique intervir diretamente no conflito).

Sob o ponto de vista dos Estados, significou trazer considerações humanitárias para sua política externa, torná-la, de certo modo, ética sob a ótica dos direitos humanos. Esta preocupação resultou numa participação mais ativa dos principais governos em assuntos humanitários, aumentando seu envolvimento econômico, político e militar em crises humanitárias a partir dos anos 1990, conforme observamos anteriormente. Sob o ponto de vista dos agentes humanitários, alimentou o debate sobre os instrumentos, objetivos e princípios da ação humanitária no contexto das emergências complexas dos anos 1990. Este debate já se desenrolava entre os anos 1970 e 1980, mas se intensificou na década de 1990, levando ao que se denominou "novo humanitarismo".

No final, tornou-se patente que a associação entre humanitarismo e Estados, ainda que tenha beneficiado bastante a estrutura humanitária internacional, também trouxe efeitos colaterais. Tanto o discurso quanto a prática humanitária passaram a ser frequentemente utilizados em favor de projetos de política externa dos principais governos, e a dependência da maior parte da comunidade humanitária em relação ao apoio estatal permitiu esta instrumentalização do humanitarismo por parte dos Estados. Sob algumas perspectivas11, a ajuda humanitária passou a ser vista como politizada, enviesada, e militarizada. O "espaço humanitário" dos agentes em campo também foi afetado, principalmente pela presença crescente dos doadores no planejamento e na entrega da ajuda e suas consequências práticas: maior dependência financeira e material das agências por parte de seus doadores12. Por fim, o decorrente abandono dos princípios tradicionais de neutralidade, independência e imparcialidade colocaram os trabalhadores humanitários numa "crise de identidade" - O que é ser humanitário? Quem pode ser humanitário? O que faz um humanitário? São estas as perguntas que alimentam a reflexão corrente sobre humanitarismo, e as respostas possíveis para elas não possuem consequências meramente retóricas: implicam em uma série de situações, ações, reações e consequências na vida real não apenas dos agentes humanitários, mas também - e principalmente - daqueles que dependem da ajuda.

 

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1. Este trabalho é fruto parcial do desenvolvimento da dissertação de mestrado do pesquisador, "Os desafios do trabalho humanitário independente no pós-Guerra Fria: das missões de peacebuilding à 'Guerra contra o Terror'", no âmbito do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), sob orientação do Prof. Dr. Peter R, Demant, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), da qual este pesquisador é bolsista.
2. O conceito de neutralidade, suas mudanças no decorrer do tempo, e as interpretações do CICV e de outras organizações humanitárias é devidamente discutido por Rieffer-Flanagan (2009)
3. Nesta reflexão, a soberania não pode ser considerada como um anteparo para que os Estados cometam violações aos direitos humanos contra suas próprias populações, mas como um imperativo de responsabilidade destes governos em preservar e defender os direitos fundamentais de seus cidadãos e de todos os que vivem dentro de suas fronteiras. Em casos de descumprimento destas obrigações, as entidades humanitárias devem estar presentes para aliviar e acusar estas violações, mesmo sem a autorização dos governos em questão (Abbott, 2005). Do ponto de vista dos Estados, Francis M. Deng e Roberta Cohen fizeram esta mesma leitura, ao propor pensar soberania como a responsabilidade dos Estados em preservar a dignidade e a integridade de seus cidadãos, e ao justificar a intervenção internacional em face de desvios e abusos cometidos por estes Estados contra sua população (Barnett & Weiss, 2008).
4. A crise etíope, nos anos 1980, oferece um segundo evento importante em direção ao "novo humanitarismo". Em 1984, o MSF denunciaria publicamente o governo etíope, responsabilizando-o pela grave fome gerada por sua política de reassentamento. Em resposta, o governo expulsou os funcionários da entidade, e limitou a ação de outras organizações humanitárias presentes no país. Entretanto, ao invés de ter a solidariedade das demais agências humanitárias, o MSF foi acusado por elas por ter sido negligente em relação às vítimas, procurando destaque internacional ao invés de ajudar a população etíope e abandonando a neutralidade tradicional do humanitarismo. Porém, a descoberta posterior de que o governo estava usando a ajuda humanitária em favor de seus interesses acabaria colocando em dúvida a viabilidade da neutralidade na ação humanitária, precipitando o debate sobre confidencialidade, abusos contra os direitos humanos e instrumentalização da ajuda em favor de forças políticas, que encontraria seu ápice nas crises nos Balcãs e em Ruanda, na primeira metade dos anos 1990 (Kennedy, 2008).
5. Chandler (2001) e Foley (2010) relaciona a emergência do "novo humanitarismo" com o surgimento de organizações não-governamentais relacionadas com direitos humanos, com uma proposta de ação mais direcionada para o advocacy, muito próximo da abordagem do direito de denúncia proposto pelo MSF. A interação entre as agências humanitárias e as ONGs de direitos humanos seria crucial para que uma agenda política dos direitos humanos surgisse no plano internacional, através de suas denúncias públicas de abusos e crimes contra civis, e influenciasse o processo decisório internacional da "Nova Ordem Mundial", colocando considerações sobre direitos humanos dentro do sistema internacional de segurança coletiva pós-Guerra Fria.
6. Algumas obras que podemos citar são: ORFORD, A. Reading Humanitarian Intervention, Cambridge University Press (2003); WEISS, T. G. Humanitarian Intervention: Ideas in Action, Polity (2007); HOLZGREFE, J. L. & KEOHANE, R. Humanitarian Intervention: Ethical, Legal and Political Dilemmas, Cambridge University Press (2003); BRICMONT, J. Humanitarian Imperialism: Using Human Rights to Sell War, Monthly Review Press (2006); HODGE, N. Armed Humanitarians: The Rise of the Nation Builders, Bloomsbury USA (2011); WHEELER, N. J. Saving Strangers: Humanitarian Intervention in International Society, Oxford University Press (2003).
7. Todos os dados sobre ONGs de Polman (2010).
8. Chandler (2001), Slim (2003), Loescher  (2004, apud Rieffer-Flanagan, 2009), Vaux (2006), e Barnett & Weiss (2008).
9. Neste sentido, as duas principais tragédias humanitárias da primeira metade dos anos 1990 - Ruanda (1994) e Bósnia (1994-5) - desempenharam um papel fundamental na construção desta percepção, ao evidenciar a fragilidade dos princípios humanitários em conflitos profundos e radicais e a instrumentalização da ajuda humanitária por parte dos envolvidos no conflito (o que foi bastante evidente nos campos de refugiados ruandeses hutus após o genocídio).
10. "Secretary Colin L. Powell Remarks to the National Foreign Policy Conference for Leaders of Non-Governmental Organizations", 26 out. 2001. Citado por Rieffer-Flanagan (2009). Disponível em: http://avalon.law.yale.edu/sept11/powell_brief31.asp/ Acessado em: 20 jun 2011.
11. Rieffer (2002) faz uma leitura bastante reveladora sobre a instrumentalização do humanitarismo por parte das principais potências mundiais, e sobre como as agências humanitárias permitiram esta instrumentalização ao abraçar a proposta "neo-humanitária" de ampliar a atuação do humanitarismo para além da ajuda emergencial. De certo modo, Polman (2010) também faz observações sobre isso, ao criticar as "MONGOs" (My Own Non-Governmental Organization) e sua dependência do apoio oficial dos doadores, e a disputa por recursos e mídia por parte delas e das principais agências humanitárias. Foley (2010) também analisa estes processos, a partir da interação entre governos, agências humanitárias e ONGs advocacy de direitos humanos nos anos 1990 e 2000, que resultam no que ele denominou "humanitarismo político".
12. Donini, Minear & Walker (2004) refletiram sobre estas circunstâncias do trabalho humanitário no contexto das intervenções pós-11 de setembro e formularam um dilema da cooptação e da irrelevância para mostrar as divisões e as dúvidas da comunidade humanitária internacional no contexto da guerra contra o terrorismo. Este dilema expõe as divergências dentro da comunidade humanitária internacional em questões como propósito, fundamentos e mandato do trabalho humanitário - os agentes devem escolher entre ser cooptados pelos ocupantes, que são seus principais financiadores e garantidores de segurança e estrutura de trabalho no campo, ou se tornarem irrelevantes na crise humanitária, afastados de qualquer atividade na região, sem condições financeiras e estruturais para agir em campo de forma eficiente.