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3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

A representatividade direta supranacional: os casos do parlamento europeu e do parlamento do mercosul*

 

 

Bruno Theodoro Luciano

Instituto de Relações Internacionais, Universidade de Brasília (IREL-UnB)

 

 


RESUMO

O presente trabalho terá o intuito de comparar dois parlamentos de integração regional, o Parlamento Europeu e o Parlamento do Mercosul, focando na existência de relação entre representatividade direta e poderes institucionais. Ainda que se situem em contextos e etapas evolutivas distintos, procurar-se-ão elementos entre essas duas instituições parlamentares supranacionais que possam compará-las, tanto no processo de formação das mesmas, quanto no peso que estas possuem dentro de suas estruturas institucionais. Enquanto o Parlamento Europeu se encontra em um contexto de parlamentarização do sistema político europeu, consolidando-se como co-legislador europeu, o Parlamento do Mercosul dá seus primeiros passos, passando agora pelo debate sobre a concretização de sua representação via eleições diretas. Depois de comparados os elementos gerais destes dois parlamentos regionais, a presente análise se focará na hipótese de que a representatividade por meio de eleições diretas gera, no longo prazo, maior influência e pró-atividade desses parlamentos para conquistarem maiores competências institucionais, além de legitimidade externa e interna para exercê-las. No caso europeu, esse resultado é encontrado após as eleições diretas de 1979, com a aprovação do Ato Único Europeu, o qual garantiu maiores competências legislativas ao mesmo. No Mercosul, as eleições diretas estão previstas para se concretizarem até 2014, trazendo expectativas quanto às transformações que delas decorrerão. Por fim, relacionar-se-ão as experiências europeias, positivas e negativas, como lições para o Parlamento do Cone Sul, que podem apresentar soluções para os atuais entraves em sua consolidação e indicar problemas futuros que poderão surgir.

Palavras-chave: Integração Regional; Parlamento Europeu; Parlamento do Mercosul; Representatividade Direta.


 

 

INTRODUÇÃO

A partir da segunda metade do século XX, surge um fenômeno inédito nas Relações Internacionais. Após meio século de grande instabilidade no sistema internacional, surgem iniciativas que preconizaram a cooperação entre os Estados, e não a concorrência (lógica que muitas vezes levara às armas). Derivada da necessidade de maior interdependência entre os Estados, nascem as iniciativas de integração regional, iniciadas pela via econômico-comercial, seguindo, posteriormente, para as esferas políticas, sociais, educacionais.

Com o aprofundamento dos processos de integração regional, houve um deslocamento das decisões do plano nacional para as esferas regionais, que passaram a ter maior peso nas matérias que tocam diretamente os cidadãos dessas regiões. Esse distanciamento decisório dos indivíduos, que desloca competências para esferas mais distantes da população, foi denominado por Habermas de déficit democrático, realçando o vazio de legitimação proveniente das transferências de competências para âmbitos decisórios supranacionais ou regionais (DRUMMOND, 2005).

O aumento das competências dos processos de integração regional para além do âmbito econômico-comercial gera a necessidade de participação da sociedade civil e do Legislativo nas esferas regionais(PIRES, 2009). A fim de reduzir o déficit democrático dessas instituições, são criadas, dentro do arcabouço institucional dos processos de integração regional, instituições parlamentares regionais, compostas por representantes eleitos pelos cidadãos, que ocupam cargos legislativos nacionais, ou, no caso europeu, diretamente eleitos para o mandato regional/supranacional.

Vista a importância dos parlamentos de integração para redução do déficit democrático e construção de um canal de participação da sociedade civil e do Legislativo no âmbito regional, a presente análise se situará na comparação de dois parlamentos de integração regional: o Parlamento Europeu, primeira instituição surgida desta natureza, e o Parlamento do Mercosul. Ainda que se situem em contextos e etapas evolutivas distintas, procurar-se-ão elementos entre essas duas instituições parlamentares supranacionais que possam compará-las, tanto no processo de formação das mesmas, quanto no peso que estas possuem dentro de suas estruturas institucionais.

Depois de feita a comparação geral entre esses dois parlamentos regionais, será abordado o papel da representatividade direta nessas instituições, verificando a hipótese de que a representatividade direta aceleraria a conquista de maiores competências institucionais dos parlamentos de integração. No caso europeu, é utilizada uma perspectiva histórica, buscando a apresentação dos elementos que compõem a presente hipótese desde as primeiras eleições diretas, em 1979. Quanto ao Parlamento do Mercosul, baseada em suas condições atuais e à luz da experiência europeia como elemento comparativo, podem ser apresentadas indicações normativas do papel que a representatividade direta pode trazer ao Parlasul nos próximos anos.

 

1. PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO DA UNIÃO EUROPEIA E DO MERCOSUL

Antes de se abordar especificamente o Parlamento Europeu e o Parlamento do Mercosul, é relevante apresentar brevemente uma perspectiva comparada das instituições de integração regional aos quais pertencem. Nesse sentido, podem ser encontrados aspectos convergentes e divergentes na construção e formação dessas instituições.

O processo de construção europeia iniciou-se antes mesmo da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), de 1951. As conversações sobre a criação de uma instituição que integrasse os países europeus iniciaram em 1950, no entanto no âmbito bilateral, através do eixo França-Alemanha (LESSA, 2003). Em maio de 1950 surge a Declaração Schuman, que, antes dos Tratados Europeus, já apresentara a base da integração europeia. De acordo com esse documento, de autoria do Ministro das Relações Exteriores da França, Robert Schuman, a integração se iniciaria pela administração conjunta do Carvão e do Aço (matérias-primas dos materiais bélicos) da França e da Alemanha por uma Alta Autoridade que, mesmo indicada pelos dois Estados, estaria acima destes, em uma esfera supranacional. As negociações subsequentes e a entrada na negociação da Itália e dos países do BENELUX, que acarretariam na CECA, somente seguiram a base  do acordo franco-alemão.

No caso do processo negociador do Mercosul, também pode ser vista a mesma formatação inicial, todavia criando estruturas institucionais de naturezas distintas. O fundamento da negociação do Tratado de Assunção, que instituiu o Mercosul, já constava nas negociações argentino-brasileiras de 1990, na Ata de Buenos Aires, assinadas por ambos os governos (VAZ, 2002).  A matriz do Mercosul, que é o estabelecimento de um Mercado Comum entre os Estados-Membros, por meio da desgravação tarifária dos produtos listados, estava presente no Acordo de Complementação Econômica firmado no âmbito da ALADI entre Brasil e Argentina.  A entrada dos demais sócios na negociação não significou alterações significativas na formatação desejada em Buenos Aires.

No caso do Mercosul, o órgão executor criado se ateve à natureza intergovernamental e não supranacional, diferentemente da construção europeia. O Grupo Mercado Comum, responsável pela administração da formação do Mercosul, compõe-se de representantes dos executivos nacionais, situando-se no âmbito nacional, ao mesmo tempo sendo inferior ao Conselho Mercado Comum, órgão ministerial.

Uma diferenciação importante relacionada aos objetivos da integração é exemplificada pelos conceitos de integração negativa e integração positiva (MALAMUD, 2005). O primeiro caso é vinculado à ideia de eliminação das restrições comerciais, como desgravação tarifária, fim de medidas discriminatórias e protecionistas, e ausência de obstáculos à livre competição. Esse modelo de integração vê a liberalização dos fatores como uma forma de criação de um mercado único e competitivo, eliminando a possibilidade de reação protecionista dos países-membros. A ausência de restrições entre os países promoveria a integração das estruturas produtivas e um vínculo de interdependência entres esses, expandindo as práticas econômicas ao nível regional.

A noção de integração positiva vai além da anteriormente exemplificada. A busca não fica somente restrita a liberalização, mas procura estender seus objetivos, incluindo a criação de políticas comuns que possam regularizar as estruturas regionais. Há a ampliação de atuação das políticas, que apresenta a necessidade de organismos regionais ou supranacionais responsáveis pelo estabelecimento de regras comuns e da aplicação dessas. O objetivo final desse modelo seria a expansão do padrão regulatório do mercado doméstico para os países envolvidos na integração. Um exemplo dessa objetivação é a inserção do termo "mercado interno" no lugar de "mercado comum" no acervo comunitário a partir do Tratado de Lisboa.1 A liberalização estaria incluída nesse processo, em conjunto com a criação de estruturas normativas comuns, padronizando a regulação regional.

Segundo essa caracterização, o modelo adotado pela Europa pode ser elencado como de integração positiva, enquanto o do Cone Sul seria ainda limitado à integração negativa. A UE, em seus postulados originais, provenientes da CECA e CEE, já apresentava a criação de órgãos de natureza supranacional responsáveis pela regulação e implementação das normas regionais, os quais, no futuro, levariam a constituição do mercado europeu. O projeto europeu não se limitou a reduzir ou extinguir as restrições comerciais entre os Estados Partes, mas criou e estabeleceu normas comuns, garantidas pelas instituições regionais. O estabelecimento do mercado comum e sua sustentação por órgãos regionais, seria o turning point dos modelos de integração regional, em que a integração deixa de se limitar ao âmbito negativo e incorpora características positivas, de construção de normas e instituições comuns. O Mercosul estaria nessa zona de transição: nos anos 90 foi estabelecida a área de livre-comércio entre os quatro países do Cone Sul, liberalizando a comercialização e deslocamento dos fatores de produção; na atualidade este se encontra em fase de consolidação do Mercado Comum, ainda dependente da implantação efetiva da Tarifa Externa Comum.

Como a própria definição de integração negativa e positiva infere, o papel de instituições regionais de natureza autônoma é considerado essencial para a concretização da transição da fase negativa para a positiva, viabilizando a harmonização das normas regionais. Nesse aspecto, o Mercosul apresenta-se deficitário, devido ao caráter estritamente presidencial que em todos os momentos cercou esse processo de integração. A presença do  interpresidencialismo (MALAMUD, 2005) na construção do Mercosul, marcada fortemente pela atuação dos Chefes de Estado dos países-membros nos rumos da integração regional, apresenta duas relevantes características do Mercosul, as quais o diferenciam a priori da construção da União Europeia.

Primeiramente, o papel dos Presidentes do Cone Sul como líderes da integração regional, fato presente até a atualidade, garantiu a configuração intergovernamental do Mercosul, evitando o compartilhamento de soberania dos Estados participantes. Não foram criadas instituições de caráter supranacional, ou ao menos que apresentassem autonomia relativa o Cone Sul, sendo todas derivadas dos executivos nacionais. Esse fato, que outrora não se fazia fundamental para a concretização de um modelo de integração negativa apresenta-se no presente como de grande importância para o prosseguimento dos laços de interdependência da região, em rumos de uma integração positiva.

Ademais, em segundo lugar, o processo guiado por interesses basicamente políticos olvidou-se da necessidade de existência de elementos de interdependência entre os países antes mesmo do início do processo de integração. Esse ponto pode ser reforçado ao se comparar à integração europeia, que apresentava aspectos de cooperação no âmbito econômico antes mesmo da criação das Comunidades Europeias. O diálogo iniciado no Mercosul com a aproximação Sarney-Alfonsín foi marcado pela cooperação política, reforçada pelo contexto de redemocratização de ambos os países, e posteriormente dos demais sócios.

A natureza limitada do processo de integração mercosulino não possibilitou o surgimento de efeitos spillover relevantes, como presente no caso europeu. A natureza intergovernamental do Mercosul, dependente dos rumos políticos dos países que o compõem, e a ausência de fluxos econômicos expressivos antes do início da integração, impediram a probabilidade de avanço do órgão regional, trazendo atuais reavaliações sobre o seu papel futuro como órgão sul-americano de maior expressão.

Na verdade, os anos 90 trouxeram um contexto diverso à construção da integração no Cone Sul.  A expansão do modelo neoliberal para os países da América Latina incentivou a sobreposição das políticas econômicas à política externa, em especial à política regional. O modelo derivado dessas novas perspectivas foi, no âmbito da integração regional, o do Regionalismo Aberto (MALAMUD, 2010). O Regionalismo Aberto está intrinsecamente relacionado à noção de integração negativa, abordada anteriormente. A proposta de integração regional sob a perspectiva negativa, através da desgravação tarifária e da abertura à competição intra-regional, foi uma estratégia adotada pelos países do Mercosul, em especial Brasil e Argentina, para criar economias mais competitivas a nível regional e alavancar seus processos de inserção internacional.

Esse modelo guiou as orientações iniciais da criação do Mercosul e fez com que as bases da integração ficassem restritas a uma perspectiva específica e instrumental de integração, diferentemente do caso europeu. O que se notou com a relação entre os países do Mercosul, opostamente aos países da UE, foi que, mesmo com bases culturais e linguísticas semelhantes, os países do Cone Sul não apresentavam características econômicas e institucionais próximas, havendo pouca relação de interdependência entre os mesmos (MALAMUD, 2010).

A grande diferença, no âmbito institucional, dessas duas organizações de integração regional se dará em seu método, dada a existência na União Europeia do método comunitário de construção institucional. O método comunitário, presente na UE, seria basicamente distinguido em duas bases: a da expertise e do direito (VENTURA, 2005), sendo ambos ausentes na esfera mercosulina.

No caso europeu, houve a criação de uma estrutura técnica essencialmente europeia, independente dos Estados-Membros. Acusada, neste sentido, de tecnicista, a UE conseguiu deslocar sua estrutura física e pessoal das administrações nacionais, criando uma esfera própria, que acaba por definir as decisões sob uma ótica comunitária, e não nacional. No caso do Mercosul, essa base é incipiente, cabendo aos administradores nacionais tomarem a frente das decisões do Mercosul, especialmente aos representantes dos Ministérios das Relações Exteriores, situados nas Representações Permanentes.

Quanto ao direito, segue-se a mesma linha de raciocínio. A Europa criou uma estrutura jurídica própria, autônoma das jurisdições nacionais, entendida como direito comunitário. Também há a importância do papel do Tribunal de Justiça Europeu que atuou em prol da transnacionalização do direito para a esfera europeia, através de princípios jurídicos como o do primado do direito comunitário, aplicabilidade direta e efeito direto das normas comunitárias. No Cone Sul, as normas produzidas são vinculadas e dependentes das aprovações nos legislativos de cada Estado-Membro, inibindo muitas vezes sua eficácia, devido à demora ou a não conclusão de sua aprovação. Os regulamentos do Mercosul não tem primazia sobre as normas nacionais, havendo a necessidade de transposição das decisões regionais para o ordenamento jurídico de todos os Estados-Membros para o início de sua validação, contrariamente à aplicabilidade imediata das normas europeias.

Mesmo que apresentem similaridades quanto ao processo negociador e que a criação do Mercosul tenha tido o modelo europeu como modelo de referência de integração regional, as diferenças iniciais entre esses dois processos, tanto na apresentação de seus objetivos como na formatação desses, demonstram-se formadores de futuros constrangimentos constitutivos para o Mercosul. A estrutura institucional regional criada e a presença de anterior relação de interdependência e cooperação econômica auxiliaram o modelo europeu a ampliar seu escopo de atuação para uma orientação positiva de integração. No Mercosul, o papel protagonista da diplomacia presidencial e a ausência de fluxos econômicos expressivos anteriores à integração levaram à construção de uma integração limitada ao âmbito negativo, atualmente constrangendo a possibilidade de expansão da integração em vista a objetivos positivos.

As estruturas criadas por ambos os processos opõem dois modelos de integração: o do Mercosul, definido pela politização das direções da integração; e a administração técnica ou burocrática, modelo adotado na estrutura da UE, derivada dos poderes recebidos pelos administradores das instituições supranacionais criadas na Europa para ditar os rumos da integração. Enquanto no Mercosul os objetivos da integração se mantém baseados nas vontades dos executivos nacionais, na UE há a delegação de competências aos órgãos regionais, que se tornam os responsáveis pelos rumos da integração. A construção regional da UE foi baseada no chamado Método de Messina, definido pela inicial convergência dos atores políticos sobre os princípios gerais da integração, deixando posteriormente a cargo das esferas técnicas e burocráticas a elaboração das orientações específicas.

Embora haja convergências entre o eixo negociador e divergências quanto à natureza e as bases institucionais, um relevante aspecto de convergência ao qual será dado destaque na presente análise é em relação ao déficit democrático e à falta de representatividade destas instituições. Um dos instrumentos utilizado por ambas as organizações foi a criação de instituições parlamentares regionais, com a finalidade de reduzir esse distanciamento e acrescer de valores democráticos as instituições de integração criadas.

 

2. CARACTERÍSTICAS GERAIS DO PARLAMENTO EUROPEU E DO PARLAMENTO DO MERCOSUL

Na presente seção são apresentados os elementos gerais do Parlamento Europeu e do Mercosul, sob perspectiva comparada, para na próxima parte ser ressaltado o papel da representatividade direta nessas instituições. Apesar de serem criadas pelo mesmo propósito, adicionar a participação civil e legislativa aos respectivos projetos de integração, suas evoluções históricas e importâncias institucionais distanciam-se em diversos aspectos. É válido realçar a anterioridade da criação do Parlamento Europeu, que em alguma medida se tornou referência e serviu de experiência para a posterior criação do Parlasul, podendo encontrar elementos que corroborem a mimese institucional do modelo europeu para o Mercosul (DRI, 2010).

O Parlamento Europeu inicia-se dentro da estrutura institucional da CECA, quando é criada a Assembleia da Comunidade, composta pelos parlamentares de cada Estado-Membro, com vagas proporcionais a população de cada país integrante. Essa Assembleia somente possuía caráter consultivo no seio da Comunidade, além de poder aprovar moção de censura ao executivo. A partir de 20 de março de 1962, a Assembleia passa a se autodenominar Parlamento Europeu (PE), ainda que somente esse nome se torne oficial em 1986, com o Ato Único Europeu. É nos anos 70 que o Parlamento passa a receber maiores prerrogativas comunitárias, conquistando peso na aprovação do orçamento e das finanças europeias.

Em junho de 1979 ocorrem as primeiras eleições diretas do PE, que fez com que seus parlamentares passassem a ocupar exclusivamente as cadeiras europeias, não sendo mais diretamente provenientes das fileiras nacionais. Após as eleições diretas, o Parlamento passou a garantir mais poderes no quadro europeu podendo, a partir do Ato Único de 1986, propor emendas às propostas legislativas enviadas pela Comissão. Atualmente seu papel pode ser reportado em duas esferas: controle democrático, por meio da moção de censura à Comissão, aprovação do orçamento comunitário e formulação de perguntas orais e escritas para a Comissão e o Conselho; e participação no processo legislativo, através do procedimento de co-decisão, no qual o Conselho e o Parlamento decidem em pé de igualdade a aprovação e as alterações das legislações europeias (FONTAINE, 2008).

Junto com a base da estrutura do Mercosul, no Tratado de Assunção, consta-se a formação da Comissão Parlamentar Conjunta (CPC), formada pelos parlamentares dos Estados-Membros e responsável por aproximar a esfera legislativa das negociações regionais, especialmente para facilitar a aprovação legislativa das decisões mercosulinas. No seio das reuniões da CPC aparece a vontade de se criar um Parlamento para o bloco, associando-se às pretensões de acréscimo de valores democráticos na estrutura institucional do Mercosul, conforme expresso na Declaração de Puerto Iguazú (RIBEIRO, 2008). Assim, por decisão do Conselho Mercado Comum, em 2005, é aprovado o Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul, que passa a entrar em funcionamento um ano depois.

Atualmente o Parlasul se encontra em fase de transição, de sua composição indireta, com delegações parlamentares dos congressos nacionais, para a representação direta, sendo que somente o Paraguai já elegeu seus representantes para o mesmo. As atuais prerrogativas desse parlamento de integração são reduzidas, se comparado ao Parlamento Europeu, cabendo ao Parlasul "emitir  pareceres  sobre  projetos  de  norma,  apresentar anteprojetos que visem à harmonização das  legislações nacionais, promover audiências públicas, receber petições de particulares, aprovar seu orçamento e elaborar relatório sobre a situação dos Direitos Humanos no bloco." (RIBEIRO, 2005)

Os dois parlamentos analisados se encontram em processos evolutivos distintos. Enquanto o Parlamento Europeu há 30 anos tem seus membros eleitos diretamente pelos cidadãos europeus, o Parlasul ainda está em processo de consolidação de sua representatividade direta, estando pendentes as eleições diretas na Argentina, Brasil e Uruguai.

Quanto as suas competências, o Parlamento Europeu adquiriu ao longo dos anos mais poderes institucionais, tendo poder de decisão legislativa em grande parte das matérias europeias, além da aprovação do orçamento europeu. O Parlasul somente possui um papel consultivo (mesmas prerrogativas que teve o Parlamento Europeu em seus primeiros anos), tendo a função de se voltar para a harmonização das legislações nacionais e acelerar a aprovação legislativa nas esferas nacionais.

 

3. OS EFEITOS DA REPRESENTATIVIDADE DIRETA NOS PARLAMENTOS DE INTEGRAÇÃO

A hipótese apresentada nessa análise é de que a representatividade por meio de eleições diretas é um elemento catalisador das conquistas demandadas pelos parlamentos de integração, acelerando a relevância dessas instituições nos projetos de integração. Essa hipótese pode ser confirmada em três âmbitos: o do processo decisório; o da legitimidade democrática, externa e interna; e o das configurações políticas dos parlamentos. O caso do Parlamento Europeu torna-se referência para a confirmação dessa hipótese, que se espera ser confirmada com as futuras eleições do Parlamento do Mercosul.

3.1 REPRESENTATIVIDADE DIRETA NO PARLAMENTO EUROPEU

Com as primeiras eleições diretas, em 1979, o sistema político europeu iniciou um processo de Parlamentarização, em que o Parlamento Europeu começou a receber sucessivos poderes institucionais no seio comunitário (COSTA, 2009). De uma Assembleia Consultiva, o Parlamento passou para um Co-Legislador, decidindo em pé de igualdade com o Conselho de Ministros a aprovação das normas europeias.

Até o fim dos anos 70, o Parlamento Europeu somente tinha um papel consultivo no processo legislativo europeu, devendo apenas apresentar posições acerca das matérias legislativas. Depois das primeiras eleições diretas, aumentou a demanda do Parlamento por mais importância nas decisões europeias, conquistando alguns anos depois, com o Ato Único Europeu, maiores poderes institucionais, através  da criação do mecanismo de cooperação, o que permite ao Parlamento fazer alterações nas legislações europeias apresentadas pela Comissão, cabendo ao Conselho a palavra final. Após aprovação do Tratado de Maastricht, que cria a União Europeia, o Parlamento passou a contar com um novo procedimento, o de co-decisão, em diversas matérias legislativas, possuindo o mesmo peso decisório na alteração e aprovação das normas europeias que o Conselho.

No campo da legitimidade, as eleições diretas possibilitaram se não a conquista desta, ao menos parte dela, dando ao Parlamento Europeu legitimidade, tanto externa quanto internamente, para suas ações e para o recebimento de mais prerrogativas. No âmbito externo, a representatividade é uma das ações criadas para se reduzir o déficit democrático europeu. As eleições, ainda que entendidas como de segunda ordem, menos relevantes que as nacionais (SCHMITT, 2005), dão a oportunidade de, na esfera eleitoral, serem debatidos os temas europeus, esclarecendo e informando os cidadãos sobre a importância que as decisões europeias trazem consigo.

Internamente, as eleições europeias deram reconhecimento ao Parlamento Europeu dos demais órgãos comunitários, em especial a Comissão e o Conselho. Essas outras instituições passaram a reconhecer a importância do Parlamento no processo decisório europeu, percebendo este como instituição fundamental para a legitimação da Europa. A antiga independência desses órgãos transformou-se em uma colaboração interinstitucional, em que as decisões passaram a se tornar conjuntas, necessitando do acordo de todos os órgãos (COSTA, 2009).

Na esfera política do sistema europeu, também é evidente efeitos decorrentes da representatividade direta. É possível distinguir duas dimensões das políticas europeias: de um lado tem-se a tradicional clivagem político-ideológica direita-esquerda, também presente nos parlamentos nacionais; de outro, a distinção de interesses políticos anti e pró-integração europeia, dimensão somente presente na esfera europeia, mas que, em alguma medida pode ser comparada à divisão governo-oposição, já que os partidos dos governos nacionais são os ocupantes dos altos cargos da Comissão e do Conselho de Ministros (HIX et al, 2006).

A proximidade de ocorrência do primeiro pleito europeu fez com que se acelerasse o diálogo e a organização dos partidos nacionais com afinidades ideológicas para a criação de Confederações ou Federações Partidárias Europeias, mais tarde entendidas como Grupos ou Famílias Políticas. Na preparação para as primeiras eleições, intensifica-se a organização entre os partidos políticos europeus, que passaram a reforçar as alianças entre partidos de mesma ideologia ou de opiniões aproximadas.

A saber, após a aprovação das eleições europeias, é criada, em 1975, a Confederação Socialista, que uniu os partidos Social-Democratas europeus com o Partido Trabalhista Inglês (Labour). Um ano depois nasce o Partido Popular Europeu (agremiação dos Democrata-Cristãos) e a Federação dos Liberais e Democratas, constituindo-se esses três os maiores grupos políticos europeus até a atualidade (CHOPRA, 1980).

Essas três esferas corroboram para a reiteração de que as eleições diretas do Parlamento Europeu de 1979 levaram à aceleração da organização e dos poderes institucionais do primeiro parlamento de integração da história, tornando-se uma referência e um exemplo para as demais iniciativas similares, especialmente, no presente artigo, para o caso do Mercosul.

3.2  BUSCA PELA REPRESENTATIVIDADE DIRETA NO PARLASUL

Devido a não conclusão do processo de representação direta no Mercosul, somente o Paraguai tendo eleito diretamente seus representantes, não se pode falar sobre os exatos efeitos que esse processo acarretou no Mercosul. No entanto, com base nas atuais características do Mercosul e na experiência das eleições supranacionais vistas no Parlamento Europeu, podem ser feitas perspectivas dos possíveis efeitos que a conclusão da representatividade direta no Cone Sul pode trazer ao papel do Parlamento do Mercosul.

A respeito das competências institucionais, conforme já visto, o Parlasul atualmente se insere no processo decisório regional somente como órgão consultivo, da mesma maneira que se inserira o Parlamento Europeu nas políticas europeias antes de suas eleições diretas. Com seus membros sendo destinados exclusivamente para o exercício das atividades legislativas regionais, sem ocuparem cargos políticos nacionais, o Parlasul pode alcançar mais pró-atividade para conquistar maiores poderes dentro do Mercosul. As reuniões serão mais frequentes e podem levar à apresentação de mais propostas para o Conselho Mercado Comum. Um Parlasul com mais atividades também pode se tornar mais efetivo em fiscalizar as decisões do Conselho e as ações do Grupo Mercado Comum, exercendo a função de controle democrático em escala regional. A concretização de um Parlamento "tempo integral" pode incrementar, no âmbito do Mercosul, as atividades que sirvam de diálogo e ponte do processo de integração aos cidadãos dos Estados-Partes, organizando eventos, seminários, visitas e audiências públicas (CASAL, 2008).

A partir da definição das eleições diretas em todos os Estados-Membros mercosulinos, há a possibilidade de o Parlasul agregar  legitimidade, interna e externa, e visibilidade a suas ações. A representatividade pode fazer, da mesma forma que na experiência europeia, com que as demais instituições do Mercosul vejam o Parlasul como um órgão legitimo e que deva ter voz e relevância nas discussões regionais. Externamente o Parlasul, em seu processo eleitoral, pode ser o órgão capaz de trazer a integração regional para a discussão pública, auxiliando como fator de redução do déficit democrático mercosulino.

Quanto à configuração política do Parlasul, esta também pode indicar modificações, caso sejam vistos os elementos presentes na construção europeia. Antes mesmo da consolidação das eleições diretas é encontrado o surgimento da articulação dos partidos nacionais que apresentam afinidades ideológicas. A saber, o caso da formação da Bancada Progressista, que é compostas por partidos de esquerda de todos os Estados do Mercosul, incluindo o Partido dos Trabalhadores (PT), do Brasil, e a Frente Amplia, do Uruguai (CAETANO et al, 2009). A organização desta bancada, se usarmos a mesma conceituação das políticas europeias de Hix, demonstra o surgimento da primeira dimensão política na esfera do Mercosul, na qual se retoma o eixo principal dos parlamentos nacionais tradicionais, a clivagem esquerda-direita, em escala regional. A configuração político-partidária do Mercosul pode se alterar ainda mais com a chegada das eleições diretas e a necessidade dos partidos oposicionistas aos membros da Bancada Progressista também se organizarem no Parlasul.

 

CONCLUSÃO

Se forem analisados os mesmos elementos que corroboram o papel da representatividade direta na evolução de competências do Parlamento Europeu para o Parlasul, podem ser indicadas perspectivas positivas acerca dos possíveis efeitos que as eleições diretas podem trazer ao Parlamento do Mercosul, evidenciados inclusive por fatos, como a formação da Bancada Progressista. A hipótese do papel catalisador que a representatividade direta contém, visível na história da construção europeia, pode servir de indicativo para possibilidades de novas dinâmicas no processo de integração do Mercosul. Todavia, conforme abordado, existem no Mercosul e no Parlasul diferenças profundas em relação à integração europeia, que podem inibir o desenvolvimento do parlamento de integração do Cone Sul, ou ao menos limitar o avanço de suas competências na estrutura institucional mercosulina.

Diferentemente da maioria dos países europeus, os países do Mercosul não possuem regimes parlamentaristas, muito menos sistemas políticos que dêem grande peso ao legislativo em relação ao executivo. A falta de tradição parlamentarista nos países do Mercosul faz com que tanto os responsáveis pela integração regional e os próprios cidadãos não vejam grande relevância na atuação parlamentar na construção do Mercosul. A partir dessa observação, um dos elementos de crescimento de competências analisados no caso europeu, a legitimidade, reduz-se no caso do Parlasul, trazendo a perspectiva de efeitos menores do que os alcançados no Parlamento Europeu.

O elemento basilar da formação da integração no Mercosul, a natureza intergovernamental, e maior aspecto de diferenciação da construção europeia, também deve trazer elementos distintos para a evolução do Parlasul, reduzindo as competências que este último possa alcançar na estrutura institucional mercosulina. A falta de uma instituição essencialmente supranacional, autônoma dos governos nacionais, inibe o desenvolvimento  das propostas de aprofundamento do processo de integração, a não ser que estas estejam em consonância com os interesses dos governos nacionais. A liderança pessoal dos Presidentes dos Estados Sócios nos rumos da integração acentua o caráter intergovernamental da integração, esvaziando as possibilidades de influência dos parlamentares regionais no projeto integrador.

Contudo, o Parlasul, concluída a transição para a representatividade direta, pode se constituir como a única instituição supranacional no âmbito do Mercosul, representando um elemento inédito na integração regional do Cone Sul. Se consolidadas as eleições diretas, é possível que o Parlasul indique que o processo de integração regional pode se desvencilhar das veias econômicas e comerciais, alcançando as esferas políticas e sociais, integrando sociedades, deslocando-se de uma integração essencialmente negativa para uma construção positiva.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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* 3º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais: Governança Global e Novos Atores São Paulo, 20-22 de julho de 2011 Painel "Estudos legislativos e integração regional: competências e representação no Parlasul"
1. Art 2º, item 2-G. Tratado de Lisboa. JOUE, 2007.