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3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Governança securitária europeia e novos atores transnacionais

 

 

Carlos S. Arturi

Professor do Doutorado em Ciência Política e do Mestrado em Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. E-mail: carlos.arturi@ufrgs.br

 

 


RESUMO

O trabalho analisa a cooperação interestatal em assuntos policiais, judiciários e de inteligência interna na União Europeia. Sua premissa central é a de que a dinâmica dos conflitos entre movimentos de contestação transnacionais e Estados nacionais, em cooperação securitária, prefiguram uma dimensão política verdadeiramente mundial, isto é, pressupõem a ação ativa de atores não-estatais e instituições transnacionais e interestatais na arena política internacional. É justamente este conjunto de relações de vários níveis, entre diversos atores, além das instituições nacionais, que justifica a denominação de governança para a cooperação securitária em estudo. A constituição de uma governança securitária interestatal foi, inicialmente, a reação dos estados nacionais à emergência da contestação supranacional "altermundialista". Após os atentados de 11 de Setembro, houve, todavia, um notável recrudescimento repressivo e a intensificação da cooperação em segurança interna entre os Estados nacionais frente às "novas ameaças" (movimentos antiglobalização, crimes transnacionais, imigração ilegal, terrorismo), objeto de pesquisa do autor. Foram analisados documentos oficiais, produção intelectual e material de imprensa sobre o tema.

Palavras-chave: Governança Securitária - Atores Transnacionais - Contestação Internacional - Segurança Interna - União Europeia


 

 

O trabalho analisa a cooperação interestatal em assuntos policiais, judiciários e de inteligência interna na União Europeia. Sua premissa central é a de que os conflitos entre movimentos de contestação transnacionais e Estados nacionais, em cooperação, prefiguram uma dimensão política verdadeiramente mundial, isto é, pressupõem a ação ativa de atores não-estatais e instituições transnacionais e interestatais na arena política internacional. A transnacionalização dos protestos antiglobalização se fez acompanhar da transnacionalização da vigilância, do controle e da segurança, nas relações dos estados entre si e com os movimentos de contestação internacionais. Assim, o grande impulso na cooperação securitária interestatal verificado nos últimos anos acarretou novas formas institucionais e organizacionais, de caráter supranacional, que buscamos compreender não apenas empiricamente, mas também do ponto de vista teórico. É justamente este conjunto de relações de vários níveis, entre diversos atores, além dos estados nacionais, que justifica a denominação de governança para a cooperação securitária em estudo.

A análise estará especialmente focada na cooperação securitária que visa às denominadas "novas ameaças": imigração ilegal, crime organizado, movimentos antiglobalização, terrorismo. Muitas das medidas adotadas nestas áreas já se encontravam parcialmente em vigor ou em implantação desde o começo dos protestos antiglobalização, no final do século passado. O atual surto terrorista no Ocidente, cujo marco exemplar foi o 11 de Setembro de 2001, não fez mais que exacerbar uma tendência de articulação securitária presente desde antes, mas que sofreu uma intensificação notável após aqueles atentados contra os Estados Unidos. Na última década, houve, de fato, prófuga criação de instituições, de legislação securitária e de acordos judiciais e operacionais de natureza internacional - multilaterais, bilaterais, regionais ou supranacionais - que visam às "novas ameaças" e ao terrorismo. Especialistas e cidadãos se interrogam sobre o potencial liberticida e antidemocrático de algumas destas medidas, adotadas muitas vezes em caráter de urgência e sob uma atmosfera de medo, no seio de sociedades tradicionalmente democráticas, mas que se sentem ameaçadas pelo terrorismo e/ou pelo crime organizado (BIGO, BONELLI, DELTOMBE, 2008; PAYE, 2004; MATTELART, 2008; MITTELMANN, 2010).

O objetivo maior deste trabalho é o de saber qual padrão de relacionamento está surgindo entre os estados, organizações regionais intergovernamentais e os atores transnacionais que contestam a ordem mundial. Mais especificamente, em que consistem as respostas institucionais e coercitivas dos estados aos movimentos de contestação internacional e às "novas ameaças"? Que órgãos, instituições e acordos interestatais e/ou comunitários são utilizados para vigiar, controlar e reprimir estes movimentos e grupos transnacionais? O desenvolvimento de uma governança na área de segurança interna na UE, constitui uma ameaça potencial para as liberdades democráticas e os direitos civis dos cidadãos europeus e de outros continentes? Com efeito, a expansão e articulação de agências interestatais de inteligência e segurança implicam frequentemente o recuo da diplomacia, a predominância do Executivo e a falta de accountability (CEPIK, 2003). Por sua vez, a precariedade dos controles democráticos sobre a cooperação securitária interestatal pode acarretar o apoio a regimes autoritários que sejam considerados aliados por países democráticos em sua luta anti-terrorista (AYDIN et al, 2005).

A primeira parte do texto, de viés mais teórico, tratará das relações entre globalização, Estados nacionais e movimentos de contestação transnacionais. Já, as medidas de controle e repressão direcionados contra o movimento antiglobalização e as "novas ameaças" na União Europeia serão estudadas através da produção científica sobre o tema e do exame de documentos oficiais. Finalmente, à luz da análise preliminar dos dados já obtidos, avançaremos algumas considerações de ordem teórica e empírica sobre o tema.

 

I. Globalização e contestação internacional

O estudo sobre as reações interestatais na União Europeia provocadas pelos movimentos altermundialistas e, mais recentemente, pelo terrorismo, possui a particularidade de tratar de um fenômeno ilustrativo da erosão da centralidade do Estado na política internacional. De fato, a contestação é dirigida e organizada por movimentos transnacionais e não-estatais, o que afeta a capacidade dos Estados de agir e fixar objetivos políticos com a autonomia de outrora em arenas internacionais não estratégico-militares (VILLA, 1999).

As manifestações antiglobalização econômica de Seattle, Praga, Nice, Gênova e as edições do Fórum Social Mundial (que iniciou em Porto Alegre, em 2001) atestam o forte crescimento dos movimentos de contestação internacional (ARTURI, 2005). A indefinição e os conflitos da nova ordem mundial após a Guerra Fria estimularam o surgimento e a manifestação destes movimentos, onde se encontra uma ampla diversidade de grupos, tanto no que diz respeito as suas formas de organização, atuação e objetivos, quanto aos recursos de que dispõem. Sua emergência e grande repercussão nos últimos anos exigem, portanto, repensar o papel e as funções de atores não-governamentais e dos Estados nas relações internacionais.

Neste perspectiva, a governança é aqui entendida como um conjunto de processos, instituições e práticas através das quais os atores internacionais articulam seus interesses e posições, formando um complexo sistema de elaboração de políticas e de tomada de decisões mais vasto que a arena estatal. Ora, como ressalta Kazancigil, a

"...governança se adapta muito bem às condições da cena internacional, na qual não há nenhuma autoridade central e na qual os investidores, isto é, os estados soberanos, as corporações multinacionais, as organizações internacionais e, mais recentemente, as ONGs, geram políticas sobre questões específicas e regimes regulatórios. (...) sem dúvida [a governança] é participativa, mas por envolver somente estes investidores interessados na questão em consideração, não substitui as instituições democráticas, as quais representam a totalidade dos cidadãos e tratam do interesses multissetoriais comuns da sociedade como um todo" (KAZANCIGIL, 2002, p. 54).

Quando, como no caso em estudo, trata-se de uma governança securitária, que envolve instituições, comunidades e agentes incumbidos da manutenção da lei e da segurança interna, controles democráticos eficazes sobre suas atividades tornam-se imperativos para garantir o regime democrático e o interesse público, mormente no plano internacional, onde a transparência e a responsabilização política das instituições é menor.

O processo de globalização do capitalismo nas últimas décadas está baseado, segundo Tarrow, em dois processos concomitantes: a internacionalização política, através do surgimento de atores, instituições e redes transnacionais, e a integração econômica, pelo crescimento vertiginoso do comércio internacional, dos meios de comunicação e da integração financeira (TARROW, 2002). Assim, a globalização permite a estruturação da contestação internacional, ao criar as estruturas de oportunidade - as políticas neoliberais são gestadas e articuladas a partir de instituições multilaterais (FMI, OMC, Banco Mundial, etc.) - e ao incentivar e produzir as ocasiões para a ação dos atores transnacionais antiglobalização, que se reúnem e manifestam-se nos grandes eventos patrocinados por aquelas instituições (KECK e SIKKINK, 1997).

Para a orientação deste trabalho, adota-se uma das teses de Charles Tilly sobre os conflitos e as rebeliões, bem como sobre a repressão e a negociação entre rebeldes e governantes, que foram essenciais para constituição e prevalência do estado nacional moderno nos últimos séculos (TILLY, 1986). No que diz respeito à "contestação popular", este autor afirma que os indivíduos e os grupos aprendem a reivindicar aos poderosos, formando um "repertório de ações coletivas" que acompanham o desenvolvimento do capitalismo e do estado nacional no Ocidente. Assim, anteriormente à industrialização e à urbanização, as formas de contestação foram mais locais e menos organizadas, mas a partir do século XIX, tornaram-se de âmbito mais nacional. A resposta do Estado e das elites nacionais foi também mais centralizada, quer quando reprimiu estes movimentos com eficácia, quer quando com eles negociou franquias e direitos políticos, estabelecendo novos canais de ação coletiva e instituições responsáveis por novas formas de contestação não-violentas, como a legalização de partidos de esquerda, por exemplo. A estes dois "repertórios de ação coletiva" - local e nacional -, o autor referiu-se, com grande capacidade de antecipação, ao terceiro, que corresponde aos movimentos transnacionais, simultaneamente de alcance mundial e deslocalizados (TILLY, 1992).

A tese de Charles Tilly sobre a centralidade dos conflitos e da mobilização coletiva no desenvolvimento das instituições políticas permite problematizar e atualizar o tema em uma dimensão mundial; e compreender, assim, as expressões da contestação internacional antiglobalização e da reação interestatal a sua emergência nos últimos anos. Esta governança securitária certamente dará lugar a novas formas de coerção em escala supra-estatal e/ou a instituições políticas de caráter mundial. Com efeito, a contestação e a coação na política internacional sofreram notável desenvolvimento nos últimos anos, o que provocou uma mudança de nível de atuação, do nacional ao mundial, tanto dos movimentos antiglobalização como dos órgãos de inteligência e de repressão dos Estados (BALZACQ et al., 2006).

No que concerne à União Europeia, o domínio da segurança, justiça e assuntos interiores torna-se crescentemente mais "comunitário" e menos "nacional", o que acarreta consequências importantes para as atividades de vigilância e controle, para a integração regional e para a atividade política como um todo (FERNÁNDEZ, 2009). Nesta perspectiva, tratam-se apenas de acordos e instituições firmados entre estados nacionais, que não alteram o mundo "westphaliano", ou presencia-se a constituição das primeiras instituições realmente supra-estatais a compartilhar atributos que até então eram exclusivos dos estados nacionais, como aqueles concernentes às atividades de segurança e inteligência? Outra possibilidade, ainda, é a de que a articulação securitária em curso possa caracterizar uma espécie de "terceira via" de integração regional, nem intergovernamental, nem supranacional, situação próxima ao status atual da União Europeia.

 

II. Movimentos antiglobalização, terrorismo e cooperação securitária na União Europeia

O auge dos movimentos transnacionais ocorreu efetivamente entre a queda do Muro de Berlim, em 1989, e os grandes atentados contra os Estados Unidos de 11 de Setembro de 2001. Após o último vento, os Estados nacionais procuraram esvaziar o conteúdo político dos protestos antiglobalização e as causas que lhe dão origem, promovendo até mesmo sua criminalização. Na União Europeia, onde os movimentos de contestação internacional tem uma de suas principais bases, as redes policiais e os serviços de inteligência expandem-se, impondo uma visão da contestação social como problema de segurança, o que erode os limites entre segurança interna e segurança externa (APAP, 2004; ANDERSON e APAP, 2002). Os movimentos altermundialistas, com suas redes e mobilizações internacionais centradas em eventos, desterritorializam os conflitos entre estes grupos e os estados, e a "cronopolítica" como que substitui a geopolítica (BIGO & GUILD, 2002). Assim, uma cronologia resumida e brevemente comentada das grandes manifestações de contestação à globalização permitirá delimitar melhor nosso objeto.

Se os protestos em Seattle, em 1999, têm sido caracterizados como o batismo de fogo do movimento de contestação à globalização econômica, o ano de 2000, na Europa, inaugura-lhe uma nova fase. Em setembro de 2000, ocorrem as mobilizações de Praga, em contraposição à reunião anual do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, realizada na capital da República Tcheca. Depois de Praga, o movimento de contestação à globalização neoliberal organiza, em outubro de 2000, uma contra-conferência em Bayonne, simultaneamente à reunião do Conselho Europeu de Biarritz. Mas é no Conselho Europeu seguinte, reunido de 6 a 7 de dezembro em Nice, na França, que se sucedem os primeiros fatos de suma importância para o futuro do movimento na Europa.

A reunião de Nice fora convocada tendo como pauta a adoção de um novo tratado, prolongando o de Amsterdã (1997). Os movimentos sociais, por seu turno, organizam uma contra-conferência e, no dia 6 de dezembro de 2000, promovem uma grande manifestação em torno do tema da Europa Social. A importância de Nice para o estudo da governança securitária e da contestação na Europa se dá pelo fato de figurar como o início efetivo da adoção de medidas conjuntas, em nível de UE, para dificultar ou impedir as manifestações de contestação à globalização. Em virtude das manifestações previstas em Nice, houve a primeira suspensão do Acordo de Schengen, que permite a livre circulação dos cidadãos da UE entre suas fronteiras. Gotemburgo vivencia, por sua vez, a primeira atuação das forças policiais disparando contra os manifestantes com munição real, que atingiram três deles, sendo um ferido gravemente. Este episódio ocorreu por ocasião da reunião do Conselho Europeu de 14 a 16 de junho de 2001, naquela cidade sueca.

Os eventos de Nice, Gotemburgo e Gênova formam uma linha de continuidade que abarca desde a suspensão dos direitos de livre circulação (Nice), passando pelo emprego de armas de fogo contra manifestantes (Gotemburgo) e que culmina com a morte de um destes no âmbito de uma operação repressiva em Gênova, em julho de 2001, que lembrou teatros de operações bélicas (BAYON & MASSE, 2002). Todos estes episódios, que envolveram cooperação interestatal e repressão crescentes, aconteceram ainda antes dos atentados de 11 de Setembro de 2001.

O surgimento precoce de estruturas comunitárias de cooperação policial é um importante passo para o estabelecimento de uma governança securitária e para a eventual configuração de uma unidade política supranacional na Europa (ARTURI, 2004). Antes do Tratado de Maastricht, ou Tratado da União Europeia, em 1993, os governos nacionais monopolizavam a segurança interna e mantinham-na como assunto soberano (MITSILEGAS et al., 2003), embora o Acordo de Shengen já houvesse iniciado a cooperação regional efetiva em matéria securitária.

Embora inicialmente estabelecido no âmbito da cooperação intergovernamental, o Acordo de Schengen foi elevado ao status comunitário quando incorporado, em 1997, ao direito da União Europeia, por um protocolo anexo ao Tratado de Amsterdã, que entrou em vigência, por sua vez, em 1999. (D'ARCY, 2002). Com os Tratados de Amsterdã, a unificação da Europa tornou-se ainda mais intensa, com a criação do Espaço de Liberdade, de Segurança e de Justiça e com o reforço do 1º Pilar pela inclusão de matérias relativas à liberdade de circulação de pessoas. Ampliava-se, desta forma, a comunitarização e a incidência do poder supranacional europeu e reforçava-se a "europeanização" da segurança na Europa (RADAELLI, 2003). A "europeanização" da segurança é o processo pelo qual riscos à segurança interna, antes tratados em nível nacional, são reconceitualizados e redimensionados, passando a ser tratados em nível europeu.

Já a Agência Européia de Polícia - EUROPOL - foi criada em 1995 e entrou em operação em 1999. Com sede em Haia, visa "melhorar a cooperação entre os Estados-membros na luta contra o terrorismo, contra o tráfico ilícito de estupefacientes e outras formas graves de crime internacional". A EUROPOL consiste de um centro de intercâmbio e coordenação de informação, mas também de coleta e análise, gerando inteligência sobre suspeitos de haverem cometido ou participado de infrações, assim como de pessoas sobre as quais repouse a presunção de delito. A organização tem sido criticada como risco potencial às liberdades civis, à medida que inexistem instrumentos adequados de controle público sobre a atuação de seus agentes, que contam com prerrogativas e imunidades que podem resultar em abuso de autoridade (PAYE, 2002).

Na cronologia abaixo, percebe-se a evolução da cooperação securitária na UE e desta entidade com outros regiões e países, especialmente com os EUA.

 

 

A cronologia acima não traduz fielmente o endurecimento das medidas securitárias adotadas após 2001 no interior dos estados nacionais, nem o incremento dos acordos de cooperação securitária binacionais e a utilização crescente de forças e meios militares em ações de segurança interna e de antiterrorismo (TODD e BLOCH, 2003). Outra mudança provocada pelos atentados de 11 de Setembro e os de 11 de Março de 2004, em Madri, foi a aceleração da tomada de decisões em nível europeu na área de Justiça e Assuntos Internos, processo que anteriormente era lerdo e difícil (APAP & CARRERA, 2005; BIGO, 2007).

Os atentados de Madri marcam, sobretudo, o incremento da institucionalização da cooperação em segurança interna na UE com a criação, em 2002, da EUROJUST, que visa incrementar a cooperação entre os poderes judiciários dos Estados-membros, e da EUROINTEL, em 2004, que centralizou as atividades de inteligência em relação ao crime organizado, à imigração ilegal e ao terrorismo (DIAZ, 2007). Ainda em 2004, é criada a FRONTEX, agência europeia para o controle das fronteiras do bloco e de contenção da imigração clandestina. Neste período, também foram adotados importantes acordos multilaterais e de cooperação nos domínios da segurança interna com países terceiros à UE, especialmente com os Estados Unidos (ALDRICH, 2004). Constata-se, portanto, a constituição de um padrão reativo e cada vez mais repressivo na integração europeia relativa aos assuntos de segurança e justiça. Cada incremento importante da cooperação nesta área ocorre logo após um grande atentado terrorista (MONAR, 2004).

 

Considerações Finais

O estudo das relações entre as instituições europeias e os movimentos antiglobalização permite a identificação mais precisa de qual "repertório de ações coletivas" transnacionais está se constituindo nos últimos anos. Por outro lado, o desenvolvimento de instituições e práticas comunitárias em assuntos de segurança e inteligência pode ser o embrião de estruturas estatais supranacionais na UE, originadas pela interdependência dos estados nacionais, pela reação à contestação internacional e pelos interesses corporativos dos técnicos e agências envolvidos. A cooperação entre este conjunto complexo de atores configura uma governança securitária europeia, cujos contornos, alcance e efeitos restam ainda a precisar.

Podemos igualmente afirmar que o grande incremento da cooperação policial e judiciária na Europa nos últimos anos pode representar um risco de deriva securitária (ANDERSON & APAP, 2002; ROJO, MILANI & ARTURI, 2004), tais como:

a) a erosão da distinção entre inimigo interno/externo, devido à chamada guerra contra o terrorismo, que envolve comunidades minoritárias étnicas e/ou religiosa no interior dos Estados nacionais (ANDERSON & APAP, 2002; APAP, 2002);
b) "criminalização" da exclusão social, de movimentos sociais e de imigrantes ilegais (BIGO, 2006), na legislação nacional de alguns países europeus;
c) o estabelecimento de um continuum securitário (BIGO, 1994) na legislação europeia que inclui desde medidas contra a violência das torcidas organizadas (hooligans), passando pelo combate ao crime organizado e à imigração clandestina, até à luta contra o terrorismo;
d) amálgama na utilização da legislação criminal por autoridades policiais e judiciais, por exemplo, na invocação da legislação anti-hooligans para impedir a transposição de fronteiras na Europa por cidadãos europeus por ocasião de alguns eventos antiglobalização;
e) militarização do combate ao crime organizado e ao terrorismo, sobretudo após o 11 de Setembro (BENOIT, 2002);

Entretanto, os principais constrangimentos e desafios ao controle das organizações securitárias são constituídos pelo baixo nível de controle e supervisão do Parlamento Europeu e dos Tribunais nacionais e regionais sobre a cooperação policial e judiciária na UE, bem como a ausência de agências especializadas e independentes para fiscalizar este setor. O poder de influência das políticas externa e de segurança norte-americanas, o enfraquecimento da noção de privacidade, que facilita a vigilância tecnológica, e o clima de medo no interior das sociedades tampouco auxiliam no exercício dos controles democráticos. Atualmente, os tribunais e os parlamentos têm reagido a abusos e violações dos direitos civis e humanos da luta anti-terrorista, mas são reações pontuais, embora importantes.

No que concerne à possibilidade de constituição de um espaço político de caráter essencialmente mundial e supranacional, os resultados preliminares da investigação sobre cooperação policial e judiciária na UE não são conclusivos. Há uma grande incerteza no que concerne ao futuro político da UE e a qual dos modelos de integração irá prevalecer. Todavia, o desenvolvimento dos Estados nacionais também associou estreitamente o capital, a coerção, e a guerra (TILLY, 1990). Neste sentido, estaria a UE repetindo a trajetória de desenvolvimento dos Estados nacionais, aos quais ela poderia hipoteticamente vir a substituir, integrando-os numa entidade política supranacional ou até mesmo pós-nacional? Ou, ao contrário, a espetacular articulação securitária que se desenvolve atualmente no seio da Europa não seria nada mais do que a "realista" cooperação interestatal? Neste último caso, segundo Paye (2006), "a UE não é um Estado supranacional em vias de construção, mas antes uma coligação de estados nacionais cujos diferentes poderes se reforçam através da construção europeia".

Este trabalho não permite responder a estas questões, embora tenha constatado a predominância do tema "segurança" em relação aos de "liberdade" e "desenvolvimento" na cooperação internacional e regional nos últimos anos, o que é preocupante para a paz e a democracia em todos os níveis políticos. A possibilidade de uma ordem mundial mais pacífica e democrática depende em boa medida do resultado destes conflitos na esfera política internacional, que envolve o "terceiro repertório de ações coletivas", como também da eficácia dos controles democráticos, atuais e a construir, sobre a governança securitária em constituição no espaço internacional, em particular na União Europeia. Por sua vez, do equilíbrio entre liberdade e segurança no interior da União Europeia, que atinge atualmente seu nível mais tenso desde o auge da Guerra Fria, depende, certamente, a democracia em outras regiões do mundo, inclusive na América do Sul.

 

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III Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais. São Paulo - 20 a 22 de Julho de 2011. Área temática: Integração Regional (IR 10).