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Print ISBN 2236-7381

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

A privatização da força e os novos desafios para a segurança internacional: empresas militares privadas no Afeganistão e Iraque

 

 


RESUMO

Esta pesquisa aborda a ascensão de empresas militares privadas no contexto do pós-Guerra Fria e em especial sua atuação nas guerras do Afeganistão e Iraque, aonde esses novos atores transnacionais ganham maior relevância internacional. O objetivo principal deste projeto é situar essas entidades corporativas no debate contemporâneo das relações internacionais, discutindo seu papel, sua influência e suas conseqüências para o campo da segurança internacional. Argumenta-se como tese central que a privatização da força insere dinâmicas de mercado no processo decisório de políticas públicas, criando conflitos de interesse nas instituições de segurança. Além disso, tornam sensíveis alguns conceitos-chave como o monopólio estatal sobre a força e as linhas de separação entre o público e o privado. As recentes experiências no Afeganistão e Iraque fomentam essa discussão fornecendo o substrato empírico sobre os efeitos das EMPs, aguçando o debate em torno da recente importância que esses atores obtiveram ao longo das últimas duas décadas para uma nova configuração internacional pós-Guerra Fria

Palavras-chave: Empresas Militares Privadas; Afeganistão e Iraque; pós-Guerra Fria; Privatização da Força; Segurança Internacional


ABSTRACT

This research addresses the rise of private military companies in the post-Cold War scenario and its particular role in the Afghanistan and Iraq wars, where these new transnational actors gained greater international relevance. The main objective of this article is to situate these corporate entities in the contemporary international relations debate, discussing their role, influence and consequences for the field of international security. The central idea for this study is that the privatization of force introduces market dynamics in the decision-making process on security issues and institutions. Also, in the theory field, some key concepts such as the state monopoly on violence and the separation of public and private domain are relativized. The recent experiences in Afghanistan and Iraq foster this discussion by providing the empirical substrate on the effects and implications of military companies in international relations, especially over the last two decades for a new post-Cold war international scenario.

Key-words: Private Military Companies; Afghanistan and Iraq; post-Cold War; Privatization on Force; International Security


 

 

INTRODUÇÃO

Em 2010 os Estados Unidos completaram mais de cem meses de ocupação territorial no Afeganistão, iniciada em outubro de 2001, estabelecendo um novo recorde: o de campanha militar mais longa na história da atual potência bélica mundial (HAMPSON, 2010). Sua outra frente de batalha no Iraque iniciou-se em 2003 e, apesar de uma retirada parcial das forças estadunidenses em 2010, 50.000 soldados continuam a operar no país sob forte instabilidade.

As longas e complicadas ocupações desses dois países apresentam diversas semelhanças. Ambas iniciaram-se com campanhas de invasão de curtíssima duração de aproximadamente dois meses1. Apesar da rapidez e a facilidade na dissolução dos antigos regimes instalados, as forças de coalizão lideradas pelos EUA lutam uma longa e truncada guerra de "baixa-intensidade" em dois Estados "falidos" (FUND FOR PEACE, 2009) debatendo-se contra grupos insurgentes e uma população largamente opositora à força ocupante.

Uma das faces mais inovadoras destes dois conflitos é a ampla atuação das "Empresas Militares Privadas" (EMPs). Estas companhias atuam ativamente nos esforços de guerra, seja no suporte logístico ou no campo de batalha, além de ocuparem o vácuo de segurança que existe em situações pós-conflito. De fato, o número de agentes privados já supera o contingente regular nos dois conflitos: no Afeganistão são 104 mil contratistas2 e 98 mil soldados regulares (ELLIOT, 2009) enquanto no Iraque a estimativa é que, em 2007, havia 180 mil agentes privados e 160 mil soldados (SINGER, 2008).

Apesar de esses não serem os primeiros conflitos com a presença de EMPs, os casos no Afeganistão e Iraque servem como fértil terreno de análise sobre a evolução e magnitude dos contratos privados em serviços de natureza militar. A presença massiva destas empresas nestes dois conflitos capitais do pós-Guerra Fria denuncia uma silenciosa transformação nos moldes da guerra contemporânea e na agenda internacional de segurança, dois fenômenos que vêm consolidando-se desde o final da década de 1980 e que assumem particular intensidade e importância no início do século XXI. Essas empresas representam um tipo muito especial de atores transnacionais que passam a ter um papel decisivo na formulação de política externa sobre segurança, e que lançam desafios sobre o entendimento das relações internacionais.

Este artigo se propõe a analisar esse fenômeno da privatização da força através da hipótese central de que o crescimento dessas empresas e o alargamento de suas funções afetam diretamente o campo da segurança internacional, seja no aspecto operacional do campo de batalha, seja nos processos decisórios sobre políticas nesta matéria. Esse trabalho visa analisar como o processo de  mercantilização da força dota as empresas militares privadas de poder para moldar os entendimentos e discursos sobre segurança (LEANDER, 2005) devido sobretudo a sua penetração nas instituições públicas. A mescla de interesses privados e públicos na esfera do uso da força instiga uma nova abordagem sobre os processos de decisão em segurança e uma revisão sobre o paradigma do monopólio da força do Estado e seu papel no contexto do Pós-Guerra Fria.

Partindo desta premissa, este trabalho percorrerá os principais pontos relevantes desse debate acadêmico que se instala com maior ímpeto com a "Guerra contra o Terror". Para tanto, este artigo está organizado em duas partes: a primeira parte se ocupa de apontar os principais fatores da conjuntura pós-Guerra Fria que fomentam a expansão dessas empresas e como elas se inserem em um contexto de reorientação do paradigma de segurança internacional; a segunda seção aborda um debate sobre a penetração dessas empresas militares nas instituições responsáveis pela formulação de políticas de segurança, tanto no âmbito do Departamento de Defesa dos Estados Unidos como na reconstrução dos estados afegão e iraquiano.

 

1. A Privatização da Violência e a Nova Ordem Global

Apesar de ser um fenômeno recente nas relações internacionais, as Empresas Militares Privadas rapidamente ascenderam ao topo das discussões sobre segurança internacional. O seu célere crescimento devido à sua atuação intensiva nas Guerras do Afeganistão e do Iraque captou o interesse da mídia internacional e da academia especializada que passou a elaborar um debate mais contundente sobre esse fenômeno a partir de 2001. No entanto, o surgimento dessas empresas situa-se no contexto o fim da Guerra Fria, com a reestruturação do paradigma da segurança internacional.

A década de 1990 denuncia a magnitude que as empresas militares privadas alcançaram em um curto espaço de tempo: em 1991, na primeira Guerra do Golfo, a proporção agente privado para soldado regular era de um para 60; na Bósnia (1992-1995) um para cada 10; em Kosovo (1999) um para cada dois. No Afeganistão e no Iraque o número de agentes privados já supera o contingente regular do exército estadunidense, comprovando a relevância crescente dessas empresas na segurança internacional (LEANDER, 2005, p.806). Este artigo entende as EMPs no sentido definido por Brooks (2001): companhias que atuam ativamente nos esforços de guerra, provendo segurança, transporte, alimentação, treinamento militar, consultoria estratégica e outros serviços antes funções exclusivas das forças armadas. Este conceito é complementado pela característica singular de que as atuais empresas militares são legalmente regularizadas e estão indissociavelmente ligadas ao sistema econômico mundial, uma vez que se organizam a partir de modelos corporativos capitalistas e atuam em uma economia amplamente internacionalizada (MÜNKLER, 2005).

Assentado o conceito fundamental que distingue as EMPs como um novo tipo de ator transnacional, é necessário desvendar as razões do seu surgimento e as condições que impulsionaram seu crescimento. Seguindo o marco analítico proposto por Singer (2002), são três os principais fatores que emergem, no contexto do final da Guerra Fria, que impulsionaram o crescimento das EMPs: a eclosão de diversos focos de conflitos; transformações na natureza da guerra e; e o advento do New Public Management na administração pública.

A primeira destas dinâmicas é de cunho político: a eclosão de diversos conflitos regionais no pós-Guerra Fria. Esse fenômeno explica-se pela dissolução da tensão entre EUA e URSS que põe fim ao sistema internacional que havia regido a segurança internacional desde o final da Segunda Guerra Mundial. Sem a arbitragem e o suporte político e militar das grandes potências polares, diversos países se convulsionaram em disputas políticas nacionais envolvendo querelas pelo poder nacional ou reivindicações de cunho étnico-religioso que rapidamente se inflamaram em uma série de conflitos. Assim, verifica-se após a Guerra Fria um novo surto de violência em diversos rincões do mundo, aonde a instabilidade germinou com a ausência do protetorado das potências. Segundo Hobsbawm (1992, p.538):

Os anos que se seguiram a 1989 viram mais operações militares em mais partes da Europa, Ásia e África do que qualquer um pode lembrar, embora nem todas elas fossem oficialmente classificadas como guerras: na Libéria, em Angola, no Sudão e no Chifre da África, na ex-Iugoslávia, na Moldávia, em vários países do Cáucaso e Transcáucaso, no sempre explosivo Oriente Médio, na ex-soviética Ásia Central e no Afeganistão [e Iraque].

Frente a um mundo de crescente instabilidade, a segurança internacional passa a abarcar novos elementos e concepções que ampliam seu sentido cognitivo, (MACHADO, 2007, p.42). Senhores da Guerra em cruzadas regionais, intervenções humanitárias, multiplicação de crimes transnacionais, novos conceitos de soberania3 e recentemente o conceito de "Guerra contra o Terrorismo", que engendrou as campanhas do Afeganistão e do Iraque, representam novas demandas em segurança que pressionam as estruturas militares dos Estados nacionais. Por exemplo, é notável o aumento de operações militares dos Estados Unidos entre 1989 até 2005 aonde o exército estadunidense interveio em 36 operações diferentes, enquanto durante toda Guerra Fria foi solicitados 10 vezes (MAGALHÃES, 2005, p. 163).

O segundo fenômeno que impulsiona a utilização das EMPs são as transformações na natureza da guerra. As intervenções militares pós-Guerra Fria são marcadas por um novo tipo de conflito, comumente denominado "guerras de  baixa-intensidade" (low-intensity wars). Esses conflitos se caracterizam pelo enfretamento de grupos insurgentes que não oferecem o combate aberto, evitam a busca de uma decisão bélica e visam destruir o apoio e a vontade de combater do inimigo através de ações guerrilheiras e terroristas (KEEGAN, 2005b). Os novos conflitos, marcados por diversas peculiaridades étnicas e estratégicas, criam novas demandas militares para as quais os exércitos tradicionais se revelam pouco eficientes, assim como os arsenais nucleares que garantiram o paradigma de segurança na Guerra Fria já não são suficientes. Esse é o caso do Afeganistão e Iraque, dois cenários de conflitos que comprovam a ineficiência das tropas tradicionais mesmo com sua superioridade massiva em números e poder de fogo contra inimigos descentralizados cujos alvos incluem militares e civis. Assim, é contraproducente a manutenção de grandes e onerosas estruturas militares que não se adéquam aos desafios da guerra contemporânea. Em contrapartida, existe uma linha de argumentação de que as EMPs têm se revelado mais eficientes em termos financeiros e operacionais do que os exércitos tradicionais, apresentando-se como uma solução viável para a natureza cambiante do campo de batalha4. Segundo Whyte (2003) as vantagens imediatas na privatização da força se resumem a uma maior mobilidade de tropas, funcionando em um sistema ad-hoc que apresenta melhor estrutura de comando, efetividade e custo em relação às tradicionais coalizões estatais,e que podem ser acionadas a qualquer momento pelo Estado (mesmo aqueles sem tradição ou poder bélico) mediante o aporte de recursos financeiros. Outro aspecto importante é o menor custo político que as EMPs oferecem, diminuindo a resistência nacional a ações militares impopulares (SHEARER, 1998). Esta realidade é particularmente importante nos países ocidentais desenvolvidos, aonde a aceitação do uso internacional da força é cada vez mais rechaçada, mesmo em casos legítimos de intervenção humanitária. Dessa forma, as EMPs se apresentam como uma solução para a efetivação de políticas externas com custos financeiros e políticos reduzidos5.

Outro fator relevante dos novos conflitos pós-Guerra Fria é o impacto da revolução técnico-científica sobre a operacionalidade do campo de batalha. A condução da guerra depende cada vez mais da funcionalidade das tecnologias da informação para operar os avançados sistemas de armas de longo alcance, coletar inteligência a partir de satélites e monitorar complexas redes de informação que ligam, por exemplo, o Pentágono ao Afeganistão ou a OTAN ao Iraque. Se por um lado a popularização de armas leves no pós-Guerra Fria e o seu fácil manuseio permitiram o aumento da violência e a propagação de conflitos por tropas sem nenhum ou pouquíssimo treinamento (BOUTWELL; KLARE; 1999), países ocidentais buscam obter vantagens estratégicas no campo de batalha através do emprego massivo de alta tecnologia. O domínio da tecnologia, assim como o pessoal especializado em seu manuseio, é encontrado em ampla oferta no mercado privado, levando os exércitos regulares a buscarem cada vez mais os serviços oferecidos por empresas que passaram a se especializar em soluções de alta tecnologia para tarefas militares (UESSELER, 2008)

O terceiro fator que favorece o crescimento das EMPs é de cunho econômico: o predomínio do paradigma neoliberal no pós-Guerra Fria. O advento do New Public Management legitima a maior eficiência do setor privado frente à inoperância e lentidão do sistema público. Assim, a privatização de serviços antes controlados pelo Estado passa a ser o dogma político e cartilha de sucesso econômico da década de 1990, levando o setor privado a uma expansão inédita concomitante ao encolhimento do Estado. A atividade militar não fica alheia a essa corrente mercadológica e passa por um processo de downsizing internacional, sob o argumento de diminuição da ameaça de um confronto militar entre as grandes potências, desmobilizando quase 10 milhões de soldados ao longo dos anos 90, abrindo caminho para uma paulatina terceirização de serviços militares (CHAKRABARTI, 2009). Muitos desses ex-soldados, principalmente aqueles altamente especializados, encontraram refúgio no mercado crescente das EMPs, configurando assim um cenário apropriado de oferta e demanda de serviços militares que impulsiona o setor militar privado.

Portanto, observa-se que as empresas militares privadas surgem em um período de reconfiguração da segurança internacional, em um mundo de crescente instabilidade e novos desafios, frente aos quais as forças regulares da Guerra Fria necessitam se readaptar. Nesse peculiar cenário pós-Guerra Fria, uma combinação de fatores de oferta e demanda, transformações no modus operandi dos conflitos e um impulso normativo propiciado pelo New Public Management consolidam um mercado para esses novos atores da segurança. Porém, além destes fatores que podem ser considerados externos ou conjunturais, é necessário avaliar a penetração dessas empresas no campo das instituições de segurança, fato que permitiu a esses atores uma participação ativa na formulação da agenda de política externa dos Estados Unidos, assim como uma posição privilegiada na reconstrução do Afeganistão e do Iraque, borrando os limites entre o domínio público e o privado.

 

2. Problemas Institucionais: A simbiose entre agentes públicos e privados na formulação de políticas de segurança.

A privatização do uso da violência tem borrado os limites entre atividades civis e militares (BJORK; JONES, 2005). Essa averiguação se dá primeiramente pela própria natureza das EMPs que vieram ocupar o espaço sui generis da segurança internacional que caberia exclusivamente ao Estado. Além disso, outra componente importante das EMPs que contribui para o apagamento dessa separação é a relação de simbiose entre o poder público e o poder privado que foi construída ao longo da década de 90, principalmente nos EUA.

Os primeiros passos para o outsourcing no exército estadunidense se deram com os relatórios formulados na gestão de Dick Cheney enquanto secretário de Defesa do governo de George H. W. Bush (1989-1993). O Departamento de Defesa comissionou um estudo da consultoria Kellog Brown & Root (subsidiária da Halliburton), no valor de US$ 3,9 mi, sobre como o exército americano poderia terceirizar parte de suas ações logísticas para diminuir a burocracia militar Não coincidentemente, ao retirar-se do governo com a posse do democrata Bill Clinton, Cheney assumiu a Halliburton, da qual foi CEO de 1995 a 2000. Em 2001, Cheney voltaria à atividade pública, no posto de 2º homem do governo americano como vice-presidente de George Bush, período no qual a Halliburton assegurou mais de US$ 20 bilhões em contratos na guerra do Iraque (SCAHILL, 2007).

Esse movimento oscilatório entre funções públicas e cargos privados é conhecido como efeito "Porta-giratória" (revolving door) e acaba gerando vasos comunicantes entre as duas esferas da administração pública e privada, criando conflitos de interesses na formulação de política públicas. O caso de Dick Cheney e sua ligação direta com uma das maiores empresas envolvidas na reconstrução do Iraque e do Afeganistão não constituem um caso isolado. Grande parte das EMPs foram fundadas, são administradas ou possuem em seu corpo de conselheiros, figuras eminentes das instituições de segurança e do corpo diplomático estadunidense. Outros exemplos notáveis são a Dillegence LLC, fundada por ex-agentes da CIA e que conta com a colaboração de William Webster, ex-diretor do FBI e da CIA além de ex-embaixadores e diplomatas (UESSELER, 2008), ou da extinta Blackwater que empregava altos funcionários públicos, como Cofer Black, coordenador das políticas anti-terrorismo da administração Bush (SILVERSTEIN, 2006), entre muitos outros exemplos.

Ao constituir esses canais privilegiados de comunicação e compartilhamento de informação, as empresas militares acabam exercendo um poder, ainda que indireto, nas decisões sobre segurança. Segundo Leander (2005). Mais do que simples lobby, a existência de uma "porta-giratória" ativa entre setor privado e as instituições públicas acaba entrelaçando interesses e objetivos, diminuindo o accountability e o controle democrático sobre o uso da força.

O problema da falta de transparência e suspeição sobre privatização da força é reforçado pela fraqueza jurídica dos contratos assinados entre o poder público e as EMPs. A dificuldade de realizar contratos precisos e confiáveis advém da própria natureza desses novos atores que confronta com diversos aspectos do direito internacional (como por exemplo, a "Convenção Internacional contra o Recrutamento, Uso, Financiamento e Treinamento de Mercenários" (1979) ou sua imputabilidade em violações dos direitos humanos). Além disso, não existe consenso de como seria possível mensurar e avaliar os serviços prestados por essas empresas no campo de atuação. O Tribunal de Contas dos Estados Unidos (GAO, na sigla americana6) realizou um relatório sobre a contratação de agentes privados no Iraque e Afeganistão, chegando à conclusão de que a baixa qualidade dos processos licitatórios do Departamento de Defesa somada ao despreparo para elaborar e, principalmente, supervisionar os contratos das EMPs, reduzem drasticamente a eficiência e os benefícios da privatização de serviços militares (GAO, 2010b). O relatório aponta que de fato existe uma discrepância nos valores do serviço privado e do exército regular, sendo que o segundo chega a ser entre US$ 3,3 milhões até US$ 785 mi mais caro para a mesma atividade, mas questiona, sobretudo, a impossibilidade de uma análise sobre a qualidade do serviço privado e o quanto seria necessário despender para criar um sistema efetivo de controle sobre os contratos7. O absurdo da privatização foi alertado pelo Tribunal de Contas ao verificar que o Departamento de Defesa passou a contratar empresas privadas de consultoria para supervisionar EMPs no Iraque e Afeganistão sob o argumento de indisponibilidade de pessoal adequado no setor público, gerando um conflito de interesses patente e uma perda substancial de controle público sobre a privatização da força (GAO, 2010a).

Se existe uma dificuldade de manter o accountability das EMPs nos Estados Unidos, mesmo com todo seu aparato institucional, a gravidade do problema se multiplica no Iraque e Afeganistão. Devido à fragilidade das instituições de segurança, ambos os países passaram a depender em alto grau dos serviços das EMPs. Na falta de uma força policial ou militar adequada, a contratação de empresas de segurança se tornou uma necessidade nesses cenários instáveis, ao ponto de altos escalões do governo preferirem os serviços privados aos nacionais, como no divulgado caso do presidente afegão Hamid Karzai e sua guarda pessoal composta de contratistas estrangeiros (CARAFANOS, 2008). A dependência dos agentes públicos frente aos serviços das EMPs torna a separação de interesses um objeto de difícil realização, comprometendo o controle institucional da atividade privada. Esse problema se tornou evidente com a tentativa do governo Afeganistão de banir a atividade das EMPs no país, proposta que se mostrou irrealizável tendo em vista que a expulsão dessas empresas comprometeria todo o trabalho de contra-insurgência em curso, criando uma situação de instabilidade incontrolável (SOMMERVILLE, 2010). Assim, o Afeganistão, apesar de reconhecer os problemas gerados pelas EMPs, se encontra refém da privatização da força.

Em uma situação análoga no Iraque, a retirada das tropas estadunidenses em agosto de 2010, revelou o que o próprio general iraquiano Babaker Zebari havia alertado: as forças nacionais iraquianas não estão preparadas para assumir o controle do país, o que abriria um vácuo de segurança pública (SKYES, 2010). Esse espaço deixado pela retirada de tropas cria um mercado fértil que passa a ser paulatinamente ocupado pelas EMPs, fato que fica exposto pelos dados que demonstram que as baixas de agentes privados aumentam na proporção que as mortes de tropas do exército regular diminuem. Dados consolidados de janeiro a junho de 2010 demonstram a morte de 188 soldados regulares frente a 204 mortes de funcionários privados no Afeganistão, enquanto no Iraque esses números são respectivamente de 195 soldados para 232 funcionários, aproximadamente 38 agentes privados por mês. Os gráficos abaixo demonstram essa situação abrangendo todo o período de ocupação dos dois países:

 

 

A mercantilização da segurança acaba inserindo dinâmicas de mercado as quais, devido à altíssima demanda por serviços, acaba aumentando os salários no setor privado. Dessa maneira, se torna ainda mais difícil constituir forças nacionais, militares e policiais, que permitiriam assegurar a soberania do Estado. A principal dificuldade enfrentada no Afeganistão e Iraque é que o poder público não pode competir com os salários oferecidos pelas empresas privadas. Um estudo comparativo realizado por Schuster e Joras (2008) demonstrou que a média dos salários do staff local (de origem afegã ou iraquiana) no setor privado de segurança oscila entre US$ 200 a US$ 100 mensais, sendo que para cargos com qualificação (como tradutores, por exemplo) os valores variam de US$ 700 a US$ 500 mensais, enquanto as forças armadas pagam tão somente US$ 70 mensais para seus efetivos8. Essa disparidade salarial constitui um sério problema de política pública, uma vez que o setor privado tem atraído grande parte dos recursos humanos que poderiam formar os exércitos nacionais e garantir a soberania dos territórios ocupados. Com o retardo na construção de instituições de segurança, esses países aprofundam sua dependência em relação às EMPs, criando uma espiral que coloca em xeque a possibilidade de autonomia do poder público nesses "Estados frágeis".

Outra dimensão do problema da falta de segurança pública é a concentração assimétrica da segurança no Afeganistão e Iraque, resultado de uma distribuição desigual de recursos econômicos. Enquanto algumas organizações ou empresas, na sua maioria estrangeiras, podem garantir sua segurança através da contratação de EMPs, várias regiões, sobretudo as periferias urbanas e as áreas rurais, que abrigam boa parte da população civil, acabam sem cobertura policial ou militar, criando espaços altamente instáveis e violentos, frente a áreas altamente securitizadas por empresas privadas. Neste sentido, Uesseler (2008, p.243) afirma que "quando o Estado se apóia cada vez mais na contratação de segurança privada, ele perde a capacidade de oferecer à população uma proteção constante, de acordo com suas necessidades".

Fora os problemas estruturais causados pelas EMPs, existe um extenso número de relatos e bibliografia consolidada sobre as denúncias de violação dos direitos humanos de EMPs no Afeganistão e Iraque (NASSER, 2010; SCAHILL, 2007; GROFE, 2007). Mais do que um caso isolado, as violações recorrentes dos direitos humanos decorre dos fatos aqui já elencados: da falta de accountability, instituições fracas ou inadequadas e de problemas de ordenamento jurídico acerca das EMPs. Portanto, a questão da violação dos direitos humanos é fruto, em larga medida, da falta de normatização e supervisão de um mercado que atua praticamente sem nenhuma regulação.

 

3. Conclusão

Este artigo apresentou as principais condições estruturais do pós-Guerra Fria que permitiram a inclusão destes novos atores no cenário internacional. O seu surgimento não é simplesmente uma releitura do passado mercenário das guerras pré-vestfalianas, mas um novo movimento das relações internacionais movido por transformações profundas no paradigma da segurança internacional.

No entanto, o surgimento dessas empresas não é livre de contestações uma vez que sua natureza confronta com diversos conceitos que regeram a segurança internacional até então. O seu caráter transnacional e sua penetração no campo da Defesa acabam borrando os limites do público e do privado, principalmente por tratar-se de um campo de atividade exclusiva do Estado, lançando, portanto, diversas incertezas sobre seu funcionamento e sobre seu papel nos novos conflitos do século XXI.

Porém, como este artigo tentou demonstrar, a simples eliminação ou banimento das empresas militares privadas não se apresenta como uma solução viável para sua polêmica existência. Pensando em uma relação de demanda e oferta, a supressão da última não levaria ao esgotamento da primeira. Pelo contrário, ignorar os problemas de accountability e supervisão das EMPs levaria a uma desregulação desenfreada do mercado de segurança, cujos efeitos negativos são potencialmente maiores do que um enfrentamento do problema a partir das instituições democráticas e que devem criar controles e instrumentos que possam clarificar esse mercado, tornando sua atividade objeto de apreciação pública.

Por fim, a monitoração da atividade dessas empresas nos Estados do Afeganistão e Iraque se apresenta como um objeto de estudo de suma importância para situar os impactos desses novos atores na criação de instituições em Estados Frágeis e de uma reconfiguração no monopólio da violência no pós-Guerra Fria.

 

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1. A invasão do Afeganistão teve início em 7 de outubro de 2001 e terminou em 17 de dezembro do mesmo ano com a batalha de Tora Bora. A Guerra do Iraque iniciou-se em 20 de março de 2003 e foi declarada encerrada em 1º de maio do mesmo ano, com o famoso "Mission Accomplished" do Presidente George W. Bush (KEEGAN, 2005a)
2. A definição vem do original em inglês "contractors", termo amplamente difundido na literatura acadêmica internacional sobre o tema, porém sem equivalente na língua portuguesa. Designa todo indivíduo prestador de serviços para forças militares, executando tarefas antes função dos exércitos.
3. Sobre os novos conceitos de soberania, consultar Nasser (2010) e as novas tipologias de Estado baseadas na capacidade de manutenção interna ("Failed States") ou na sua posição política como infratores da ordem internacional ("Rogue States") dois conceitos que passam a constituir critérios legitimadores de intervenções no pós-Guerra Fria. No caso do Afeganistão foi utilizado o argumento de que o Estado afegão abrigava organizações terroristas responsáveis pelos ataques de 11 de setembro e o Estado não as combatia, enquanto a invasão do Iraque se legitimou sob o argumento de que o regime de Saddam Hussein não cumprira as decisões da Resolução 1441 do Conselho de Segurança da ONU sobre o desarmamento iraquiano.
4. Exemplo bastante ilustrado no debate sobre o tema é o caso de Ruanda, em 1994, quando estudos sobre a utilização de EMPs para por término ao genocídio na região apontavam custos de US$150 milhões. A opção era cinco vezes mais barata que a ação das Nações Unidas no país, que foi reconhecidamente ineficiente e se limitou apenas a fornecer ajuda humanitária (MAGALHÃES, 2005).
5. Exemplo desse impacto menor sobre a opinião pública é o fato de que as baixas dos funcionários das EMPs no Afeganistão e no Iraque não são contabilizadas nos números oficiais do governo sobre a guerra. Ademais, verifica-se que a contratação de soldados através de empresas militares tem um efeito negativo muito menor sobre os humores da opinião pública do que o recrutamento tradicional (SINGER, 2008)
6. Government Accountability Office.
7. O relatório faz ponderações de que o menor custo das EMPs se dá, sobretudo, pelos menores gastos com infra-estrutura de trabalho (incluindo acomodações, períodos de descanso, treinamento, etc) e pela contratação de funcionários locais (afegãos e iraquianos) ou de terceira nacionalidade (não-estadunidenses). Dessa maneira, quando o processo licitatório passa a exigir um maior contingente de cidadãos americanos como pré-requisito, as vantagens econômicas se reduzem drasticamente, chegando, em alguns casos, a serem nulas ou negativas (GAO, 2010, p.6).
8. O mesmo estudo faz um levantamento da média salarial do staff internacional:  altos cargos de inteligência possuem remuneração de US$ 15.000 a US$ 20.000 mensais; pessoal de segurança com treinamento especializado de US$ 7.000 a US$ 10.000  (pilotos de helicópteros, ex-membros de forças especiais); e pessoal de segurança com treinamento em países "não-ocidentais" (África do Sul ou Leste Europeu) US$ 2.000 a US$ 3.000 mensais.