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ISBN 2236-7381 versión impresa

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

A adesão da Rússia à organização mundial do comércio sob a lógica das relações bilaterais Rússia-EUA (1993-2008)

 

 


RESUMO

Como parte do processo de transição para o capitalismo e com vistas a melhorar seu padrão de inserção internacional, a Rússia solicitou seu ingresso a organismos internacionais, dentre os quais a Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1993. Ciente de suas restrições econômicas domésticas, o governo russo foi impelido a buscar assistência externa, e nenhum país estava em melhor posição de fazê-lo do que os Estados Unidos da América (EUA). A ordem internacional no início do pós-Guerra Fria podia ser caracterizada pela forte preponderância dos EUA, inclusive em fóruns multilaterais. Ao querer integrar-se à nova ordem pós-Guerra Fria, a Rússia precisava, portanto, do apoio dos EUA. Passados mais de quinze anos, porém, a Rússia ainda não é membro da OMC, não obstante as expectativas de que a conclusão do processo de adesão ocorreria logo após a assinatura do Protocolo Bilateral de Adesão com os EUA, ocorrida em 2006. Com referencial teórico no modelo do Jogo de Dois Níveis de Putnam (1988), o presente trabalho busca examinar as razões do atraso do processo de adesão da Rússia à OMC. O estudo cobre o período de 1993, desde a formalização do pedido de adesão, a 2008, término do mandato do presidente russo Vladimir Putin, que fez da adesão à OMC prioridade de política externa.

Palavras-chave: Rússia; EUA; OMC; Relações Bilaterais Russo-norte-americanas


 

 

INTRODUÇÃO

Com o fim da Guerra Fria e a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), a Rússia contemporânea passou por um processo de transformações profundas, dentre as quais: a passagem de membro de uma entidade supranacional para a condição de Estado-nação independente; a transição de um Estado totalitário para um Estado de pluralismo democrático; e a transição de uma economia planificada para uma economia de mercado.

O objetivo primordial do governo russo, logo após a desintegração da URSS, consistia em consolidar sua transformação econômica, bem como em integrar-se ao Ocidente. Como parte do processo de transição para o capitalismo e como estratégia de melhorar seu padrão de inserção internacional, a Rússia solicitou seu ingresso em organismos internacionais, dentre os quais a Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1993.1 Ciente de suas restrições econômicas domésticas, o governo russo foi impelido a buscar assistência externa, e nenhum país estava em melhor posição de fazê-lo do que os Estados Unidos da América (EUA). A ordem internacional no início do pós-Guerra Fria podia ser caracterizada pela forte preponderância dos EUA, inclusive em fóruns multilaterais. Ao querer integrar-se à nova ordem pós-Guerra Fria, a Rússia precisava, portanto, do apoio dos EUA (Cottrell, 2002).

Os EUA, por sua vez, quando da dissolução da URSS, anunciaram que tomariam a dianteira no processo de integração da Rússia às organizações multilaterais (Goldgeir; McFaul, 2003). Desde então, com o seu apoio, a Rússia aderiu, entre outros organismos, ao Fundo Monetário Internacional (FMI), ao Banco Mundial e ao G-8. Passados mais de quinze anos, porém, a Rússia ainda não é membro da OMC, não obstante as expectativas de que a conclusão do processo de adesão ocorreria logo após a assinatura do Protocolo Bilateral de Adesão com os EUA, ocorrida em 2006 (Carnegie Endowment for International Peace, 2006; Aslund, 2010).

Os EUA eram o único país de peso econômico e político com o qual a Rússia ainda tinha de assinar esse acordo. Ainda assim, a Rússia não é membro da OMC, tornando-se o país que tem levado o maior tempo para a conclusão do processo de adesão. Desse modo, este artigo tem como propósito discutir as razões do atraso do processo de adesão. Na primeira parte do artigo, serão apresentadas breves considerações sobre o processo de adesão de países à OMC; na segunda parte, serão discutidos os aspectos políticos envolvidos na adesão da Rússia à OMC; por fim, serão usados os aportes teóricos do Jogo de Dois Níveis para discutir as possíveis razões do não ingresso da Rússia à OMC.

 

ADESÃO À OMC: COMPATIBILIZAÇÃO DAS REGRAS OU JOGO POLÍTICO?

Contando atualmente com 153 membros, a Organização Mundial do Comércio (OMC) é o principal fórum para discussão, para formulação e para resolução de regras atinentes ao comércio internacional. Mais de 96% do comércio mundial é feito entre os membros da Organização (WTO, 2011). Em matéria de relações econômicas internacionais, a OMC apresenta-se entre as organizações mais estruturadas e engendradoras de previsibilidade. Seu poder de sanção é bastante significativo, tornando-se o grande foro para as relações econômicas internacionais e não apenas para as relações comerciais.

O artigo XII do Acordo de Marraqueche dispõe que o candidato deve aceitar todos os termos dos acordos multilaterais (princípio do single undertaking); os plurilaterais são facultativos.2 O país candidato solicita ingresso ao Conselho Geral do Organismo, que estabelece um Grupo de Trabalho (GT), composto pelos membros da OMC interessados na adesão do país. O Grupo, aberto a todos os membros, tem a função de examinar os pedidos de adesão. O maior GT já estabelecido na OMC foi o decorrente do ingresso da Rússia, com 60 membros (Rússia, 2011). O candidato deve assinar um Protocolo de Adesão (negociações bilaterais de acesso a mercados nas áreas de bens e serviços) com cada membro do Grupo. Posteriormente, elabora-se um documento contendo a lista de concessões e compromissos, que é enviado ao Conselho Geral, o qual decide pela adesão por maioria de 2/3. O protocolo entra em vigor trinta dias após a aceitação do candidato, que ocorre, em geral, com a ratificação de seu Congresso e notificação governamental.

John Jackson (2001) afirma que, na OMC, as decisões mais importantes de procedimento nos assuntos de adesão são tomadas pelos membros, e não pelo Secretariado. Segundo o autor, os membros da OMC relutam em conferir poderes reais de autoridade ao Diretor Geral do Organismo. Outra dificuldade é que as decisões da OMC são tomadas por consenso, o que pode tornar certas decisões - a exemplo da adesão de novos países - conflituosas. O artigo XII não estipula nenhum critério para a entrada, sendo este um dos aspectos mais intrigantes do processo de adesão. Não existe um guia sobre os passos concretos a serem dados, nem sobre os termos específicos a serem negociados, ficando estes relegados às negociações bilaterais, o que dá margem para que o processo se torne mais politizado (Lanoszka, 2001).

Afirma-se, ademais, que o processo de adesão à OMC sempre fora político. Países que são úteis para objetivos geopolíticos em um dado período tiveram acesso garantido sem grandes restrições às suas condições políticas e econômicas. Na década de 1960, a Polônia, a Hungria e a Iugoslávia foram admitidas como membro do General Agreement on Trade and Tariffs (GATT-47), a despeito de suas economias serem planificadas, porque os países ocidentais queriam aumentar sua influência na Europa Oriental. As tentativas da URSS de se aproximar do GATT e de se associar ao sistema multilateral de comércio, nas décadas de 1970 e 1980, foram bloqueadas, principalmente com a oposição dos EUA (Náray, 2001; Rutland, 2007).

 

ASPECTOS POLÍTICOS DA ADESÃO DA RÚSSIA À OMC

É importante frisar que os impactos da adesão à OMC serão positivos para a economia russa, principalmente devido ao acesso a novos mercados e à melhoria do ambiente interno para negócios. Com isso, o país poderá atrair novos investimentos, os quais podem ser direcionados para setores alternativos ao de combustíveis fósseis, contribuindo para diversificar a economia. Dessa maneira, estudos do Banco Mundial apontam que, com a adesão à OMC, o crescimento do PIB russo pode chegar a 11%, no longo prazo; as perdas econômicas decorrentes da participação no Organismo serão pontuais e de curto prazo, concentradas em setores pouco competitivos da economia russa (Tarr, 2008).

Não obstante os ganhos econômicos, alguns autores sustentam que o impacto da adesão na economia russa não será significativo. Isso porque os principais produtos de exportação da Rússia, gás natural e petróleo, praticamente não sofrem ações anti-dumping ou embargos (Trenin, 2006; Aslund, 2010). A economia russa, com a exceção de poucos setores, não é competitiva, não havendo alarme de que os produtos russos "inundem" o mercado internacional, como foi o caso dos chineses. Além disso, a economia russa é relativamente aberta (em decorrência do processo de liberalização das décadas de 1990 e 2000); suas tarifas já são relativamente baixas, e a adesão não acarretaria impactos maiores na economia (Rutland, 2007). Mesmo as outras exportações russas, de aço, químicos, grãos, que perfazem 20% do total, têm tido poucos prejuízos causados por ações anti-dumping (Aslund, 2010). Por fim, a Rússia já tem status de nação mais favorecida e de economia de mercado dos EUA e dos membros da União Europeia, o que facilita o comércio com esses países.

Stephen Hanson (2007) afirma que a adesão da Rússia à OMC sinalizaria que o país é um ator sério nas relações internacionais e para os parceiros do Ocidente - notadamente, os EUA. De acordo com o autor, a Rússia não se integrou em outras organizações internacionais como parceiro pleno, sendo a OMC "a última alternativa disponível". Ainda que tenha iniciado cooperação com a Organização dos Tratados do Atlântico Norte (OTAN), a Rússia não tem poder de veto; os regimes internacionais nos quais a União Soviética (e a Rússia) tinha maior prestígio, a saber, os de controle de armamentos, foram depreciados pela administração de George W. Bush (2001-2009). Até mesmo o fato de a Rússia ter se tornado membro pleno do G8 tem sido questionado por parlamentares dos EUA. O único prestígio internacional restante à Rússia seria a sua condição de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, que, por sua vez, foi marginalizado pelos EUA nos casos de Kosovo (1998) e do Iraque (2003). Assim, para a Rússia, o ingresso na OMC seria o único organismo ainda possível de reverter essa situação de relativa marginalização nas organizações ocidentais. Além disso, a entrada da Rússia na OMC é uma maneira de ela não deixar cair o status de grande potência. A Rússia não tem poder decisório na formulação de novas regras para o sistema multilateral de comércio, o que a limita em termos econômicos, a despeito de seu poderio nuclear e energético (Trenin, 2006).

Alguns estudos dão ênfase aos obstáculos técnicos das negociações como a principal causa para o atraso, minimizando a influência política das negociações (Broadman, 2004; Cooper, 2008). Esses obstáculos deveriam ser resolvidos pela própria Rússia. Os principais obstáculos eram: os subsídios que a Rússia poderia conceder ao setor agrícola (setor de importância política desde os tempos da União Soviética e que recebia grande quantidade de subsídios); a falta de transparência nos critérios sanitários e fitossanitários; e a restrição à participação estrangeira no setor de serviços russos, principalmente no ramo bancário, de finanças e de telecomunicações.

Além desses setores, países como os EUA têm interesse na adesão dos russos à OMC, pois estes teriam de tornar mais eficaz o combate à pirataria (que tem causado significativos prejuízos às indústrias estadunidenses), para atender aos Acordos de Propriedade Intelectual (Katz; Ocheltree, 2006). Outro interesse dos EUA diz respeito à comercialização do gás russo, que é vendido domesticamente em níveis abaixo do que é praticado em nível internacional. Os EUA (e os europeus) demandaram a equiparação dos preços, alegando que essa prática se configurava como subsídio ao setor industrial, o que violaria as regras da OMC e prejudica seus interesses comerciais (Ripinsky, 2004).

Posto que os EUA tenham interesses econômicos no processo de adesão, a Rússia não é parceira estratégia comercial para o país. Ela não figura entre os quinze maiores parceiros comerciais dos EUA, nem há, a despeito das importações de petróleo russo, produtos comercializados de elevado nível estratégico (Rutland, 2007; Cooper, 2008). Desse modo, prevalece o componente político, por parte dos EUA, no processo de adesão da Rússia à OMC.

Entre 2000 e 2006, a Rússia adotou a maior parte da legislação necessária para o ingresso, tendo concluído os acordos bilaterais de adesão com a União Europeia e com os Estados Unidos (os membros de maior peso econômico na OMC).3 Entre 2000 e 2003, novas leis importantes foram adotadas, tais como leis sobre os impostos, novo código aduaneiro e várias partes do Código Civil, o que fez que grande parte da legislação russa tivesse se conformado com as regras da OMC (Aslund; Kuchins, 2009). Ainda que houvesse negociações pendentes, acredita-se que elas poderiam ser resolvidas bilateralmente com os EUA. O autor argumenta que a razão principal que impede a conclusão do processo é a falta de confiança mútua entre os dois governos (Aslund, 2010).

 

O JOGO DE DOIS NÍVEIS E AS RAZÕES DO ATRASO

Robert Putnam (1988), em artigo seminal, afirma que existem profundas relações entre a escolha pela cooperação realizada pelos governos no plano internacional e os interesses domésticos que eles representam. A cooperação pode avançar e/ou sofrer limites ou mesmo refluir, dependendo da capacidade de poder de veto ou do apoio dos atores domésticos identificados com a questão em negociação. Por isso, Putnam denomina seu modelo teórico de Jogo de Dois Níveis. Nele, os governos responsáveis pela política externa dos Estados, considerados como negociadores internacionais, atuam junto a seus interlocutores domésticos, com os quais negociam a ratificação e a entrada em vigor dos acordos.

No Jogo de Dois Níveis há dois momentos específicos: a negociação internacional (Nível I) e a ratificação do acordo internacional no plano doméstico (Nível II), ou seja, a aprovação formal no Parlamento e qualquer processo decisório no Nível II necessário para aprovar ou implementar um acordo concluído no Nível I. O autor ainda destaca que os atores no Nível II podem representar agências burocráticas, grupos de interesse, classes sociais, ou mesmo opinião pública. As preferências domésticas traduzidas em coalizões políticas que representam demandas junto ao Estado são denominadas por Putnam win-set.

Putnam argumenta que um governo dividido internamente, ou seja, naquele em que não há consenso amplo entre os interlocutores domésticos, pode obter maior sucesso em acordos internacionais do que aquele governo que incorpora e representa um consenso doméstico mais amplo. Isso porque as dissensões internas são benéficas ao governo, no momento da negociação internacional, ao tornarem evidentes ao seu parceiro que caso os acordos negociados não forem ao encontro de seu win-set, ele não será ratificado no Parlamento. Portanto, quanto menor o win-set, ou seja, quanto mais posições difusas no nível doméstico, mais força terá o governo na negociação internacional. E quanto maior o win-set, maior será a possibilidade de se alcançar um acordo; em contrapartida, diminui a capacidade de barganha do governo em relação aos outros negociadores.

Nos EUA, os setores domésticos interessados no processo de adesão da Rússia à OMC foram o Conselho Nacional de Produtores de Carne Suína, setor de serviços (de seguro e de finanças) e a Aliança de Propriedade Intelectual e o Congresso dos EUA. No decorrer das negociações, esses setores demandaram que o governo dos EUA obtivesse concessões comerciais vantajosas da Rússia e exigisse deste país maior transparência nos critérios de importação, além do compromisso de aplicação de regras de proteção à propriedade intelectual (Carnegie Endowment for Peace, 2006; Cooper, 2008; EUA, 2011). O Acordo foi considerado vantajoso por esses setores, o que demonstra que os EUA tiveram legitimidade e endosso por parte da comunidade de negócios. Além do setor agrícola, os EUA também obtiveram importantes concessões da Rússia nos setores de tecnologia da informação, aviação civil, no setor de químicos e de bens de capital, no setor bancário e de seguros e de propriedade intelectual (Carnegie Endowment for International Peace, 2006; EUA, 2011).

Na Rússia, foram identificados setores favoráveis e contrários à adesão do país à OMC. Os setores favoráveis são o de aço, o setor de químicos e a União dos Industriais e Empreendedores da Rússia, que congrega grandes empresas do país. Esses setores são os mais competitivos e desejam participar da OMC, com vistas a melhorar sua inserção econômica no mercado ocidental. Os grupos opositores são as indústrias do ramo de alumínio, automobilístico e avião civil, além da Câmara Russa de Comércio e Indústria, que reunia empresas chefiadas por antigos diretores soviéticos. Os setores agrícola, de serviços (bancário e seguros) e de telecomunicações também se mostraram resistentes. Também podem ser incluídos entre os opositores setores da elite e da burocracia estatal conhecidos como siloviki, grupo defensor dos interesses estratégicos da Rússia que, de maneira geral, se opõe a maiores concessões russas ao Ocidente. Tal grupo controla empresas dos setores-chave da economia russa, tais como o de combustíveis fósseis, de aviação civil e bancária, e usa sua posição econômica e política para avançar interesses privados.

Nota-se, portanto, na Rússia, uma polarização com relação à adesão à OMC, o que diminuiria o win-set do país, levando à deserção (não ratificação) do Protocolo Final de Adesão pelo parlamento russo, ou ao atraso das negociações finais. Ainda que a Rússia tenha celebrado o acordo com os EUA, avalia-se que houve desinteresse por parte da Rússia em continuar as negociações. Nesse sentido, é importante analisar alguns aspectos das relações bilaterais russo-estadunidenses no pós-Guerra Fria.

Após a dissolução da URSS, o Kremlin, sob os governos de Boris Yeltsin (1992-1999) e de Vladimir Putin (1999-2008), tentou restaurar o papel de grande potência da Rússia no cenário internacional, ainda que utilizando diferentes instrumentos e estratégias. A estratégia de Yeltsin foi a integração da Rússia nas organizações internacionais do Ocidente, como, por exemplo, a OMC. No entanto, na década de 1990, devido às reformas mais urgentes que deveriam ser feitas, além da necessidade de consolidar instituições democráticas e de mercado, a adesão à OMC não teve a devida consideração pelo governo.

Com a ascensão de Putin à presidência da Federação, porém, a adesão à OMC foi considerada uma das prioridades de política externa. A adesão à OMC ajudaria o país a concluir as reformas necessárias para a consolidação da economia de mercado, além de melhorar a economia russa e atrair novos investimentos. Em seu primeiro mandato, o presidente deu ênfase ao processo de negociação. Para tanto, envidou esforços para que legislações internas compatíveis com as regras da OMC fossem adotadas. Em seu segundo mandato o interesse em aderir à OMC diminuiu, muito embora tenha concluído acordo bilateral de adesão com os EUA em 2006.

As relações bilaterais russo-estadunidenses ajudam a explicar o porquê das dificuldades de concluir o processo de adesão a partir de 2004. Assim como Yeltsin, Putin, inicialmente, buscou se aproximar dos EUA, o que ficou patente quando a Rússia lhe deu apoio nas operações militares no Afeganistão em 2001. Além disso, o governo russo ampliou sua cooperação com a OTAN e aprofundou sua participação no G8. Aquiesceu diante da instalação de bases militares - mas em caráter temporário - dos EUA em países da ex-URSS na Ásia Central e elogiou a cooperação militar que os EUA promoviam com a Geórgia (Trenin, 2006). Por fim, a Rússia, ainda que não tenha concordado, inicialmente, não protestou quando os EUA se retiraram dos acordos Anti-Mísseis Balísticos (ABM) de 1972.

Os EUA, por sua vez, reconheceram o apoio russo e pressionaram os outros países do G-7 a aceitar a presidência russa do grupo mesmo sem o país ter ingressado na OMC. O presidente Bush também declarou que se engajariam para acelerar o processo de adesão da Rússia à OMC. Para facilitar o processo, os estadunidenses declararam a Rússia como país de economia de mercado em 2002 (McFaul; Goldgeir, 2003).

A partir de 2004, observaram-se maiores conflitos nas relações entre a Rússia e o EUA. Coincide esse período com o vertiginoso aumento dos preços de petróleo e de gás natural no mercado externo, principais produtos de exportação da Rússia, possibilitando ao país acumular reservas, dando-lhe mais assertividade em sua política externa. Os russos argumentavam que já haviam feito várias concessões ao Ocidente, tais como o apoio militar no Afeganistão, a aquiescência quanto à expansão da OTAN aos antigos países de sua órbita socialista (inclusive incorporando três antigas repúblicas soviéticas), a retirada de antigas bases soviéticas da Ásia e de Cuba, e teriam recebido em troca a retirada unilateral dos EUA dos Acordos Mísseis Antibalísticos de 1972, a manutenção da presença militar dos EUA nos países do Cáucaso (área de interesses russa), o apoio dos EUA a mudanças de regimes na Ucrânia e na Geórgia (países da área de interesse russa), sem mencionar as críticas contundentes dos EUA às restrições das liberdades individuais na Rússia (Aslund, 2006; Trenin, 2006).

Com isso, a percepção dos russos era a de que os EUA não a tratavam como potência ou como parceira em nível de igualdade. Dessa maneira, o interesse pela OMC (isto é, de negociar com o Ocidente) na Rússia diminuiu. A estratégia era seguir uma política autônoma, independente, sem a necessidade de cooperação com o Ocidente. Os russos alegam que os EUA não envidaram esforços para aprovar a entrada da Rússia na OMC, o que, para eles, é um sinal de que a Rússia não é aceita como verdadeiro parceiro do Ocidente (Mankoff, 2009). Não houve o mesmo esforço por parte do Ocidente de trazer a Rússia para a OMC como fizeram com o Quirguistão, em 1994 (Hanson, 2007). A Rússia viu a China (2001) e a Arábia Saudita (2005), por exemplo, entrarem na OMC, em condições mais favoráveis (Rutland, 2007) e muito embora a China não fosse uma economia de mercado. Ademais, a Rússia argumentava que os EUA e outros membros da OMC faziam pedidos excessivos à Rússia ("WTO plus").4

No entanto, os EUA afirmam que, desde a desintegração da URSS, têm procurado integrar a Rússia em organismos internacionais. Na administração de Bill Clinton (1993-2001), a Rússia foi considerada prioridade de política externa norte-americana. O estadista apoiava o ingresso russo em organismos internacionais de sorte a estimular a promoção da democracia interna e de instituições liberais e fazer que a Rússia "se sentisse importante e parte do Ocidente" (Goldgeir; McFaul, 2003). Clinton apoiou a adesão da Rússia à OMC, como parte da política de integrar a Rússia ao Ocidente e de auxiliar sua transformação interna. Porém, a crise econômica russa de 1998 e a oposição de Yeltsin à intervenção estadunidense no Kosovo provocaram atritos nas relações bilaterais, e os EUA deixaram de tratar a Rússia como prioridade.

No governo seguinte, de George W. Bush (2001-2009), a Rússia também não era prioridade dos EUA. Pelo contrário, a política para a Rússia baseou-se na estratégia da "contenção" (neocontainment), segundo a qual o poder dos EUA deveria ser usado para contrabalançar o comportamento "ameaçador" e "errático" da Rússia (Goldgeier; McFaul, 2003). Após os atentados de 11 de setembro, tal estratégia confrontacionista deu lugar à cooperação com a Rússia, a qual tomou a iniciativa de se aproximar dos EUA para oferecer apoio no combate ao terrorismo. Os EUA diminuíram suas críticas em relação à política da Rússia para a Chechênia e afirmavam que o país, diferentemente da China, era democrático, e tinha liberdade política, um sistema pluripartidário e uma oposição ativa. Porém, no segundo mandato de Bush, a temática da democracia na política externa dos EUA passou a dominar o discurso do presidente e os EUA passaram a afirmar que a Rússia se distanciava dos ideais democráticos e do estado de direito, ideais caros à política externa dos EUA (Aron, 2006).

De fato, Putin centralizou o poder político e a condução da política externa. O estadista russo manipulou eleições de sorte que seu partido, a Rússia Unida, passasse a controlar o parlamento russo; passou a nomear os membros da Câmara alta do parlamento (o Conselho da Federação); controlou a mídia e minou a oposição ao seu governo. Ademais, deu maiores poderes aos referidos setores da elite denominados siloviki, que eram menos afeitos à integração com Ocidente e pregavam uma política externa russa mais autônoma e condizente com seu poderio militar. Essas elites desejavam expandir suas atividades no exterior, com o objetivo de auferir lucros, mas não queriam aderir a regimes internacionais que prejudicassem seus privilégios e seus direitos de propriedade, geralmente adquiridos e mantidos por meios pouco transparentes (Sestanovich, 2006).

Assim, posto que a Rússia tenha conseguido se integrar no Ocidente, a exemplo do G-8, argumenta-se que essa integração não deveria ser vista como completa (até porque o G-7 continua a existir e a discutir assuntos financeiros sem a participação da Rússia), nem irreversível. A política dos EUA de apoio à entrada em organismos internacionais deve se pautar pela qualificação, da Rússia, para entrar nesses órgãos. Para os EUA, a entrada da Rússia na OMC não deveria ser um presente político. Pelo contrário, a acessão da Rússia deve indicar que o país se comprometerá a obedecer às normas do sistema multilateral de comércio. Se Moscou entende que foi admitido por razões políticas, não terá motivos para obedecer às regras (Sestanovich, 2006; Mankoff, 2009).

Os EUA têm favorecido a integração da Rússia em organismos internacionais, mas essa integração tem de ter forte embasamento. A avaliação dos EUA é que esse embasamento, desde 1992, não é adequado. A Rússia não deve entrar na OMC em termos preferenciais - ao contrário do que ocorrera em outras organizações internacionais (Sestanovich, 2006).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para os EUA, os principais obstáculos para a entrada na OMC estão localizados na própria Rússia. A Rússia precisa cumprir, antes de entrar na OMC, regras de combate à pirataria e sinalizar que deseja se enquadrar ao regime multilateral de comércio. Existem setores na Rússia contrários à adesão e ao enquadramento a regras de um regime multilateral de comércio, porque poderiam perder privilégios e ter perdas econômicas significativas. O win-set da Rússia, portanto, era baixo, podendo levar ao cenário de abandono do acordo bilateral ou da candidatura à OMC. Nesse caso, os aportes teóricos de Putnam ajudariam a compreender as razões do atraso. A conclusão parcial é que a polarização do setor doméstico russo teria provocado o endurecimento da posição da Rússia, mesmo após a assinatura do Acordo Bilateral de Adesão, concorrendo para a não conclusão do processo.

Porém, o sistema político russo está muito centralizado no Kremlin, e o parlamento é dócil. Putin é o árbitro das elites e consegue avançar políticas de seu interesse. Putin foi grande entusiasta da adesão russa à OMC e continuou a manifestar o desejo de participar da OMC, ainda que tenha proferido retóricas nacionalistas e protecionistas (Aslund, 2010). Ele conseguiria, assim, avançar as negociações para a conclusão do processo.

Nesse caso, pondera-se que, além da possível polarização ou endurecimento do setor doméstico russo, um fator para explicar o atraso da adesão pode vir das percepções e das expectativas frustradas entre a Rússia e os EUA. Os EUA desejam uma Rússia mais democrática (além de obter vantagens econômicas, conquanto este não tenha sido o fator determinante, visto que a Rússia não é parceira econômica importante dos norte-americanos), enquanto a Rússia queria ser tratada como país de igual importância dos EUA, um país que tem um papel relevante no mundo, devido às suas capacidades militares, mesmo que seu sistema político seja semi-autoritário.

Para Trenin (2006), a Rússia está deixando o Ocidente (ou seja, tornando-se autoritária e menos afeita ao estado de direito). Os EUA, ao verem a Rússia se distanciando da democracia - e dos valores de mercado, haja vista o maior controle estatal na economia e as re-nacionalizações de empresas estratégicas - tomam atitude mais reticente em relação à Rússia, que culminam no atraso do processo de adesão à OMC também. A Rússia, na visão dos EUA, nunca será um parceiro confiável, enquanto não adotar mais contundentemente os valores ocidentais e se tornar mais democrática (Carnegie Endowment for Peace, 2006). E a Rússia, percebendo que seus interesses geopolíticos têm sido desconsiderados, toma atitude mais assertiva com relação ao Ocidente e busca negociar com ele em seus próprios termos.

Fica, assim, paulatinamente patente que, embora a acessão de países à OMC seja processo inerentemente trabalhoso, porque o país tem de conformar sua legislação com as regras do Organismo e porque as negociações bilaterais são difíceis, o caso da Rússia envolve questões além das meramente "técnicas". A não conclusão da entrada na OMC é conseqüência das conturbadas relações russo-americanas.

 

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1. Em 1990, a União Soviética recebeu status de observador na Rodada Uruguai, solicitado em 1986. Em 1992, a Rússia herdou formalmente da URSS o status de observador no GATT, que foi mantido até 1993, quando o país independente faz o pedido formal de ingresso. Com a criação da OMC, em 1994, o Grupo de Trabalho da Rússia foi transformado em Grupo de Trabalho da OMC da Rússia. Fonte: WTO; USTR.
2. No âmbito da OMC, os acordos plurilaterais são aqueles que têm como característica principal a adesão facultativa, ou seja, são válidos somente para seus signatários. São eles: o Acordo sobre Compras Governamentais, o Acordo sobre o Comércio de Aeronaves Civis e o Acordo sobre Produtos de Tecnologia da Informação.
3. A legislação adotada foi, principalmente: um código aduaneiro que simplificou o procedimento alfandegário; a Lei sobre Salvaguardas, Anti-dumping e Medidas Compensatórias; a Lei sobre Regulamentação Técnica; o Código Processual de Arbitragem; leis de proteção à propriedade intelectual; emendas à lei sobre regulação estatal das atividades de comércio exterior, entre outras leis de facilitação do comércio e investimentos. A documentação relativa à adesão da Rússia à OMC encontra-se na página oficial da OMC (http://www.wto.org/english/thewto_e/acc_e/a1_russie_e.htm). No entanto, a legislação russa relevante pode ser encontrada de forma simplificada na página do Ministério do Desenvolvimento Econômico Russo: (http://www.wto.ru/russia.asp?f=dela&t=11).
4. Por exemplo, a China, mesmo depois de ter se tornado membro da OMC, continuava a violar regras de propriedade intelectual; os EUA, com isso, endureceram as negociações de propriedade intelectual com a Rússia (embora a China tenha sido obrigada a fazer menos compromissos na área).Cf.: Náray, 2001; Rutland, 2007.