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Print ISBN 2236-7381

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Há um papel para a justiça internacional em processos de paz?*

 

 

Cláudia Alvarenga Marconi

 

 


RESUMO

O objetivo principal do presente paper é trazer à tona a reflexão téorica entre justiça e paz nas relações internacionais contemporâneas. No sentido de fazer essa reflexão, dividimos o paper em três partes principais. Na primeira delas, o Tribunal Penal Internacional (TPI) será explorado como sendo o arranjo institucional central no que diz respeito a uma justiça penal de tipo punitiva no plano internacional, levando em consideração a sua permanência, o seu mandato e sua jurisdição. A segunda parte do paper problematiza o fato de que dadas estas características do TPI, ele necessariamente será levado a atuar em situações de transição política. Tal atuação aponta, ao ver da presente pesquisa, para uma possível incompletude tanto de uma abordagem estadocêntrica/tradicional das Relações Internacionais quanto de uma perspectiva normativa de tipo cosmopolita para avaliar o real papel desempenhado por essa instituição em processos de paz. Finalmente, o paper se propõe, ainda que preliminarmente, a considerar a possibilidade de equilibrar as demandas por paz e justiça no contexto dos processos de paz, desenvolvendo uma análise crítica do desenho institucional do TPI em processos de paz relevantes.

Palavras-chave: graves violações de direitos humanos; justiça internacional; processos de paz; TPI; desenho institucional


 

 

Introdução

A emergência das normas internacionais de direitos humanos se deu efetivamente com o estabelecimento da Organização das Nações Unidas (ONU) e de sua carta constitutiva em 1945. Em seguida, tem-se a aprovação da Convenção para a Prevenção e Punição dos Crimes de Genocídio seguida da Declaração Universal de Direitos Humanos, nos dias 9 e 10 de dezembro de 1948 respectivamente:

Human Rights really emerged as a subject of international relations, though, in the United Nations (UN), created in 1945. The Covenant of the League of Nations, the predecessor of the UN, had not even mentioned human rights. In sharp contrast, the preamble of the UN Charter includes a determination 'to reaffirm faith in fundamental human rights' and article 1 lists 'encouraging respect for human rights and for fundamental freedom for all' as one of the organizations' principal purposes (DONNELLY, 2007, p.5).

Na década de sessenta e setenta do século XX, assistimos à emergência de iniciativas de monitoramento no que tange os direitos humanos. O sistema ONU deixava de se preocupar exclusivamente com o estabelecimento de padrões em direitos humanos e a adentrava a questão do monitoramento. Todavia, a questão do monitoramento estava diretamente vinculada à implementação das normas internacionais de direitos humanos na prática dos Estados e, segundo Donnely (2007, p.8), "The existence of international norms does not in itself give the UN, or anyone else the authority to implement them, or even to inquire into how states implement (or do not implement) them".

A ratificação dos Pactos de 1966 dos direitos civis e políticos e dos direitos econômicos, sociais e culturais, que entraram em vigor dez anos mais tarde, significava a anuência dos Estados em caminhar conforme os padrões internacionais de direitos humanos estabelecidos, mas "[...] they do not authorize international enforcement of theses standards" (DONNELLY, 2007, p.8).

Ainda que com dificuldade de avançar no sentido do "enforcement", o Sistema ONU de Direitos Humanos assiste na década de oitenta do século XX a um aumento da institucionalização. A realização de diversas convenções temáticas, tais como a da mulher, da tortura, do direito ao desenvolvimento e da criança é uma manifestação clara dessa institucionalização.

Na década de noventa do século XX ocorre a Conferência de Direitos Humanos de Viena (1993) e, a partir dela, a criação do Alto Comissariado da ONU para direitos humanos, demonstrando que o Sistema ONU de direitos humanos buscava expandir sua capacidade de monitorar as várias questões que passaram a ser entendidas pela lente dos direitos humanos.

Ainda na década de noventa, a resposta multilateral aos genocídios da ex-Iugoslávia e de Ruanda demonstrou que os Tribunais Militares de Tóquio e Nuremberg do pós II Guerra Mundial, passavam a ser um precedente e não mais uma exceção. Ademais, "The adoption of the Rome Statue in 1998 and the creation of the International Criminal Court in 2002 mark an even deeper normative transformation" (DONNELLY, 2007, p.14).

Para que a finalidade desse paper se cumpra, pretende-se compreender em que medida a "International Criminal Court", traduzida para "Tribunal Penal Internacional" (TPI), enquanto instituição central promotora da justiça e  grande sustentáculo do Regime Penal Internacional de Direitos Humanos (RPIDH), acaba dotando o regime de "garras", isto é, torna o regime capaz de exercer "enforcement" sobre os Estados e também sobre os indivíduos, independentemente da sua condição de nacional de um Estado A ou B.

No entanto, o papel desempenhado por essa instituição é reiteradas vezes questionado no sentido de não compreender a realidade local das distintas comunidades políticas nas quais graves violações de direitos humanos ocorreram e permanecem em processo, e, dessa forma, de acirrar ainda mais as hostilidades entre os distintos grupos étnicos, religiosos e políticos dessas sociedades.

Enquanto instituição desenhada para incidir sobre os indivíduos, e não sobre os Estados ou quaisquer outras comunidades políticas, o TPI permite que o regime internacional de direitos humanos migre de características estadocêntricas e de um desenho institucional compatível com uma ordem internacional mínima composta quase que exclusivamente por Estados para um regime de componentes cosmopolitas e com um desenho institucional inclusivo no sentido de incorporar os indivíduos a despeito do seu vínculo de pertencimento ao Estado e que faz exigências no sentido de avançar para além da ordem os valores que regem a sociedade internacional solidarista que se mundializa1.

É fato que os direitos humanos, definidos como os direitos que gozamos por sermos humanos, independente de qualquer status de cidadão, são muitas vezes entendidos como a linguagem das vítimas, conforme aponta Donnelly (2007, p. 22), pois normalmente esses direitos são necessários quando os indivíduos não contam com os seus Estados para tal.

Vale, no entanto, ressaltar que, além dos Estados se portarem como os grandes violadores dos direitos dos seus cidadãos, eles também continuam sendo os responsáveis pela aplicação desses direitos no plano doméstico.

A presente pesquisa, por seu turno, entende que o TPI assume para si a responsabilidade de traduzir a linguagem dos direitos humanos em uma mudança de práticas legais e políticas, apresentando mecanismos de enforcement2 sobre os próprios indivíduos na condição de cidadãos do mundo. Em outras palavras, a presença de um RIPDH com essa capacidade coloca em xeque a noção de que os direitos humanos são questão de jurisdição interna e que compete exclusivamente ao Estado: "Cosmopolitans see the state challenged both from below, by individuals and NGOs, and from above, by the truly global community" (DONNELLY, 2007, p.30).

Assim, o TPI pode ser assumido como uma expressão institucional do cosmopolitismo, sem, é claro, ter de restringir a discussão da prática dos direitos humanos somente a essa expressão e sem ter de abrir mão de seu componente normativo.Ao ver da presente pesquisa, na sua dimensão penal, o regime internacional de direitos humanos tem condições de enfrentar de algum modo essa debilidade de capacidade de adjudicação e de cumprimento obrigatório das regras internacionais relativas aos direitos humanos.

Faz-se importante frisar que quando falamos da dimensão penal do regime internacional de direitos humanos, estamos pensando no "enforcement" como uma capacidade coercitiva negativa, isto é, como um decreto de prisão, por exemplo, a um perpetrador de crimes contra a humanidade (STEIN, 2010, online).

E é justamente por ter essa capacidade de enforcement, ainda que relativamente limitada conforme argumentação posterior no presente texto, e por esse enforcement recair sobre líderes políticos que sofrem acusações por terem cometido graves crimes de direitos humanos, que o trade-off entre justiça e paz se instaura fundamentalmente:

The establishment of the International Criminal Court (ICC) has brought the possible trade-off between justice and peace more directly to the forefront because of the increased possibility that political leaders may be indicted for war crimes or crimes against humanity, thereby motivating them to resist a peace agreement unless and until it offers them amnesty from future prosecution (JOHANSEN, 2010, p. 189).

Ademais, sustenta-se que muitas vezes as lideranças políticas que cometeram as atrocidades mais contundentes durante os períodos de conflitos e guerras civis, parte do próprio governo e de grupos armados revolucionários, e que serão acusadas perante o TPI, são também aquelas que terão de negociar acordos de cessar-fogo e de paz, bem como cumpri-los devidamente: "In discussion about how to end armed conflicts and nurture peacebuilding, some observers argue that pursuing justice by trying to bring political leaders accused of horrible crimes to trial ofeten interferes with achieving a cease-fire agreement and sustaing peace thereafter" (JOHANSEN, 2010, p.189).

O presente paper compartilha da noção de "strategic peacebuilding" adotada por Johansen (2010, p.191), a fim de pensar o papel da justiça, e do próprio TPI, na retomada da integração de uma sociedade devastada por um conflito nas suas distintas dimensões: política, econômica, legal ("rule-of-law"):

Strategic peacebuilding includes all dimensions of social integration from the local to the global. At their best, international judicial proceedings contribute to peracebuilding at every level, from the smallest village that suffered an atrocity to the system of global order. Peacebuilding as processes of social integration includes efforts 'to establish effective governance institutions, strenghten the rule of law, encourage sustainable development, and built trust between citizens and the state, as well as among citizens themselves.

Assim, faz-se necessário compreender os processos de peacebuilding como estabelecendo camadas de governança que se estendem desde o âmbito local até o âmbito global, não sendo, portanto, possível pensá-los como um dado exógeno da realidade internacional do pós Guerra-Fria, mas sim como um processo endogenamente construído a partir da interação de distintos stakeholders3 a fim de se produzir estabilidade social. Segundo Hartzell e Hoddie (2010, pp.1-2), "[...] successful civil war resolution depends upon actors having a personal stake in peace".

Desse modo, claramente se manifesta a dificuldade de terceiras partes supostamente neutras conseguirem envolver-se em processos de paz em sociedades que passem ou tenham passado por situações de conflito, dirimindo a atuação de "spoilers", atores que buscam reiniciar as hostilidades quando vislumbram tal possibilidade (HARTZELL; HODDIE, 2010, p.3).

 

1. Justiça de transição: o que é desejável?

A denominada "justiça de transição"4 mostra-se por completo atrelada à prática e, sobretudo, à desobediência das práticas de direitos humanos no plano internacional. Segundo Quinn (2009, p.355)

These issues are intrinsically linked with the study of human rights for several reasons. First, the mechanisms of transitional justice deal explicitly eith the gross human rights violations that have been committed. Second, transitional justice itself is an importante tool for endind the cycle of impunity , and the kind of immunity from prosecution that is prevalente in states where the history of human rights abuses is in the not-so-distant past; justice itself is deeplu related to human rights. Third, the mechanisms being utilized in the pursuit of transitional justice are increasingly established, sanctioned, or funded by parts of the United Nations - the main international organ concerned with the protection of human rights.

Conforme apresentado na introdução, o desenvolvimento de um regime de direitos humanos dotado de capacidade de monitoramento e enforcementmais evidentes tem estrita relação direta com atos criminosos violentos cometidos em contextos de guerras civis.

Nos anos 90, "[...] there were many situations of violence and conflict underway or just ending. [...]. The genocides of Rwanda and Bosnia were taking place. Bloody civil conflicts continued in countries such as Somalia, Sierra Leone, Liberia, Haiti and Guatemala. Yet the perpetrators of even the most egregious human rights violations went free"( QUINN, 2009, p.355).

É nesse sentido que questões como quem deve ser punido por essas violações, como e por quais instituições, qual tratamento deve ser dado às vítimas começam a incidir na agenda de pesquisa de estudiosos tanto do Direito quanto das Relações Internacionais e passam a encompassar o que se entende por "justiça de transição":

Though millions of civilian have lost their lives as a consequence of violent conflicts throughout human history, it is only recently that the question of how societies recovering from conflict should address mass atrocities committed during the conflict has entered the agendas of researchers as well as politicians" (LYCK, 2009, p.21).

Diante dessas atrocidades, há que se pensar em formas de se aplicar a justiça. São três as formas tradicionais de se aplicar uma justiça de transição e, de assim, compreender qual é o melhor tratamento dirigido tanto aos perpetradores de crimes quanto àqueles que sofrem seus abusos: "retributive", "restorative" e "reparative" (MINOW apud QUINN, 2009, p.356).

A que para efeitos da presente reflexão interessa é a justiça de tipo "retributive", traduzida aqui por punitiva. Esse tipo de abordagem para pensar sobre a justiça de transição tem como objetivo central corrigir comportamentos moralmente inaceitáveis do ponto de vista dos direitos humanos, submetendo o perpetrador dos mesmos a uma investigação, indiciamento e punição. Os julgamentos e instauração de tribunais são os procedimentos mais usuais no que tange a esse tipo de justiça. Quando nacionalmente esses processos não se verificam, seja por incapacidade das instituições jurídicas nacionais, seja por pouca vontade das autoridades locais, os mesmos podem se realizar internacionalmente.

Conforme foi dito, o Tribunal Penal Internacional (TPI) é aqui explorado como sendo o arranjo institucional central no que diz respeito a uma justiça de tipo retributiva, também denominada de punitiva, no plano internacional:

[...] there is less agreement on what kind of transitional justice policy states recovering from mass atrocities should implement. The debate has particularly focused on whether perpetrators should be put on trial and thereby exposed to retributive justice or whether they should participate in a restorative justice process in the form of a truth and reconciliation commission (LYCK, 2009, p.22).

Todavia, essa abordagem é acusada de não levar em consideração a vítima, isto é, aquele ou a família daquele que sofreu o dano e todas as consequências psicológicas que o mesmo acarreta. Tendo justamente o dever de inserir as vítimas no processo de promoção e implementação da justiça, o TPI traz em seu estatuto as vítimas não só num papel passivo, de testemunha dos fatos: "[...] victims [...] are also afforded the right to participate in the proceedings and to seek reparations from the perpetrator"(FRIMAN, 2009, p. 485).

O TPI prevê a participação das vítimas como um direito nos processos de investigação e julgamento, conforme artigo 68 (3) do Estatuto de Roma5. Nesse mesmo ínterim, "Many have hailed the victims-related provisions as a substantial advance when compared with the law and practice of the ICC's predecessor. The scheme has been described as representing a move away from the exercise of purely retributive justice (FRIMAN, 2009, p.486).

A afirmação acima permite-nos pensar que as abordagens para a justiça internacional nem sempre podem ser olhadas de forma segregada. Ordinariamente, a justiça de tipo "restorative" ou justiça reintrodutóriaé assumida como diametralmente oposta à justiça punitiva, pois a primeira não só trata a vítima como prevalente, como indica a necessidade de reintrodução do infrator das normas internacionais na sociedade, envolvendo toda a comunidade nesse processo (QUINN, 2009, p.359).

Vale ainda enfatizar a terceira abordagem para a justiça, a denominada "reparative justice" ou "justiça de reparação". Sua característica central é a de reparar o dano causado a vítima tanto por meio do pedido de desculpas do infrator quanto por meio do pagamento de indenizações (QUINN, 2009, p.356).

 

2. O TPI frente às situações de conflito: em busca do marco teórico

Uma das maiores críticas sofridas pelos tribunais tanto militares quanto os tribunais ad hocpara a Ex-Iugoslávia e para Ruanda que precederam e compuseram a trajetória de criação do próprio TPI foi a do lugar privilegiado ocupado pelas nações que sustentavam o status quo internacional no que tangia à decisão sobre se se deveria ou não iniciar um processo de julgamentos internacionais no contexto tanto do pós II Guerra Mundial -no caso pelas nações vitoriosas da guerra -, quanto no pós Guerra Fria, aí já pela decisão das nações com poder de veto dentro do Conselho de Segurança.

Sobre os primeiros tribunais mencionados, tem-se que

The most discouraging feature of the Nuremberg and Tokyo Trilas was undoubtedly that they only prosecute individuals from the defeated states, which prompted grave questions as to wether they represented international prosecution of violations of international humane law or mereley victors' justice (LYCK, 2009, p.26).

O que, ao aproximar a justiça internacional dos processos de paz, é possível perceber é justamente o fato dessa justiça de tipo punitiva que nos interessa recair sobremaneira, para não dizer exclusivamente, sobre indivíduos cuja cidadania está vinculada à África. Independentemente do modo pelo qual chegaram ao TPI, isto é, se por denúncia de um Estado-parte do TPI, pelas mãos do próprio promotor, ou ainda pelo Conselho de Segurança (CS), o fato é que: "All four situations under investigation by the ICC to date are in Africa, being either based on state party referrals or on the SC referral (Darfur), the latter of which can hardly be attributed to the OTP's [The Office of the Prosecutor] exercise of discretion" (OETTE, 2010, p.358). São as seguintes as situações: República Democrática do Congo, Uganda, República Centro Africana e Darfur, no Sudão.

Tal situação levanta dúvidas sobre o quanto as sérias violações de direitos humanos são cometidas particularmente nos Estados Africanos. Em outras palavras, "These developments have contributed to perceptions that Africa has been singled out, raising the spectre of the pursuit of international prosecutions as a form of Western neo-colonialism" (OETTE, 2010, p.359).

Ademais, o caráter punitivo do tipo de justiça praticada pelo TPI, assim como a individualização dos julgamentos são controvérsias levantadas quando se trata de pensar crimes internacionais ocorrendo no contexto africano (OETTE, 2010, p.359).

2.1. O realismo e o cosmopolitismo como marcos teóricos deficientes

Entende-se por realismo a abordagem teórica das relações internacionais que percebe o Estado como unitário, racional e maximizador de seus interesses próprios. Segundo essa abordagem, o equilíbrio de poder é o que de fato garante a manutenção da ordem internacional de Estados, instaurando muitas vezes um modus vivendi inalterável.

De uma maneira geral, quando a moralidade recebe algum tratamento no plano internacional a partir do realismo, isso diz respeito exclusivamente ao Estado, que se apresenta como a unidade política relevante do ponto de vista empírico e normativo para a maneira clássica de se conceber as relações internacionais.

Essa moralidade estadocêntrica pode ser associada a uma perspectiva comunitarista das Relações Internacionais: "In the eight decades since the academic discipline of IR was invented, [...] the natural limit to politically relevant ethics has been seen to be a state's boundary" (BOOTH et al, 2000, p.1), enquanto a moralidade que superaria as fronteiras do Estado está mais próxima de uma visão cosmopolita das RI.

Uma concepção ética cosmopolita, ao contrário, é uma perspectiva que confere uma medida de consideração moral não somente à vida e ao bem-estar de nossos concidadãos, mas também à vida e ao bem-estar de outros (estrangeiros), que estão distantes de nós. Ela tem sido marginalizada em detrimento das chamadas "in-group perspectives", que mantêm os deveres e obrigações dentro das fronteiras (BOOTH et al, 2000, p.1).

Para os cosmopolitas, a fonte última de preocupação moral é a vida e o bem-estar de indivíduos

In the process of reaching out to the wider political-theoretical universe, IR scholars have entered the long-standing debate between cosmopolitanism and communitarianism that is closely analogous to the debate in PT between liberals and communitarians. This debate, Brown argues, 'relates directly to the most central question of any normative international relations theory, namely the moral value to be credited to pluralistic political collectivities as against humanity as a whole or the claims of individual human beings (SCHMIDT, 2002, p.124).

Há, segundo Dobson (2006), todavia, um problema de motivação no cosmopolitismo, pois o reconhecimento de que somos todos parte de uma humanidade comum não parece suficiente para mover os nacionais de um país a agirem tendo sempre como base o bem comum da humanidade. Um possível diagnóstico para tal fato pode ser o de que "Thin conceptions of cosmopolitan citizenship revolve around compassion for the vulnerable but leave asymmetries of power and wealth intact" (DOBSON, 2006, p.169).

O cosmopolitismo não é, portanto, monolítico. Vale mencionar que a distinção mais recorrente é entre os cosmopolitas morais6, que vêem princípios morais como universalmente válidos, mas não demandam nenhuma forma cosmopolita de organização política, e os cosmopolitas políticos ou institucionais, que também são cosmopolitas morais, mas que enxergam a mudança do arranjo político-institucional como uma necessidade para a aplicação adequada desses valores morais no plano internacional.

Diante do já exposto, é possível que a partir de ambas as abordagens teóricas analisemos o TPI. Deuma perspectiva realista,a vigência do TPI, bem como a possibilidade de o TPI exercer jurisdição sobre os nacionais de um determinado Estado, dependem da ratificação do Estado, enquanto de uma perspectiva cosmopolita, o tribunal estabelece uma forma de accountability individual para vários crimes que chocam a consciência humana, isto é, uma forma de responsabilizar individualmente os perpetradores desses crimes: crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade.

Entretanto, nenhuma das duas abordagens parece conseguir fornecer instrumentos analíticos que aproximem o TPI da realidade local de situações ou de conflito ainda vigente ou de pós-conflito, já que o realismo compreende o Estado como unidade monolítica de poder e o cosmopolitismo enxerga a moralidade do indivíduo como passível de universalização.Tendo isso sido posto, passaremos a analisar de forma crítica o desenho institucional do TPI, apontando para formas de se ultrapassar e transpor o trade-off entre justiça e paz nas relações internacionais.

 

3. Ultrapassando o trade-off entre justiça e paz? Pensando criticamente o desenho institucional do TPI

Finalmente, o paper se propõe a considerar a possibilidade de equilibrar as demandas por paz e justiça no contexto dos processos de paz, desenvolvendo uma análise crítica do desenho institucional do TPI frente aos processos de paz que se delineiam.

O RIPDH de uma forma geral está centrado em graves violações de direitos humanos, associadas a jus cogens7 e jurisdição universal, bem como focado na accountability individual e em fóruns cujas autoridades e mecanismos de enforcement estão externos ao Estado violador.

O foco nas violações graves e inaceitáveis de direitos humanos tem, segundo Donoho (2006, p.6) dupla importância. Primeiramente, porque concentram um consenso considerável em torno de sua gravidade e necessidade de punição:

[...] it recognizes important distinctions among rights in terms of enforceability that sets the groundwork for desperately needed improvements in the credibility and institutional legitimacy of international decision-making. As a practical matter, governments are more likely to create international institutions with meaningful enforcement powers if such powers are jurisdictionally constrained to enforce rights for which true international consensus exist (DONOHO, 2006, p.6).

Uma segunda importância tem estreita relação com a primeira, pois uma vez que se torna possível diferenciar os direitos, aqueles que são mais controversos podem ser resolvidos pelas instituições domésticas, reduzindo a interferência externa em matérias mais contestáveis.

Tradicionalmente, o enforcement de direitos humanos internacionais pode seguir dois caminhos. Um primeiro atribui autoridade primeira às instituições domésticas no que diz respeito à implementação e ao enforcement desses direitos. O segundo caminho traz à tona a participação das instituições internacionais, supervisionando e monitorando o cumprimento por parte dos Estados dos padrões de comportamento estabelecidos internacionalmente.

De acordo com Donoho (2006, p.17), os tratados multilaterais de direitos humanos ilustram o primeiro modelo. Estando sob a égide das Nações Unidas, o regime internacional de direitos humanos entendido em seu sentido mais clássico desenvolve um trabalho muito mais voltado para a promoção do que para o enforcement, deixando esta função para as autoridades domésticas8.

Todavia, o segundo caminho, o do RIPDH, tem apresentado desenvolvimentos institucionais importantes, como o estabelecimento do Tribunal Penal Internacional. Ao ver da presente pesquisa, o TPIaumenta as responsabilidades e limita os direitos do Estado, forçando-os a submeter suas ações a constrangimentos morais. Aumenta as responsabilidades no sentido de que os Estados, caso não punam as graves violações de direitos humanos cometidas por seus nacionais, correm o risco de vê-los sendo julgados internacionalmente, e limita os direitos do Estado porque cria um nível do direito para além do direito internacional que se porta como um cerceamento da autonomia do Estado.

Os Estados continuam sendo os agentes primeiros responsáveis por processar aqueles que infringem princípios de justiça internacional básicos. Porém, o estatuto vai além da concepção pluralista de sociedade internacional, isto é, fortemente pautada no valor da ordem, e passando para uma concepção mais solidarista, isto é, pautada no valor da justiça,no momento em que não deixa o julgamento final a critério do Estado9.

O TPI pode, por exemplo, ao identificar atraso injustificado nos procedimentos de um país ou condução indevida de um processo, iniciar uma investigação por conta do promotor em comando, de uma denúncia do Conselho de Segurança ou de um Estado-Parte do Estatuto de Roma.

No que diz respeito ao alcance da jurisdição do TPI, também é importante salientar que ele tem jurisdição sob uma terceira parte, o que é chamado de third-party jurisdiction, que quer dizer que se um nacional de um Estado não parte do estatuto cometer um dos crimes previstos no Estatuto de Roma no território de um Estado parte, esse nacional pode ser investigado e, no limite, ser levado a julgamento.

Por esse motivo, mesmo que os Estados Unidos, Rússia e China não tenham ratificado o Estatuto de Roma, podem ter seus nacionais levados a julgamento. Por esse motivo, ter a prerrogativa de impedir que seus nacionais sejam levadosa julgamento por meio de poder de veto do CS da ONU pode se transformar em um elemento político. Essa é exatamente a crítica propagada pelo governo Sudanês - que também não ratificou o Estatuto de Roma do TPI, mas que se deparou com a possibilidade de ter os seus nacionais levados ao TPI.

Existe, todavia, uma leitura diferenciada do fato de o caso "Darfur" ter sido iniciado pelo Conselho de Segurança da ONU:

The SC's response to the Darfur Conflict was a test case both for its commitment to take effective action to combat international crimes and its ability to protect the civilian population from such crimes. The Darfur referral was part of a package of measures that combined the threat of criminal prosecutions with targeted sanctions and peace-keeping efforts (OETTE, 2010, p.358).

Ainda assim, tem-se como argumentação para o presente caso o fato de alguns países serem levados a aceitar o "international enforcement" enquanto outros conseguem driblá-lo:

The Darfur referral set a precedent, which, if not followed in other instances, exposes individual states and the Council as a whole to charges of selectivity. It thus serves to reinforce views about the essentially political nature of international criminal justice (OETTE, 2010, p.359).

Tal seletividade acaba por dificultar os processos de peacebuilding que tradicionalmente estão em curso em situações de transição política no contexto do continente africano: "Because politically selective, inequitable enforcement can never contribute to domestic or global peacebuilding as effectively as would equitable legal obligations for enforcement" (JOHANSEN, 2010, pp. 209 - 211).

Na condição de grande potência, os Estados Unidos, por exemplo, a fim de limitarem a jurisdição da Corte aos nacionais dos Estados-Parte do Estatuto de Roma e não a terceiras partes, rejeitaram o argumento de que os crimes cobertos pelo TPI já são considerados crimes de jurisdição universal pelo direito internacional costumeiro. Apoiando-se no artigo 34 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, os norte-americanos sustentam que um tratado não pode vincular um Estado não-parte.

Ao final das negociações acerca do TPI, acordou-se que o TPI teria jurisdição automática sobre os casos em que ou o Estado cujo território em que o suposto crime tenha acontecido ou o Estado cuja nacionalidade do acusado fosse parte do estatuto

The Court will have jurisdiction over offences committed by nationals of member states, or where offences by non-nationals are committed on the territory of member states; in the absence of such a territorial hook, the Security Council can still refer specific cases to the Court even if non-member states are involved (BROWN, 2002, p.219)

Há ainda que se lembrar do poder do Conselho de Segurança de não apenas recomendar a investigação de um caso mas também de interrompê-la caso as investigações não colaborem para a realização da paz e segurança internacionais, missões primeiras do CS10. Mesmo tendo esse poder sido considerado elevado por parte do CS, Oette (2010, p.353) lembra-nos que:

In exercising its broad discretion the Security Council may decide that in the given circumstances judicial proceedings to end impunity may, at least in the short term, hinder a peaceful resolution or peacekeeping efforts. However, justice is one of the goals referred to in the Preamble of the UN Charter and the promotion and encouragement of respect for human rights is explicitly stipulated as a purpose of the UN. Accountability for gross violations, including by means of criminal prosecutions if warranted by the seriousness of the crimes concerned, is an integral part of human rights promotion and justice so understood must be considered to fall within the scope of Article 1 (3) of the UN Charter".

Em caráter mais conclusivo, tem-se, ao ver da presente pesquisa que o fato de o TPI ser equipado de instrumentos punitivos que acabam constrangendo o comportamento dos Estados e também dos indivíduos, ainda parece haver a necessidade de seu mandato ser acompanhado, por exemplo, de um mandato paralelo das instituições regionais, já que parece ser sim necessário colocar a justiça e a paz em uma perspectiva de diálogo e, para tanto, parecer ser preciso um arranjo institucional menos descolado de questões sócio-culturais tão fundamentais: identidade, valores, crenças e outras. Como uma das críticas dirigidas aos tribunais penais internacionais e retratadas no texto de Oette (2010, p.360):

[...] 'international criminal tribunals based on western notions of justice' are inadequate if not altogether counterproductive because they 'can do very little to re-establish social equilibrium and arrest the advancing decrepitude threatening to engulf Africa'

Outro aspecto que merece ser destacado e que talvez represente uma forma de dirimir as críticas recebidas pelo TPI é o de que ele não é dotado de instrumentos institucionais capazes de lidar com situações de conflito. A Corte "[...] has expertise in achieving justice, but it is not equipped to make judgements about when or how to negotiate peace" (JOHANSEN, 2010, p.215).

Assim, uma saída possível para que se supere em definitivo o trade-off que nos interessa seguir investigando é ativando as responsabilidades da organização regional africana de maior expressão - a União Africana - em relação não só aos processos de paz em si, nos quais a organização se envolve, mas também aos processos de justiça internacional de tipo retributiva: "[...] the lack of condemnation of serious violations of human rights on the continent and continued escalation of conflicts and instability calls into question the real commitment of African leaders" (INTERNATIONAL REFUGEE RIGHTS INITIATIVE, 2008, p. 62).

Como agenda de pesquisa a ser levada adiante,mostra-se importante avaliar como o desenho institucional do TPI poderia se coadunar, por exemplo, com o desenho institucional da União Africana, A construção de uma jurisdição regional africana com capacidade tanto de monitoramento quanto de enforcement adequada às questões locais que parecem mais prementes quando de situações de conflito nessas sociedades - proteção às vítimas, grupos em que a troca de experiências sobre a justiça possa ser feita, reparação às vítimas e assistência à reconstrução pós-conflito - parece ser uma maneira de aproximar as demandas globais por justiça retributiva das demandas regionais, nacionais e, finalmente, locais por paz.

 

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* O presente artigo foi desenvolvido no âmbito do projeto intitulado "Novas Questões de Segurança Internacional: a Construção da Paz em Situações de Pós-Conflito", sob a coordenação do Prof. Dr. Reginaldo Mattar Nasser e financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
1. Nesse momento, faz-se importante distinguir entre dois tipos de sociedade internacional, amplamente exploradas em meu trabalho de mestrado, concluído em 2009 (Disponível em:  http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-03092009-160440/pt-br.php). Segundo a Escola Inglesa, abordagem das Relações Internacionais por mim analisada em sua vertente normativa, na parte mínima do espectro da sociedade internacional, há um arranjo institucional restrito à manutenção da ordem internacional, muito próximo de um arranjo sistêmico composto basicamente por Estados. Esse tipo de sociedade internacional é denominado de pluralista. A outra concepção de sociedade internacional que um dos maiores expoentes da Escola Inglesa, Hedley Bull trata no texto "The Grotian Conception of International Society", é a solidarista, cuja preocupação central está nos direitos humanos enquanto componente indissociável da política internacional contemporânea.  Essa concepção envolve uma noção de sociedade internacional baseada nos interesses e valores dos que compõem esse arranjo, direta ou indiretamente, e não na independência dos Estados, chegando, ao ver da presente pesquisa, a fazer fronteira com a concepção de sociedade mundial kantiana. Essa sociedade deve ir além de prover uma rede institucional para os objetivos rasos do ponto de vista normativo de possibilidade da coexistência e da ética da diferença. Essa concepção de solidarista da sociedade internacional faz fronteira com a noção de uma sociedade mundial. Esta sim, adjetivada de kantiana, coloca definitivamente em xeque o estadocentrismo e inaugura uma concepção cosmopolita de relações internacionais, isto é, uma concepção que toma a centralidade do indivíduo como unidade de valor moral supremo.
2. O enforcement internacional envolve decisões vinculantes e formas mais duras de monitoramento.
3. A fim de compreender o que se assume no texto por stakeholders, faz-se importante recorrer à seguinte passagem sobre a resolução de guerras civis, contida no texto de Hartzell e Hardie (2010, p.2): "Success also depends on fostering a sense within the postwar population that peace will serve the individual interests of citizens. Aligning the self-interest of individuals with the society-wide goal of ending war enhances the potential that citizens will seek to maintain and defend the emerging stability rather than acting as challengers to the incipiente peace. We conceptualize this as a process of creating stakeholders in stability".
4. Tradução para o que é inglês chamado de "transitional justice".
5. O Estatuto de Roma encontra-se disponível pelo website: http://untreaty.un.org/cod/icc/statute/romefra.htm
6. Linklater, tomado como um teórico crítico de RI, traz em sua obra "The transformation of Political Community" a noção de "thin cosmopolitanism", posição normativa que em muito se aproxima de um cosmopolitismo moral e que sustenta que as comunidades políticas existentes devem considerar os deveres para com o restante da humanidade no momento de tomar decisões.
7. Segundo a Convenção de Viena do Direito dos Tratados, jus cogens é "uma norma aceita e reconhecida pela Comunidade de Estados Internacionais em sua totalidade, como uma norma da qual não é permitida nenhuma derrogação e que só poderá ser modificada por uma subseqüente norma de lei internacional que tem o mesmo caráter legal". Disponível em http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm.
8. Cada um dos tratados multilaterais de direitos humanos cria um comitê de experts cuja função é fazer a prospecção de fatos, revisar os relatórios dos Estados e emitir comentários de ordem mais geral a respeito.
9. Cf. RALPH, Jason, 2003 e 2005.
10. Cf. Artigo 16 do Estatuto de Roma:"No investigation or prosecution may be commenced or proceeded with under this Statute for a period of 12 months after the Security Council, in a resolution adopted under Chapter VII of the Charter of the United Nations, has requested the Court to that effect; that request may be renewed by the Council under the same conditions. Disponível em: http://untreaty.un.org/cod/icc/statute/romefra.htm.