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Print ISBN 2236-7381

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

A Governança da Segurança dos EUA pós 11 de setembro: o papel da segurança privada na promoção da segurança nacional

 

 

Cleber da Silva Lopes

Mestre em ciência política pela UNICAMP e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da USP (PPG-USP), onde pesquisa o tema segurança privada

 

 


RESUMO

A governança da segurança dos EUA no período pós 11 de setembro tem sido marcada pela participação do setor de segurança privada. Externamente, os EUA têm feito uso de empresas militares privadas para dar apoio ou proteger seus recursos materiais e humanos em zonas de conflito. Internamente, as ameaças de ataques terroristas contra a infra-estrutura dos EUA alçaram o setor de segurança privada à condição de parceiro chave na promoção da segurança nacional. Uma literatura crescente tem se debruçado sobre o uso de empresas militares privadas em conflitos internacionais, mas o papel da segurança privada na promoção da segurança nacional dos EUA tem sido largamente negligenciado. O objetivo desse trabalho é discutir alguns dos desafios e implicações que a segurança privada coloca para a governança da segurança nacional dos EUA no período pós 11 de setembro. De que forma a segurança privada desafia o modo como tradicionalmente pensamos assuntos de segurança nacional? Quais dificuldades a segurança privada coloca para a governança da segurança interna dos EUA? O que o governo dos EUA está fazendo para superar essas dificuldades? O trabalho analisa de forma exploratória essas questões.

Palavras-Chave: Estados Unidos; Governança; Segurança Nacional


 

 

O termo governança vem sendo usado pela literatura acadêmica para dar conta de uma grande variedade de fenômenos que vão desde práticas de governar o sistema internacional na ausência de um governo global até o reconhecimento de que o Estado não é o único ator que exerce poder nas sociedades contemporâneas (Picciotto, 2006; Burris et. al., 2008). Na área de segurança, a noção de governança é cada vez mais usada para se referir às ações de uma pluralidade de atores estatais e não estatais empenhados em oferecer garantias de proteção a indivíduos e/ou instituições (Wood e Dupont, 2006).

A governança da segurança dos EUA no período pós 11 de setembro tem sido marcada pela participação de empresas de segurança privada. Externamente, os EUA têm feito uso de empresas militares privadas para dar apoio ou proteger seus recursos materiais e humanos em zonas de conflito, especialmente no Iraque e no Afeganistão. Internamente, as ameaças de ataques terroristas contra a infra-estrutura dos EUA alçaram o setor de segurança privada à condição de parceiro chave na promoção da segurança nacional.

Uma literatura crescente tem se debruçado sobre o uso de empresas militares privadas em conflitos internacionais, mas o papel da segurança privada na promoção da segurança nacional dos EUA tem sido largamente negligenciado. O objetivo desse trabalho é discutir alguns dos desafios e implicações que a segurança privada coloca para a governança da segurança nacional dos EUA no período pós 11 de setembro. De que forma a segurança privada desafia o modo como tradicionalmente pensamos assuntos de segurança nacional? Quais dificuldades a segurança privada coloca para a governança da segurança interna dos EUA? O que o governo dos EUA está fazendo para superar essas dificuldades? O trabalho procura analisar essas questões.

O texto está organizado em duas partes, seguidas de breves considerações finais. Na primeira procuro mostrar como a segurança privada se tornou uma parceira chave na promoção da segurança interna dos EUA. Na segunda parte discuto algumas das implicações e dos desafios postos pelo envolvimento da segurança privada em temas de segurança nacional. Nas considerações finais sumarizo os argumentos do trabalho e faço alguns breves comentários gerais sobre o futuro da governança da segurança interna dos EUA.

 

1.  A Segurança Privada nos EUA: de tropa de choque privada à parceira na promoção da segurança nacional

1.1 O cenário anterior a 11 de setembro

A segurança privada tem sido definida como um setor que vende equipamentos e serviços para proteger informações, pessoas e propriedades contra ocorrências indesejadas que possam acarretar perdas. O segmento que vende serviços de proteção normalmente divide-se entre aquele formado por organizações que constituem e mantêm corpos próprios de segurança (private security in-house ou segurança privada orgânica) e aquele formado por empresas especializadas na prestação de serviços de segurança para terceiros (contract private security ou segurança privada contratada) (Shearing e Stenning, 1981).

O setor de segurança privada dos EUA surgiu no final do século XIX e começo do século XX sob o estigma de força mercenária. Segundo Manning (2006, p.110-111), o aparecimento da segurança privada está relacionado a três tendências: o crescimento dos sindicatos e da sindicalização, que levou a grandes greves que estimularam o uso de agentes provocadores e guardas privados como forças dissuasórias de movimentos de reivindicação; a expansão da fronteira em direção ao oeste e a necessidade de proteger o dinheiro, o ouro e outros valores que eram transportados por longas distâncias; e a incapacidade da polícia pública para prevenir e investigar crimes.

O uso da segurança privada como bastião de defesa dos capitalistas gerou na sociedade americana a imagem de uma polícia privada, uma tropa de choque formada por mercenários e com as mãos manchadas de sangue. Como notou Shearing (2003, p. 431-36), essa imagem expressou e consolidou a consciência política de um Estado centralizado na qual o policiamento deveria ser um monopólio público e a segurança privada admitida apenas como expressão do direito liberal de autoproteção. Segundo Shearing, essa política de reconhecer o policiamento como legítimo em sua manifestação pública e como perigoso em sua expressão privada foi tão bem sucedida que em meados do século XX a segurança privada era vista como algo anacrônico e que havia declinado em virtude da ascensão da "nova polícia".

Essa situação mudou na segunda metade do século XX. As estatísticas dão conta que a partir dos anos 60 a segurança privada cresceu de forma exponencial nos EUA, configurando o que Shearing e Stenning (1981) chamaram de "revolução silenciosa" no sistema de controle social1. O setor de segurança privada que opera por contrato cresceu a uma taxa anual de 7,4% na década de 60. Por volta de 1975 a relação entre polícia pública e segurança privada (orgânica e contratada) nos EUA era de 0,9:1; em meados da década de 80 essa proporção já era de 1:2, tendo aumentado para algo próximo a 1:3 na década de 90. Esse crescimento foi acompanhado de uma mudança na visão negativa da segurança privada. Como mostrou Shearing (2003, p. 436-449), essa mudança foi promovida por dois influentes estudos comissionados pelo governo americano nas décadas de 70 e 80, um realizado pela RAND Corporation e assinado por Kakalik e Wildhorn (1972), e outro realizado pela Hallcrest Corporation e assinado por Cunningham e Taylor (1985).

O estudo da RAND Corporation articulou a idéia de que a segurança privada não era uma tropa de choque privada, mas uma indústria como outra qualquer do setor de serviços. Tratando a segurança como uma commodity, o relatório da RAND transformou o tema da segurança de uma questão de política e soberania, a ser respondida em termos absolutos, numa questão de economia e eficiência, a ser abordada em termos de equilíbrio, proporção e grau. Essa mudança dos termos do debate foi completada com a idéia de que a segurança privada era um "parceiro júnior" das forças policiais, pois desempenhava tarefas simples de autodefesa (vigiar espaços, relatar crimes, controlar acessos e prevenir perdas) que a polícia não tinha nem a vocação e nem os recursos para realizar. Essa noção de parceira foi aprofundada uma década mais tarde no relatório da Hallcrest Corporation, onde se argumentou que a segurança privada não era um simples meio de autodefesa, mas uma indústria relacionada ao crime e ao medo do crime que estava assumindo as mesmas funções da polícia e ajudando ativamente no combate à criminalidade. Com essa interpretação, a segurança privada deixou de ser um parceiro júnior para se tornar um parceiro em pé de igualdade da polícia.

Esses dois relatórios deram vida a uma concepção laissez-faire na área de segurança, incutindo no governo americano a idéia de que a segurança privada era uma indústria vigorosa, em franca expansão e com um "grande papel protetor na vida de nação" (Cunningham e Taylor, 1985, p. 163). Essa percepção orientou um extenso programa de reformas visando engajar o setor de segurança privada na luta contra o crime, especialmente através de parcerias com a polícia. Paralelamente, essa concepção também orientou um programa de terceirização junto às forças armadas e agências do Departamento de Defesa, que levou ao envolvimento de empresas militares privadas em atividades que até o final dos anos 80 eram desempenhadas com exclusividade por agências estatais.

1.2 O cenário pós 11 de setembro

Quando os atentados de 11 de setembro ocorreram, a segurança privada já era responsável por uma parte importante do suprimento de proteção disponível no interior dos EUA, incluindo a proteção de setores de infra-estrutura considerados alvos potenciais de ataques terroristas. A segurança privada era (e continua sendo) largamente empregada em grandes eventos de massa, sistemas de transportes, centrais de produção/distribuição de energia, redes de telecomunicações, estações de tratamento de água e muitos outros setores de infra-estrutura. Dados do Bureau of Labor Statistics (BLS) para o ano de 2003 mostram que havia cerca de 1 milhão de guardas trabalhando nos Estados Unidos, contra 654 mil policiais2. A tabela 1 mostra o número de guardas de segurança terceirizados (contract guards) e orgânicos (staff guards) e as respectivas áreas onde atuavam.

Os guardas de segurança terceirizados representavam aproximadamente 52% de todos os guardas ocupados naquele ano. Dados de outras fontes indicam que esse setor teve uma receita de aproximadamente US$ 11 bilhões em 2003, montante que representou cerca 30% da receita total da indústria de segurança dos EUA. Esse setor é bastante heterogêneo. Há desde milhares de pequenas empresas locais e regionais que prestam serviços simples de vigilância e controle de acesso, até grandes empresas nacionais e estrangeiros com capacidade de prestar serviços mais especializados para plantas nucleares, grandes eventos, etc. A tabela 2 resume as estatísticas de 2003 sobre as maiores empresas de segurança privada que operam nos EUA. Como mostra a tabela, as quatro maiores empresas foram responsáveis ​​por 50% da receita da indústria e 35% dos funcionários ocupados no ano de 2003. As duas maiores empresas são de propriedade estrangeira.

Não há dados disponíveis sobre quem contrata os serviços de segurança ofertados por essas empresas. Mas, segundo Parfomak (2004a), não há dúvidas de que muitos guardas prestam serviços em organizações consideradas alvos potenciais de ataques terroristas. A Wackenhut, por exemplo, oferece serviços de guarda a 30 plantas nucleares dos EUA. Já a Akal Security oferece serviços de guarda para bases do Exército e para depósitos de armas. O Federal Protective Service, força policial responsável pela proteção dos prédios do governo federal, dentre os quais prédios considerados críticos, conta com cerca de 10 mil guardas de segurança contratados. Em relação aos guardas orgânicos (48% dos guardas ocupados em 2003), Parfomak estimou que cerca de 175 mil trabalhavam em organizações correspondedes aos setores de infra-estrutura crítica (38% dos guardas de segurança própria). Estimativa mais consevadora baseada numa definição mais restrita de infra-estrutura crítica apontou a existência de pelo menos 60 mil guardas orgânicos atuando na proteção de áreas fundamentais para a segurança nacional dos EUA (12% dos guardas de segurança orgânica).

A vulnerabilidade da infra-estrutura crítica dos EUA a ataques terroristas e o papel desempenhado pela segurança privada na proteção dessa infra-estrutura foram logo percebidas pelo governo americano, que não demorou a reconhecer na segurança privada um parceiro chave para a promoção da segurança nacional. Esse reconhecimento começou a ficar evidente em julho de 2002 com a divulgação da National Strategy for Homeland Security, documento no qual o governo do presidente George W. Bush tratou a segurança interna como um problema novo cuja governança dependeria de uma ação compartilhada entre governo federal, governos estaduais, governos municipais e setor privado responsável pela gestão e proteção de infra-estruturas críticas. Na National Strategy for the Physical Protection of Critical Infrastructures and Key Assets, o governo explicitamente identificou a segurança privada como a primeira linha de prevenção e de resposta a ataques terroristas. Esse reconhecimento levou a National Strategy e o Department of Justice a recomendar aos governos federais, estaduais e municipais o desenvolvimento de regras e parcerias que pudessem fazer com que a segurança privada se tornasse um ator tão engajado na promoção da segurança nacional quanto tinha sido no combate ao crime no período anterior a 11 de setembro (Morabito e Greenberg, 2005).

No espaço de pouco mais de um século a segurança privada transformou-se de um ator ameaçador e visto com desconfiança pelo governo americano num ator colaborador e visto como parceiro. Inicialmente identificada como parceira no combate ao crime, com as mudanças no cenário doméstico provocadas pelos atentados de 11 de setembro a segurança privada foi rapidamente promovida à condição de parceira chave para a promoção da segurança nacional. Essa mudança suscita diversas implicações e desafios para a governança da segurança nacional dos EUA, alguns dos quais passo a discutir agora.

 

2. Algumas implicações e desafios colocados pela segurança privada para a governança da segurança nacional

2.1 Mudanças no debate sobre governança da segurança nacional

O novo papel atribuído à segurança privada nos EUA no período pós 11 de setembro deixou claro que o debate sobre a governança da segurança nacional precisa ser alargado para dar conta da presença desse novo ator.

Entendida como a condição relativa de proteção coletiva e individual dos membros de uma sociedade contra ameaças à sua sobrevivência e autonomia (Cepik, 2001, p. 140-1), a segurança nacional tem sido tratada pelas disciplinas de ciência política e relações internacionais a partir das abordagens tradicionais sobre segurança internacional que dominaram o século XX: realismo, idealismo, neo-realismo e neoliberalismo. A despeito da diversidade de perspectivas presente em cada uma dessas abordagens, em todas elas a segurança nacional é vista como um problema que depende basicamente da ação do Estado. Políticas de segurança nacional têm sido identificadas com os esforços dos Estados para neutralizar ameaças vitais à sua sobrevivência por meio de organizações públicas dedicadas à negociação (corpos diplomáticos), obtenção de informações sobre capacidades e intenções (agências de inteligência) e uso de medidas extraordinárias e de força em diferentes graus (organizações policiais e forças armadas). A emergência da segurança privada como ator fundamental para a defesa de recursos considerados essenciais à sobrevivência dos EUA desafia essa forma tradicional de conceber assuntos de segurança nacional.

O envolvimento da segurança privada na promoção da segurança nacional também altera o debate até então em vigor sobre a governança da segurança interna dos EUA. Entre o fim da guerra fria e os atentados de 11 de setembro, o debate sobre esse tema girou em grande medida sobre o papel que agências policiais empenhadas no combate à criminalidade (agências de baixo policiamento) e agências policiais especializadas na coleta e disseminação de informações (agências de alto policiamento) deveriam desempenhar (Brodeur, 2007).  Durante a guerra fria, os arranjos organizacionais e as políticas de segurança nacional do governo americano foram desenhados a partir de uma polaridade entre interno/externo. Essa polaridade engendrou uma divisão de funções dentro do aparato repressivo do Estado entre agências de alto e baixo policiamento. O desaparecimento do inimigo comunista e a emergência do crime organizado e do terrorismo transnacionais na década de 90 colocaram em cheque essa divisão de funções, suscitando intensos debates sobre como integrar as atividades de alto e baixo policiamento de modo a aumentar a efetividade da política de segurança nacional sem ameaçar as liberdades civis. Dentro desse debate, em nenhum momento levou-se em consideração o fato de que a linha de prevenção e defesa mais imediata contra ataques terroristas eram atores privados. A polêmica sobre como governar a segurança interna esteve restrita a quais atores estatais deveriam participar (e de que forma) na contenção do crime organizado e na gestão dos riscos de ataques terroristas.

Os atentados perpetrados pela Al Qaeda, especialmente contra o World Trade Center, escancararam o fato de que a segurança nacional dos EUA depende não apenas de uma maior integração entre as agências estatais de alto e baixo policiamento, mas também da participação de atores privados responsáveis pela gestão e proteção das infra-estruturas críticas do país. Essa constatação introduz uma nova faceta no debate sobre a governança da segurança nacional dos EUA. Aos problemas tradicionais de efetividade e accountability das agências estatais responsáveis pela governança da segurança nacional, somam-se agora os problemas contemporâneos de coordenação e regulação de atores privados que possuem informações essenciais sobre vulnerabilidades e a capacidade de identificar, mitigar e responder a ameaças terroristas: os proprietários e operadores de infra-estruturas críticas e as empresas e profissionais do setor de segurança privada.

O grande desafio decorrente dessa nova realidade é como fazer com que um setor privado, heterogêneo e que obedece a incentivos distintos dos que operam no setor público produza políticas de segurança com a efetividade e a transparência requerida de atores que desempenham funções essenciais à coletividade.

2.2 Novos desafios para a governança da segurança nacional

Como notou Kenneth Bamberger (2008), os Estados normalmente dispõem de dois modelos para fazer com que atore privados ajam em nome do interesse público: o modelo tradicional de regulação por comando e controle e o modelo neoliberal de auto-regulação voluntária.          .

O modelo tradicional que o Estado dispõe para cotrolar o comportamento de atores privados segue as prescrições da teoria econômica da agência: (i) construir regras mais específicas possível; (ii) monitorar o comportamento dos atores regulados para saber se regras estão sendo cumpridas; e (iii) ajustar incentivos - especialmente a ameaça de punição - para que os atores privados se comportem de acordo com as regras fixadas. Nesse modelo de governança top-dow, assume-se que os agentes privados são atores racionais que possuem a capacidade para agir de acordo com regras públicas.

Ocorre que a efetividade desse tipo de governança depende em grande medida da existência de um setor regulado suficientemente homogêneo para se submeter a um único conjunto de regras ou de um setor heterogêneo onde metas de desempenho possam ser fixadas e os resultados monitorados pelas agências estatais. Nenhuma dessas condições estão plenamento presentes entre os atores privados responsáveis pela promoção da segurança nacional. Tanto o setor de infraestutura crítica, responsável pelo patrocínio dos esforços de proteção, quanto o setor de segurança privada, em grande parte incubido da provisão dos serviços de proteção, são altamente heterogênos. A variedade de patrocinadores e provedores de serviços de segurança torna extremamente difícil baixar regras gerais sobre como os vários agentes devem se comportar diante de ameças que se manifestam sob formas variadas, fluídas e em ambientes tão diversos quanto uma planta nuclear, um terminal de aeroporto e um evento de massa. O problema agrava-se em razão do fato de que a responsabilidade pela regulação de um conjunto diversificado de infra-estruturas críticas recai sob várias agências governamentais e entes federativos. Deixar de lado procedimentos fixos e gerais para realizar regulação e controle por meio de resultados também não é uma solução promissora. A execução de serviços de segurança privada não produz resultados ou produtos claramente mensuráveis, razão pela qual nesse tipo de serviço o principal geralmente está mais preocupado em regular o processo, a maneira como o serviço é prestado, do que o produto ou o resultado da atividade de segurança executada pelo agente.

Diante dessas dificuldades, o governo americano tem optado por incentivar a capacidade auto-regulatória dos atores privados responsáveis pelo patrocínio e provisão de segurança em áreas de infra-estrutura crítica. Nesse modelo de regulação bottom-up, as partes privadas não são apenas objeto da regulação, mas também parceiras do empreendimento regulatório. Segundo Bamberger, iniciativas dessa natureza podem ser vistas nas orientações da Environmental Protection Agency . Food and Drug Administration para que os responsáveis pela água potável e pela produção, processamento e transporte de alimentos nos EUA adotem voluntariamente medidas de segurança genericamente sugeridas pelas agências. A aposta na capacidade auto-regulatório dos prestadores de serviços de segurança também tem sido a política predominante nos EUA, que não dispõe de nenhuma lei federal abrangente regulando condições de licenciamento de empresas, requisitos para se tornar guarda e a formação e o treinamento exigido desse tipo de profissional. Segundo Parfomak (2004a), alguns estados fazem exigências de requisitos educacionais e de treinamento para guardas de contrato, mas elas são muito baixas3. A única lei federal existente é o Private Security Officer Employment Authorization Act (PSOEAA), aprovado em 2003 para regular a prerrogativa de empresas de segurança realizar checagens de antecedentes criminais de seus funcionários. Além de não tratar dos guardas orgânicos, a lei apenas permite - ao invés de obrigar - a checagens de antecedentes nos cadastros de criminosos e procurados dos governos estaduais e federais. Compete às empresas decidir quais funcionários devem (se é que devem) ter seus antecedentes checados.

Os defensores da auto-regulação voluntária argumentam que delegar aos patrocinadores e provedores de serviços de segurança privada a escolha sobre procedimentos de segurança permite superar os principais problemas do modelo tradicional de regulação via comando e controle. A auto-regulação permitiria aproveitar o conhecimento e os recursos disponíveis aos atores privados, assegurando respostas velozes e flexíveis aos riscos de ataque terrorista. Problemas de accountability estariam supostamente resolvidos em razão da existência de um alinhamento entre os interesses do setor privado, preocupado com a continuidade e a reputação de seus negócios, e do Estado, preocupado em proteger a nação. A própria dinâmica de mercado induziria os investimentos privados necessários para que a segurança das infra-estruturas críticas fosse assegurada. Esses investimentos passariam necessariamente pela demanda por provedores de segurança privada altamente capacitados, demanda essa que induziria as empresas de segurança a investir em mais cooperação com as agências policiais, qualificação, treinamento e procedimentos de segurança aptos a combater o terrorismo. Assim, incentivos típicos de mercado seriam suficientes para produzir resultados ótimos do ponto de vista do interesse publico.

Contudo, como observou Bamberger, esse modelo de regulação também padece de inúmeros problemas. Segundo o autor, o mercado por si só seria incapaz de fazer com que as empresas invistam o necessário na área de segurança. A fragilidade do mercado estaria relacionada a três fatores. Em primeiro lugar, ataques terroristas que buscam alvos específicos normalmente querem infligir danos de maior alcance, gerando o que os economistas chamam de externalidades. O nível de preocupação em relação a um nó de uma rede de telecomunicações, por exemplo, seria determinado pelo custo privado esperado no caso de um ataque terrorista. Esse custo provavelmente não atingiria o nível justificado em face do custo público que o colapso de toda uma rede de comunicação poderia gerar.  Em segundo lugar, a natureza interdependente da rede na qual os setores de infraestrutrura critica operam reduzem os incentivos para que investimentos adequados sejam realizados. Dado que uma rede só é protegida se todos os seus nós o forem, a decisão de investir em segurança para a proteção da rede enfrentará problemas de ação coletiva, já que a tendência é que atores individuais façam investimentos em segurança apenas se todos os atores da rede o fizerem. Por fim, a natureza competitiva de muitas indústrias de infra-estrutura crítica e do próprio setor de segurança privada agravaria o problema. Como as margens de lucro desses setores são pequenas, o impulso para a eficiência e para a eliminação de redundâncias pode resultar em investimentos escassos em medidas de proteção antiterrorista.

Para Bamberger, confiar ao setor privado a gestão de recursos vitais à segurança nacional também esbarra em problemas organizacionais. As empresas maximizam a eficiência operacional através da especialização do trabalho, segmentação do conhecimento e constituição de estruturas de comunicação formalizadas para que informações relevantes cheguem até os gestores. Mas essa estrutura de comunicação racionalizada não é tão eficaz na transmissão de informações quando o que está em jogo são problemas imprevistos, acontecimentos estranhos e circunstâncias mutáveis. Esse descompasso entre a estrutura organizacional da empresa e a natureza dos problemas de segurança que as firmas precisam lidar contribui para a tomada de decisões erradas. A tendência de as pessoas interpretarem situações com base no estoque de conhecimento disponível na organização ou com base na experiência passada também dificulta o processo de tomada de decisão, já que eventos terroristas são relativamente raros e que as organizações raramente dispõem de rotinas sobre como interpretar esse tipo de fenômeno. Esses problemas na tomada de decisão em temas de segurança seriam ainda agravados pela existência de dois tipos de vieses que normalmente acometem os gestores. O primeiro decorre da estratégia cognitiva inconsciente de interpretar informações e eventos de modo a confirmar atitudes, crenças e impressões iniciais. O segundo envolve a tendência natural de a mente interpretar informações ambíguas de maneira favorável ao observador. Assim, para Bamberger, a inexperiência de gestores e organizações na gestão de riscos decorrentes de ações terroristas, o conservadorismo cognitivo e o viés egoísta são fenômenos organizacionais que podem induzir os gestores a subestimarem os riscos de serem alvos de atentados e, consequentemente, não realizarem os investimentos privados necessários para a proteção das infra-estruturas críticas.

Em que medida essa estratégia de delegar ao setor privado a iniciativa de definir os investimentos e procedimentos necessários à proteção de infra-estruturas tem sido efetiva é assunto controverso. Se tomarmos o número de guardas ocupados em infra-estruturas críticas como indicador do grau de investimento em segurança privada, fica claro que setores como aeroportos e usinas nucleares aumentaram os seus gastos. Mas o aumento ocorreu por conta da intervenção do Estado sobre esses setores. Como mostra o Gráfico 1, o número de guardas de segurança empregados nos aeroportos mais do que duplicou após a federalização das atividades de screening, que no final de 2001 passou à responsabilidade da Transportation Security Administration (TSA). Posteriormente, a TSA reduziu a força de trabalho em screening para cerca de 44 mil trabalhadores, mas esse número ainda é 57% maior do que era em 2001.

 

O incremento de guardas de segurança também ocorreu em usinas nucleares em função de regulação baixada pela Nuclear Regulatory Comission (NRC), que aumentou os requisitos de segurança e o número de guardas orgânicos exigidos para a operação de usinas nucleares. Como resultado, o número total de guardas empregados nas 67 centrais nucleares dos EUA teria aumentado de 5 mil em 2001 para 8 mil em 2004 (aumento de 60%).

Levantamento realizado por Parfomak (2004a) junto a alguns centros comerciais de alta visibilidade, instituições financeiras, empresas gestoras de linhas férreas e indústrias do setor químico e de tratamento de água também apontou para um aumento de gastos com agentes de segurança no período pós 11 de setembro. Apesar dessas evidências favoráveis, não está claro até que ponto houve um aumento dos gastos com segurança no setor de infra-estrutura como um todo e se esse aumento ocorreu de forma sustentada. Segundo o relatório da 9/11 Comission, até o ano de 2004 o setor privado estava em sua maior parte despreparado para lidar com ameças terroristas. Estimativas calculadas pela comissão mostraram que os gastos com segurança cresceram abaixo de um dígito no contexto pós 11 de setembro. Autores como Bamberger e Flynn (2007) veem nisso a prova de que o mercado, por si só, é incapaz de induzir as empresas a agir de acordo com o interesse público de promover a segurança nacional.

Mas esse ponto de vista tem sido contestado por autores como Friedman (2005), que acha que os gastos do setor privado dos EUA com segurança já são elevados. Segundo Friedman, uma das táticas empregadas pela Al Quaeda em sua guerra contra os EUA é a de levar o país à falência. A melhor forma de combater essa tática seria empreender avaliações racionais dos riscos de ataques terroristas e prosseguir com os negócios normalmente, ao invés de procurar brechas a serem cobertas. Friedman concorda que em alguns setores - indústrias quimicas e arenas que recebem grandes multidões, por exemplo - os riscos de ataques terroristas são reais e o governo pode baixar regulação caso as empresas não tenham incentivos para investir devidamente em segurança. Todavia, para ele, situações como essas são raras. A vulnerailidade é algo inerente às economias modernas. Grande parte da economia americana depende de redes de comunicação, energia e abastecimento que são onipresentes e impossíveis de serem defendidas por completo. Mas os riscos de ataques terroristas a esse tipo de infra-estrutura são muito baixos, já que terroristas geralmente estão menos preocupados em infligir danos à economia do que impor perdas humanas para gerar clima de medo e pânico.

Polêmicas à parte, infelizmente há poucas evidências que permitam avaliar o modo como os atentados de 11 de setembro alteraram a disposição dos atores privados em investir em mais segurança. Não está claro se após os ataques terroristas da Al-Qaeda os setores de infra-estrutura crítica em mãos privadas realmente aumentaram seus gastos com segurança de forma sustentada.  Em relação à oferta de serviços de segurança privada, infelizmente não há evidências que permitam avaliar se os ataques terroristas de 2001 tiveram algum impacto em termos de melhorar os indicadores da indústria de segurança privada. Não está claro, por exemplo, se no contexto pós 11 de setembro houve aumento dos programas de cooperação entre segurança privada e forças de segurança pública, elevação dos níveis de treinamento e qualificação de guardas e aumento dos índices de checagens de antecedentes dos candidatos a guarda. Essa situação chama por pesquisas nessa área, que entrou na agenda política dos EUA e deveria entrar na agenda acadêmica de ciência política e relações internacionais.

 

Considerações Finais

No espaço de pouco mais de um século a segurança privada nos EUA aumentou de tamanho e importância. Se no começo do século XX a segurança privada era vista com desconfiança pelo governo americano, no começo do século XXI ela passou a ser vista não apenas como uma parceira no combate à criminalidade, mas também como uma parceira fundamental na promoção da segurança interna. Esse novo papel atribuído à segurança privada desafia o modo como tradicionalmente pensamos assuntos de segurança nacional, abordados pelas disciplinas de ciência política e relações internacionais a partir de perspectivas teóricas centradas no Estado.

O novo papel atribuído á segurança privada também desafia as políticas de segurança nacional dos EUA, colocando problemas de coordenação e regulação de atores que desempenham funções essenciais para a coletividade. Até o momento o governo americano tem apostado na força do mercado para provocar um alinhamento de interesses entre Estado, interessado na proteção da nação, e patrocinadores e provedores de serviços de segurança privada, interessados na proteção de seus negócios e clientes. Essa aposta ocorre com base na crença de que esse suposto alinhamento de interesses seja suficiente para garantir a devida participação da segurança privada na governança da segurança nacional. Todavia, como mostrado, diversos fatores conspiram para que a segurança privada não seja empregada de acordo com o interesse público de promover a segurança nacional.

Diante desses fatos e da iminência de novos ataques contra alvos em território nacional, a tendência é que o governo americano baixe mais regulação na tentativa de fazer com que o setor de segurança privada aja de acordo com as prioridades de segurança dos EUA. A participação da segurança privada na governança da segurança interna dos EUA é um fato aparentemente consolidado e com a qual o governo terá que lidar no presente e no futuro. Há aqui um tema de pesquisa que deveria ser objeto de atenção da parte dos cientistas sociais, até agora relapsos sobre as implicações da emergência da segurança privada como ator importante na promoção da segurança nacional dos EUA.


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O autor agradece o apoio do Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU) na realização deste trabalho.
1. Essa revolução silenciosa não foi particular aos EUA. Ela ocorreu, mais cedo ou mais tarde, em maior ou menor medida, em diversas partes do mundo.
2. Esse número exclui pessoas ocupadas na indústria da segurança privada como instaladores de equipamentos de proteção, monitores de sistemas eletrônicos de segurança, analistas de riscos e consultores. Considerando esses profissionais, o número de pessoas trabalhando na indústria da segurança privada nos EUA do começo deste século era de 1,8 milhões.
3. Em 2004, por exemplo, 22 estados exigiam treinamento de guardas terceirizados. A carga horária exigida variava entre 1 e 48 horas de treinamento. Mesmo nos estados onde as exigências eram mais elevadas (Alasca, Califórnia, Flórida e Oklahoma), elas eram insuficientes para contemplar temas relacionados ao terrorismo e mesmo baixas quando comparadas a de outros países.