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ISBN 2236-7381 versión impresa

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Filosofia política e relações internacionais: considerações sobre a pluralidade epistemológica da disciplina

 

 

Dhiego de Moura Mapa

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGRI/UERJ), bolsista da CAPES. Bacharel e Licenciado em História pela UERJ

 

 


RESUMO

O presente trabalho pretende abordar, de forma objetiva, o fundamento filosófico-político presente em correntes teóricas do estudo das relações internacionais, notadamente o realismo e o liberalismo. A pluralidade teórica no estudo das Relações Internacionais possui causalidade epistemológica, cujas raízes encontram-se na filosofia política contratualista do qual este campo de estudos emergiu, no início do século XX. Não obstante a complexidade do sistema internacional (o objeto do conhecimento em Relações Internacionais) ser um fator que influi na pluralidade teórica da disciplina, a proposta aqui é identificar os fundamentos epistemológicos dessa diversidade teórica, oriunda das bases do pensamento político moderno: Maquiavel e os contratualistas.

Palavras-chave: Filosofia Política. Teoria das Relações Internacionais. Realismo. Liberalismo. Contratualismo


 

 

1. Introdução

No campo das Relações Internacionais, a propriedade de apresentar abordagens múltiplas é, por vezes, atribuída, de forma unívoca, à complexidade inerente ao sistema internacional, como sendo algo ontológico ao objeto de estudos. Entretanto, para além do fato de que o objeto de estudo relações internacionais apresenta causalidades variáveis e mudanças sistêmicas que abrem espaço para diferentes abordagens, é necessário levar em consideração que o pluralismo de percepções da disciplina tem relação direta com o fundamento epistemológico do qual emergiu: a filosofia política contratualista. Portanto, a multiplicidade de abordagens das relações internacionais tem causas ontológicas (próprias do objeto) e epistemológicas (presentes no sujeito do conhecimento).

Este último aspecto é o que mais interessa ao trabalho ora apresentado que, por se tratar de uma apreciação introdutória ao estudo das relações internacionais, tem a preocupação de, por um lado, expor as bases filosóficas da disciplina e, por outro, demonstrar o nexo intrínseco entre as diferentes correntes do pensamento político moderno e as Relações Internacionais. Para tanto, o trabalho se divide em três sessões, respectivas aos objetivos propostos, seguidas de conclusão que sintetiza o conjunto.

 

2. A diversidade epistemológica na gênese da disciplina

O marco de nascimento da disciplina Relações Internacionais foi a criação da Cátedra Woodrow Wilson de Política Internacional, em 1919, na Universidade de Gales (Aberyswyth), na Inglaterra, como um desdobramento científico do impacto gerado pela Primeira Guerra Mundial, já que o objetivo era, então, estudar e compreender as causas da guerra, a fim de evitá-la. Todavia, conforme sinaliza Williams da Silva Gonçalves, o estudo das relações internacionais é uma realidade desde o surgimento do sistema europeu de Estados, em 1648, pela "Paz de Westphalia", que consolidou a territorialidade como marca distintiva do Estado Moderno e, desde então, surgiram estudos diversos que tratavam do fenômeno da guerra e da paz entre os Estados, a exemplo de Nicolau Maquiavel, Immanuel Kant, Jean-Jacques Rousseau, entre outros.

O fato, porém, conforme demonstra Gonçalves, é que a amplitude da Primeira Guerra Mundial - a guerra superdimensionada pelos novos aportes tecnológicos e industriais existentes - apontava para o surgimento de novos problemas no século XX, que a "ótica do direito internacional, da diplomacia e da história diplomática" já não davam conta como, por exemplo, a expansão da economia capitalista a nível global e a ascensão de potências extra-européias. Dada a complexidade do objeto de estudo, a disciplina Relações Internacionais surge com a necessária característica interdisciplinar a fim de, segundo Gonçalves, "ser capaz de produzir uma visão integrada do meio internacional que vá além das visões parciais da Economia Internacional, do Direito Internacional, da História Internacional e da Política Internacional" (GONÇALVES, 2004, p. 29-32).

Devido a este aspecto ontológico do objeto, é possível compreender a fragmentação teórica da disciplina, haja vista que sua evolução metodológica, pela lógica dos "Grandes Debates", demonstra que o "confronto entre novas e antigas teorias tem se seguido a mudanças significativas na estrutura e no funcionamento do sistema internacional". O aspecto de ruptura com as prerrogativas das disciplinas tradicionais que buscavam explicar o sistema internacional - a História Diplomática e o Direito Internacional - é também apontado por Esther Barbé como o momento de surgimento da nova disciplina que, sob os escombros do primeiro conflito mundial do século XX, no qual a guerra passa a ser entendida como um "problema social", era orientada pelo movimento pacifista de dupla matriz (o liberal de Woodrow Wilson, e o marxista de Lênin), demonstrando nítida interação entre "meio social e disciplina científica", cujo resultado seria a configuração de uma disciplina de caráter normativo, com o propósito de "tornar inteligente a política exterior do Estado" (BARBÉ, 1995, p. 28-37).

Nesse movimento, Barbé ressalta o fato de o pensamento norte-americano ter se destacado no desenvolvimento da disciplina emergente, em grande medida devido à "razão de Estado", ou seja, o desejo de racionalizar a política exterior dos Estados, já que os EUA alcançavam projeção mundial enquanto potência.

De fato, é o pensamento anglo-saxão que se destaca como espaço de desenvolvimento da disciplina Relações Internacionais em sua gênese, pois foi com Edward Hallett Carr, historiador inglês que ocupara a Cátedra Woodrow Wilson de Relações Internacionais da Universidade de Gales, e Hans J. Morgenthau, cientista político judeu-alemão radicado nos EUA desde a perseguição nazista, que as Relações Internacionais se consolidaram enquanto Ciência apta a dar conta dos fenômenos da política internacional. É notório que a crítica de Carr ao utopismo idealista da diplomacia liberal vigente nas décadas de 1920-30, exposto em sua obra "Vinte Anos de Crise: 1919-1939", publicada em 1939, abriria o caminho para a configuração dos seis princípios do realismo político nas relações internacionais, elaborados por Morgenthau em seu clássico "A Política entre as nações - a luta pelo poder e pela paz", publicado em 1948.

A reflexão sobre as relações internacionais, de fato, se desenvolveu em um longo período, desde os contratualistas do século XVII, passando pelos filósofos iluministas e pensadores do liberalismo econômico dos séculos XVIII e XIX, até chegar às proposições teóricas dos internacionalistas do século XX. Entretanto, o impacto gerado pelos desdobramentos da Primeira Guerra Mundial foi determinante. Este conflito bélico, ao cabo, teve como conseqüência a elaboração dos "Quatorze Pontos de Wilson" (1918), o Tratado de Versalhes (1919) e o projeto da Sociedade das Nações (1920), que estabeleceram as bases sob as quais se assentou a diplomacia liberal das décadas de 1920-30 (SARAIVA, 2007, p. 78-167). Ao mesmo tempo, nesse período, configurou-se o campo de estudos voltado às relações internacionais em específico, devido à iminente preocupação com a guerra e a paz, de onde emergiu a crítica de Carr ao idealismo liberal.

A crítica ao liberalismo foi um aspecto resultante da grave situação européia na década de 1930, desde a crise de 1929, que desestabilizou a economia capitalista mundial e pôs em xeque os regimes democráticos liberais. Nesse sentido, Carr se opôs à idéia de "harmonia natural" de interesses (baluarte da diplomacia liberal dos anos 20), para a qual desnuda o caráter de pensamento induzido, uma construção, oriunda de uma vontade de manutenção de domínio. Segundo Carr, quando Wilson propagava o livre-comércio como algo universal, tratava-se de uma farsa, pois nada mais era do que a defesa dos interesses dos EUA. Nisso consiste aquilo que Carr considera como a "hipocrisia" dos idealistas nas Relações Internacionais, pois, ao advogarem a "doutrina da harmonia de interesses" como sendo um princípio universal, mascaravam o objetivo hegemônico de controle do sistema internacional presente nessa concepção (CARR, 1981, p. 69-85).

Essa moral internacional perversa apresenta princípios que "se revelam como disfarces transparentes de interesses egoísticos", ainda que, no caso do utopista, se trate de "padrões cujo caráter interesseiro ele ainda não compreendeu" (CARR, 1981, p. 88). A não compreensão desse "caráter interesseiro" pelos idealistas, é a causa do fracasso de seu projeto, pois está ausente neles o entendimento de que a moral política é regulada pelo poder; é diferente da moral social. Faltou, portanto, a compreensão da importância das relações de força para explicar as relações internacionais de forma científica. É exatamente essa lacuna que Morgenthau procurou preencher, já ao fim da década de 1940, no pós-Segunda Guerra Mundial.

A proposta teórica de Morgenthau se filia à escola realista, da qual extrai princípios elementares que giram em torno de um conceito-chave: o do "interesse definido em termos de poder", pois, a partir da constatação de que todo fenômeno político se relaciona à busca de maximização (ou manutenção) do poder (controle, influência e/ou domínio psicosocial), só o uso desse conceito permite a explicação profunda dos fatos políticos. Não há, portanto, conexão plausível entre "as aspirações morais de uma nação em particular com os preceitos morais que governam o universo", em outras palavras, não existem interesses nacionais moralmente mais elevados, mas apenas diferentes, e que buscam igualmente se ancorar na dimensão do poder (MORGENTHAU, 2003, p. 11-44).

Ao definir a política internacional pela dimensão do poder, Morgenthau delimita que o poder é ao mesmo tempo o "meio" e o "fim" da política externa dos Estados. O conceito realista de Morgenthau de "interesse nacional definido em termos de poder", por ser muito abrangente, acabou suscitando críticas, ainda que tenha sido amplamente aceito por estadistas que, envoltos pela conjuntura da Guerra Fria, viam em sua teoria uma explicação plausível da realidade sistêmica dada pela lógica da bipolaridade.

O fato de a proposta realista de Carr, consolidada em Morgenthau, ter sido um contraponto à perspectiva liberal em relações internacionais no período entre-guerras, demonstra que a disciplina em questão nasce em meio a um choque de concepções epistemológicas: o realismo e o liberalismo político. Nesse particular, é importante perceber que a gênese da disciplina é não apenas o ponto de partida de um desenvolvimento teórico plural, cuja evolução adentraria o século XX, mas também é o ponto de chegada de um processo de sedimentação do conhecimento dado pela filosofia política moderna, que vem desde o século XVII - exemplo disso é o fato de que a proposição teórica de Morgenthau sofre forte influxo do pensamento político de Maquiavel.

 

3. De Maquiavel ao contratualismo: dicotomia entre realistas e liberais

É importante compreender que não existe uma teoria filosófica das relações internacionais em específico, pois o que há, de fato, é a filosofia política que, desde o século XVII, trata das relações interestatais a partir do próprio reconhecimento da soberania nacional. Ao longo dos séculos XVI e XVII, o processo de criação do Estados estava em andamento, motivo pelo qual foi nesse período que sua existência e funcionamento foram questionados, dando origem ao pensamento político moderno. A "Paz de Wetphalia" é um marco, nesse sentido, porque seus tratados consolidam a territorialidade como característica do Estado Moderno - a soberania do príncipe se exerce sobre um espaço delimitado - o que, por sua vez, engendra o sistema de estados, ou seja, o Estado gerou o sistema de estados. É, então, a partir dos tratados de Wetphalia que o Estado passa a ser reconhecido em sua acepção moderna: um compósito de território, povo e governo. O pensamento político moderno, por sua vez, tem como base fundadora as reflexões de Maquiavel.

A importância da obra de Maquiavel ("O Príncipe"), é que nela ocorre uma mudança na forma de se pensar a política. O pensamento político antigo, de fundamento aristotélico, estabelecia que a finalidade da política é o bem estar geral, em sentido moral, onde o chefe político nada mais é do que o chefe da grande família e, por isso, independente de suas escolhas, deveria garantir o bom funcionamento da pólis. Maquiavel, no entanto, promove uma ruptura com o pensamento político antigo, dissociando a política da moral e da religião, onde o ideal aristotélico de sociedade, cuja base é a família (no qual o homem seria um fruto do meio, um ser da família, do oikós, da pólis), cede lugar à percepção de que a sociedade é uma arena formada por indivíduos (e não por famílias) que possuem interesses distintos, na qual a política se configura como busca pelo poder.

A política, portanto, passa a ser definida como luta, conquista e manutenção do poder, não sendo mais compreendida em termos morais; pelo contrário, a política passa a ser vista como tendo uma moral própria, que difere da moral social e da religião: é a laicização da política. Por propor pensar a política como ela é - e não como algo idealizado - Maquiavel é um pensador realista. O que Maquiavel fez foi identificar a existência do cálculo como motor da ação humana: é o interesse consubstanciado no objetivo que se quer alcançar, o cálculo como planejamento da ação que visa a consecução de interesses.

É importante salientar que o pensamento de Maquiavel emerge ao fim do período medieval e, nesse sentido, acaba provocando ruptura com o pensamento religioso (o tomismo), já que entende o ser humano como um ser que vive segundo seus próprios interesses e não como um ser piedoso que busca a vontade divina. Em oposição à concepção medieval de um mundo imutável cuja ação humana se supunha orientada por Deus, Maquiavel entende que política é movimento, e esse movimento visa concentrar mais poder. Assim, o princípio em torno do qual se organiza a política é o poder: ela objetiva a aquisição de mais poder. Dessa forma, contrapunha-se à idéia de que a política deveria ser julgada segundo a moral religiosa, pois, ao contrário, o princípio básico da ação política deve ser julgado em termos de resultados (se aumenta o poder é correto, caso contrário é um erro, eis o corolário da razão de estado).

O rompimento com a filosofia política aristotélica (em sua versão tomista, principalmente) efetuado por Maquiavel, foi a base sobre a qual se assentou o pensamento político moderno dos filósofos dos séculos XVII e XVIII, cuja questão primordial a ser debatida era a legitimidade do Estado. Os filósofos contratualistas deram início ao debate. De acordo com os pressupostos contratualistas, o Estado surge a partir do pacto social (no sentido de acordo, negociação e compromisso) firmado entre povo (população politicamente organizada) e soberano (aquele que exerce governo), no qual se forjam as instituições, que dão forma ao Estado. Surge, então, a lei (Constituição), que regula as relações em sociedade. Antes do pacto social, o homem vive em estado de natureza, que é o estágio de vida social em que não há lei. A definição do que seria esse "estado de natureza" deu origem a duas diferentes concepções contratualistas: a de Thomas Hobbes e a de John Locke.

O pensamento de Thomas Hobbes é fundamental para se compreender as reflexões da filosofia política moderna sobre as relações internacionais. Diferente de Maquiavel, Hobbes viveu sob um regime político constituído: a Inglaterra do século XVII. Suas reflexões acerca do Estado foram fortemente influenciadas pelo colapso do Estado inglês, em vista da guerra civil inglesa (1642-49), que antecipou o governo puritano de Oliver Cromwell e a futura Revolução Gloriosa de 1688, que instituiu a monarquia parlamentar, em detrimento do regime absolutista, então vigente.

A idéia de Hobbes é pessimista, já que formulada a partir da crise do Estado inglês. Seu objetivo foi pensar a soberania do Estado e como evitar a guerra que, para ele, era motivada por diferenças religiosas. Em vista do extremo da guerra civil inglesa (decapitação do rei e aumento da força do Parlamento), Hobbes passa a questionar a força do Estado. Suas reflexões partem do raciocínio indutivo, no qual para se conhecer o todo social é necessário compreender sua parte constitutiva: o homem. Nesse aspecto, Hobbes trilha os passo de Maquiavel e rompe com a filosofia política aristotélica1, já que compreende que a base da sociedade não é família, mas o indivíduo. A valorização do indivíduo, inclusive, é um aspecto fundamental do pensamento moderno, cujo questionamento basilar passa a ser: o que é o indivíduo?

Pela ótica de Hobbes, conforme demonstrado em sua obra "Leviatã", de 1651, o indivíduo seria um misto de paixão e razão e, assim, o homem em seu estado de natureza (em que não há leis e nem limites) era naturalmente mal, invejoso e traiçoeiro (preponderavam os baixos sentimentos). Logicamente que, em um estado em que não há limites, e onde predominam os sentimentos mais vis, não seria possível haver outra coisa que não o estado de guerra; tal estado se agravaria pelo fato de que os homens nascem iguais e, assim, todos seriam invejosos e traiçoeiros, o que gera um sentimento coletivo de insegurança e medo.

No estado de natureza de Hobbes, portanto, a forma do indivíduo se proteger seria aumentando o próprio poder, a fim de dissuadir a agressão de outrem e, logicamente, tal estado era improdutivo a todos. Conseqüentemente, em vista da necessidade coletiva de se alcançar segurança, ocorre o pacto social, em que todos firmam o compromisso de entregar a um terceiro (o Estado, Leviatã) a sua força, a fim de que todos possam produzir e criar e, aquele que não se submetesse ao Estado, se tornaria um perigo social, já que opta por preservar seu poder e, assim, deve ser punido. Destarte, somente o Estado deve ter o monopólio da força e a prerrogativa de criar leis, aplicando-as pela administração da justiça, a fim de promover a paz social (RIBEIRO, 1988, p. 53-77).

A legitimidade do poder do Estado, dessa forma, é dada pelo pacto social. Entretanto, no que diz respeito às relações entre Estados, ocorre um impasse: a paz social garantida pelo Estado em sua circunscrição territorial contrastaria com o permanente estado de guerra que caracteriza as relações interestatais do sistema de estados, pelo simples fato de se tratar de um espaço de interação entre entes soberanos não regulados por alguma autoridade superior, de nível global (um império universal ou uma república mundial, por exemplo), ou seja, o sistema de estados é anárquico. Assim, para Hobbes, no meio internacional impera uma espécie de estado de natureza em que a guerra é uma possibilidade permanente. Devido à inexistência de um império universal que consiga fundir as unidades soberanas em um Estado único (havendo, ao invés disso, Estados e relações internacionais), só pode haver estado de guerra e conflito de interesses no sistema de Estados, ou seja, haverá apenas relações de poder. Essa antítese entre paz universal e relações interestatais, presente no pensamento filosófico hobbesiano, é que fundamentou o realismo político em relações internacionais.

John Locke, por seu turno, foi um filósofo inglês contemporâneo de Hobbes2, cujas reflexões desenvolvidas em seus "Dois Tratados Sobre o Governo", publicados em 1690, exerceram forte influxo sobre o pensamento político moderno. O segundo tratado sobre o governo civil, em que Locke elabora sua teoria política da sociedade civil pela ótica do direito natural, é que interessa à nossa reflexão.

A argumentação de Locke sobre o Estado se dá sobre bases contratualistas diferentes das de Hobbes, pois, para ele, no estado de natureza há leis (as leis da natureza). Locke era, portanto, jusnaturalista, e entendia que as leis da natureza eram três: direito de livre expressão (opinião), direito de ir e vir (locomoção) e direito à propriedade (posse). A lei natural seria, então, criada por Deus e reconhecida pelo homem através da razão. Por entender que no estado de natureza os homens obedecem a leis e vivem de forma pacífica, seu pensamento diverge do de Hobbes profundamente (KENNY, 2006). Locke extrai de Hobbes a concepção de estado de natureza. A diferença se encontra na definição do que era o "homem" no estado de natureza. Nesse sentido, Locke não discute a existência do instinto humano, mas entende que o homem possui capacidade de controlar os instintos (pelo senso comum, ou bom senso), não sendo, assim, dominado pelos mesmos.

No estado de natureza lockeano, o máximo de liberdade não é incompatível com o cumprimento das palavras, dos acordos e dos contratos. Os três elementos da vida humana (vida, liberdade e propriedade) estão garantidos no estado de natureza. Assim, se Hobbes vê o estado de natureza como um estado de agressividade, inveja, egoísmo e guerra, no qual o pacto social é motivado pelo medo (já que o Estado consegue conter as paixões, permitindo a produtividade), Locke, por outro lado, entende o estado de natureza de forma otimista, no qual o instinto humano o leva à solidariedade e sacrifício pela compaixão ao sofrimento do outro, ou seja, no estado de natureza o homem é bom e vive debaixo de leis naturais (as leis de Deus), e só passa a viver sob a lei civil (pacto social) por causa da propriedade, já que a produtividade da propriedade gera litígios que necessitam de árbitros neutros - o Estado, nesse caso, seria o juiz que organiza as relações sociais, a fim de proteger e garantir a propriedade (CHAUÍ, 2000, p. 220-223).

O conjunto "vida, liberdade e propriedade" forma uma totalidade inseparável e constitui o patrimônio do indivíduo, que fundamenta a ordem liberal. Apesar de, no estado de natureza lockeano, o empreendimento associativo ser algo viável, há apenas um elemento que torna o estado de natureza inóspito ao convívio humano (sendo prejudicial à propriedade): é o elemento da vingança, no qual o homem agirá por instinto (no sentido hobbesiano do termo). A fim de controlar esse elemento, os homens criam o Estado (para coibir o instinto humano e proteger a propriedade). A partir disso, cria-se a ordem liberal, visto que o Estado não é concebido para esmagar o indivíduo (a segurança em troca da ordem), mas apenas para regular a vingança, que se torna uma atribuição única e exclusiva da lei civil. O Estado, então, se torna um instrumento regulador de conflitos. Por sua vez, o indivíduo, ao passar do estado de natureza para o estado de sociedade civil, conserva sua liberdade e, a ordem pública deve ser, também, garantidora da liberdade do indivíduo.

No tocante às relações interestatais, Locke, à semelhança de Hobbes, entende que se dão de forma análoga ao estado de natureza. Contudo, diferente de Hobbes, entende que no estado de natureza prevalece a cooperação (visão positiva) e, assim, no sistema de estados, a cooperação seria a norma e a guerra a exceção, pois, para Locke, a guerra não é uma propensão natural do ser humano, mas é a resultante do mau funcionamento das instituições. Portanto, enquanto a teoria filosófica elaborada por Hobbes fundamentou o realismo político nas relações internacionais, a filosofia política desenvolvida por Locke influenciou o liberalismo político na disciplina (também chamado de institucionalismo).

 

4. Filosofia política e relações internacionais

O pensamento contratualista, seja em sua vertente liberal (Locke) ou realista (Hobbes), por fornecer os fundamentos do pensamento político moderno, exerceu forte influxo sobre a teoria das Relações Internacionais. Cristina Soreanu Pecequilo, por exemplo, ao contemplar as linhas gerais da disciplina Relações Internacionais, procura delimitar, de forma esquemática, sua evolução teórica.

Partindo da percepção de que as Relações Internacionais apresentam dois eixos (cooperação e conflito), que podem ser abordadas em correntes divergentes (realismo e liberalismo, por exemplo), Pecequilo apresenta uma linha evolutiva das correntes que aborda, bem como seus aspectos gerais. Nesse sentido, o realismo político segue a seguinte linha cronológica de desenvolvimento: Tucídides (e a idéia de equilíbrio de poder), Maquiavel (moral política e razão de Estado), Hobbes (estatocentrismo e sistema de estados anárquico), Carr (crítica ao idealismo), Morgenthau (pressupostos do realismo: interesse nacional definido em termos de poder), Waltz (neorealismo; análise sistêmica). Nesse quadro, a filosofia política elaborada por Maquiavel e Hobbes forneceram os princípios basilares do realismo político nas relações internacionais, organizados teoricamente por Morgenthau e revisados por Waltz, cuja lógica é a do conflito e poder, e os pressupostos são os seguintes: natureza humana é má; centralidade do Estado cujo interesse é a sobrevivência e maximização de ganhos; o objetivo das relações internacionais é a busca do equilíbrio de poder; sistema internacional é visto como anárquico, onde guerra e conflitos são latentes.

A corrente liberal, por outro lado, pode ser esquematizada cronologicamente da seguinte forma: Locke (idéia de que o homem em estado de natureza é bom), Montesquieu (divisão dos poderes e análise filosófica da organização jurídica do Estado), Jeremy Bentham (idéia de direito internacional), John Stuart Mill (livre comércio), Immanuel Kant (ideal de Federação Republicana), Woodrow Wilson (apresentou um projeto político em relações internacionais, a partir de concepções de corte liberal-idealista), Keohane e Nye (neoliberalismo; teoria da interdependência complexa). Por seu turno, os pressupostos gerais dessa corrente, seriam: natureza humana é boa (o homem é pacífico e tende à cooperação); o sistema internacional é anárquico, mas regulado por leis e propenso à cooperação e comércio; interdependência econômica, disseminação das democracias e instituições internacionais como fatores que geram a cooperação no meio internacional; filosofia da paz e do progresso; percepção de que a complexificação do sistema internacional faz com que, além dos Estados, as forças transnacionais e as organizações internacionais exerçam influência no sistema internacional (PECEQUILO, 2004, p. 115-156).

A preocupação com o fenômeno da guerra e a busca da paz é a temática que deu origem ao estudo das relações internacionais. Trata-se, portanto, de um campo de estudos que produziu uma gama considerável de tratados e reflexões filosóficas sobre o tema. Nesse sentido, a ótica apresentada por Kenneth N. Waltz em sua análise teórica da disciplina é esclarecedora, pois, no intuito de facilitar a compreensão desse acúmulo de conhecimentos sedimentados ao longo do tempo, divide-os em três categorias de análise, que ele classifica como imagens das relações internacionais. Cada imagem, composta por pensadores diversos, define uma causa específica de origem da guerra: a primeira imagem é aquela que entende que a causa do conflito internacional se encontra no comportamento humano; a segunda imagem identifica que a causa das guerras está na estrutura dos Estados; a terceira imagem aponta o sistema dos Estados como a origem dos conflitos.

A categoria proposta por Waltz é elucidativa na medida em que o critério de diferenciação das diferentes abordagens é epistemológico e volta-se para o sujeito do conhecimento: a forma como cada grupo de pensadores define a causa da guerra. Dessa forma, fica claro que os olhares que se lançam sobre o objeto geram diferentes desenvolvimentos teóricos.

Em sua abordagem da primeira imagem, por exemplo, Waltz se concentra nos pensadores que entendem a guerra como algo insolúvel por estar enraizada na personalidade humana (que é impulsivo, irracional, passional, egoísta e cruel, em essência); são os "pessimistas", cujas formulações deram origem ao realismo político (Santo Agostinho, Reinhold Niebuhr, Espinosa e Morgenthau). Mediante a constatação da impossibilidade de transformação da natureza humana (racional e impulsiva), esse grupo de pensadores entende que é necessário criar mecanismos de controle que permitam a vida em sociedade. Ao nível das relações sociais, esse mecanismo só pode ser o Estado. Ao nível das relações internacionais, seria algo próximo à idéia de equilíbrio de poder (WALTZ, 2004, p. 03-53).

Por outro lado, há a segunda imagem das relações internacionais, que atribui à estrutura interna dos Estados a origem dos conflitos. Ao abordar essa categoria, Waltz opta por conferir maior atenção ao pensamento liberal dos séculos XVIII-XIX (de Adam Smith e John Stuart Mill), por entender que nele se encontra a raiz do equívoco presente nessa matriz de pensamento: a "fé nas democracias" e no comércio internacional - por parte do idealismo utópico dos chamados "não-intervencionistas" -, que subestima a realidade do sistema internacional. Por fim, ao tratar da terceira imagem, Waltz se concentra em expor as idéias de Jean-Jacques Rousseau que, na qualidade de teórico contratualista, pensa o surgimento do Estado a partir da associação entre homens que se encontravam no estado de natureza. Sua análise sobre o campo das relações internacionais, segundo Waltz, reforçaria a percepção realista de que o problema da guerra reside não nos Estados, mas no tipo de relação estabelecida entre eles: a anarquia do sistema internacional (WALTZ, 2004, p. 101-230).

Logicamente que a percepção de Waltz está ancorada em uma visão realista que objetiva tecer críticas ao institucionalismo liberal (que ganhou força nas décadas de 1970-80), cujo fundamento político filosófico é, de um lado, o liberalismo (Locke, Adam Smith) e, de outro, o institucionalismo em relações internacionais, presente em Kant e no Abade de Saint-Pierre e o projeto da "paz perpétua" através de uma confederação de repúblicas. Nesse sentido, como não poderia deixar de ser, Waltz vai até Rousseau, já que este traçou considerações sobre o campo das relações internacionais a partir de sua leitura das proposições de Saint-Pierre, além de ser um crítico do liberalismo3.

.A proposta de Saint-Pierre era a de constituir-se um mecanismo institucional (uma Federação Republicana Européia) para estabelecer a paz internacional. Conforme demonstra Fonseca Jr., ao compreender que "a possibilidade de guerra é, então, inerente a um sistema de soberanos", havendo uma "dimensão sistêmica na explicação da origem das guerras", é que Rousseau desacredita na viabilidade da proposta de "transformar, pela razão, o que foi iniciado pela fortuna, criando-se um 'corpo político' com as características de uma confederação de Estados" pois, para Rousseau, "o importante é mostrar que o caminho possível para a paz perpétua deveria ser necessariamente levar em conta as relações de poder". Trata-se de um realismo rousseauniano, que "anuncia uma compreensão estrutural do fenômeno da guerra: os Estado entram em conflito não porque sejam compostos de homens naturalmente agressivos, mas porque, ao serem formados, tornam-se agressivos para se preservar como Estados" (FONSECA JR., 2008, p. 316-327).

De qualquer forma, a opção por Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Locke ou Kant, demonstra que a pluralidade de abordagens no que tange às relações internacionais, ao se ancorar em diferentes matrizes da filosofia política, aponta para a heterogeneidade epistemológica como fator marcante da área de estudos, já que um mesmo fenômeno (seja a guerra/conflito ou a paz/cooperação) pode ser interpretado de formas diversas, dependendo do aporte teórico metodológico escolhido para a análise.

 

4. Conclusão

A pluralidade de abordagens no estudo das relações internacionais se deve, em grande medida, ao fato de que esse campo analítico é um desdobramento do pensamento político moderno que, ao longo de seu desenvolvimento, apresentou múltiplas concepções sobre as formas de organização política e social. Sendo assim, a gênese da disciplina emerge em meio a uma contraposição entre diferentes percepções acerca do sistema internacional e da forma como os Estados devem atuar nele. A diversidade teórica no estudo das relações internacionais, que se desenvolve desde então, se deve à complexidade do objeto (o sistema internacional), cuja grande quantidade de variáveis causais permite que se desenvolva olhares explicativos que, por vezes, se contrapõem.

Ao longo do breve trabalho, buscou-se abordar, em linhas gerais, as matrizes epistemológicas dessa variedade teórica, contida no pensamento político moderno, procurando demonstrar, minimamente, a forma como a conexão entre filosofia política e Relações Internacionais, enriquece a disciplina e é fundamental à sua compreensão.

 

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WALTZ, Kenneth N. O homem, o Estado e a guerra: uma análise teórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

 

 

1. O rompimento efetuado por Hobbes se dá também, como em Maquiavel, com o pensamento medieval, pois Hobbes foi o primeiro que, através de suas idéias, afirmou que o ente estatal não existe, de forma alguma, devido à vontade de Deus, visto que os homens é que criaram o Estado pelo contrato. Este caminho aberto por Hobbes - o Estado existindo pela vontade dos homens e não pela vontade divina - seria trilhado pelos seus sucessores. A ruptura hobbesiana é uma só: afirmar que a associação política (pólis/Estado) só existe devido à vontade humana, é o mesmo que dizer que a mesma não é natural (diferindo de Aristóteles), evidenciando o caráter artificial da mesma.
2. O século XVII, no qual viveu Locke, foi conturbado. Após a morte de Cromwell, ocorreu uma tentativa de restauração do absolutismo inglês por meio de Carlos II. Os ingleses chamaram a dinastia holandesa (Guilherme de Orange), que reinou e garantiu séculos de prosperidade (hegemonia marítima, comercial e imperialista, por longo tempo). Portanto, respirava-se um ambiente de liberdade. É nesse contexto que surgem os textos de Locke.
3. Rousseau, um pensador do século XVIII, apresenta um contratualismo que diverge das matrizes hobbesiana e lockeana em essência, pois, enquanto ele tem como ênfase a questão da liberdade, Hobbes se preocupa com a ordem e a segurança e Locke com a defesa da propriedade. Rousseau se opõe ao pensamento liberal devido à exacerbação do individualismo. Ao divergir da prerrogativa liberal, segundo a qual o choque de interesses individuais gera equilíbrio geral, Rousseau introduz a categoria que organiza a decisão do povo soberano: a "vontade geral", que é o mecanismo que faz com que as decisões sejam tomadas não por maioria, mas por unanimidade. O fato é que Rousseau entende que a propriedade privada é a raiz da desigualdade e, nesse sentido, a artificialidade da vida em sociedade (principalmente em sua matriz liberal) gera opressão (supressão da liberdade de muitos pelo privilégio de poucos), sendo necessário estabelecer uma reorganização social sob um novo pacto, conforme preconizado em "Do Contrato Social", de 1762. A "vontade geral" surge a partir da percepção geral/coletiva do que é melhor para todos, se opondo ao liberalismo (a soma dos egoísmos), já que, havendo particularismos, quebra-se o pacto da cidadania (contrato social)
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