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ISBN 2236-7381 versión impresa

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Lidando com a crise internacional: a política e a economia do crescimento de Brasil e China e a ordem global

 

 

Diego Santos Vieira de Jesus

Doutor em Relações Internacionais e professor da Graduação e da Pós-Graduação lato sensu em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio (IRI / PUC-Rio)

 

 


RESUMO

As propostas deste artigo são examinar os fatores que explicam o desempenho de Brasil e China na superação da crise internacional de 2008-2009 e investigar as condições político-econômicas que permitiram seu crescimento nesse período. A hipótese sinaliza que, na dimensão econômica, a maior solidez do regime macroeconômico e a menor alavancagem no sistema financeiro capitalizado permitiram uma abordagem mais equilibrada de regulação do mercado financeiro. Na política, tais Estados procuraram aproveitar janelas de oportunidade institucionais buscando desenvolver regras, normas e procedimentos que satisfizessem seus interesses de desenvolvimento e de ampliação de suas autonomia e participação.

Palavras-chave: Brasil; China; crise internacional


 

 

A economia mundial parece se recuperar da crise internacional de 2007-2009, e, numa condição até então pouco comum, os norte-americanos perdem a posição de motor daquela economia, enquanto os consumidores dos BRIC - Brasil, Rússia, Índia e China - lideram a sua recuperação. Segundo o economista Jim O'Neill (2010), criador do termo "BRIC", a economia mundial vem gradativamente dependendo de dois pilares: os EUA e os BRIC. Particularmente na China, a demanda doméstica está emergindo como uma fonte de crescimento, havendo a previsão de aumento de 12,4% dessa demanda em 2010. Esse país vem demonstrando um papel crucial na compensação da perda da capacidade de produção e de consumo dos EUA após os dois anos de crise. No que diz respeito às alterações do tamanho do PIB em dólares de 2000 a 2009, os EUA ainda continuam crescendo apesar da crise, mas a China - classificada por O'Neill (2010) como o "fenômeno econômico mais importante" da nossa geração e da de nossos filhos - obteve um desempenho extraordinário, ficando logo atrás dos norte-americanos. Além de ter uma excelente performance no seu ciclo econômico e em especial na atividade manufatureira - na qual os BRIC mostraram forte recuperação -, a China vem ultrapassando os EUA como o principal mercado mundial. Quanto às tendências recentes nas vendas de varejo, por exemplo, o crescimento dessas vendas no território chinês desde 2007 é maior do que a queda de consumo ocorrida nos EUA, de acordo com as estatísticas desenvolvidas pela Goldman Sachs. Embora o crescimento chinês seja visto como "fenomenal", existem questionamentos quanto à capacidade de sustentação desse ritmo, pois não se sabe se tal PIB pode se manter sem a elevação da inflação. É provável até mesmo que o governo chinês necessite limitar essa expansão. Diversos especialistas apontam que o controle da inflação deve ser a prioridade da sua política econômica.

É verdade que o mundo se recupera, embora ainda seja necessária cautela com relação aos EUA - cujo PIB, na previsão da Goldman Sachs, crescerá 2,6% - e aos países desenvolvidos que ainda enfrentam mudanças estruturais - os países da Zona do Euro terão aumento de 1,2%, e o Japão, de 1,9%. A estimativa é de um crescimento de 11,4% para a China, de 8,2% para a Índia e de 4,5% para a Rússia em 2010. Houve uma segunda mudança de projeção em relação à previsão de crescimento do PIB do Brasil: ela foi alterada de 5,8% para 6,4% para 2010. Dentre os BRIC, o Brasil é considerado por O'Neill e por uma série de outros economistas como aquele que apresenta as melhores condições de garantir um crescimento sustentável no longo prazo e pode tornar-se uma das maiores potências globais até 2050. Nas projeções de crescimento das principais economias para 2050, a China lidera o ranking com um PIB quase treze vezes maior que seu PIB atual e duas vezes maior que o dos EUA daqui a 40 anos, seguida de bem perto pela Índia. Pouco abaixo, aparece o EU-5 - cinco países mais fortes da Europa -, seguido pelo Brasil - com um PIB dez vezes maior que o atual - e pela Rússia. Os resultados da China e da Índia podem ser primordialmente justificados por uma "demografia fantástica", enquanto a posição do Brasil pode ser creditada ao bom resultado que o país vem obtendo em diversas áreas relacionadas ao crescimento sustentável. Dentre os BRIC, o Brasil tem o melhor resultado no Growth Environment Score, que considera 13 variáveis que apontam para o crescimento sustentável, a competitividade e a produtividade. O país tem uma pontuação de 5,3 numa escala de 0 a 10, em que pontuações mais elevadas são consideradas positivas para o crescimento. O Brasil é seguido por China (5,2), Rússia (5,1) e Índia (4,0) e, nos itens específicos dessa planilha, obteve uma boa pontuação em áreas como inflação (8,6), dívida externa (8,5) e educação (7,4).

Os objetivos deste artigo são examinar os elementos que explicam o desempenho dos dois BRIC mais bem-sucedidos na superação da crise de 2007-2009 - Brasil e China - e indicar os principais fatores econômicos e políticos que criaram as condições de possibilidade para seu crescimento nesse período. O argumento central aponta que, no campo econômico, a maior solidez do regime macroeconômico e a menor alavancagem no sistema financeiro capitalizado permitiram uma abordagem mais equilibrada de regulação do mercado financeiro. Na dimensão política, tais Estados procuraram aproveitar janelas de oportunidade institucionais buscando desenvolver regras, normas e procedimentos que satisfizessem seus interesses de desenvolvimento e de ampliação de suas autonomia e participação nas principais decisões internacionais. Nas duas seções seguintes, indicarei os principais elementos econômicos e políticos que assentaram as bases para o crescimento do Brasil e da China. Na parte final do artigo, apresentarei algumas recomendações para a composição de uma agenda comum para os BRIC - com ênfase no Brasil - a fim de fortalecerem sua relevância econômica diante dos principais desafios da ordem internacional contemporânea.

 

A economia e o crescimento do Brasil e da China

O Brasil conseguiu sair bem da crise internacional - um período curto de recessão profunda para o país -, o que, na visão de economistas como Fraga (2010), depôs a favor de uma postura de gestão conservadora nas áreas fiscal e financeira no contexto de um "capitalismo gerenciado". Tal crise, segundo Fraga (2010), representou uma "ressaca" após um período de crescimento acelerado e impulsionado pelo crédito, o qual chegou ao final quando se verificou que certas características não eram sustentáveis: os cidadãos dos EUA tinham se endividado demais, e os preços dos imóveis tinham subido de forma exorbitante, além que os balanços das instituições financeiras no mundo inteiro exibiam um grau de alavancagem extraordinário. Com seu prenúncio em agosto de 2007, a crise colocou em marcha um movimento de desmonte dessa alavancagem e foi amortecida porque governos puderam absorver o inchaço de crédito. Isso, todavia, não eliminou o problema: ele foi transferido dos balanços das empresas e das famílias para o desses governos, de forma que não houve uma saída definitiva (Fraga, 2010).

Como grande parte dos países em desenvolvimento, o Brasil entrou na crise com balanços em bom estado, sua economia já vinha superaquecendo, e o Banco Central vinha implementando a tarefa de administração do ciclo econômico. A recessão foi bastante profunda, mas muito curta, na medida em que não havia sinais de superendividamento. Mesmo não tendo uma gestão tão conservadora quanto à da China, o Brasil conseguiu deixar a recessão em dois trimestres e demonstrou capacidade de administrar a crise (Fraga, 2010). Segundo Affonso Celso Pastore, consultor e ex-presidente do BC, a maior solidez do regime macroeconômico - câmbio flutuante, nível considerável de reservas, dívida pública desdolarizada, inflação controlada e superávit primário - e a menor alavancagem no sistema financeiro capitalizado - proibido pelos mecanismos de regulação de operar com ativos perigosos, como os títulos no mercado de hipotecas subprime nos EUA - permitiram uma abordagem mais equilibrada de regulação do mercado financeiro (Dante, 2009) e, como ressalta O'Neill (2010), contiveram uma crise bancária. Fraga (2010) acredita que o país deve crescer entre 6% e 7% por alguns anos a fim de preservar o PIB per capita acima das taxas chinesas: o Brasil tem PIB per capita de US$ 8 mil, superior ao da China - cerca de US$ 4 mil, o que mostra que, mesmo sendo a "grande vedete de mundo" e crescendo a taxas extraordinárias, ela ainda não foi tão bem sucedida do ponto de vista de riqueza. Cabe lembrar, contudo, que o aumento dos gastos públicos no Brasil - em parte resultado de uma política anticíclica - reduz, na visão de grande parte dos economistas, o espaço para o investimento e cria impedimentos para que possa crescer num ritmo mais acelerado nos próximos anos (Dante, 2009).

Dentre os fatores econômicos que justificam o desempenho brasileiro na superação da crise e no crescimento posterior, cumpre destacar as taxas de juros mais baixas - embora ainda sejam elevadas em termos mundiais -, uma economia mais estável e previsível e melhorias legais e regulatórias nos mercados de crédito. O déficit em conta corrente aponta para o fato de que o mundo financia o país para que consuma muito - e assim poupe pouco, o que pode gerar preocupação - e também tenha condições de investir, sendo tal déficit motivado não pelo endividamento como no passado, mas pela entrada de investimentos (Fraga, 2010). Além disso, o padrão de consumo permitiu ao país atuar como um dos principais responsáveis pelo reaquecimento da economia mundial. O Brasil tem um consumidor que segue um estilo "americano" - o que, na visão de Fraga (2010), "não é um elogio ou um insulto, mas uma constatação" - e uma sociedade de consumo bastante animada e exigente, que segue padrões cada vez mais globais. Desde o Plano Real, observa-se uma melhoria no padrão de distribuição da renda e a redução da pobreza; entretanto, o Brasil ainda tem juros altos e um endividamento considerável. Logo, isso exige maior cautela do governo e da população caso as taxas de juros baixem ainda mais: se com as taxas altas o nível de endividamento é alto, com taxas reduzidas pode ser ainda maior. Na dimensão doméstica, o Brasil tem vantagens em relação a outros BRIC - principalmente à China - no que diz respeito à existência de uma sociedade aberta, com mecanismos de discussão e uma imprensa forte e ativa, que exerce um papel importante ao delimitar o debate, expor os fatos e participar da discussão política. Embora tal democracia seja relativamente jovem, essas mudanças permitiram a criação de um ambiente cheio de debates, capaz de enfrentar desafios embora num ritmo mais lento do que os sistemas mais autoritários. Esse ambiente oferece ao empreendedor mais espaço para trabalhar, além de permitir ao país alavancar o mercado de capitais, que tem sido uma fonte de investimento, em especial para o aumento de capacidade produtiva e a geração de empregos (Fraga, 2010).

Já a China tem um sistema de produção e organização muito centralizado e uma taxa de poupança elevadíssima. Tal país adotou, quando partiu para o caminho da liberalização, um modelo social que seria impensável numa democracia, com uma rede de proteção social mínima, quase inexistente, ao contrário da brasileira, mais extensiva em termos de cobertura. Porém, o modelo chinês criou as bases para mais exportações, com uma taxa de poupança muito movida pela atitude de precaução, que tem a ver não só com fatores culturais, mas com as lacunas de proteção social. Ademais, o país consolidou-se como grande centro manufatureiro do mundo, de forma que industriais no planeta temem a concorrência chinesa. Hoje, o país demonstra melhores condições de administrar a situação de transição interrompida em função da crise para um modelo de mais consumo, mais eficiência e menos dependência das exportações. Mesmo que nos próximos anos isso a leve a crescer a taxas de um dígito ao ano, isso não se caracteriza necessariamente como um problema, tendo em vista que o país vem caminhando gradativamente para uma moeda forte e independente (Fraga, 2010). Se pensarmos no crescimento sendo determinado pelo tamanho da força de trabalho e na produtividade, a China tem grande vantagem em face de sua população enorme (O'Neill, 2010). Embora o país tenha tido um excelente desempenho nos últimos 30 anos, tal crescimento enfatiza a pressão sobre os outros países. Uma força de trabalho barata, disciplinada e praticamente ilimitada permite a produção de bens intensivos em trabalho para o resto do mundo mais barata que para os competidores. No longo prazo, isso pode levar a um colapso da produção industrial em muitos países - em particular na Rússia - e intensificar a pressão sobre a política de câmbio chinesa (Aleksashenko, 2010). Ademais, tal Estado encontra problemas sérios no meio ambiente: enquanto o Brasil tem uma matriz energética mais limpa, a China vem sofrendo conseqüências ambientais com o crescimento acelerado por uma matriz menos limpa (Fraga, 2010).

 

A política e o crescimento do Brasil e da China

Para se entenderem os fatores políticos do crescimento do Brasil e seu impacto no processo de inserção internacional do país, é preciso ressaltar primeiramente o esgotamento dos paradigmas americanista e globalista da política externa brasileira, sendo o primeiro baseado numa aliança especial com os EUA, potência global e hegemônica no hemisfério, e o segundo caracterizado pela crítica ao paradigma americanista e às relações de poder assimétricas, pela concepção universalista da política externa e pela busca da unidade entre os países em desenvolvimento para sua projeção no nível internacional (Lima, 1994, p.35-37, 42-46). No momento contemporâneo, a inserção internacional do país parece caracterizada pelo que Pinheiro (2000, p.326) classifica como um "institucionalismo pragmático". Nesse contexto, o país busca atingir objetivos de maior desenvolvimento e de ampliação de sua autonomia por meio de arranjos de cooperação internacionais de diferentes níveis de institucionalização: com níveis mais altos, o país procura ampliar sua oportunidade de voz no nível multilateral - como na OMC, por exemplo - e evitar a dominação indiscriminada de grandes potências; com níveis mais baixos, procura garantir sua posição de liderança em contextos sub-regionais e preservar sua posição de potência média. A flexibilidade para responder aos desafios tanto domésticos como internacionais passa a ser cada vez mais internalizada na posição brasileira, afetando as decisões de política externa a partir da consolidação de um pragmatismo ainda mais aprimorado às suas ações no nível internacional: ao mesmo tempo em que diversifica parceiros comerciais e busca uma participação ativa no gerenciamento de questões regionais e mundiais em organizações como a OMC, o Brasil coopera com os EUA em múltiplas esferas, internalizando posições defendidas por tal superpotência. Esgotam-se, assim, os paradigmas americanista e globalista em nome de uma política externa ainda mais pragmática e assertiva, particularmente visível desde o fim dos anos 1980 e intensificada nas duas últimas décadas.

A imagem internacional do Brasil como país emergente está associada em parte à aspiração presente nas elites brasileiras em posicionar o país como um ator influente na configuração da ordem mundial, reforçando assim seu papel de destaque e seu poder no nível doméstico, e ao desenvolvimento de "fatores de persistência" pela diplomacia brasileira, que atribuem relativa continuidade ao conteúdo da política externa do país, mesmo diante da crise de paradigmas fundamentais que orientavam tal política externa. Dentre tais elementos, podem-se citar a busca de relacionamento pacífico com os vizinhos, o estímulo ao desenvolvimento nacional, a resolução de conflitos por meio da diplomacia e o respeito ao princípio de não-intervenção nos assuntos domésticos de outros Estados, traços de longa data da política externa brasileira, mas cada vez mais enfatizados pelas lideranças desde a década de 1990. Além disso, as tradições culturais apontam para a valorização da grandeza, da unidade nacional e da visão do futuro de prosperidade e de riqueza - a "trindade do sentimento nacional brasileiro", nas palavras do diplomata de Luiz Felipe de Seixas Corrêa -, que também compõe a imagem internacional do país em conjunção ao respeito ao direito internacional, bem como aos principais instituições e regimes internacionais vigentes (Marques, 2005, p.56-57).

A partir dessa institucionalização, a capacidade de exercício de influência em outras sociedades e na posição dos atores no sistema possibilita não apenas conceber o Brasil como objeto da transformação sistêmica, mas como agente que ocupa a posição de país emergente: demonstrando sua habilidade de influenciar mais assertivamente a ação de outros atores apesar de suas capacidades mais limitadas relativamente às grandes potências, o Brasil procurou construir, na interação com os demais atores do sistema, o reconhecimento internacional de sua condição por meio da sua presença de destaque em fóruns regionais e multilaterais, visível na liderança dos países em desenvolvimento na OMC, por exemplo. Esses traços da política externa brasileira justificam-se pelo fato de que, ao mesmo tempo em que o Brasil como "país emergente" viabiliza o diálogo entre as grandes potências e os países subdesenvolvidos e funciona como elemento garantidor da estabilidade e da segurança regionais, ele também opera como catalisador das demandas de inúmeros de países menos desenvolvidos em fóruns onde buscam ampliar suas oportunidades de voz, particularmente em fóruns econômicos multilaterais. Com base nesse papel, o Brasil aproveita janelas de oportunidade buscando desenvolver regras, normas e procedimentos que satisfaçam seus interesses de desenvolvimento e de ampliação de sua autonomia e de participação nas principais decisões internacionais.

Como lembra Marques (2005, p.62), a imagem internacional do Brasil sustenta-se também no soft power exercido em função de seu poder de persuasão e da realização de seu papel de mediação. Para que possa exercer tal mediação, a credibilidade é necessária, e, no pós-Guerra Fria, essa fonte de credibilidade assentava-se em valores como a preservação dos direitos humanos, a consolidação da democracia, o fortalecimento da economia de mercado, a não-proliferação de armas de destruição em massa e a defesa do meio ambiente, de forma que o nível de internalização deles na perspectiva de inserção internacional do Estado passa a definir o grau da participação que ele pode ter nos principais fóruns de concertação político-econômica regionais e multilaterais. Após a redemocratização, as posições internacionais defendidas pelo país passavam a se sustentar também na legitimidade conferida pela abertura de um diálogo mais intenso - embora ainda hoje limitado - com setores da sociedade civil acerca de temas internacionais. Tais transformações nas formas institucionais de ação coletiva e a modificação dos princípios de funcionamento do sistema pela prática política no pós-Guerra Fria são relevantes não apenas na definição da conduta brasileira no nível externo, mas do mecanismo de inserção internacional do país de acordo com padrões internacionalizados com o processo de globalização e vitais na consolidação de sua posição.

O esgotamento do modelo econômico fechado diante da crise fiscal e do avanço do liberalismo no fim da Guerra Fria sinalizava que, diante da necessidade do país de preservar sua estabilidade socioeconômica, a dependência de um único parceiro comercial poderia ser prejudicial em face de crises sistêmicas, ao passo que a superpotência permitia a criação de espaços em que países em desenvolvimento poderiam articular a concertação política acerca de temas de seu interesse, desde que em respeito às instituições internacionais criadas sob a égide de valores e princípios tidos como "universais". Além disso, apesar da crise do terceiro-mundismo, resquícios da crítica às relações de poder assimétricas e a busca da cooperação em nível mundial para a ampliação da projeção de países menos desenvolvidos permaneciam compondo a multiplicidade do processo de inserção internacional brasileira, preservados inclusive por vários setores da elite nacional e do próprio corpo diplomático. Em face de um contexto onde poderia preservar espaços de autonomia e dos traços universalistas que compõem a inserção internacional do país, o Brasil vê que nem a lógica de alinhamento incondicional aos EUA nem uma concepção estritamente globalista de política externa seriam não só estrategicamente interessantes para um país que precisa se adaptar a novos constrangimentos sistêmicos, mas que consolidava seu papel de potência emergente no nível internacional. Embora elementos como a opção pelo institucionalismo tenham sido preservados na ação internacional brasileira, o pragmatismo fortalecido supõe que, em face de recursos limitados de poder, pode ser interessante para o país aderir às normas internacionais densamente institucionalizadas pelas grandes potências ocidentais a fim de ampliar suas oportunidades de voz e, simultaneamente, garantir o exercício de seu poder de forma mais legítima e discreta por meio de organizações de nível mais baixo de institucionalização em nível regional, preservando sua autonomia.

Já a China tem manifestado reiteradamente que a sua inserção internacional no mundo contemporâneo deve ser entendida como uma nova fase histórica caracterizada pela sua "ascensão pacífica", na qual tal país mostra-se mais favorável a fortalecer as suas relações com o exterior. Como apontam Medeiros & Fravel (2003, p.22-26), a China utiliza instituições, regras e normas internacionais como um mecanismo de promoção de seus interesses nacionais. Isso se traduz numa perspectiva mais construtiva e sofisticada e menos conflituosa de sua política externa quanto às principais questões mundiais e regionais, de forma que a flexibilidade e a sofisticação tornam-se características fundamentais de sua posição quanto às relações bilaterais, às questões de segurança internacional e às organizações multilaterais. Tal imagem busca não somente proteger e promover os interesses econômicos chineses, mas ampliar a sua segurança, conter a influência de outras grandes potências como os EUA nas instituições internacionais e viabilizar o exercício do poder de forma mais legítima (Grieco, 1997, p.163-201).

O interesse fundamental de segurança e de consolidação do Estado chinês está ligado não somente à sobrevivência do regime comunista e à consolidação da posse de territórios contestados sob firme controle chinês, mas ao impedimento de conflitos que a China não pode vencer ou que limitariam suas campanhas na busca de modernização econômica e maior influência política. Tow (2001, p.18-21) aponta que, na construção de um poder nacional completo para a defesa do seu interesse fundamental, a China pretende assimilar alta tecnologia do exterior e desenvolver suas capacidades econômicas domesticamente a fim de se afirmar como uma grande potência autêntica no século XXI. Nesse processo, a percepção de que os EUA reafirmam-se como poder hegemônico global afeta a agenda estratégica de Pequim; na dimensão econômica, preocupam as lideranças chinesas as redes de alianças estratégicas norte-americanas que possam minar a sua influência em mercados-chave.

Nesse contexto, a ampliação do número e da profundidade dos relacionamentos bilaterais e regionais pós-1990 permitiram o fortalecimento da coordenação econômica da China com seus parceiros e a sua maior influência ao lidar com as alianças regionais já construídas por grandes poderes como os EUA. Embora ainda reconheçam hoje a preponderância dos EUA em uma série de áreas temáticas, as lideranças chinesas buscam conter o comportamento hegemônico e, assim, maximizar sua influência e racionalizar o exercício de seu poder sobre seus parceiros. Isso ficou visível no maior engajamento na cooperação com Asean por meio do Asean +3 e Asean +1 e na Apec; na criação do primeiro grupo multilateral da Ásia Central, a Organização para Cooperação de Shanghai, para ampliar a cooperação na área de segurança e o comércio regional; e na resolução de disputas territoriais com vizinhos. Tal postura também pôde ser percebida no abandono da aversão anterior às organizações multilaterais, particularmente com o maior engajamento no Conselho de Segurança das Nações Unidas e a participação na OMC. As transformações no conteúdo, no caráter e na execução da política externa da China nessa década representam uma superação de um destaque na humilhação sofrida no passado, claro na caracterização da China por Mao Tse Tung como uma "nação em desenvolvimento vitimizada" e por Deng Xiaoping como uma potência pouco disposta a aceitar grande parte das obrigações e responsabilidades de sua posição. Tal perspectiva reativa é substituída pela adoção da mentalidade mais participativa em face da maior confiança nas décadas de crescimento econômico, agora assumindo responsabilidades cada vez mais variadas (Medeiros & Fravel, 2003, p.23-28). Como sinaliza Tow (2001, p.41-43), a China pode empregar sua adesão em instituições internacionais, seu envolvimento com grandes potências e seu status como parceiro de blocos regionais para ampliar sua alavanca de negociação em face de Washington e Tóquio a fim de garantir arranjos comerciais e de investimento mais favoráveis. Embora ainda não deseje trazer questões problemáticas para discussão em fóruns multilaterais como o status de Taiwan, a China parece estar se tornando mais confortável com arranjos multilaterais, racionalizando sua influência pelos canais institucionais e exercendo seu poder de forma menos custosa e mais previsível.

A atual configuração da política externa chinesa é também resultado de um processo de formulação da decisão menos personalizado e mais descentralizado e institucionalizado, que, ao depender menos de uma única liderança, dá maior relevância aos pequenos grupos e coalizões dentro do governo chinês com perspectivas modernizadoras do conteúdo da política externa do país. A maior qualificação dos diplomatas chinesas contribui para tal resultado (Medeiros & Fravel, 2003, p.29-31). Além dos fatores domésticos, Deng & Moore (2004, p.117-118) argumentam que a globalização - manifesta na maior força das instituições internacionais e na maior necessidade de multilateralismo - alimenta a nova perspectiva de inserção internacional chinesa e pode ser usada para democratizar a ordem ainda liderada pelos EUA e minimizar os efeitos deletérios da política de poder unilateralista. Nesse contexto, as escolhas estratégicas pela cooperação e pela participação em organizações internacionais visam não só a tornar a China mais influente e rica, mas simultaneamente minimizar os receios internacionais com relação ao poder chinês crescente. A nova política externa chinesa sinaliza o potencial da globalização na transformação da política das potências emergentes para uma forma mais cooperativa de competição interestatal, que amplia as perspectivas chinesas de ascensão pacífica. Segundo Tow (2001, p.32-36), os interesses na ampliação do status global chinês e na alteração das regras do sistema internacional fazem com que a China venha não apenas intensificando diálogos na área de segurança, mas também solidificando seus laços econômicos para a conquista de maior estabilidade regional e universal.

 

Recomendações finais

Grande parte dos especialistas recomenda que os BRIC - em particular o Brasil - enfatizem a realização de ajustes macroeconômicos de longo prazo e de mais investimentos em setores como infraestrutura e educação. O'Neill (2010), por exemplo, destaca a necessidade do país de aumentar a pontuação no Growth Environment Scores em áreas importantes nas quais ainda existe muito trabalho a ser feito. Dentre aquelas em que o Brasil não teve bom desempenho, cabe destacar penetração dos computadores (pontuação de 2,1), abertura da economia (2,2), taxa de investimento (3,8), domínio da lei (4,4), acesso à internet (4,7), estabilidade política (4,8) e corrupção (4,9). Na área de educação, embora o país tenha uma boa posição no item na planilha de Growth Environment Scores (7,4), é notório que ainda falte mão-de-obra qualificada, inclusive técnicos em todos os níveis. Ademais, o Brasil investe menos de 20% do PIB, e essa taxa não é suficiente para um crescimento sustentável nos próximos anos. Embora essa taxa já esteja subindo, seria necessário que subisse mais - para cerca de 23% a 25% do PIB em cerca de cinco anos -, o que exigiria poupança, financiamento e capital de risco. A infraestrutura no Brasil ainda é carente, e, se o país continuar a crescer 5% ao ano, é necessário investir mais para que possa manter o padrão de crescimento, em particular em estradas, ferrovias, aeroportos, portos, saneamento e energia. Além disso, o custo do capital no Brasil ainda é alto, mesmo que o país tenha avançado muito no campo macroeconômico e em aspectos microeconômicos importantes, como os determinantes do custo dos empréstimos bancários (Fraga, 2010).

Quanto ao desenvolvimento de uma agenda comum para os BRIC, faz-se necessária a operacionalização da simetria entre os membros do processo de cooperação e do equilíbrio entre eles. Com esses pontos em vista, a agenda poderia cobrir uma participação mais ativa na redefinição e na transformação do FMI com relação à presença no gerenciamento e na execução de pressão institucional sobre as economias maiores, tornando a instituição mais representativa (Aleksashenko, 2010; O'Neill, 2010). Ademais, outras possibilidades seriam o desenvolvimento de um plano para transformar a SDR - uma espécie de "moeda internacional" desenvolvida pelo FMI com o objetivo de tornar o fluxo de valores entre os bancos centrais mais fácil - numa moeda global, vide o exemplo do euro, e a criação de um sistema de pagamentos internacional, que funcionaria inicialmente para os bancos centrais e fundos soberanos e, posteriormente, para os bancos comerciais (Aleksashenko, 2010).

 

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