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Print ISBN 2236-7381

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

A terceira margem do Prata: hierarquias e travessias no processo de integração do Cone Sul*

 

 

Diego Santos Vieira de Jesus

Doutor em Relações Internacionais e professor da Graduação e da Pós-Graduação lato sensu em Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio (IRI / PUC-Rio). E-mail: dsvj@puc-rio.br

 

 


RESUMO

O objetivo é examinar a permanência de estruturas logocêntricas e de formas dicotômicas de pensar que marcam a linguagem e o pensamento dos parceiros no processo de integração do Mercosul nos seus 20 anos. A partir da desestabilização do caráter essencial das oposições binárias e das categorias mutuamente constitutivas entre identidade e diferença, o argumento central sinaliza que, mesmo havendo espaço para o compartilhamento de alguns valores comuns entre os membros do Mercosul e para a mediação com a diferença, continuam operando na relação entre os participantes do bloco aparatos de exclusão em circunstâncias espaço-temporalmente específicas, funcionando como um obstáculo crucial no desenvolvimento de uma identidade mercosulina, que reconheça efetivamente a riqueza da diferença entre os membros, seja compatível com as experiências comuns compartilhadas por eles e transcenda as normas, as regras e os princípios de coexistência previstos no Tratado de Assunção e seus protocolos. Tais mecanismos de exclusão reforçaram a hierarquização espaço-temporal, a partir da qual se tem a concepção da diferença como anomalia ou atraso em termos de seu afastamento dos modelos de desenvolvimento atingidos por determinados membros do bloco. Simultaneamente, desenvolvem-se a atualização e o reforço de visões depreciativas do Outro em críticas às tentativas de legitimação discursivamente estruturada do poder pelos mais fortes.

Palavras-chave: integração regional; política externa; Mercosul; identidade; exclusão


 

 

Tem muitas críticas, mas é importante saber onde a gente estava e aonde a gente chegou. É como se você estivesse nadando, estivesse um pouquinho acima da metade do rio, sentisse cansaço e pensasse em voltar. Nós não temos o direito de voltar.

(Presidente Luiz Inácio Lula da Silva na X Cúpula Social do Mercosul. Foz do Iguaçu, 16 de dezembro de 2010)

Na X Cúpula Social do Mercosul, em dezembro de 2010, o presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva exortou os membros do bloco a avançarem no processo de integração na direção da construção de uma "identidade mercosulina", termo cunhado pelo próprio presidente. Na sua visão, os líderes dos Estados da região tinham superado as disputas em termos de maior aproximação aos interesses norte-americanos e tido inúmeras conquistas, que iam desde o acordo sobre as bancadas nacionais no Parlamento do bloco e a eleição direta de representantes dos países para essa instituição específica até a situação econômica e política "privilegiada" no que diz respeito ao desenvolvimento econômico após a crise financeira mundial de 2008. Embora Lula sinalizasse um nível maior de convergência na relação política entre os membros - "aqui não falamos em bomba nuclear, aqui não falamos em guerra" -, ainda são diversos os impasses à integração com os quais os membros do bloco se deparam. Eles vão desde a falta de um mecanismo eficiente de solução de controvérsias até a dificuldade de desenvolvimento da idéia de integração no imaginário coletivo das sociedades dos seus membros (Oliveira, 2010).

Nos seus 20 anos, o Mercosul, sendo uma união aduaneira imperfeita e uma zona de livre comércio inacabada, viabilizou a aproximação de uma série de posições políticas de seus membros e trouxe avanços na liberalização do acesso a mercados. Apesar de enfrentar desafios como a harmonização de políticas domésticas que distorcem a concorrência, o bloco desenvolveu um modelo aberto e competitivo de integração, que contrastou com os esquemas protecionistas e dirigistas das décadas de 1960 e 1970 e incentivou a disciplina coletiva na definição e na implementação de políticas públicas e setoriais (Almeida, 2002; Vaz, 2001). Porém, ao deslocarmos os sentidos desses discursos concebidos quase como verdades fixas na história do bloco, é possível perceber que as dificuldades no processo de integração são muito mais densas do que as tipicamente mencionadas. Divisões que estabelecem margens onde se colocam identidade e diferença, dentro e fora, apontam para a permanência de formas dicotômicas de pensar e de compreender as relações regionais no Cone Sul. Cabe, assim, desestabilizar essas margens como fundacionais ou dadas, problematizar a fixidez e entender o processo de construção das interações entre os membros do bloco a partir de sucessivos deslocamentos, incertezas e descontinuidades de sentido a fim de romper padrões estabelecidos no estudo do processo de integração, questionar o senso comum e trazer novas perspectivas que levem em conta a flutuação de significados na relação social entre os membros do bloco.

Focando nas descontinuidades do discurso da integração do Mercosul, o objetivo desse artigo é examinar a permanência de estruturas logocêntricas e de formas dicotômicas de pensar que marcam a linguagem e o pensamento dos parceiros no processo de integração. A partir da desestabilização do caráter essencial das oposições binárias e das categorias mutuamente constitutivas entre identidade e diferença, o argumento central deste trabalho sinaliza que, mesmo havendo espaço para o compartilhamento de alguns valores comuns entre os membros do Mercosul e para a mediação com a diferença, continuam operando na relação entre os participantes do bloco aparatos de exclusão em circunstâncias espaço-temporalmente específicas, funcionando como um obstáculo crucial no desenvolvimento de uma "identidade mercosulina". Tal identidade será compreendida neste artigo como aquela que reconheça efetivamente a riqueza da diferença entre os membros, seja compatível com as experiências comuns entre eles e sinalize para uma maior gama de valores compartilhada que transcendam as normas, as regras e os princípios de coexistência previstos no Tratado de Assunção e seus protocolos, viabilizem a busca de uma extensão maior de ganhos comuns e criem as bases para um gerenciamento mais efetivo de problemas coletivos.

Sustento que os aparatos de exclusão existentes até hoje no bloco dão efeito a divisões pelas quais a diferença é compreendida como uma negação da identidade soberana de um centro interpretativo soberano, entendido como uma "realidade maior" ou uma "presença não-problematizada". Tais mecanismos reforçaram a hierarquização espaço-temporal, a partir da qual se tem a concepção da diferença como anomalia ou atraso em termos de seu afastamento dos modelos de desenvolvimento atingidos por determinados membros do bloco, em particular pelo Brasil. Simultaneamente, desenvolveram-se a atualização e o reforço de visões depreciativas do Outro em críticas às tentativas de legitimação discursivamente estruturada do poder pelos mais fortes. Tem-se, assim, que fronteiras e hierarquias não foram superadas enquanto ambições reguladoras modernas no processo de integração no Cone Sul e permanecem demarcando antagonismos, mesmo que sejam rearticuladas constantemente. Na próxima seção, explorarei como a política externa pode contribuir para a perpetuação da exclusão no contexto de um processo de integração regional. A seguir, investigarei como, no âmbito do Mercosul, articulou-se o reforço da hierarquização espaço-temporal com a concepção da diferença como anomalia ou atraso, bem como as narrativas reguladoras que procuraram tolher a diversidade dentro do bloco, sem que houvesse um efetivo reconhecimento da diferença na sua dimensão de riqueza. Focarei neste item as relações do Brasil e da Argentina com os outros dois membros já participantes do bloco e a Venezuela. Antes de tecer as considerações finais, trabalharei a atualização das visões depreciativas no contexto das relações entre Brasil e Argentina.

 

A "política externa" e a "Política Externa" para a integração regional

As comunidades em que estamos inseridos são frutos do pensamento moderno - como o Estado soberano, por exemplo - e serviram como mecanismos de exclusão e de promoção de uma lógica totalizante; ao converterem circunstâncias socialmente produzidas em condições quase naturais, as perspectivas modernas de imutabilidade da ordem política contribuíram para a formação de sujeitos que sucumbem à crença de que as relações entre as comunidades políticas independentes devem permanecer como estão. Nesse sentido, a reprodução de fronteiras é um discurso político, no qual a soberania estatal determinou o que podemos falar, pensar e ser por meio de uma "geometria", uma divisão espacial que exclui o outro. Por meio do estabelecimento de fronteiras abstratas e arbitrárias, ela impôs obstáculos entre o interno e o externo, a identidade e a diferença, e serviu como um mecanismo de exclusão e de promoção de uma lógica totalizante, fixando referenciais de forma artificial e criando espaços políticos diferenciados ao recorrer à ontologia que separa Eu e Outro. Em resposta à articulação espaço/tempo, a "máquina de captura" estatal tenta espacializar o tempo para estabilizar sua existência, colocando o espaço - caracterizado pela fixidez e reificado e naturalizado pelas fronteiras políticas dos Estados - como receptáculo desse tempo, marcado pela mutabilidade e pela fluidez: assim, onde não há Estado, não há tempo, e, conseqüentemente, não há história ou perspectiva de futuro. O Estado disciplina a subjetividade e demarca a identidade ameaçada pela anarquia, e tal perspectiva cartesiana reproduz-se por uma série de mecanismos, como a contenção e a regulação da subjetividade (Walker, 1993, 2005; Shapiro, 2004).

O paradigma da soberania disciplina a ambigüidade e a contingência da história ao diferenciar, hierarquizar e normalizar o local em que opera, mas isso não ocorre com referência a uma fundação pré-dada (Campbell, 1997). Como o Estado moderno é o receptáculo da soberania, a reprodução dessa soberania é necessária para a legitimidade da própria comunidade moderna; logo, fica claro que não há um Estado soberano "natural" justamente porque não há uma fundação "natural" da soberania. Nesse contexto, a soberania não é um conceito estável por não possuir uma significação ontológica pré-estabelecida: o Estado é uma construção intersubjetiva, um efeito de práticas simbólicas e discursivas. Sua autoridade mostra-se interpretativa e performática, de forma que "atua" visando à preservação de seu status ontológico e prático. Os aspectos coercitivos e econômicos de controle foram complementados pelo gerenciamento de disposições e significados dos corpos dos cidadãos a fim de compatibilizar fronteiras territoriais e culturais (Shapiro, 2004; Weber, 1995).

Nesse sentido, a "política externa" - com iniciais minúsculas - passa a ser entendida como uma performance política produtora de fronteiras, que, em vez de voltada para uma preocupação com a interação estatal que ocorre ao longo de fronteiras congeladas e a-históricas, volta-se para uma preocupação com o estabelecimento de fronteiras que constituem, ao mesmo tempo, o Estado e o sistema internacional. A "política externa" passa a ser vista como uma prática política que torna "externos" certos eventos e atores, não apenas situados em oposição a uma entidade social que é vista como pré-dada em abordagens do mainstream, mas construídos a partir de práticas que também constituem o doméstico. Ela é, na verdade, parte de um processo múltiplo que disciplina ao inserir o homem numa organização espaço-temporal de dentro e fora, que localiza os perigos ao homem em termos de ameaças que emergem de outras sociedades (Campbell, 1997). Os desafios e os dilemas da política internacional são, nesse sentido, traduzidos como ameaças a uma identidade supostamente pré-dada e bem-definida na forma de um Estado, cumprindo uma função interpretativa e política particular: a preservação da integridade do Eu e o seu autoconhecimento "na relação com seu próprio entendimento do que a objetividade deve ser" (Walker, 2005, p.2). Permitem-se, assim, a resolução de dilemas e contradições no enfrentamento de novas ameaças e a oferta de justificativas para a ação disciplinadora do Outro: a identidade é concebida em tal eixo analítico como resultado de práticas de exclusão em que os elementos de uma identidade de segurança de dentro estão ligados por meio de um discurso de perigo, com ameaças identificadas e localizadas fora. A "Política Externa" - com iniciais maiúsculas - tem base no Estado e aparece na forma como é convencionalmente entendida na disciplina, operando para reproduzir a constituição da identidade possível pela "política externa" e para conter os desafios à identidade. É, assim, ligada à reprodução da constituição de identidade e à contenção dos desafios a ela (Campbell, 1997).

Hoje, muitos desafios à autoridade do Estado moderno processam-se por perspectivas que falam sobre o "regional" e o "global". A mudança aponta para uma necessidade de uma releitura crítica da soberania e para uma desestabilização dos limites entre o nacional e o internacional. Quanto a tal ponto, Walker (2005) alerta que essa transformação das fronteiras não significa a sua superação enquanto ambição reguladora da vida moderna: ao contrário, tais fronteiras artificialmente demarcadas revelam-se altamente flexíveis a ponto de ainda prevalecerem demarcando antagonismos, mesmo que não permaneçam onde estavam até então. A delimitação de fronteiras continua a significar a definição de autoridade sobre um espaço, revelando-se como o discurso moderno limita nossa percepção de que, mesmo que nos engajemos com os "Outros" além das fronteiras nacionais, continuamos a reproduzir práticas de discriminação desses "Outros" (Walker, 2005, p.9).

Assim, as formas de se lidar com a diferença no nível internacional vem se tornando cada vez mais múltiplas e complexas: 1) a negação dessa diferença, em que a violência é vista como necessária em face da demarcação de fronteiras que excluem o "Outro"; 2) na mediação com a diferença, em que existe espaço para o excepcionalismo e se declara que certas formas de vida estão além dos limites de aceitabilidade; 3) na permissão da diversidade dentro da unidade, em que o sujeito é supostamente livre por estar submisso à autoridade que torna essa "liberdade" possível; 4) na concepção que apelou para uma teleologia de uma história linear e universalizante, que tornou sujeitos modernos todos aqueles submetidos a autoridades criadas na modernidade, como nas narrativas reguladoras de que a razão universal está internalizada no sujeito moderno e de que todos poderão ser capazes de "caminhar rumo à modernidade" e a "um mundo de paz" ao reconhecer o "universal dentro deles mesmos" - segregando, assim, os chamados "imaturos" (Walker, 2005, p.5). Reificam-se, assim, os rituais modernos de presença e ausência ao enfatizar a separação entre o interno e o externo, inclusive dentro de processos de integração regional. Mesmo havendo neles espaço para a mediação com a diferença e haja até o compartilhamento de alguns valores comuns, isso não necessariamente significa que a diferença dentro dos próprios blocos deixe de ser vista como anomalia, disfunção ou mesmo uma ameaça. Isso dificulta a formação de uma identidade comum entre seus membros que realmente signifique o reconhecimento pleno da pluralidade. O que ocorre em diversos casos é a assimilação ou mesmo a imposição de princípios, normas e valores que caracterizam a identidade do ator predominante sobre os demais integrantes do processo.

 

A diferença como anomalia, disfunção ou atraso no Mercosul

Mesmo que muitos especialistas sinalizem que o Mercosul foi um sucesso ao longo de sua história, é possível detectar a persistência não somente de uma série de formas de proteção contra importações de terceiros países, mas também de restrições ao comércio intrarregional, que se mostram incompatíveis com os efeitos dinâmicos da integração econômica. Porém, mais visível ainda dentro do Mercosul é a permanência de um padrão tradicional de comércio entre os membros: o Brasil continua exportando produtos manufaturados e importando commodities dos demais membros. Ademais, o bloco teve papel limitado no estímulo à competitividade das exportações regionais, em especial a de manufaturados para mercados do Primeiro Mundo, e no combate às razões endógenas para a falta de competitividade das importações industriais (Vaz, 2001). Ademais, com a mudança da geografia do comércio internacional na direção da Ásia e a expansão chinesa, a América Latina - mais especificamente os países do Cone Sul - veio perdendo sua participação nas exportações brasileiras após a crise argentina. O Brasil continua um pequeno global trader, embora tenha uma atividade comercial mais diversificada (Sennes et al., 2006).

Muitos fatores que justificam o desempenho limitado do Mercosul no âmbito comercial transcendem as pressões e os constrangimentos sistêmicos mais imediatos, como as tentativas dos EUA de minar a integração na área com a proposição de acordos bilaterais de comércio. No nível intrarregional, permanecem pontos de vista diferentes sobre o processo de integração - que impedem a coordenação de posições - e interesses estratégicos distintos, que acabam tendo precedência sobre a aliança dos presidentes. Muitas dessas divergências advêm da concepção de que Paraguai e Uruguai estão relegados a uma posição marginal na distribuição dos ganhos dentro do bloco por Brasil e Argentina, que concentram a maior parte dos benefícios da atividade econômica estimulada pela integração. Recupera-se, dentro do bloco, uma interpretação linear da história em que os membros aparecem ordenados em "estágios de desenvolvimento" (Jahn, 2000, p.118-122).  A diferença - concebida como "menos capacitada" ou "menos desenvolvida" - é colocada em posições subalternas em escalas de proximidade da organização socioeconômica dos membros mais fortes e dinâmicos economicamente, rotulada como "mais avançada" e "mais adequada" aos parâmetros da atividade econômica internacional. Ao se naturalizar tal categorização, a marginalização dos membros economicamente mais "fracos" se perpetua, mesmo que a interação com os mais "fortes" e "aptos" não seja rompida. A partir dessa categorização, desenvolvem-se uma série de problemas que dificultam a formulação de pontos de vista e interesses estratégicos comuns e, no médio e no longo prazos, funcionam como obstáculo à formação de uma "identidade mercosulina".

Por exemplo, desde 2006, o Uruguai e o Paraguai deixaram claro que se esgotava o tempo para se atenderem suas demandas e assim se garantir a permanência deles no bloco. O Paraguai afirmou que deixaria o Mercosul se o Brasil e a Argentina não interrompessem suas práticas protecionistas em relação aos dois outros membros do bloco ou não permitissem a negociação de acordos bilaterais com países de fora do bloco. Em dezembro de tal ano, diante do adiamento no atendimento de suas reivindicações e da manutenção das posturas excludentes dos membros economicamente mais dinâmicos do bloco, o Uruguai defendeu que o Mercosul deveria flexibilizar as regras de comércio com países de fora do processo de integração, destacando que tanto o comércio com membros como as relações com não-membros não eram incompatíveis. O país pretendia reforçar sua cooperação com os norte-americanos e na ocasião afirmava que, em caso de não-aceitação de acordo de livre comércio com EUA por Brasil e Argentina, poderia mudar seu status no Mercosul para país associado. O Brasil não rejeitava categoricamente a iniciativa do Uruguai de buscar acordos bilaterais, desde que isso não comprometesse o respeito à Tarifa Externa Comum (TEC), um dos eixos centrais do bloco. Os líderes uruguaios alegavam que as falhas do Mercosul impediam novos avanços quanto à ampliação de acesso a outros mercados e que o país assumia "custos significativos", como os da desindustrialização de seus setores menos competitivos e da perda de empregos. O alerta deu-se com a assinatura de um Acordo Quadro sobre Comércio e Investimento com os EUA em 2007, a partir do qual foram feitos acordos para definição de regras e processos, enquadramento de problemas e liberação de mercados específicos antes da assinatura de um tratado de livre comércio. Embora o Brasil tivesse mantido uma postura moderada, o ministro de Relações Exteriores brasileiro Celso Amorim sinalizava que um tratado de livre comércio com os EUA poderia representar um golpe nas negociações na fórmula 4+1 com a grande potência e com a União Europeia.

As dificuldades na integração aprofundavam-se, pois, conforme se reproduziam os discursos sobre a posição subalterna que ambos ocupavam no bloco, o Paraguai e o Uruguai vinham abdicando do exercício de políticas para atrair indústrias em certos setores e abrindo mão de grande parte de seus interesses na industrialização local. Eles passaram claramente a preferir dedicar-se ao comércio de produtos fabricados fora da região em certos ramos como o de química fina, para o que se serviam dos benefícios oferecidos pelo mercado regional, como a preferência de mercado e as vantagens fiscais do Mercosul. O sistema de decisão por consenso adotado pelo bloco, que deveria servir a objetivos comuns de desenvolvimento regional na visão de empresários brasileiros, teria sido desvirtuado: as propostas de instrumentos destinados a proteger indústrias nascentes da competição externa não escapavam ao veto dos países economicamente mais frágeis. Diante do risco de abandono do bloco por Paraguai e Uruguai, a criação do Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem) na segunda metade da década de 2000, dotado inicialmente de US$ 100 milhões, teve como objetivo reduzir as assimetrias econômicas entre os membros do Mercosul, procurando atender às reivindicações do Uruguai e Paraguai. Com a criação do Parlamento do Mercosul em 2006, Lula incentivou os parlamentares a pensar em "políticas generosas para os países menores", vendo que era necessário "compreender" que os países mais poderosos do Mercosul deveriam colaborar com o desenvolvimento dos mais frágeis. Ainda assim, mesmo com essa maior preocupação aparente com a redução das assimetrias intrabloco, hierarquias e fronteiras entre os dois membros mais fortes e os mais fracos perpetuam-se e reproduzem a concepção das diferenças em relação aos Estados economicamente mais robustos como "coadjuvantes", vistas em especial nas reticências à oferta de maior protagonismo ao Uruguai e ao Paraguai pelos dois outros membros. Buscar essa participação mais equilibrada levaria o Brasil e a Argentina a ter que se confrontar com a questão da institucionalidade do bloco para além dos termos em que tem sido tratada, de forma a dotar o Mercosul de autêntica expressão multilateral (Bouzas, 2001).

No contexto da dicotomia entre os "mais fortes" e os "mais fracos" dentro do bloco, a dificuldade na identificação de interesses comuns leva a uma série de rusgas diplomáticas, que, por vezes, revelam as fraquezas das instituições criadas no escopo da integração regional. Um exemplo claro foi a divergência entre Argentina e Uruguai com respeito à construção de duas usinas de celulose financiadas por capital europeu - investimento mais importante realizado pelo Uruguai -, que poderiam contaminar o rio Uruguai. Tal construção foi denunciada pela Argentina, a qual montou barreiras em estradas (Hirst, 2006). Por não considerarem a estrutura institucional do Mercosul adequada para a resolução do problema, ambos os países se enfrentavam, desde dezembro de 2006, na Corte Internacional de Justiça, em Haia. A "guerra das papeleiras" somente foi resolvida em 2010, quando a Corte decidiu que, embora tivesse descumprido as obrigações de informar a Argentina sobre suas intenções de construir a fábrica Botnia em Fray Bentos, o Uruguai não descumpriu suas obrigações de proteção do meio ambiente. Rejeitou-se por unanimidade a indenização exigida pela Argentina por causa dos danos ao meio ambiente e dos impactos ao turismo e à agricultura. Em represália, a Argentina vetou a liberação de repasses do Focem ao Uruguai, sendo os obstáculos retirados posteriormente por Cristina Kirchner como um "gesto de boa vontade" após a eleição de José Mujica.

Outra questão despontou no debate em torno da dupla cobrança da TEC, que se referia à cobrança da tarifa tanto quando um país do Mercosul importava um produto como quando o exportava para outro país dentro do bloco. Desde 2004, a eliminação desse procedimento enfrentava a resistência do Paraguai, pois provocaria um impacto de 20% na sua arrecadação alfandegária. Visando a administrar a situação, foi definido em 2010 um cronograma de eliminação gradual da cobrança dupla até 2014 e sua entrada plena em vigor a partir de 2019. Tal decisão, embora atendesse a uma reivindicação do Paraguai e mostrasse a possibilidade de mediação com a diferença, reafirmava a posição subalterna de tal país no bloco, bem como as hierarquias que dificultavam a revisão das percepções acerca de um papel mais decisivo dos Estados mais fracos nas discussões sobre os temas econômicos.

O tratamento da diferença como "anomalia" ou "disfunção" não se vê somente na interação entre os membros iniciais do bloco, mas também em relação ao país em estágio de adesão: a Venezuela.  Em julho de 2006, na Cúpula de Córdoba, os membros do Mercosul aprovaram o ingresso da Venezuela como sócio pleno. O presidente venezuelano Hugo Chávez mostrou-se a favor de uma maior politização do Mercosul, ressaltando que questões sociais deveriam ser prioridade no bloco e se opondo à iniciativa de Washington de criar a Alca. Dentre os benefícios da adesão venezuelana, cabe destacar a sua importância estratégica, pois compartilha a Amazônia e dá acesso ao Caribe, e o seu peso econômico, devido às suas reservas de gás e petróleo. Ademais, a Venezuela poderia permitir a ampliação do poder de barganha nas negociações hemisféricas em temas contenciosos com os EUA. Porém, diversos problemas também ocorreriam com sua entrada, tendo em vista que Chávez mostrou em alguns momentos oposição ao livre comércio e à integração do setor privado. Ademais, depois de sofrer com controles de preços e de créditos, os empresários venezuelanos temeriam a invasão de produtos brasileiros, além de que a oposição de Chávez a acordos comerciais com os EUA poderia prejudicar acordos do interesse de países como Brasil e Argentina. Tais divergências poderiam ser acentuadas com a tradição de Chávez de não seguir regras que limitassem muito sua flexibilidade, o que levaria ao questionamento de mecanismos como o tribunal de resolução de disputas do Mercosul e à maior dificuldade na coordenação macroeconômica (Bandeira, 2006). No longo prazo, a nova fonte de politização e de divergência poderia minar a consolidação de uma "identidade mercosulina" e disseminar novos estereótipos que contribuiriam para impasses no processo de interação social entre os Estados.

A manutenção da posição relativa do Brasil no bloco dá-se também por meio da difusão de valores e princípios que tolhem a expressão da diferença que represente uma ameaça a seus interesses. Isso já ficara claro por ocasião da incorporação da "cláusula democrática" ao Tratado de Assunção pelo Protocolo de Ushuaia em 1998, motivado pelas ameaças à democracia que eram trazidas por bolsões militares no Paraguai e que poderiam afugentar investidores, receosos de que os compromissos com a consolidação da liberalização econômica não fossem cumpridos. Tal Protocolo foi recebido de forma positiva no nível internacional, pois concedeu uma nova dimensão ao compromisso existente entre os membros do Mercosul ao estipular que a vigência das instituições democráticas era condição para o desenvolvimento do bloco e que as alterações da ordem democrática eram obstáculos à participação no processo de integração (Almeida, 2002). No caso da Venezuela - um Estado em processo de adesão que precisaria incorporar os compromissos de Ushuaia -, ela era concebida como um modelo "atípico", "disfuncional" ou "problemático" de Estado que precisaria ser "domesticado" sob a égide dos valores democráticos que orientam o bloco. Os jogos de rotulações que depreciam a diferença e agressões recíprocas ficaram visíveis em julho de 2007, quando Chávez afirmou que, se em três meses o Congresso do Brasil não ratificasse o processo de adesão de seu país ao Mercosul, ele prepararia "a solicitação de retirada" do bloco. O presidente venezuelano sinalizava que a Venezuela almejava outro sistema de integração na América do Sul e responsabilizava setores do Congresso brasileiro pelo atraso no processo de ratificação da entrada de seu país no Mercosul. Ele afirmava que a oposição do Brasil ao ingresso da Venezuela se devia ao desejo dos empresários brasileiros de eliminar as proteções aos produtores venezuelanos. Além disso, advertiu os brasileiros de que, se a Venezuela não entrasse no Mercosul, eles teriam muito mais a perder do que os venezuelanos. A polêmica começou quando os congressistas brasileiros criticaram a decisão da Venezuela de não renovar a concessão de transmissão da rede Radio Caracas de Televisión (RCTV), tolhendo a liberdade de imprensa e ferindo os princípios democráticos. Chávez respondeu rotulando-os de "papagaios", que repetem as ordens dos EUA.

Observa-se, assim, o soerguimento de fronteiras por ambos os lados que carregam consigo hierarquias e estereótipos e que conduzem à concepção da diferença como alteridade: enquanto setores da sociedade brasileira concebiam a Venezuela como um desvio do modelo de Estado democrático ocidental no que dizia respeito à observância das leis e à preservação do estado de direito e dos direitos humanos que o Brasil defendia internacionalmente, Chávez e outros setores governistas viam o Brasil como caudatário dos EUA, concebido como um poder neoimperialista. Mesmo que a cooperação fosse possível com a Venezuela e se mostrasse interessante na dimensão econômica e de segurança para lidar com problemas comuns - o que justificava a aprovação de sua adesão no Congresso brasileiro, apesar das críticas -, os limites que se colocavam em termos da construção das identidades desses atores a partir da negação da diferença e da sua concepção como repulsiva aos modelos ideais nacionais dificultavam a solução mais duradoura de disputas e a coordenação sobre temas políticos mais substantivos. Até hoje, a adesão da Venezuela ao Mercosul não foi efetuada, pois ela ainda se encontra pendente no Parlamento do Paraguai.

 

As visões depreciativas nas relações entre Brasil e Argentina

Bouzas (2001, p.10-13) argumenta que um dos problemas mais comuns no processo de integração no Cone Sul é a falta de arbitragem dos interesses, percepções e preferências políticas divergentes. Nesse processo, o Brasil via no Mercosul um meio de ampliar seu papel no âmbito internacional, enquanto a Argentina mobilizava-se pela perspectiva de ganhos comerciais mais imediatos, e os parceiros menores esperavam obter ganhos que não se materializavam em face da permanência das assimetrias. Mesmo quando tais diferenças não estavam diretamente relacionadas a preferências incongruentes e era possível identificar uma agenda cooperativa, os membros do bloco pareceram mais preocupados com a administração de conflitos em outras áreas do que com a solução de problemas de coordenação, estruturação e simplificação de agendas no que dizia respeito, por exemplo, à administração da reestruturação produtiva, à promoção do crescimento, à elevação de produtividade e à implementação de posições mais unificadas nas negociações da Alca e com a União Europeia. Na base de tais problemas, está um mais denso que remete diretamente ao foco deste artigo: a dificuldade demonstrada pela Argentina em aceitar um papel-chave de liderança por parte do Brasil em face das assimetrias significativas prevalecentes no Mercosul e das visões divergentes sobre os padrões de desenvolvimento e de inserção internacional buscados pelos dois países. Um líder poderia prover de um ponto focal e de uma âncora para a convergência entre os demais, mas a ocupação dessa posição pelo Brasil não é plenamente aceita pela Argentina e pelos demais membros (Bouzas, 2001, p.10-13).

No mundo contemporâneo, não se pode dizer que a "ameaça brasileira" aos vizinhos adviria de supostos interesses expansionistas na região ou da busca de hegemonia nos termos militares mais tradicionais como no passado. Como lembra Almeida (2002, 2006), o Brasil e a Argentina retomaram o processo de construção de um mercado comum bilateral na década de 1980 que gradativamente permitiu superar os objetivos conflitantes com respeito ao aproveitamento dos recursos hídricos do Prata e a competição militar custosa, então num contexto de redemocratização política e de desenvolvimento de novos esquemas preferenciais permitidos pelo Tratado de Montevidéu de 1980. Mesmo diante de problemas conjunturais graves no contexto da estabilização macroeconômica no Brasil e na Argentina, a liberalização comercial transcorreu de maneira relativamente rápida, mas, nesse processo, não foram solucionadas as "assimetrias estruturais" que levaram o Brasil a uma crescente especialização industrial e a Argentina a uma ênfase nas indústrias ligadas ao setor primário. Num momento em que havia a paridade cambial fixa do peso em relação ao dólar, o Brasil foi provedor de saldos comerciais à Argentina, um país que tinha competitividade reduzida nos mercados internacionais. Isso gerou uma "Brasil-dependência", que se mostrou negativa para os argentinos quando tais superávits não se sustentaram no fim dos anos 90 diante do aumento dos déficits orçamentários e da fraca atração dos investimentos externos (Almeida, 2002, 2006).

A imagem negativa do Brasil pela Argentina foi reforçada após 1999, quando a desvalorização do real e a introdução de regime de flutuação cambial no Brasil geraram não somente a reação do setor privado argentino, mas uma crise político-comercial e de credibilidade externa do Mercosul. O bloco, naquele momento, lutou pela preservação da sua unidade de propósitos em meio a uma "crise psicológica" pelas diferentes posições de seus membros com relação aos rumos da integração. Num primeiro momento, com a permanência dos problemas da competitividade argentina vinculados a seu regime cambial rígido, o Brasil passara a ser visto como uma ameaça por políticos argentinos. Alguns diziam haver um plano deliberado do Brasil para prejudicar os argentinos e afirmavam desconfiar das verdadeiras intenções brasileiras. Mesmo que o então presidente Fernando Henrique Cardoso tivesse deixado claro que essa não era a intenção brasileira, vários líderes argentinos acreditavam que, por trás do estilo aparentemente inofensivo de liderança buscado pelo Brasil, havia mais por trás da preferência por convites para a formação de posições conjuntas nas quais o Brasil poderia atuar como coordenador ou organizador (Burges, 2006). Mesmo que o Brasil evitasse a linguagem de "hegemonia" ou "dominação", a Argentina via uma política prejudicial aos seus interesses, o que atualizava discursos de condenação de um comportamento do Brasil, o qual, no mínimo, tentava resolver seus problemas internos à custa dos vizinhos. A falta de capacidade do Mercosul de lidar com a crise tornou ainda mais evidentes problemas como a ausência de uma estrutura institucional adequada para a solução de controvérsias internas e os abismos criados pelas diferentes percepções dos membros acerca do próprio bloco e pela fraca coordenação de políticas macroeconômicas (Souto-Maior, 1999, p.7-10).

Diante do quadro de crise, a Argentina suspendeu em 2001 a vigência da TEC para um grupo de produtos e estabeleceu novas tarifas para estimular sua competitividade. O ministro da Economia argentino Domingo Cavallo declarava que o Mercosul deveria retroceder ao status de zona de livre comércio e que o Brasil e a TEC eram as raízes do problema de inserção competitiva da Argentina. Num contexto de agravamento da crise política no bloco e de maiores pressões norte-americanas para a negociação da Alca, a saída vista pelos argentinos era uma maior relação com os EUA. Desde 1999, o Brasil vinha se esforçando para preservar o Mercosul e avançar em projetos de integração da infra-estrutura e das cadeias de produção para que setores privados encontrassem reais condições para maior integração. Contudo, mesmo que em 2002 Lula como presidente tivesse feito promessas de reconstruir a relação especial com a Argentina, essa começou a utilizar-se de mecanismos de defesa comercial considerados "abusivos" pelo Brasil, em especial salvaguardas unilaterais e processos de antidumping em setores ameaçados (Almeida, 2006).

A Argentina acusava o Brasil de competição desleal na atração de investimentos, graças a incentivos fiscais que se somavam às economias de escala. O Brasil buscava responder moderadamente fazendo concessões, mas que poderiam trazer conseqüências sérias para o bloco no longo prazo. No setor automotivo, isso foi sentido de forma mais concreta. Com a prorrogação na liberalização total do comércio de veículos e de autopeças, transmitia-se um mau sinal aos investidores internacionais em relação ao bloco. O Mercosul perderia oportunidade de captar investimentos também disputados por países externos ao bloco, como a China e alguns Estados da Europa Oriental. Na visão dos brasileiros, tal questão tinha como pano de fundo a lógica da competitividade mundial, em especial relacionada à criação de um pólo de produção e de exportação no Mercosul. Porém, como ressalta Peña (2004), as deficiências estruturais que prejudicavam a competitividade relativa de setores industriais da Argentina não poderiam ser superadas no curto prazo. Isso fez com que a Argentina pressionasse pela adoção de um instrumento de salvaguardas automáticas, caracterizado como "mecanismo de adaptação competitiva". O projeto argentino de salvaguardas setoriais foi concluído em 2006, mas recebeu pesadas críticas da indústria brasileira. Na linha do argumento central deste artigo, é possível apontar que, novamente, noções de "força" e "fraqueza", "dominação" e "exclusão" são recuperadas por formuladores de decisão, empresários e mídia, alimentando as disputas e reiterando a centralidade de imagens depreciativas da diferença. Se por um lado a Argentina era vista como "fraca" por brasileiros, o Brasil era concebido como "desleal e autointeressado", que tinha como objetivo a preservação de sua posição proeminente em prejuízo dos demais. Visões como essa são acentuadas em períodos de crise e, no longo prazo, dificultam a constituição de imagens mais receptivas à diferença e a formação de uma "identidade mercosulina" pautada no reconhecimento da riqueza da diversidade e na busca de mecanismos mais sólidos de solução de controvérsias.

 

O Prata "está em toda parte" e está também "dentro da gente": considerações finais

Segundo Bouzas (2003), a integração regional no Cone Sul enfrenta os desafios próprios da tarefa de vincular economias em desenvolvimento de tamanhos desiguais, com uma tradição de instabilidade macroeconômica e flutuações motivadas pelas disparidades no comportamento dos membros. Porém, as fronteiras sociais que ainda separam e hierarquizam os membros do Mercosul e impedem uma integração que permita um reconhecimento da diferença na sua dimensão de riqueza e uma resolução de disputas mais efetiva resultam de um processo ainda mais abrangente, que caracteriza não apenas a política internacional contemporânea, mas a política moderna como um todo e inclusive a vida cotidiana. Nesse processo, a reprodução de um discurso totalizante moderno estipulou o que podemos falar, pensar e ser por meio da criação de espaços diferenciados entre o Eu e o Outro. Essas demarcações que carregam hierarquias - que não são fundacionais, mas discursivamente construídas na interação social - obstaculizaram o desenvolvimento de novas formas de interação entre a identidade e a diferença e fixaram referenciais de forma artificial.

Para reverter esse quadro e transcender essa concepção de integração ainda permeada por dicotomias e rivalidades tácitas, seria necessário primeiro resolver questões técnicas triviais a fim de constituir elos entre interesses diversos e nem sempre convergentes e de blindar o processo de integração diante de crises internas e externas. O desenvolvimento de uma agenda tecnocrática prática funciona como um primeiro passo na busca de maior convergência em matéria de política externa, para que assim problemas operacionais construídos ao longo da história sejam solucionados e as prioridades estratégicas possam ser desenvolvidas. Tais decisões começam pelos procedimentos para a remoção de restrições não-tarifárias ao comércio no curto prazo e pela elaboração de um código de conduta para incentivos ao investimento e ao comércio intra-Mercosul. Seria importante aprofundar e rever a estrutura de programas de integração solidária em relação ao Paraguai e ao Uruguai, que permitam o desenvolvimento de uma geometria variável e de arranjos mais efetivos de múltiplas velocidades a fim de capacitar tais Estados à concorrência em condições inicialmente mais favoráveis (Bouzas, 2003). Ademais, o próprio Focem poderia ser usado por empresas privadas a fim de ampliar a eficiência na destinação dos recursos, inclusive em áreas de menor desenvolvimento no Brasil. Para a formulação de uma nova agenda e a ampliação do diálogo entre as sociedades, seria fundamental também a maior participação de empresários e outros setores da sociedade civil no debate, trazendo a possibilidade de mais pontos de vista e o compartilhamento de experiências a fim de se superarem os problemas comuns e se transformarem as visões sobre os demais membros do bloco não somente no nível político, mas no social. Assim, atravessar a terceira margem do que é simultaneamente localizável e não localizável aponta para a desestabilização das formas dicotômicas de pensar e de compreender, redefinindo o saber e as expectativas em relação aos sentidos supostamente dados.

 

Referências bibliográficas

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* As reflexões deste artigo estão inseridas no âmbito das discussões do Grupo de Pesquisa "Discurso, Política e Integração". Agradeço a seus integrantes: Ana Regina Falkembach Simão (ESPM-RS), Clarissa Dri (Unipampa), Erica Simone Almeida Resende (UFRRJ), Fabricio Pereira da Silva (Unila), Flavia Guerra Cavalcanti (UFRJ), Graciela De Conti Pagliari (UFSC) e Maria Izabel Mallmann (PUC-RS), líder do grupo. As idéias contidas neste artigo são, contudo, de minha inteira responsabilidade.