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3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

As políticas de segurança humana e a análise do conflito colombiano durante o governo Uribe: o papel de discursos de capacitação e vitimização*

 

 

Diogo Monteiro Dario

Doutorando- University of St Andrews e Fundação CAPES Email: dmdario@yahoo.com.br or dmd24@st-andrews.ac.uk

 

 


RESUMO

O paper propõe uma análise exploratória de como as políticas de segurança humana transformam o espaço do conflito colombiano durante o governo Uribe. Em lugar que buscar uma definição que circunscreva o conteúdo de tal conceito, vamos tentar identificar distintos padrões de individuação que constituem os indivíduos enunciados como um objeto relevante da agenda de segurança: capacitação e vitimização. Essa estratégia tem como objetivo nos permitir desagregar as diferentes narrativas e caracterizar seus diferentes usos de forma a entender não só suas implicações (de cada um dos diferentes usos), mas também a trajetória nas quais tais usos estão enraizados. Argumentamos que, ambos os casos sugerem transformações consideráveis em relação à narrativa que os originaram. Concluímos que o discurso da segurança humana não tem o efeito de estruturação de um campo dentro do espaço do conflito, que foi a forma como se iniciou essa pesquisa, uma vez que tais políticas estão sendo sistematicamente instrumentalizadas para reforçar uma posição pré-estabelecida do governo vis-à-vis os demais atores. Mas essas práticas não deixam de transformar o espaço do conflito, na medida em que diversifica substancialmente os instrumentos à disposição do governo, e esvazia potenciais espaços de resistência às estratégias de contra insurgência adotadas na lógica do conflito.

Palavras-chave: Conflito colombiano - Segurança humana - Estudos críticos de segurança - Mobilidade humana


 

 

1. Introdução

O objetivo do trabalho é propor uma análise exploratória de como as políticas de segurança humana transformam o espaço do conflito colombiano durante o governo Uribe. Em lugar que buscar uma definição que circunscreva o conteúdo de tal conceito, vamos tentar identificar distintos padrões de individuação que constituem os indivíduos enunciados como um objeto relevante da agenda de segurança. Esperamos que tais padrões nos apontem para diferentes modos de produção de subjetividade que remetem à segurança humana. Essa estratégia tem como objetivo nos permitir desagregar as diferentes narrativas e caracterizar seus diferentes usos de forma a entender não só suas implicações (de cada um dos diferentes usos), mas também a trajetória nas quais tais usos estão enraizados. Nós buscaremos apontar, dentro do contexto do conflito, dois padrões de individuação: capacitação e vitimização; assim como tentar entender como se relacionam.

Argumentamos que, ambos os casos sugerem transformações consideráveis em relação à narrativa que os originaram. As políticas de atendimento aos deslocados internos, pensadas por ativistas de direitos humanos como um instrumento para responsabilizar Estados violadores, são resignificados como práticas de capacitação onde o Estado colombiano gerencia diferentes tipos de instituições para administrar a precariedade das populações estatisticamente identificadas como vulneráveis.

Por outro lado, o processo de construção de um discurso sobre as vítimas, instrumento que tem como objetivo original a identificação de indivíduos e grupos perpetradores de violações, é transformado em uma forma de poder pastoral, onde a onde as narrativas sobre o passado são selecionadas e a memória do conflito é reconstruída de forma a realinhar os indivíduos nos trilhos de uma comunidade política moderna. Nós concluímos que o discurso da segurança humana não tem o efeito de estruturação de um campo dentro do espaço do conflito, que foi a forma como iniciou-se essa pesquisa, uma vez que tais políticas estão sendo sistematicamente instrumentalizadas para reforçar uma posição pré-estabelecida do governo vis-à-vis os demais atores. Mas essas práticas não deixam de transformar o espaço do conflito, na medida em que diversifica substancialmente os instrumentos à disposição do governo, e esvazia potenciais espaços de resistência às estratégias de contra insurgência adotadas na lógica do conflito.

 

2. Segurança humana

A agenda apresentada pelos atores que advogam a idéia de segurança humana implica a noção de que pensar as políticas de segurança tendo como objeto de referência o Estado, na conjuntura atual, pode se mostrar ineficientes ou mesmo contraproducentes em relação ao único fim último que pode servir de parâmetro a tal política: a proteção dos indivíduos. Diante disso, o que esses diferentes atores propõem, também de maneira diversa, é que os desafios contemporâneos demandam o foco estratégico do indivíduo como ponto de partida para a formulação das políticas de segurança (embora o Estado não se exima necessariamente de ser o principal meio através do qual essa estratégia venha a ser efetivada) (MacFarlane e Khuong, 2006, p.26).

Para tentar desagregar as diferentes formulações e atores envolvidas na construção desse senso comum, tentamos analisar assumindo como pontos de inflexão dois eventos: a formulação do conceito pelo Relatório de Desenvolvimento Humano de 94 e a reapropriação do mesmo pela política externa canadense sob o comando de Lloyd Axlworth. Isso não significa que esses diferentes usos do conceito se relacionem de forma etapista, cronológica ou qualquer outra forma de entendê-los a priori. De fato, o mais apropriado para a construção do objeto é engajar-se na análise do contexto mantendo-se o mais agnóstico possível em relação a esse ponto

2.1 Segurança humana, desenvolvimento e capacitação

Desenvolvimento tornou-se uma noção e um instrumento central para a construção da ordem internacional após a Segunda Guerra Mundial, em particular no que diz respeito à relação entre países centrais e periféricos. Nesse contexto foi construído todo um corpo de conhecimento a respeito de como esses países deveriam se integrar, desenvolvido pelos ditos 'teóricos da modernização'. Essa produção tinha duas implicações normativas fundamentais: por um lado estabelecia que os países periféricos tinham que crescer no sentido de copiar o modelo de desenvolvimento dos países desenvolvidos (trabalhos como os de Rowstow e de Barrington Moore Jr. são muito ilustrativos deste aspecto), exemplificado no modelo de uma democracia plena e de mercado. Por outro lado autorizava medias autoritárias para assegurar uma transição estável para esse modelo. Esse corolário foi defendido por um conjunto de autores, destacando-se entre eles Samuel Huntington, em seu livro Political Order in Changing Societies.

A partir aproximadamente da década de 60, os representantes de países ditos periféricos passaram a disputar o significado desse conceito e questionar a relação de subordinação que se exercia através desse modelo de ordem internacional. Eles desenvolveram uma agenda política em fóruns como a Assembléia Geral das Nações Unidas(onde esses países passaram a ser maioria, a partir de um determinado momento do processo de descolonização) e a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD- criada em 1963). Foi nesse contexto que ocorreram iniciativas como a NOEI e a CEPAL, e que a visão da Teoria da Dependência abriu espaço para uma nova agenda para o desenvolvimento: a Teoria da Modernização descrevia a Ordem internacional como composta por estágios de desenvolvimento a serem vencidos pelos países. A teoria da dependência o descrevia como um processo dependente e cíclico que tende a reproduzir a relação entre centro e periferia. Para interromper tal processo, seria preciso repensar o papel do desenvolvimento dentro de uma estratégia política centrada na autonomia do Estado- o desenvolvimento tem que ser entendido como desenvolvimento nacional.

Na década de 90, juntamente com o desgaste da bipolaridade, a agenda dos países periféricos perdeu fôlego. Estratégias nacionais de desenvolvimento passaram a ser eficazmente criticadas por instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Ao mesmo tempo, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD emerge no lugar do UNCTAD como o principal organismo da ONU autorizado a fornecer conhecimento técnico especializado em matéria de desenvolvimento.

Em 1990, o PNUD lança o primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano. Mais do que uma reatualização do conceito de desenvolvimento, o conceito de desenvolvimento humano é uma tentativa mais uma vez de disputar o conteúdo dessa noção, e dessa forma denunciar as tentativas de encapsular o conceito dentro de uma estratégia nacionalista como uma interpretação arbitrária motivada por interesses 'políticos'. Para dar apoio a esse projeto, o PNUD construiu, como o apoio de uma equipe de economistas, dentre os quais se destaca o indiano Amartya Sen, o Índice de Desenvolvimento Humano na tentativa de alterar a referência de observação sobre o desenvolvimento da medida do PIB (que favorecia a formulação de uma estratégia de cunho nacional) para uma abordagem focada no conceito de capacidade, que poderia de alguma forma 'alargar o escopo' das escolhas dos indivíduos, de forma que estas não fossem instrumentalizadas por uma economia política do Estado. De fato, o diretor do projeto do relatório, Mahbub ul Haq, em seu livro 'Reflections on Human Development'(1995) reforça a idéia de que a principal preocupação do projeto é a de 'mudar o foco do desenvolvimento da contabilidade da renda nacional para as políticas centradas nas pessoas'

Os relatórios de Desenvolvimento Humano de 93 e 94 foi quando se buscou deliberadamente construir uma plataforma para o que se chamou de segurança humana. A forma como os termos segurança humana e desenvolvimento humano estão definidos nestes documentos sugere que o objetivo deste posicionamento, nesse contexto, é reforçar, através de um movimento de 'securitização', uma agenda associada a esse novo conceito de desenvolvimento, e não necessariamente reforçar uma agenda associada a algum paradigma humanitário. O desenvolvimento humano é definido em termos de 'alargar o leque de escolha das pessoas', enquanto que 'a segurança humana significa que as pessoas possam execer suas escolhas com segurança e livremente (PNUD, 1994, p.24)

2.2 Segurança humana, responsabilização e a objetividade da violência

Uma importante mudança na apropriação da segurança humana se deu com a instrumentalização do conceito por parte da política externa canadense na segunda metade da década de 90, especialmente sob a liderança do ministro de relações exteriores Lloyd Axlworth. Os canadenses apresentaram naquele momento uma plataforma de política externa fortemente liberal e intervencionista, que dava grande espaço para questões como direitos humanos, direito internacional e questões migratórias. A segurança humana acabou sendo o principal conceito por meio do qual eles sintetizaram todas essas preocupações, embora a agenda que resultasse desse equacionamento não necessariamente convergisse com as preocupações do PNUD.

A primeira conquista importante desta política de segurança humana foi promover e articular as negociações sobre o tratado para proibir o uso de minas terrestres, em 1997. Esse tratado provocou uma série de outras iniciativas no âmbito da plataforma da segurança humana em relação ao controle da produção e venda de armas leves e de pequeno porte.

Posteriormente ao tratado para banir o uso de minas terrestres (chamado de Tratado de Ottawa), a diplomacia Canadense investiu grande energia no apoio à criação do Tribunal Penal Internacional, constituído com o intuito de processar indivíduos por crimes de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional foi concluído e assinado por 122 países em 17 de julho de 1998. Essa iniciativa move a agenda do Canadá de uma abordagem humanitária para uma mais centrada na proteção dos direitos humanos.

Essa tendência se tornaria ainda mais sólida quando em setembro de 2000, o governo criou a Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania do Estado. O resultado dos trabalhos da Comissão é um relatório de cunho altamente intervencionista, sintetizado no princípio chave com o qual foi entitulado- responsabilidade de proteger. Segundo o relatório, o Direito Internacional estabelece a soberania como o principio fundamental da Ordem Internacional, contudo ressaltando que a noção de soberania implica responsabilidade. A responsabilidade que recai sobre o Estado diz respeito à proteção dos seus cidadãos. Quando o Estado é revelado incapaz ou indisposto a cumprir com suas responsabilidades, existe uma responsabilidade residual da comunidade internacional que deve ser automaticamente acionada, e que deve assumir tal função em lugar do Estado.     .

O que está em jogo nessa formulação não é a agência ou a ampliação do escopo das escolhas desses indivíduos, como no caso do PNUD. Aqui a observação da violência física é um elemento determinante da caracterização do 'problema' da segurança. Estas têm como ênfase a objetividade do ato de violência, e dessa forma privilegiam a análise de contextos de conflito armado. Os indivíduos nesse contexto são fundamentalmente caracterizados como vítimas do conflito armado, e a política está voltada para endereçar o atacar aquilo que causa a sua condição de vítima. A desumanidade e o sofrimento da guerra é retratada aqui não como privação, mas como violência física e suas conseqüências.

 

3. Segurança humana na Colômbia

3.1 Segurança humana e desenvolvimento na Colômbia: políticas ara atendimento das populações deslocadas

O fenômeno do deslocamento interno de populações começou a ganhar visibilidade no âmbito das relações internacionais no final da década de 80 e início dos anos 90, dentro do discurso da nova ordem internacional e da reativação do papel da ONU. O que levou as organizações internacionais de direitos humanos a saltarem sobre o caso dos deslocamentos internos foi a repercussão da crise humanitária 
no Sudão, onde o coronel Omar Al-Bashir deu um golpe em 1989. Depois 
estabelecer o regime militar, ele impôs uma lei islâmica a nível nacional 
e mobilizou o exército nacional para o sul do país. Entre 1989 
e 1994, grupos cristãos e animistas que resistiram à implementação da Sharia foram perseguidos.

A enquadramento da questão dentro da agenda da segurança humana se mostrou uma estratégia pertinente porque o contexto sintetizava algumas das preocupações centrais que das organizações que defendiam essa plataforma. Como colocam MacFarlane e Khuong.


"A questão do deslocamento é fundamental para o desenvolvimento da segurança humana no pós Guerra-Fria. Em termos gerais, esses deslocados dentro das fronteiras do que vem a ser seus próprios Estados, são percebidos como minorias hostis para aqueles que capturaram o aparelho estatal. Uma vez que eles não podem, ou não podiam, atravessar estas fronteiras, não usufruem da proteção do direito dos refugiados, em vez disso, eles são submetidos à jurisdição doméstica de seu próprio país. Como afirma Deng: "a abordagem da comunidade internacional em relação à crise dos deslocados internos e a necessidade de proporcionar proteção e assistência está sujeita ao fato de que o problema, por definição, é doméstico e, portanto, está sob a soberania do Estado ". Seu Estado, contudo, geralmente é a maior ameaça para sua sobrevivência. As políticas desses Estados muitas vezes causa seu deslocamento. Considerando esses aspectos, as populações internamente deslocadas são um exemplo fundamental da tensão entre segurança estatal e segurança individual"(MacFarlane & Khuong, 2006, p.220-221)

A idéia central por trás do esforço para institucionalizar a idéia de deslocamento interno a fim de abordar esta e outras situações é a noção de "soberania, como 
responsabilidade ". O conceito de soberania como responsabilidade foi enunciado pela primeira vez pela advogada e ativista de direitos humanos Roberta Cohen, então membro do Refugee Policy Group, em um texto publicado em 1991 sobre a proteção dos direitos humanos das populações deslocadas. Este conceito foi depois re-articulado na formulação do documento 'Responsabilidade de Proteger' (Weiss & Korn, 2006). 

3.1.1 Deslocamento na Colômbia 

O marco jurídico para as políticas relativas a estas populações deslocadas na Colômbia, supostamente inspirada no organismo internacional de literatura 
produzidas no âmbito das Nações Unidas até aquele momento, é a lei 387 de 1997. Esta 
reafirma a responsabilidade do Estado na "formulação de políticas e adoção de medidas para a prevenção do deslocamento forçado, a atenção, proteção, consolidação e estabilização sócio-econômica dos internamente deslocados pela violência "(El Congresso da Colômbia, 1997). O governo argumenta que a questão dos deslocados deve ser considerada uma situação de emergência nacional em função do fato de que seus indicadores sócio-econômicos são mais baixos mesmo do que os das camadas mais pobres do restante da população. Para enfrentar essa situação o governo projetou um conjunto de políticas sociais de bem-estar estruturadas em três etapas: prevenção, assistência humanitária emergencial e de estabilização sócio-econômica. Os
programas de prevenção têm como objetivo eliminar as causas de deslocamento e 
reduzir a sua incidência. Os programas de assistência humanitária buscam atender às necessidades emergenciais da população deslocada durante os três meses imediatamente após o deslocamento. Finalmente os programas de estabilização sócio-econômica são projetados para fornecer as ferramentas aos deslocados para que recuperem sua própria capacidade produtiva (El Congresso de Colômbia, 1997; Ibañez, 2008, p.183-184).

Nos últimos anos a disputa entre os grupos de deslocados buscando seus direitos e o governo Uribe atingiu o sistema judicial colombiano. Em 2004, centenas de deslocados se organizaram para exigir seus direitos questionaram a atuação do governo perante a Corte Constitucional. A Corte então deliberou a sentença T-025 de 2004, considerando a condição da privação e da insegurança a que a população deslocada estava sendo submetida inconstitucional, e exortando o governo a tomar uma série de 
medidas para melhorar suas condições de vida (Corte Constitucional de la 
Republica de Colombia, 2004). Na base desta sentença, o governo tem sido questionado várias vezes sobre o cumprimento das suas ante os deslocados internos. Na última reunião para a revisão de cumprimento da sentença, em julho de 2009, o magistrado Luis Ernesto Vargas concluiu que não só as condições econômicas pioraram mas também a sua vulnerabilidade à violência física, seja dos mais 
localizados nas áreas urbanas, seja no caso dos reassentados no campo (Santana Rodríguez, 2009).

Isso está acontecendo apesar do fato de que o número de programas para 
assistência dos deslocados ter aumentado significativamente, bem como a quantidade de dinheiro direcionado a esses programas. Como afirma o governo na última reunião para a revisão da sentença T-025, o orçamento ampliado a partir de US$ 35 milhões em 2002 para US$ 535 milhões em 2008 (ibidem.). Mas a contradição mais impressionante é que essas pessoas não conseguem melhorar suas condições de vida porque eles não conseguem reinserir-se na sociedade. Como Natália Springer (2006) argumenta, estas pessoas são geralmente estigmatizadas e alvo de suspeita e discriminação. Apesar desse padrão cíclico de mobilidade e exclusão ter claramente como sua origem a violência interna no país, a luta política em torno do tema ficou engessada pela caracterização do fenômeno como um fenômeno sócio-economico. Isso implica a operação de um processo de individuação que descreve a condição do deslocado através da liguagem da privação de bem estar, e é incapaz reinserir apropriadamente o contexto da violência do qual ele é vítima e seu papel na construção de sua subjetividade. 

3.2 A Segurança humana e à proteção das vítimas na Colômbia: a Lei de Justiça e Paz e a Lei das Vítimas 

Apesar disso, por volta de 2004 surgiu na Colômbia um discurso centrado sobre o papel das vítimas nas políticas voltadas para o conflito. Esse discurso foi catalizado por vítimas deslocadas pelo conflito, como Ivan Cepeda, e contou com apoio da rede de organizações envolvida com o assunto. Mas, estrategicamente, esse discurso foi ativado fora do contexto da construção de uma legislação para atendimento das populações deslocadas.

Um conjunto de políticas foi posto em prática para lidar com as necessidades das vítimas a partir de ângulos diferentes, em um esforço liderado pela Comissão Nacional de Reparação e Reconciliação (NCRR) - sob a autoridade do Ministério do Interior e mobilização de grupos de trabalho de diferentes setores do governo. Essas políticas são um produto da Lei 975 de 2005 ou Lei de Justiça e Paz, uma lei que se seguiu uma iniciativa do Governo Uribe para chegar a um acordo com a Auto-defesas Unidas da Colômbia (AUC) para desmobilizar suas fileiras em troca de uma legislação com penas alternativas e um programa para a reintegração de seus membros na sociedade.

Quando analisamos a trajetória desse processo percebemos que, nas fases iniciais das negociações, tratar do tema da vítima não era uma preocupação crucial. O 
acordo firmado com os paramilitares previu sua desmobilização e um processo penal alternativo com o objetivo de estabilizar o país e diminuir as taxas de criminalidade, o que por sua vez, dava legitimidade à política de segurança do governo e gerava alavancagem para uma política ainda mais assertiva em relação à guerrilha.

Esta estratégia só funcionou até a primeira audiência pública com os paramilitares, na Assembléia Legislativa da Colômbia em julho de 2004. Este evento foi marcado pelo contraste entre uma opinião pública que se mostrava cética à versão dos representantes paramilitares e uma elite política que, pela primeira vez, mostrava publicamente todo o seu entusiasmo pelo discurso de Salvatore Mancuso, Ernesto Baez e Ramon Isaza; assim como pela iniciativa em geral. Essa ocasião gerou um debate na esfera pública colombiana através do qual um conjunto de organizações, nacionais e internacionais, puderam fazer repercutir sua posição de que esse acordo implicaria uma atitude negligente e ratificaria a impunidade para os violadores de direitos humanos do conflito. E que isso era deixado claro pela total desconsideração da perspectiva das vítimas, em momento nenhum ouvidas até aquele momento.

O que se seguiu foi uma luta que teve espaço tanto na mídia quanto na Corte Constitucional sobre os termos e a viabilidade de um sistema de justiça transicional. Essa resistência colocou o governo em uma posição complicada, porque diante da emergência dessas novas questões, alguns dos principais líderes paramilitares 
ameaçaram retirar-se da negociação. O mecanismo que resultou dessa disputa manteve o sistema de pena alternativa, mas impôs uma série de requisitos para que se tenha acesso a ele. Para pleitear ser integrado ao sistema alternativo, o candidato teria que concordar em dizer toda a verdade sobre seus crimes e o que mais ele tinha feito, entregar todas as suas armas e os bens adquiridos ilegalmente (que poderia ser solicitado por seus bens adquiridos legalmente, no caso os ilegais eram insuficientes para a reparação) e pedir perdão publicamente. Foi quando o NCRR foi criada para conduzir esse processo, investigar os crimes, e estabelecer a veracidade dos depoimentos e fornecer reparações para as vítimas.

Essa guinada inesperada no curso dos acontecimentos, consolidada na Lei de Justiça e Paz(Lei 975 de 2005), provocou um conflito entre os paramilitares e os negociadores do governo (organizados num orgão de status ministerial denominado Alto Comissariado para a Paz, até recentemente sob a direção de Luis Carlos Restrepo).  Muitos dos paramilitares que estavam na prisão à espera de ser incluídos no sistema de penas alternativas foram extraditados para os Estados Unidos, onde foram julgados pelo crime de tráfico internacional de drogas, com penalidades que poderiam levar a uma sentença de 30 anos (uma vez incluídos no sistema alternativo da Lei de Justiça e Paz, eles poderiam ser condenados a até 8 anos, mesmo quando tendo confessado violações graves de direitos humanos).  O Governo apresentou esta decisão como parte de seu compromisso de levar a justiça para as vítimas, sob a alegação de que tinha novas evidências que agora associavam esses indivíduos ao crime de narcotráfico, mas o que eles não esperavam é que iriam enfrentar resistência de diferentes setores da sociedade, incluindo das vítimas, lideradas por Ivan Cepeda. Eles alegaram que a extradição 
processo negava-lhes o acesso ao que realmente aconteceu. O governo acusou as organizações e seu líder comprometer os seus esforços para justiça e de estar interessado apenas em criticar e desestabilizar o Estado.

Em agosto de 2007, após a desmobilização mais de 30.000 pessoas (entre paramilitares e até mesmo alguns membros das FARC e ELN, que tiveram acesso ao programa), o presidente Uribe declarou que a programa de desmobilização havia alcançado seu objetivo. Para os atores que estavam engajados na promoção do direito das vítimas, contudo, havia uma série de questões pendentes: investigações inconclusivas, restituições financeiras e de terras, responsabilização apropriada dos agentes de Estado, entre outras. Mesmo depois que o governo Uribe decretou que o processo de desmobilização dos paramilitares estava encerrado (embora o mecanismo da justiça transicional continue em vigor, podendo ser acessado por outras pessoas envolvidas num conflito que o governo a partir de então considerava como fazendo parte do passado) esses grupos persistiram, voltados para a formulação de uma lei que fosse mais incisiva em relação às violações de direitos humanos e que previsse a possibilidade de as pessoas demandassem reparações contra crimes e violações dos direitos humanos perpetrados por agentes do Estado. Quando as investigações conduziam a conclusão de que membros da força pública estavam envolvidos em violações de direitos humanos, a estratégia do governo consistia em atribuir-lhes responsabilidade individual pelos crimes, se isentando enquanto instituição de ser diretamente associado ao ocorrido. A necessidade por parte de alguns grupos de assegurar seu direito à reparação enquanto vítimas perseguidas pelo Estado levou o debate em torno da questão da Lei de Vítimas à um impasse. Foi este último ponto que, em última análise inviabilizou que o projeto, após três anos de discussões, por uma ordem executiva direta do presidente Uribe em 2010.

 

4. Conclusão 

Os agentes de segurança na Colômbia foram, durante os anos do governo Uribe, beneficiados com grande autonomia institucional para implementar suas técnicas anti-terroristas e determinar a quais mecanismos de controle os cidadãos devem ser submetidos a fim de garantir a segurança da sociedade. Em tal cenário, não parece intuitivo que políticas de segurança humana, enraizadas num discurso que prescreve a prioridade normativa a preservação do indivíduo sobre a preservação do Estado. Tenham um papel tão abrangente e diversificado.

No entanto, ao analisarmos a transformação das políticas de segurança humana dentro do espaço social do conflito colombiano, observamos a opacização desse elemento normativizador.  O contexto do deslocamento interno na Colômbia tem dois 
características que sugerem-nos uma utilização muito específica de segurança humana.
O primeiro é a predominância de uma racionalidade baseada no desenvolvimento humano, o que não só molda a caracterização do fenômeno do deslocamento com um sendo de 'natureza' sócio-economica, mas também condiciona o processo de decisão e a responsabilidade da sociedade em relação à essa questão como uma relação de assistência, não uma relação de proteção.

O segundo é o controle, da parte das instituições públicas, sobre todas as fases da política relativa aos deslocados internos. Isto não é intuitivo porque, como argumenta Duffield, o que caracteriza as redes de governança da segurança humana é a subcontratação e privatização das responsabilidades de segurança e desenvolvimento que supostamente seriam atributos do Estado (Duffield, 2001, p.45). Isso produz um enquadramento muito diferente das relações de poder que ocorrem nesse contexto. Na Colômbia, essas redes trabalham de uma forma tal que o Estado tem um papel central na coordenação de suas atividades. Estes políticas são esvaziadas, em benefício da sustentação da posição do governo, de seu conteúdo de responsabilização, tornando invisível a violência que está na origem do fenômeno, e no qual parte das forças públicas de segurança e grupos econômicos privados que apóiam o governo tem participação signficativa (Springer, 2006, p.34).

No que concerne ao debate sobre a questão das vítimas, a negociação com os paramilitares permitiu ao governo virar a tendência em relação a gestão do conflito: em vez de tentar alcançar um acordo com os grupos guerrilheiros e desmantelar as redes criminosas através do qual os paramilitares estavam operando, fechou as portas para as negociações com os guerrilheiros, estigmatizando-os sob a retórica da anti-terrorismo, e abriu com os paramilitares com um canal político para negociar sua desmobilização, com a construção de um quadro jurídico ad-hoc que incentivasse a sua participação um sistema de penas alternativas.

O que este debate sobre o papel das vítimas nos mostra é que, não só não tinha o governo de qualquer interesse em expor os resilientes caráter de violência que apresentam a imagem da vítima, ele deliberadamente tentou evitá-lo. Eles conseguiram criar um quadro institucional que disputavam o conteúdo deste discurso sobre as vítimas, e foi relativamente bem sucedida em acomodar essas demandas, enquanto eles poderiam contornar a sua responsabilidade coletiva para a violência como indivíduo 
responsabilidade da parte dos envolvidos. Naquele momento, o discurso sobre a vítima que estava sendo reivindicado tinha um uso diferente: tentou apresentar a vítima como vítima de um conflito do passado. Eles tinham experimentado casos de violência, e que a experiência produziu um trauma que eles eram incapazes de trabalhar. Diante disso, o que o CNRR forneceu foi um procedimento terapêutico através do qual eles poderiam lidar com seu passado e ser reintegrados à sociedade. Na verdade, é realizada uma papel complementar ao do discurso de capacitação. Enquanto o discurso de capacitação advoga a possibilidade de quebrar as cadeias de pobreza e transformar o seu futuro, o discurso das vítimas, através de rituais que envolviam a prática da confissão e a busca do perdão, opera a reconstrução de seu passado, possibilita a coesão de suas identidades de forma a mantê-los em linha com as promessas do discurso da capacitação.

Esta flexibilidade, a capacidade de re-articulação das políticas de segurança humana, e as complementaridades dos discursos de capacitação e vitimização são uma clara indicação de que o discurso da segurança humana não tem um efeito de estruturação de um campo no espaço do conflito colombiano. Nos dois casos o que se nota é a reapropriação de um discurso de forte caráter normatizador, mas um esvaziamento ou opacização desse elemento, que se mantém, contudo, presente retoricamente, se apropriando de um capital simbólico residual. Isso implica que esses não só esses discursos não se mostram capazes de reconfigurar a doxa do conflito, mas que elas podem ser captalizadas de forma a reafirmar essa doxa.

 

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* III Encontro Nacional da ABRI São Paulo, de 20 a 22 de julho de 2011