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ISBN 2236-7381 versión impresa

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Um olhar crítico da nova ordem mundial de Slaughter

 

 

Fabiano L. de Menezes

Doutorando em América Latina pelo PROLAM/USP, onde desenvolve tese sobre a regionalização da proteção dos refugiados na América Latina com bolsa da CAPES. E-mail: f.demenezes@usp.br

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é compreender o desenvolvimento da nova ordem mundial de Slaughter aplicada às relações internacionais. Nesse sentido, serão observados os seus principais trabalhos nessa temática, publicados entre 1993 e 2004. Assim, será analisado que a tese de Slaughter surgiu inicialmente com a proposta de integração teórica entre o direito internacional e as relações internacionais. Nos seus primeiros trabalhos, com base na teoria liberal, ela começa a desenvolver as idéias do "transnacionalismo", foco da sua tese principal. Entre os problemas do argumento de Slaughter é que o Estado, no sentido de poder, não existe mais. O argumento que a autora defende é que o poder do Estado está distribuído nas suas instituições políticas internas, a qual se inter-relacionam com as mesmas instituições dos demais Estados com o objetivo de resolver os problemas do mundo atual. À primeira vista, o argumento de Slaughter faz com que esqueçamos do quadro tradicional de análise teórica das relações internacionais. No entanto,quando o seu modelo é confrontado com questões de poder e interesses, ele perde a sua força. Nesse momento, o modelo tradicional, onde o poder está centrado na figura do Estado, tenderá a prevalecer na análise dos atores internacionais.

Palavras chaves: nova ordem mundial, transnacionalismo, poder de decisão, direito internacional


 

 

Introdução

O objetivo deste artigo é compreender qual o significado da nova ordem mundial de Slaughter. Assim, este trabalho analisará os seus primeiros trabalhos, onde a autora começar desenvolver as suas idéias principais até a publicação do seu trabalho final, em 2004. Ele será dividido em quatro partes. Na primeira, será analisada a sua proposta, com base na teoria liberal, de uma teoria de integração entre o direito internacional e as relações internacionais. Na segunda parte será observada a sua visão do direito internacional em um mundo de Estados liberais. Na terceira, a real nova ordem mundial da autora será observada. Na ultima parte será apresentada uma visão crítica sobre essa proposta. Na conclusão será visto que a proposta de Slaughter para a análise das relações internacionais é relevante porque faz com que, à primeira vista, esqueçamos do modelo tradicional de análise das relações internacionais. No entanto, quando o modelo da autora é confrontado com questões de poder e interesses, o modelo clássico de análise tenderá a prevalecer.

 

1. Como situar o direito internacional dentro do contexto teórico das relações internacionais?

Em uma análise da literatura de direito internacional, tanto brasileira quanto estrangeira, é possível perceber que ele está descontextualizado das relações internacionais.1 O mesmo pode ser observado, em parte, na análise da literatura das relações internacionais sobre o direito internacional.2 Todavia, diferente da literatura de direito internacional, alguns estudiosos das relações internacionais situam esse tópico dentro do contexto da sua disciplina3 Outros, nessa mesma posição, mostram a inter-relação entre ambos.4

A carência do debate da literatura de ambas as disciplinas sobre a importância de cada uma delas para compreender as regras e a realidade do sistema internacional pode indicar para os estudiosos de direito internacional e de relações internacionais que eles estão em mundos diferentes. No entanto, como é reconhecido, não faz sentido estudar uma disciplina sem a outra.5

O direito internacional e as relações internacionais, embora com certo grau de autonomia, estão inter-relacionados em um mesmo sistema: o sistema internacional. O direito internacional tem a sua própria estrutura lógica com suas teorias próprias, como direito natural e direito positivo; seus sujeitos, como o Estado, as Organizações Internacionais (OIs) e o Indivíduo; suas fontes, consagradas no Estatuto da Corte Internacional de Justiça, como tratados, costumes, decisões das cortes internacionais, princípios e a literatura. No topo da estrutura do direito internacional estão as regras relacionadas ao funcionamento do sistema internacional, como as relativas ao uso da força, direitos humanos, meio ambiente etc.6. As relações internacionais estão dentro do sistema político internacional que, do mesmo modo, tem a sua própria estrutura lógica, com suas teorias, como realismo e liberalismo; e seus atores, como o Estado, as OIs, o Indivíduo, as Empresas Multinacionais e as Organizações Não-Governamentais (ONGs).

Como integrar, do ponto de vista teórico, o direito internacional e as relações internacionais? As duas teorias dominantes dessas disciplinas excluíram qualquer idéia de integração. Para o direito positivo, as regras jurídicas é o principal foco dando pouca importância para os aspectos políticos que podem influenciar a implementação do direito. Para o realismo, o foco está no poder e interesse do Estado e o direito internacional teria pouca ou nenhuma significância. Esse é um debate que interessa aos teóricos e estudantes de ambas as disciplinas. Os primeiros trabalhos de Slaughter foram dedicados a esse debate.

Em um artigo publicado no American Journal of International Law sobre a agenda dupla do direito internacional e das relações internacionais7 a autora foca o seu trabalho em três frentes: introduz a literatura relevante dessas duas disciplinas do pós-2ª Guerra, mostrando a convergência entre o institucionalismo e o liberalismo para entender a agenda dupla do direito internacional e das relações internacionais; descreve a agenda institucionalista dos teóricos de ambas as disciplinas; e apresenta a sua proposta de teoria de integração envolvendo a aplicação da teoria liberal das relações internacionais aplicada ao direito dentro e entre as nações.

1.2 A teoria liberal como ponte de integração entre o direito internacional e as relações internacionais.

Slaughter utiliza a teoria liberal como alternativa às teorias tradicionais, como outros também empregam na análise específica das relações internacionais,8 para construir uma ponte de integração entre o direito internacional e as relações internacionais. Para a autora, os pressupostos fundamentais da teoria liberal representam o oposto das teorias, como realismo e institucionalismo, sobre o poder no sistema internacional.9 Os três propósitos que Slaughter adota, com base na teoria liberal, para contrapor a visão das teorias tradicionais são: a) Os atores políticos principais são os indivíduos e grupos privados que procuram promover seus interesses privados; b) As ações dos indivíduos e grupos internos definem o interesse do Estado; c) A agenda do Estado é refletida nas suas preferências e estas determinarão o quanto o Estado estará disposto a barganhar para conseguir o que lhe interessa.10

 Os propósitos da teoria liberal expostos acima, de acordo com Slaughter, indicam uma distinta agenda nos trabalhos interdisciplinares em questões comuns sobre a cooperação e a paz internacional. Os teóricos de direito internacional, por exemplo, que procuram as fontes de relações internacionais para as suas observações descobrirão, com a teoria liberal, novos conceitos para analisar novas áreas do direito. Para os teóricos das relações internacionais, do mesmo modo, interessados no impacto do direito nas suas análises encontrarão, com a teoria liberal, novos campos do direito ou observarão aspectos do direito em um novo formato11

Algumas das agendas interdisciplinares propostas por Slaughter que implicariam nas áreas do direito internacional e das relações internacionais são:

a)Um quadro teórico para o direito transnacional. A autora define o termo direito transnacional como sendo "todas as leis municipais e acordos intergovernamentais que diretamente regula a atividade transnacional entre indivíduos e entre indivíduos e governos".12 Nesse sentido, o direito transnacional poderia contribuir para estabelecer padrões para as interações entre indivíduos e grupos internos na sociedade transnacional. Tais padrões, uma vez estabelecidos, "geram os interesses que formam e obrigam a ação do Estado".13Como os pressupostos da teoria liberal estão focados na interação social de indivíduos e grupos internos como determinantes fundamentais no comportamento do Estado, o direito transnacional, portanto, transforma-se na principal fonte de contribuição à ordem mundial.14
b)Uma análise liberal para o direito internacional público. A teoria liberal pode oferecer contribuições para a análise das organizações internacionais e regimes internacionais. Ela pode fornecer os mecanismos para determinar quando haverá interesses similares que podem ser promovidos por meio da cooperação internacional. Nesse sentido, a teoria liberal estabelece as pré-condições que a teoria institucional define como necessárias para que as instituições sejam fortes e efetivas. Como as instituições são criadas por tratados, elas são "instituições legais" e, portanto, a orientação liberal pode dar uma maior importância para o impacto da lei.15 A autora reconhece inicialmente, o que outros teóricos liberais reconhecem16 que "regimes que governam Estados liberais são susceptíveis de serem mais efetivos em realizar seus objetivos do que regimes que governam Estados liberais e não-liberais". 17Ainda neste trabalho ela não desenvolve esse raciocínio, mas no seu segundo trabalho, que será analisado posteriormente, ela desenvolve a percepção liberal de que os Estados liberais comportam-se melhor do que os Estados não-liberais.
c)Repensando as regras do jogo. Para Slaughter, uma visão liberal das relações internacionais e do direito internacional pode proporcionar uma "nova agenda normativa para o direito internacional" que implicaria em uma mudança conceitual dos mecanismos utilizados pelos teóricos das relações internacionais. Algumas dessas agendas já estão sendo elaboradas por teóricos do direito internacional no sentido de redefinir o conceito de Estado, soberania e jurisdição. 18

Na conclusão, a autora faz algumas afirmações que serão desenvolvidas nos seus trabalhos futuros, como a de que os laços transnacionais entre os Estados que têm os mesmos valores institucionais, econômicos e políticos e permitem que indivíduos e grupos internos tenham ação independente e iniciativas por meio de uma efetiva representação política tendem a aumentar. Do mesmo modo, as suas relações tendem também a ser realizadas de formas diferentes do que as tradicionais. A teoria liberal, segunda a autora, proporciona um quadro conceitual para analisar tais fenômenos que pode beneficiar os teóricos de direito internacional e relações internacionais19

 

2. O direito internacional em um mundo de Estados liberais

Em um artigo publicado no European Journal of International Law Slaughter continua nesse debate entre o direito internacional e as relações internacionais, mas ela introduz o conceito de um mundo de Estados liberais e constrói um modelo do direito internacional baseado em um sistema internacional com esse contexto.20

Para fazer uma generalização entre Estados Liberais e não-liberais a autora desenvolve as características inerentes em um mundo de Estados liberais. São elas: paz, democracia liberal, economia de mercado, uma rede densa de transações transnacionais, comunicação transnacional e colapso da distinção entre política externa e doméstica.21 As razões de Slaughter desenvolver esse mundo hipotético de Estados liberais são: a maioria dos países é composta por Estados liberais; é possível, portanto, aplicar as características inerentes de um mundo de Estados liberais e verificar de que forma as relações políticas e legais entre eles são desenvolvidas; essas relações, por último, podem criar um modelo em como o direito é aplicado em Estados liberais.22

A abordagem liberal das relações internacionais indica que os principais atores são os indivíduos e os grupos internos operando na sociedade doméstica e transnacional. O Estado, nesse caso, procura regular esses atores e capturar algumas de suas preferências. E as preferências do Estado moldam o resultado e as suas interações estatais. Somando as características dos Estados liberais com a percepção liberal das relações internacionais qual seria a função do direito internacional?23 É com esse raciocínio que Slaughter desenvolve a sua proposta da criação de um direito internacional em um mundo de Estados liberais.

Para realização da proposta acima, a autora trabalha com três linhas de análise: rede de relações transnacionais entre indivíduos e grupos governados por regras voluntárias adotadas por associações profissionais, por exemplo; instituições governamentais domésticas, como tribunais e o legislativo, interagindo entre eles no processo de elaborar, selecionar e aplicar as leis que regulam as transações internacionais entre indivíduos e o Estado; e, por último, a que trata das interações interestatais.

a)Relações transnacionais entre indivíduos e grupos. Para mostrar que os indivíduos e grupos são os atores principais,a autora cita o exemplo das leis que regulam a sociedade internacional entre esses atores. A escolha da lei para regular suas atividades é estipulada por eles e não pelo Estado.  Como é o caso das leis referentes ao comércio internacional escolhidas pelos indivíduos para regular a interpretação e a aplicação de acordos comerciais bilaterais entre as partes contratantes. Em caso de disputas oriundas desses contratos, as partes, ao invés de escolher o aparato judicial do Estado, elas podem escolher árbitros internacionais que utilizarão a lex mercatoria como fonte principal.  Nessa situação, são os indivíduos que escolhem as regras que regularam suas atividades transnacionais e o melhor meio para solucionar tais disputas. Não há uma autoridade central para regular tais atividades, ela aparece distribuída em vários centros. Assim, questões como poder e responsabilidade, nesses casos, aparecem espalhadas.24
b)Instituições governamentais transnacionais. Em um mundo de Estados liberais, o Estado não é visto mais como um ator unitário. Ele é composto por instituições políticas independentes (legislativo, judiciário, executivo e agências governamentais) que dialogam, em suas diversas funções, com indivíduos e grupos na sociedade doméstica. Cada instituição é vista como um centro de poder. Em um sistema internacional formado por Estados liberais essas instituições domésticas interagem com essas mesmas instituições dos demais Estados. As interações entre essas instituições domésticas no plano internacional serão desencadeadas pelos indivíduos e grupos. No caso, por exemplo, da escolha da lei a ser aplicada em uma relação transnacional entre indivíduos de diferentes países (direito internacional privado), cada uma das cortes dos Estados liberais reconheceriam umas as outras como unidades respeitando os mesmo objetivos, como imparcialidade e igualdade, tendo como esforço comum fazer com que as relações transnacionais sejam certas e previsíveis. Outra opção de dialogo transnacional entre tribunais é no sentido de permitir uma melhora nos seus julgamentos em questões públicas relevantes. Tribunais em Estados liberais podem procurar saber como questões similares estão sendo decididas nos tribunais de outros Estados.25
c)As relações interestatais. Os acordos entre Estados em um sistema liberal podem ser realizados de maneiras diferentes, segundo Slaughter. O primeiro deles seria para resolver os problemas dos indivíduos e grupos em uma sociedade transnacional que conta também com Estados não-liberais. Esses acordos interestatais teriam o objetivo de facilitar as relações entre os indivíduos e grupos e não fazer com que o Estado intervenha nessas relações. Esses acordos poderiam ser de reunificação familiar, visitas, comunicação, assistência humanitária etc. Outro tipo seria de caráter geral designado para alavancar a cooperação e a regulação de atividades entre os Estados liberais. Em uma sociedade transnacional em que as instituições domésticas dos outros Estados interagem uma com as outras, um acordo interestatal teria o objetivo de institucionalizar as suas práticas para uma melhor cooperação futura. Como os acordos entre os Estados liberais são realizados em um ambiente de confiança mútua, esses acordos têm mais chances de serem aplicados pelos Estados do que os modelos tradicionais 26

O modelo de direito entre Estados liberais, segundo Slaughter, pode funcionar, uma vez que novos atributos seriam desenvolvidos, como por exemplo:

Os Estados liberais são Estados desagregados em diversas partes (legislativo, executivo e judiciário), com cada uma delas com autoridade política;

As atividades transnacionais criam relações entre os indivíduos e grupos e entre as instituições políticas, direta e indiretamente. Estas, por sua vez, se inter-relacionam com o objetivo de defender e promover os interesses daqueles 27

 

3. A real nova ordem mundial de Slaughter

Em 1997, Slaughter publica a primeira versão da sua tese sobre a nova ordem mundial, na revista Foreign Affairs, com o título "a real nova ordem mundial". Ela desenvolve essa tese para contrapor a visão tradicional das relações internacionais dos pós-2ª Guerra onde o objetivo principal era fazer com que instituições internacionais, com o apóio das principais potências mundiais da época, fossem responsáveis pela manutenção da ordem internacional.  Nesse modelo tradicional utópico, as instituições não são independentes dos Estados e tampouco estes transferem seus poderes a elas. Assim, para resolver os problemas internacionais atuais, como terrorismo, crime organizado, degradação ambiental, lavagem de dinheiro etc., é preciso desenvolver novas soluções que possam dar respostas a uma nova ordem transnacional. Nessa nova ordem, o Estado não está mais no centro de atenção, como um ator unitário poderoso. Ele continua presente só que de maneira diversa. 28

O Estado, como Slaughter já mencionava na sua tese sobre Estados liberais, está desagregando em diferentes partes autônomas e com poder, como judiciário, executivo e legislativo. A novidade dessa nova ordem transnacional, que a autora chama de "transnacionalismo" é que essas instituições políticas, relativa aos Estados democráticos, estão mantendo contatos com suas similares nos demais Estados com o objetivo de resolver os problemas do mundo atual. Esse novo "transnacionalismo" já se transformou no principal modelo de governança mundial.29

Entre os exemplos que Slaughter cita dessa nova era são organizações criadas no passado, mas que podem servir de exemplos para as novas instituições internacionais, como por exemplo, o Comitê da Basiléia de Supervisão Bancária (Comitê da Basiléia), e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD).30

O Comitê da Basiléia criado em 1974, pelos presidentes dos bancos centrais dos países do então G-10. Atualmente 27 países, incluindo o Brasil, têm suas autoridades bancárias presentes no comitê. O comitê não tem nenhuma autoridade supranacional e suas conclusões não tem nenhuma força legal. No entanto, ele é muito citado pelas autoridades financeiras internas quando o assunto em pauta é fiscalização e solidez do sistema bancário. O seu objetivo é formular guias de fiscalização bancária e recomenda declarações de boas práticas no sentido de fazer com as autoridades nacionais bancárias irão fazer com que tais medidas sejam implementadas internamente. Assim, o Comitê da Basiléia promove a convergência de abordagens comuns, sem nenhuma pretensão de harmonizar as regras técnicas dos países membros. 31

A OECD, criada oficialmente em 1961, por países europeus e não-europeus, conta com 34 Estados-Membros de todas as partes do mundo - o Brasil está próximo de tornar-se membro permanente. O seu objetivo é servir como fórum em que os governos possam trabalhar juntos para compartilhar experiências e buscar soluções para problemas comuns. A OECD é bastante conhecida na área de estabelecer padrões internacionais e modelos de conduta, desde questões como segurança nuclear, tributação, governança corporativa, práticas ambientais à qualidade dos alimentos.32

Para Slaughter, o modelo de rede de burocratas, como o Comitê da Basiléia, ou a OECD, podem ser mais eficiente em responder a uma crise internacional e prever crises futuras, do que os modelos tradicionais, que não tem tanto flexibilidade e efetividade, como as instituições internacionais tradicionais (p. 185). Outro exemplo, que poderia, em parte, ser enquadrado na tese de Slaughter, é a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional de 2000, em vigor desde 2003, conhecida como Convenção de Palermo.

O objetivo da Convenção de Palermo é promover a cooperação mútua entre as instituições políticas dos Estados, como judiciária e financeira, para prevenir e combater o crime organizado, como tráfico internacional de drogas, lavagem de dinheiro, tráfico de pessoas, tráfico de armas etc. O tema que trata a Convenção de Palermo é um exemplo da necessidade de existir um diálogo entre todas as instituições políticas internas do Estado para resolver a questão do crime organizado. Essas instituições precisam criar condições para dialogar com as suas similares nos demais Estados-Membros para que o crime organizado possa ser enfrentado.

No Brasil, por exemplo, foi criado o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), que é a autoridade central brasileira nesse tema. O DRCI é ligado ao Ministério da Justiça e tem como objetivo articular e colaborar com as polícias, o Ministério Público, o Judiciário e as instituições competentes para recuperar, no Brasil e no exterior, ativos que tenham origem em atividades ilícitas. 33

Do outro lado, o argumento de Slaughter de que as organizações internacionais tradicionais, criadas no pós-2ª Guerra, não têm condições de dar uma resposta rápida a uma crise internacional e prever crises futuras, pode estar certo, em parte. A ONU, por exemplo, ainda mantém uma estrutura criada há mais de 60 anos. E qualquer forma de alteração da sua Carta é barrada pelos "vencedores da guerra" pelo poder de veto. A questão que surge é saber se o modelo do Comitê da Basiléia e a OECD pode ser um exemplo das novas organizações internacionais do futuro. Na crise dos títulos subprime americanos de 2009, nenhuma organização internacional tradicional tampouco essas duas citadas previram que uma crise estava prestes de eclodir.

Outros autores, seguindo nos passos de Slaughter, aprofundam na questão das redes transnacionais e reconhecem que elas podem melhorar a regulação doméstica, fazendo que os governos sejam eficazes e, em conseqüência, facilitando no respeito às obrigações internacionais. Por conseguinte, na era do "transnacionalismo", os tratados e as organizações internacionais tornariam-se, diferente do pensamento de Slaughter, mais importantes e não irrelevantes.34

A área da justiça é bastante citada por Slaughter como exemplo do novo "transnacionalismo", o que vem gerando críticas dessa visão.35 Para ela, os juízes, nacionais e internacionais, estão se relacionando e conhecendo as decisões dos seus pares do exterior. Ela cita o exemplo de tribunais constitucionais de alguns países que procuram as decisões da Suprema Corte americana para basear suas decisões.36 A autora cita também como exemplo, a iniciativa da criação da Organização das Cortes Supremas das Américas pelos juízes da região, como forma de aproximação e diálogo entre eles. Essa organização entrou em vigor depois da ratificação de 15 Supremas Cortes, em 1996.

Embora haja evidencia de um maior diálogo entre juízes de diversos países e a procura por fundamentação em decisões similares, a prática brasileira, ao contrário, mostra total descompromisso em citar decisões estrangeiras, até mesmo as da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), como fundamento às suas decisões.37

A decisão sobre a questão da lei de anistia brasileira, em 2010, é um exemplo que mostra que esse argumento sobre o descompromisso com decisões alheias parece estar correto, tendo em vista que a corte brasileira decidiu de maneira contrária do que vem decidindo a CIDH nos diversos casos similares na região.

Ao final, Slaughter conclui que o modelo desse novo "transnacionalismo" consegue dar uma resposta para alguns dos desafios dos países industrializados na era da globalização e informação tecnológica, como a perda do seu poder regulatório e a questão do "déficit democrático".38

Em 2004, Slaughter publica a sua tese principal, com o seu livro "a nova ordem mundial" que é um reflexo mais aprofundado e completo das suas idéias anteriores. No entanto, diferente do seu artigo de 1997, ela faz uma ressalva: 39

Diferentes Estados desenvolvem e continuarão a desenvolver mecanismos para reagregar os interesses de suas instituições distintas, quando necessário. Em muitas circunstancias, portanto, os Estados ainda interagem entre si como atores unitários nas formas mais tradicionais.

 

4. Os Estados liberais comportam-se melhor que os Estados não-liberais?

Um dos problemas de Slaughter, que alguns autores identificam, é a sua visão que os Estados liberais comportam-se melhor do que os Estados não-liberais.40 Os EUA, por exemplo, podem ser considerados um exemplo de Estado liberal. Na área dos direitos humanos, por exemplo, os EUA são reconhecidos pela sua não aderência em diversos acordos internacionais importantes, como Minas Terrestres e Tribunal Penal Internacional (TPI), e não reconhecem a jurisdição internacional de tribunais de direitos humanos, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Comentando sobre o fato dos EUA não assinarem os tratados de Minas Terrestres e o do TPI, Malanczuck reconhece que eles continuam não dando um bom exemplo no tocante ao desenvolvimento do direito internacional. Esse autor concluiu que:41

Nos casos do Tratado de Erradicação de Minas e do TPI, grande parte da comunidade internacional, incluindo os aliados dos EUA, decidiram ir em frente sem os EUA. Eu concluiria que os EUA não foram deixados de lado, mas ao contrário foram eles mesmos que se deixaram de lado...

Outros Estados liberais também não podem ser considerados exemplos de conduta para os Estados não-liberais em questões de asilo, por exemplo. Ainda que eles tenham ratificado a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 (Convenção de Genebra) e o seu Protocolo Adicional de 1967, alguns deles, como Alemanha, Reino Unido, o próprio EUA e a Austrália, impõem diversas restrições no direito de um indivíduo, que se enquadre no conceito legal de refugiado, de ser reconhecido como tal, em uma clara violação da Convenção de Genebra42

Outro ponto que causa certa complexidade no argumento de Slaughter é que o Estado não é mais unitário e o seu poder está sendo distribuído com outros atores políticos domésticos. Embora isso possa estar acontecendo, a palavra final, em casos envolvendo questões de poder continua sendo do Estado unitário. Pela razão que é ele que detém o poder final de decisão. A Guerra do Iraque, em 2003, pode ser considerada um exemplo do poder final de decisão do Estado.43

 O caso do italiano Cesare Battisti, no Brasil, mostra essa realidade do poder de decisão do Estado. No primeiro momento, o governo concedeu o status de refugiado ao italiano. No segundo momento, o Supremo Tribunal Federal (STF), negou o status de refugiado e concedeu a extradição ao governo italiano, mas com uma ressalva: a última palavra cabe ao Presidente da República. No fim, o Presidente não reconheceu a extradição e permitiu que Cesare Battisti ficasse no Brasil, reconhecido pelo STF em 2011.

Por último, uma questão problemática defendida por Slaughter é que ela desconsidera o interesse interno nas cortes nacionais, uma vez que as cortes dos Estados liberais, em casos envolvendo disputas transnacionais, atuariam com imparcialidade e igualdade. No entanto, estudos sobre a análise jurisprudencial das cortes nacionais em questões internacionais têm mostrado que as decisões nacionais tendem a proteger os interesses internos dos seus governos.44

 

Conclusão

A nova ordem mundial de Slaughter surgiu com a sua proposta de integração entre o direito internacional e as relações internacionais. No seu trabalho inicial, com base na teoria liberal, ela começa a desenvolver as idéias do "transnacionalismo", foco da sua tese principal. Em seguida, Slaughter desenvolve uma proposta de criação de um direito internacional em um mundo de Estados liberais onde as seguintes características estariam presentes: paz, democracia liberal, economia de mercado, uma rede densa de transações transnacionais, comunicação transnacional e colapso da distinção entre política externa e doméstica. Posteriormente, a autora publica a sua nova ordem mundial onde ela apresenta uma visão das relações internacionais em que ela é formada por atores políticos domésticos (executivo, legislativo e judiciário) que se inter-relacionam com os as mesmas instituições dos demais Estados (liberais) com o objetivo de resolver os problemas do mundo atual.

O problema dos argumentos de Slaughter é que na análise das relações internacionais é difícil fazer a distinção entre Estados liberais e não-liberais para encontrar resposta para o grau de aceitação ou não do direito internacional ou de cooperação entre os Estados. No âmbito doméstico, ao contrário, é possível encontrar a diferença entre esses Estados no tocante ao respeito do estado de direito, por exemplo. Como foi visto na questão dos direitos humanos, os Estados liberais, em especial os EUA, têm diversos problemas em reconhecer alguns desses direitos no âmbito internacional. Assim, os Estados liberais não podem ser considerados exemplos de comportamento no reconhecimento do direito internacional.         .

Outra complexidade do argumento de Slaughter, onde ela, posteriormente, faz essa ressalva, é que o Estado unitário, no sentido de poder, não existe mais. A razão é que o poder do Estado está distribuído nas suas instituições políticas internas. Em determinadas situações internacionais, diferente das internas, alguém sempre dará a palavra final, mesmo contrariando outras decisões, quer sejam elas de tribunais ou organizações internacionais, em respeito a interesses específicos, que a teoria realista pode explicar melhor. E esse alguém será sempre o Estado unitário.

Ao contrário, o argumento de Slaughter que as organizações internacionais tradicionais, criadas no pós-2ª Guerra, não têm condições de dar uma resposta rápida a uma crise internacional e prever crises futuras, pode estar certo, em parte, como foi colocado. A questão é saber se o modelo do Comitê da Basiléia e a OECD pode ser considerado como um exemplo das novas organizações internacionais do futuro. Só o Estado poderá tomar essa decisão.

O mérito da proposta da autora é que, à primeira vista, ele permite que esqueçamos o Modelo tradicional das relações internacionais. No entanto, quando a tese de Slaughter é confrontada com as questões de poder e de interesses, ela perde a sua força. Nesse momento, o modelo tradicional, onde o poder está centrado na figura do Estado, deverá prevalecer. Embora haja evidência do crescimento do modelo do "transnacionalismo", enquanto o poder final de decisão continuar nas mãos de um único ator, o modelo tradicional de análise das relações internacionais tenderá a prevalecer.

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1. RESEK, 2010; CASELLA, 2008; MALANCZUCK, 1997.
2. PECCEQUILO, 2004; BROWN, 2001.
3. PAPP, 2002, p. 380.
4. SCOTT, 2004.
5. SLAUGHTER, 1995, p. 503.
6. SCOTT, 2004, p. 88.
7. BURLEY, 1993. Nessa época, a autora era identificada como Anne-Mary Slaughter Burley. 
8. MORAVICSIK, 1997.
9. BURLEY, 1993, p. 228.
10. Ibid., p.227-228.
11. Ibid., p. 228.
12. Ibid., p. 230
13. Ibid.
14. Ibid.
15. Ibid., p. 233.
16. DOYLE, 1986, p. 1551.
17. BURLEY, 1993, p. 233.
18. Ibid., p. 235-236.
19. Ibid., p.238.
20. SLAUGHTHER, 1995, p. 503.
21. Ibid., p. 510.  
22. Ibid., p. 514-515.
23. Ibid., p. 515.
24. Ibid., p. 518-521.
25. Ibid., p. 524-525.
26. Ibid., p. 530-32.
27. Ibid., p.534-535.
28. SLAUGHTER, 1997, p. 183-184.
29. Ibid., p.184-185.
30. Ibid.,196.
31. Cf. sobre o Comitê da Basiléia em www.bis.org (Acesso em 14/6/11).
32. Cf. Sobre a OECD em  www.oecd.org (Acesso em 14/6/11).
33. Cf. Sobre o DRCI em www.mj.gov.br (Acesso em 14/6/11).
34. RAUSTIALA, 2002/2003, p. 7-8. 
35. MILLS; STEPHENS; 2005.
36. SLAUGHTER, 1997, p. 186-187.
37. Esse argumento sobre o caso brasileiro foi abordado pelo prof. André de Carvalho Ramos em sua palestra no VIII Congresso Brasileiro de Direito Internacional, realizada em Foz do Iguaçu, em 19 de agosto de 2010.
38. SLAUGHTER, 1997, p. 197.
39. SLAUGHTER, 2004, p. 18.
40. ALVAREZ, 2001, p. 183.
41. MALANCZUCK, 2000, p. 90.
42. GIBNEY, 2004.
43. MENEZES, 2010, p. 21.
44. BENVENISTI, 1993, p.159.