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ISBN 2236-7381 versión impresa

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Soberania e diferença nas Nações Unidas*

 

 

Felipe Bernardo Estre

 

 


RESUMO

Este trabalho visa questionar a Soberania enquanto conceito absoluto e atemporal a partir de uma reflexão sobre intervenção humanitária, especificamente, o caso somali. A hipótese é que, mais do que simplesmente um princípio organizador, a Soberania é uma prática discursiva excludente, que intensifica as dificuldades em lidar com a diferença no âmbito internacional. Entretanto, lidar com a diferença é uma questão fundamental vis-à-vis a diversidade do mundo no qual vivemos. A dificuldade das Nações Unidas em lidar com os chamados Estados-falidos pode ser mais bem compreendida a partir dessa reflexão. Argumenta-se que há tensão entre a concepção tradicional de Soberania como princípio universal e absoluto e sua constituição eminentemente social. Entretanto, como é indelével no caso da Somália, as interações sociais podem criar formas alternativas de governança que são capazes de garantir relativa estabilidade e ordem. Tais formas alternativas de governança, porém, podem entrar em conflito com a pretensão à autoridade absoluta da organização estatal.

Palavras-Chave: soberania, Somália, Nações Unidas


 

 

INTRODUÇÃO

"[...] the more sovereignty is thought to explain, the more it itself is withdrawn from explanation. The theoretical sovereignty of sovereignty leaves sovereignty itself essentially unquestioned; the more constitutive sovereignty appears to be, the less unconstituted it becomes."
Jens Bartelson1

 

Nas teorias das Relações Internacionais, a Soberania é normalmente apontada como o "princípio ordenador" das relações entre os Estados, como o principal pilar do sistema internacional moderno. Tanto neorealistas como neoliberais encontram no Estado soberano uma amálgama entre autoridade, território, população e reconhecimento2. Após os atentados de 11 de Setembro, à sua ligação quase automática com Estados-falidos e às decorrentes intervenções, esse tema parece ter mais uma vez sido colocado no centro do debate internacional. Entretanto, diversas questões com as quais nos deparamos na cena internacional parecem não corroborar com a tese supracitada. Apesar dos esforços internacionais, a falência de Estados é um problema recorrente e cuja solução, em muitos casos, não parece ter sido encontrada. Este trabalho visa questionar a uma concepção atemporal e absoluta de Soberania estatal. Pretende-se, por extensão, questionar a suposta ligação orgânica entre Soberania, Estado, autoridade suprema e ordem.

Na primeira parte do trabalho, será feito um estudo teórico sobre a Soberania, fundamentado especialmente nas discussões de Biersteker e Weber, Walker e Inayatullah e Blaney. Em seguida, será avaliado como a Organização das Nações Unidas (doravante ONU), na medida em que é reproduz este discurso, acaba presa às condições de possibilidade por ele colocadas. Será feito um estudo de caso, a Somália a partir de 1992, no qual as tensões entre esse conceito estático de Soberania e os problemas que devem ser enfrentados na cena global são marcantes. Por fim, conclui-se, que antes de ser a solução, a necessidade de se proteger o princípio da Soberania enquanto solução absoluta para as mazelas do sistema internacional pode ser causa de instabilidade e desordem.

Cabe ressaltar que este estudo não se propõe a defender warlords, tão pouco afirmar que a comunidade internacional deve permanecer estática frente ao genocídio e outras violências cometidas por grupos estatais ou não-estatais. Tão pouco pretende colocar formulações alternativas e não excludentes de Soberania. Pretende-se apenas questionar esse conceito, problematizá-lo, e ver como ele é constitutivo do imaginário político contemporâneo.

 

SOBERANIA E DIFERENÇA

A Soberania tradicionalmente é vista como a regra básica que garante a convivência estre os Estados, a ordem no sistema internacional. Teóricos da Sociedade Internacional, como Hedley Bull, neorealistas como Waltz e Gilpin, ou neoliberais como Keohane não parecem questionar que a Soberania tenha sido imune às diferenças ideológicas da Guerra Fria, à emergência dos Estados Unidos como maior potência global, à descolonização, à globalização e a revolução nas comunicações e nos transportes. A Anarquia, resultado de um sistema povoado por Estados territoriais soberanos, continuaria sendo um paradigma do atual sistema internacional3. Carl Schmitt vê no Estado soberano a grande herança européia para o mundo, na medida em que é graças a ele que a as guerras puderam ser restritas, não eram mais guerras de aniquilação, como as guerras religiosas4. Por esse motivo, a Soberania é vista como a grande responsável pela manutenção da ordem no sistema internacional, portanto, como um princípio a ser protegido e defendido.

Contudo, em todos esses casos, o princípio da Soberania, uma vez estabelecido, parece adquirir um caráter atemporal, absoluto, universal. "Naturalmente" essa forma "triunfante" de organização expandiu-se até tomar todo o globo. O Estado seria a autoridade suprema em seu território, e não há autoridade suprema entre os Estados. A partir do Estado territorial soberano, diplomacia, balança de poder, instituições garantem estabilidade. Em outras palavras, o caráter e a localização da identidade política moderna foram naturalizados no Estado soberano.

Porém, como aponta Walker, essa estratégia não é natural, tão pouco universal, mas foi o meio encontrado no início da modernidade para lidar com a tensão entre a universalidade e a particularidade.5

[…] the principle of state sovereignty offers both a spatial and a temporal resolution to questions about what political community can be, given the priority of citizenship and particularity over all univesalist claims to a commom human identity. [...] Spatially, the principle of state sovereignty fixes a clear demarcation between life inside and outside a centred political community. Within states, universalist aspirations [...] may be realisable, but only within a spatially delimited territory.6

Essa resolução espacial, de acordo com Walker, permite que seja articulada uma resolução temporal a esse problema. Dentro dos Estados, é possível que haja evolução, história. No plano internacional, há apenas a contingência, a recorrência7.

Inayatullah e Blaney, retomando essa temática, chamam essa estratégia de lidar com a tensão entre o universal e o particular de "deferral of difference". Ela é composta por dois movimentos distintos, mas associados, um espacial e um temporal8. O primeiro, espacial, se fundamenta na separação interno/externo. A diferença é encapsulada dentro das fronteiras dos Estados. A diferença é restrita às relações entre os Estados, e, dessa forma, o problema é "resolvido" pela negociação entre essas unidades em sua convivência. A diferença pode ser contemplada, administrada, ignorada, silenciada, erradicada ou banida pela autoridade soberana, a qual possui o monopólio legítimo do uso da força. Por outro lado, além das fronteiras do Estado, a diferença é ignorada. O sistema internacional é formado, de acordo com essas narrativas, por like-units. É um espaço anárquico e homogêneo. Essa estratégia especial permite que se articule uma estratégia temporal de desviar da diferença. Consiste em substituir uma distância espacial e horizontal entre culturas por uma temporal e vertical. Os outros povos estariam em um estágio anterior do self, em uma concepção universal e progressiva de História.

Se a relação entre os Estados é contingente, consequentemente, a Anarquia (e, logicamente, a Soberania) é vista como constante, como o parâmetro que determina a lógica a partir da qual a relação entre os Estados deve se desenvolver. Se dentro das fronteiras pode haver um desenvolvimento histórico linear, teleológico, cujo fim é a democracia liberal, no ambiente internacional há apenas recorrência, acomodações. Além disso, para que seja capaz de contornar as diferenças internamente, o Estado deve se apresentar como a autoridade suprema legítima dentro de suas fronteiras. Para isso, apresenta-se ligado intimamente à idéia exclusiva de nação9. Porém, o direito de um Estado em reclamar autoridade final em um determinado território também depende, logicamente, da expansão desse direito aos demais Estados10.

Essa "solução" encontrada no início da modernidade tornou-se dominante no sistema internacional atual. As condições de possibilidade para a inserção no sistema internacional tornam-se, portanto, necessariamente associadas à Soberania, ao Estado territorial soberano. Entretanto, tal solução possui diversas consequências na forma como lidamos com o sistema internacional.

Em primeiro lugar, todas as diferenças são internamente normalizadas, todos são feitos partes da nação. Externamente, todavia, cria-se uma distância insuperável entre o outro e o eu. As fronteiras territoriais são as responsáveis pela estabilização dessa diferença, sem que ela seja de fato resolvida. Porém, como destacam Blaney e Inayatullah,

Policing the boundaries of self as an exclusive and homogeneous space impedes our capacity to fully ackowledge and affirm the other that always lies within, or to appreciate and claim the self that exists as part of the other beyond those boundaries.11

Qualquer tipo de divisão, de fronteira, é, portanto, unicamente permissível se enquadrada às fronteiras estatais, sem desrespeitar a autoridade do Estado. Qualquer outra forma de organização política deve a ele subordinar-se.

Todavia, especialmente três acontecimentos no século XX foram fundamentais para que esse sistema fosse adaptado, sem que as estratégias espacial e temporal de lidar com a diferença fossem abandonadas. O primeiro deles é a Segunda Guerra mundial, depois da qual foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos e foi formada a ONU, essa instituição, com a função de "livrar o mundo do flagelo da guerra", é de essencial importância para a manutenção da Soberania, como será apresentado na próxima sessão. A descolonização também possui grandes reflexos, na medida em que resultou no grande aumento do número de Estados soberanos. Entretanto, esses novos Estados obviamente possuíam uma trajetória bastante distinta da Européia. Por esse motivo, poderiam representar uma ameaça à universalidade da Soberania, ou à centralidade do Estado, tendo em vista suas diversas formas distintas de organizações sociais e fontes de autoridade, muitas das quais são bastante anteriores à interferência européia e, portanto, estão radicalmente internalizadas no tecido social. Além disso, após o final da Guerra Fria, os Estados Unidos e seus aliados emergiram como os grandes vitoriosos, afirmando a "superioridade" do modelo liberal-democrático. Também o financiamento de diversas ditaduras, em especial na África e na Ásia, foi interrompido em virtude do fim do conflito ideológico. Logo, a autoridade estatal ficou sem os recursos dos quais necessitava para impor sua autoridade às demais formas de organização social.

Nesse contexto, à separação entre os Estados juntou-se a outra divisão no sistema internacional: entre as chamadas "democracias liberais consolidadas", e o restante do globo. Essa outra divisão, que resulta ultimamente da estratégia temporal supracitada para lidar com a diferença, criou uma espécie de hierarquia no sistema internacional. Essas democracias consolidadas, por supostamente serem mais desenvolvidas, são as portadoras e defensoras dos valores "universais". Além delas, reina a barbárie. É o double outside apresentado por Walker12.

A Soberania, de acordo com essa narrativa, é naturalmente universalizada, e as democracias liberais seriam o topo da evolução política. Como consequência, mais do que meros exemplos, "pontos de chegada", as democracias liberais passam a ser vistas como superiores em uma escala progressiva de desenvolvimento social. Portanto, seriam detentoras de certos direitos e responsabilidades superiores às outras formas de organização, as quais são vistas como moralmente degeneradas, desviantes, inferiores.

Assim, mais que simplesmente um princípio organizador, a Soberania se constitui como a principal mantenedora dessa hierarquia. Por meio da narrativa da Soberania justificam-se as assertivas de autoridade suprema dos Estados. Além disso, a partir dos elementos temporais acima desenvolvidos, a narrativa teleológica do desenvolvimento desses Estados soberanos, às democracias liberais é atribuída uma posição superior. Nesses termos que o conceito de Estados-falidos é construído, assim que se legitimam intervenções nesses Estados, dessa forma que a reconstrução de Estados, processo que muitas vezes se choca com as sociedades locais, é vista como necessária para que a ordem na sociedade internacional seja mantida. Essa narrativa permite o sistema internacional, fundado na igualdade soberana entre os Estados, não seja incompatível com intervenções que desrespeitem essa Soberania ou, mais ainda, que desrespeitem ou silenciem as formas contingentes de organização política.

Situações de falência de Estado não apenas uma "ameaça à paz e segurança internacionais", mas sim uma ameaça a esse próprio internacional excludente tal qual defendido pelas democracias liberais, à própria posição privilegiada das democracias liberais nesse sistema, a partir do momento em que se provam viáveis formas de organização ou de governança que dispensam a Estado. O reconhecimento dessas formas alternativas de governança implica a quebra da distância temporal entre essas unidades políticas, bem como o reconhecimento de que a autoridade estatal suprema não é necessária para que as diferenças sejam conciliadas. No limite, essas situações, se não forem devidamente gerenciadas, constituem-se como uma ameaça à própria idéia fundamentalmente européia de internacional. E o papel da ONU é fundamental nesse gerenciamento.

 

A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS E A QUESTÃO DA DIFERENÇA

O papel da ONU, nesse contexto, é zelar pela manutenção desse sistema universal, da "igualdade soberana entre os Estados". Para que esse sistema perdure, as ameaças a ele devem ser normalizadas. Porém, nem todas as ameaças podem ser enfrentadas a partir dessa lógica. O caso da Somália é um exemplo patente. A ONU, enquanto guardiã do sistema de Estados, é comprometida com preceitos universalistas. Contudo, na defesa da ordem desse sistema, da "paz e segurança internacionais", a organização acaba reproduzindo formas de hierarquização (ainda que informal) e discriminação. Independentemente de serem intencionais ou conscientes, as consequências desse processo não podem ser negligenciadas.

Os problemas enfrentados pela ONU nos chamados "Estados-falidos" são desafios a essa resolução espacial e temporal da diferença, a restrição das possibilidades de comunidades políticas ao Estado, que deve ser liberal e democrático. As outras formas de governança que podem se desenvolver devem necessariamente estar subordinadas ao Estado. Se um Estado não consegue se sustentar, não se pensa que a Soberania, tal como foi constituída como é defendida pelas democracias liberais e pela ONU, não está em consonância com o contexto específico do local. Ao contrário, se afirma que tais Estados são incapazes de exercer sua Soberania plena. A posição, defendida, por exemplo, por Jackson, é bastante comum:

International aid is justified on the affirmative action grounds that independence is necessary but not sufficient to enable ex-colonial states to become their own masters. Consequently, the positive norms and activities of contemporary international organization can be undestood as an attempt (to date not very successful) to compensate for the shortage of positive sovereignty of quasi-states13

Assim, ao chamá-los de Estados-falidos, desloca-se o problema do internacional excludente para o "Estado incapaz". Entretanto, ao se categorizar um Estado como falido, automaticamente se assume que a resposta para o problema seja a "reconstrução" do Estado. Suas fronteiras devem ser restabelecidas, e autoridade recuperada. Entretanto, ao se pensar dessa forma, o contexto social é negligenciado, e outras formas de organização social, ou de constituição de autoridade, são colocadas em segundo plano.

…] the principle of state sovereignty not only suggests how it is necessary to defend the borders, but also how it is necessary to think about borders, about the delineation of political possibility in both space and time.14

Porém, a "reconstrução" de Estados significa necessariamente interferir no tecido social, na medida em que o Estado ele se apresenta como autoridade máxima dentro de determinado território. Logo, essa reconstrução está fadada a esbarrar em diversas outras fontes de autoridade. Na Europa a construção do Estado moderno deu-se relacionada a um contexto específico, a Guerra dos 30 Anos e, portanto, a autoridade do Estado estava intimamente associada aos processos sociais. Estado soberano é forma de desviar desse problema. A ONU reproduz esse discurso, logo, o legitima, tornando-se uma espécie de gatekeeper do sistema internacional. Cabe a ela disciplinar os Estados desviantes para que se adequem a esse modelo. Contudo, a forma vislumbrava pela ONU em reconstruir os Estados, circunscrita às condições de possibilidade apresentadas pela Soberania, muitas vezes está fadada ao fracasso, exatamente por não fazer jus ao tecido social desses locais, por estar comprometida com certas práticas excludentes.

 

A QUESTÃO SOMALI

A Somália15 é um interessante exemplo de como os limites ao imaginário político colocados pela Soberania podem criar imensas dificuldades para lidar com os Estados-falidos. Nessa sessão, será feito uma breve apresentação da situação na Somália e da ação da ONU, a partir da qual se articulará o argumento de que os limites ao imaginário político contemporâneo, colocados pela Soberania, foram decisivos na forma não apenas como as missões na Somália foram estruturadas, mas também como a solução encontrada para o problema é imediata: o restabelecimento do Estado territorial soberano.

Essa postura associa-se intimamente à concepção estática, atemporal de soberania apresentada anteriormente. O sistema internacional deve ser homogêneo, e o espaço da negociação da diferença deve necessariamente ser o Estado. Sendo assim, a primeira ação da ONU foi associar a emergência na Somália com a ausência de uma estrutura estatal, e não com os resultados tanto da colonização como da influência das grandes potências na Guerra fria e despeito da existência ou não de uma autoridade central.

Após o colapso do regime de Siad Barre, a situação na região deteriorou-se rapidamente. Em virtude do caráter repressivo do governo, bem como da relação não harmoniosa com os diversos clãs locais, difundiu-se um sentimento antiestatal no público somali no geral16. A situação logo ganhou a atenção da ONU. Em abril de 1992, por meio da resolução 751 do Conselho de Segurança (CS), uma pequena missão foi criada para monitorar o cessar fogo de Mogadishu, a UNOSOM I. Entretanto, em vista do agravamento da crise humanitária, logo o mandato da missão foi expandido por meio da resolução 775, de forma a também proteger o apoio humanitário na região. Era a primeira vez que uma questão humanitária era considerada uma ameaça à paz e segurança internacionais. Porém, face à contínua deterioração da situação, o CS aprovou a resolução 794, a qual autorizou os Estados membros a criarem uma missão (Unified Task Force, UNITAF), a qual seria incumbida de garantir a segurança do apoio humanitário, em coordenação com a UNOSOM I e estaria sob o comando dos Estados Unidos.

Em março de 1993, de acordo com a resolução 814 do CS, foi decidido que a UNITAF progressivamente cederia lugar a uma nova missão sob os auspícios da ONU, a UNOSOM II. O mandato dessa missão, o que a torna essencial, incluía também reconciliação nacional, de forma a restabelecer o Estado somali, ainda que não se possa afirmar que existisse de fato uma nação na Somália, da onde possa derivar a legitimidade autoridade suprema de um futuro Estado. A pergunta que é feita é se alguma vez houve de fato uma nação homogênea na Somália, da qual derivaria a legitimidade de seu governo.

Contudo, a intensificação dos conflitos entre os interventores e os grupos locais acaba fazendo com que os Estados Unidos se retirem do país e, em 1995, a ONU também deixa o território somali. Não se consegue restabelecer a autoridade estatal na Somália. A missão não é bem sucedida. Mas as dificuldades da missão não se devem simplesmente ao uso de força insuficiente, muito menos à incapacidade dos somalis (ponto que será abordado em breve).

Ao procurar restabelecer o Estado somali, a ONU obrigatoriamente defenderia o estabelecimento de uma autoridade absoluta territorialmente circunscrita, o que significava entrar em conflito com outras fontes de autoridade que estavam agiam no território. Além disso, a postura da ONU, enquanto guardiã do sistema internacional cujo progresso leva às democracias liberais, acabou por discriminar ou marginalizar os grupos locais, o que levou a ONU a ser caracterizada como uma inimiga, intensificando a rejeição à organização.

Not only did the United Nations' institutional need to present itself as a particular way undermine the opportunity for diplomatic dialogue at a key moment, but it also provided the impetus for the violent confrontations surrounding one faction leader's personal radio station, a conflict that led to the October 1993 firefight [quando dois helicopteros norte-americanos foram abatidos em outubro de 1993]17

Argumenta-se que o discurso da Soberania possui força tal que não as formas locais de exercício de autoridade são silenciadas ou negligenciadas em detrimento do estabelecimento de uma autoridade suprema. A ONU é a instituição responsável por disciplinar os Estados "anormais", "desviantes", "falidos" para que eles sejam posteriormente reinseridos no sistema internacional de forma a não representar uma ameaça à própria Soberania, já que, como dito anteriormente, a legitimidade da autoridade absoluta do Estado depende tanto de uma associação interna a uma nação homogênea, como do reconhecimento de que os demais Estados também são as autoridades supremas dentro de seus respectivos territórios.

É interessante notar, em especial nas resoluções 794, 814 e 897 a forma com a qual o Conselho de Segurança atribui à ONU e às missões grande parte da responsabilidade em resolver a situação, ao mesmo momento em que condenam as ações de todas as partes beligerantes, sem se dar conta de que as partes em conflito não necessariamente atribuem à ONU a legitimidade com da qual a instituição desfruta no sistema internacional. A UNIAF e a UNOSOM II agiam como se possuíssem uma legitimidade natural, enquanto missões autorizadas e implementadas pela "comunidade internacional", representadas pela ONU e pelo CS.

Tal postura está em concordância com a anteriormente citada estratégia temporal de lidar com a diferença. Isso fica claro nos depoimentos colhidos por Lang Jr junto a oficiais que atuaram na crise somali.18 As consequências dessa postura prepotente, com um discurso de proteção que acabava por marginalizar os grupos locais19, sujeitando-os, faz com que rapidamente os interventores fossem hostilizados. A comunicação entre os grupos beligerantes e a própria ONU era falha, na medida em que a organização e seus representantes se achavam em uma posição superior, como fica claro nas colocações apresentadas por Lang Jr. tanto do Secretário Geral da ONU, Boutros-Ghali como do representante local da organização, Kittani20. Longe de serem vistos como salvadores, a UNITAF e a própria UNOSOM II foram vistas como colonizadoras.

O mérito do texto de Menkhaus (2007) é apresentar as formas alternativas de governança que se desenvolveram na Somália. No decorrer dos anos, mesmo com a ausência do Estado soberano, outras formas de governança se desenvolveram, sem que fosse necessária uma autoridade absoluta para que a diferença fosse impeditiva para o desenvolvimento de uma ordem social. O papel do Islã nesse sentido é bastante interessante, uma vez que até um sistema jurídico (ainda que não nos moldes ocidentais) se desenvolveu. Mesmo após anos de "falência" e após o desenvolvimento de formas alternativas de governança que garantem certa ordem, ainda se fala na Somália como uma unidade, como se a "falência" fosse uma condição temporária, colocando-se a possibilidade da reconciliação nacional, ainda que não exista, a rigor, uma nação. Os somalis poderiam "aprender", ou continuar seu desenvolvimento rumo a um Estado liberal democrático.

Apesar da atenção dada ao alívio humanitário na Somália, indubitavelmente louvável, a solução encontrada pela ONU, o restabelecimento da Soberania, não levou em consideração os contextos locais, não deu atenção ao caráter histórico das relações sociais. Negligenciou-se a tensão inerente ao encontro entre o eu e o outro. A Soberania é uma estratégia de se desviar do problema da diferença, mas a própria diferença e a necessidade de negociá-la estava no cerne da questão no Chifre da África. Esqueceu-se de que países Europeus colonizaram, cometeram violências, e que grande parte da responsabilidade pela instabilidade pós-descolonização não é, como muitos parecem acreditar, resultado de alguma inaptidão, incapacidade, de uma condição historicamente anterior, inferior, dos povos não europeus. Como Siba Grovogui esclarece,

Once they imputed African responsability, these theorists [da falência dos Estados] ignored the role that Europe and the West played in developing colonial structures and laying the foundations for the postcolonial state in Africa [e em outros locais]21

 

CONCLUSÃO

"The modern principle os state sovereignty has emerged historically as the legal expression of the character and legitimacy of the state. Most fundamentally, it expresses the claim by states to exercise legitimate power within strictly delimited territorial boundaries. This claim now seems both natural and elegant, althought if continues to generate familiar and seeminly intractable problems."
Rob Walker 22

A narrativa da Soberania impõe uma certa relação necessária e absoluta entre Estado e autoridade. Se essa solução foi bem sucedida para estabilizar a Europa após a Guerra dos 30 anos, não é surpreendente que ela não tenha o mesmo sucesso ao lidar com as questões completamente sui generis enfrentadas em outros contextos, como o decorrente da descolonização.

A legitimidade do poder do Estado deriva de sua suposta ligação com uma nação e da Soberania, ou seja, da aceitação dessa mesma autoridade dos outros estados e suas respectivas nações. Porém, essa nação é construída exatamente para que a autoridade do poder do Estado não seja questionada.

As fronteiras da comunidade política são definidas em termos de um Estado soberano, a Somália, não a partir das relações sociais, já que a comunidade política por excelência é o Estado. A reafirmação de fronteiras é essencial para separar o eu e o outro, o democrático do não democrático, o civilizado do bárbaro, o normal do anormal.

Na Somália, lidar com a diferença era a questão central. Porém, na medida em que a Soberania não é capaz de lidar com essa diferença, "adiá-la", o caso se torna uma ameaça ao próprio sistema. A categoria de Estado falido contorna essa questão, pois atribui responsabilidade pelo "fracasso" ao próprio Estado somali, que é considerado "incapaz", "inapto". Como aponta Grovogui,

Instead of treating the African condition as evidence that undermines the empirical thesis of a uniform international morality, theorists often construe deviations from the Western state model as a sign of the inability of African states [e outros Estados "falidos"] to live up to the requirements of sovereignty.23

O reconhecimento dessas formas alternativas de organização política constitui-se como um desafio ao âmbito temporal do adiamento da diferença e à hierarquia dele decorrente entre os Estados democráticos liberais e os demais Estados (também qualquer outra forma de organização política). Essas formas alternativas devem, portanto, ser categorizadas, domesticadas, de forma a não expor as contradições desse próprio sistema de Estados soberanos. São incluídas no sistema internacional por sua exclusão: são Estados-falidos.

Antes de ser a explicação para a estabilidade e ordem no sistema internacional, a Soberania constitui os limites do imaginário político contemporâneo. A própria dificuldade em se chamar a região no qual o estudo de caso é feito por outro nome além de "Somália", a despeito da inexistência de tal ente, é um patente exemplo da forma pela qual a divisão do território global exclusivamente em Estados territoriais é parte constitutiva desse imaginário. A categorização da Somália como Estado (ainda que falido) é outro exemplo. Entretanto, o ponto ao qual esse trabalho pretendeu chamar atenção é que esse limites colocados pela Soberania podem fazer com que a ONU, ao buscar a estabilidade e ordem, pode, na realidade, contribuir para o acirramento de conflitos locais. Claro que a sociedade internacional possui responsabilidades. Todavia, associá-las automaticamente à reconstrução dos Estados não é automático. Este trabalho pretende problematizar a forma como a Soberania é tradicionalmente vista, explicitando que ela não é apenas a solução, mas também pode ser um problema.

 

BIBLIOGRAFIA

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United Nations Department of Peacekeeping Operations <http://www.un.org/en/peacekeeping>

United Nations Security Council <www.un.org/sc>

 

 

* Associação brasileira de relações internacionais.
1. BARTELSON, 1995, p.17.
2. WALTZ, 1997, passim; KEOHANE, 1986, passim.
3. BULL, 2002, passim; WALTZ, 2002, passim; KEOHANE, 1986, passim.
4. SCHMITT, 2001, passim.
5.WALKER, 1993, p.11-12.
6. WALKER, 1993, p. 62.
7. WALKER, 1993, p. 62-63.
8. BLANEY e INAYATULLAH, 2004, p.87.
9. Para uma discussão mais ampla sobre a relação entre o Estado e a ideia de nação, ver o capítulo de Dillon em Sovereign Lives.
10. BLANEY e INAYATULLAH, 2004, p. 188.
11. BLANEY e INAYATULLAH, 2004, p. 204.
12. WALKER, 2006, passim.
13. JACKSON, 1993, p.31.
14. WALKER, 1993, p. 175.
15. Todas as informações a respeito da Somália que foram usadas nesta parte foram retiradas dos textos de MENKHAUS (2007), LANG JR.. (2003), GROS (1996), KALDOR (2007) e das informações disponíveis nos sites da ONU, do Department of Peacekeeping Operations e do Security Council.
16. MENKHAUS, 2007, p. 79-80.
17. LANG JR., 2003, p.185-186.
18. LANG JR., 2003, p. 190-192.
19. Para um estudo sobre a forma pela qual o discurso de proteção acaba retirando a possibilidade de ação política do protegido, ver PETERSON (1992, p. 51-52).
20. LANG JR., 2003, 87-89.
21. SIBA, 2002, p.321.
22. WALKER, 1993, p. 65.
23. SIBA, 2002, p.316.