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ISBN 2236-7381 versão impressa

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Multipolaridade e multilateralismo: o G20 e a relação entre poder e governança no século XXI

 

 

Fernanda Petená Magnotta

Cursa especialização em Globalização e Cultura pela FESP-SP, é mestranda em Relações Internacionais PPGRI/San Tiago Dantas e professora de Relações Internacionais e Ciências Econômicas da FAAP. Endereço eletrônico: fernanda.magnotta@gmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como tema geral as transformações em torno das estruturas de governança global à partir da queda do muro de Berlim e, seu objeto de análise refere-se à veloz ascensão do G20 financeiro como marco de discussão multilateral. Pretende-se investigar a relação de causalidade entre o surgimento de uma nova configuração na distribuição de poder no sistema internacional do século XXI e o descompasso do arranjo institucional existente, partindo da hipótese de que a emergência de um mundo multipolar traz consigo um novo formato de multilateralismo que se apresente como alternativa às estruturas de governança global surgidas em 1945 e reforçadas com o fim da Guerra Fria, uma vez que estas ainda representam ainda um ordenamento erigido pelos EUA e privilegiam, desde sua gênese, os interesses norte-americanos.

Palavras-chave: Multipolaridade. Multilateralismo. Estados Unidos. Governança Global. G20


 

 

1. INTRODUÇÃO

Interpretar mudanças seja talvez um dos desafios mais antigos da humanidade. Isso porque implica abrir mão da lógica da estabilidade a que se acostumou; daquilo que é conhecido e sobre o que se tem pleno domínio.

A Guerra Fria representou um capítulo inédito no estudo das relações internacionais não apenas por ter fomentado a compreensão das dinâmicas próprias desta ordem, mas por ter suscitado, com seu fim, uma série de especulações acerca do mundo que emergiria.

Passadas quase duas décadas do colapso soviético, parecem não se sustentar mais teses sobre estabilidade plena e o Sistema Internacional é dotado de características que sugerem uma reconfiguração em termos de distribuição de poder. Por um lado, os Estados Unidos (EUA) são acometidos por uma grave crise econômica, ao mesmo tempo em que o desgaste político causado pelas guerras do Afeganistão (2001) e do Iraque (2003), na esteira do combate ao terror, são somadas às preocupações americanas neste século. Simultaneamente, também nota-se, de forma patente, a emergência de novos players importantes e uma transição paulatina em direção a um provável mundo "pós-americano" (ZAKARIA, 2008).

Entre as transformações derivadas deste processo, encontram-se os mecanismos tradicionais de interação e, no limite, as estruturas de governança que haviam sido erigidas pelos norte-americanos em 1945 e que foram reafirmadas com o fim da União Soviética (URSS) nos anos 90. Condicionados às características deste novo tempo, portanto, estes mecanismos também estariam enfrentando uma crise.

Este artigo visa contribuir para a discussão que envolve as relações entre a emergência de um mundo multipolar e o desenvolvimento de um novo tipo multilateralismo, representado aqui através do Grupo dos 20 (G20).

Na primeira seção serão apresentados os conceitos de governança global e multilateralismo, discutindo-se em que medida a primazia norte-americana no pós Segunda Guerra mundial levou à consolidação de uma ordem que favorecesse os interesses hegemônicos norte-americanos.

Em seguida, será problematizada a questão ligada à legitimidade deste chamado 'modelo americano', em face do desgaste político e econômico dos EUA e da chamada "ascensão do resto" (Cf. ZAKARIA, 2008), em particular referência aos BRICS. Consequentemente o G20 será apresentado como arquétipo que prenuncia a consolidação de um novo tipo de multilateralismo, mais informal e que geralmente passa a se constituir a partir de áreas temáticas (issue áreas).

Por fim, serão apresentados alguns pontos tidos como críticos deste novo formato de relacionamento, ao mesmo tempo em que se sugerirá a capacidade de adaptação e transformação das estruturas de governança já existentes e uma possível complementaridade entre o chamado "novo" e o "velho" multilateralismo.

 

2.GOVERNANÇA GLOBAL, MULTILATERALISMO E A CONSOLIDAÇÃO DO MODELO AMERICANO

O conceito de governança está presente em diversas esferas de relacionamento e, sob este amplo domínio, corresponde aos arcabouços através dos quais indivíduos ou instituições se articulam visando lidar com questões comuns (KEOHANE e NYE, 2001).

No campo das Relações Internacionais, o termo ganha conotação particular na medida em que é pensado no contexto de um sistema que é, sobretudo, anárquico (cf. BULL, 2002). Em face desta anarquia, entendida a partir da ausência de um governo mundial, portanto, torna-se possível presumir a necessidade de viabilizar a interação entre os Estados. Assim, entende-se que a manutenção da ordem e, no limite, a própria perpetuidade do Sistema, está condicionada à habilidade de criarem-se meios capazes de garantir determinadas "necessidades funcionais" (ROSENAU e CZEMPIEL, 2000:14).

A governança global, deste modo, refere-se a gama de instrumentos - a saber, regimes e organizações, por exemplo - que, apoiados em objetivos compartilhados, permitem o estabelecimento de padrões de relacionamento e, assim sendo, englobam processos através dos quais se espera que seja possível administrar interesses divergentes e promover a cooperação entre os atores (KEOHANE e NYE, 2001). Trata-se de um conceito que teve origem no contexto liberal do começo dos anos 90, a partir das reformas liberalizantes então representadas pelo Consenso de Washington e que ao longo dos anos passou a abarcar um conjunto complexo e denso de instituições e normas internacionais que moldam a configuração do Sistema Internacional (MELLO, 2010).

Entre tais possibilidades, um mecanismo capaz de coordenar as relações entre múltiplos Estados, compreende a noção de multilateralismo. Segundo a definição de Ruggie (1992: 571) o multilateralismo corresponde a "uma forma institucional que coordena as relações entre três ou mais estados com base em princípios generalizados de conduta, ou seja, princípios que especificam o comportamento adequado para uma série de ações".

Os primeiros acordos multilaterais não datam, portanto, da atualidade, mas da era moderna, momento em que tinham como principal função lidar com as conseqüências internacionais da soberania dos Estados, particularmente ligadas às indefinições das rotas comerciais e à jurisdição marítima e espacial ainda pouco delimitadas. No entanto, à partir de 1945, associado à emergência dos Estados Unidos no cenário pós Segunda Guerra mundial, o multilateralismo experimentou uma renovação em alcance e diversidade (RUGGIE, 1992). No vocabulário norte-americano ele surgiu para designar a ordem econômica criada pela conferência de Bretton Woods em 1946 e, portanto, o conceito passara a "expressar um projeto político a ser provido a ser promovido por uma institucionalidade internacional ou, ao menos, a preferência por um padrão de ação coletiva em detrimento de soluções individuais" (MELLO, 2010: 08).

Orientados por sua primazia, os EUA viram no mundo arruinado pela guerra a oportunidade de fundar uma ordem internacional que fosse compatível com os objetivos externos e estruturas domésticas dos norte-americanos. Deste modo, conforme Gilpin (2001) sugere em sua teoria da estabilidade hegemônica, o centro da ordem global pós 1945 estava respaldado no chamado sistema americano que via no liberalismo uma forma de promover a segurança e os interesses nacionais baseados na democracia, nos mercados abertos, nas instituições multilaterais e na construção de laços de defesa (IKENBERRY, 2001: 26).

Neste contexto, o multilateralismo serviu como princípio fundamental de arquitetura de reconstrução do mundo. Os Estados Unidos foram responsáveis pela criação de vários regimes multilaterais voltados à área financeira e do comércio e, além disso, fomentaram a criação de inúmeras organizações internacionais formais (RUGGIE, 1992). Na esteira do pós-guerra, o governo Truman financiava a reconstrução européia através do Plano Marshall, ao mesmo tempo em que era estabelecida a Organização das Nações Unidas (ONU) e o sistema Bretton Woods que, conforme já mencionado, criou o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BIRD) e a Organização Internacional do Comércio (OIC).  Esta última, vale ressaltar, embora não tenha passado a existir de fato, representou os primeiros alicerces para que o GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) fosse instituído em 1947 e para que, mais tarde, fosse substituído pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Além disso, no mesmo ano foi criada a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

Através de uma estratégia fundamentada na organização do mundo capitalista e na contenção dos avanços soviéticos, os Estados Unidos passaram a ser, a partir de então, os principais responsáveis pela constituição de uma ordem bipolar que se manteve até o final da década de 1980. A partir de então, com o esfacelamento da União Soviética e o fim do comunismo, assistiu-se à perda de legitimidade do principal modelo de contraposição aos EUA e, desta maneira, a ordem internacional democrática e liberal erigida pelos norte-americanos em 1945 foi novamente reforçada (PECEQUILO, 2003).

Orientados pela subentendida unipolaridade do sistema (KRAUTHAMMER, 1990), os Estados Unidos transformaram-se, à partir dos anos 1990, nos principais defensores do status quo. Cientes dos constrangimentos estratégicos impostos ao único pólo relevante de poder, e contrariando as expectativas teóricas (WALTZ, 1999) e empíricas (JAGUARIBE, 1992) sobre a reorganização do sistema internacional em bases multipolares, os norte-americanos, portanto, renovaram sua "grande estratégia" como forma de assegurar a estabilidade (WOHLFORTH, 1999). Os EUA, portanto, passaram a apoiar-se nas organizações multilaterais, uma vez que os outros Estados, ao partilharem dos benefícios desta ordem, não seriam, assim, incitados a desestabilizá-la ou transformá-la (MASTANDUNO, 1999). Em outras palavras, na medida em que os países usufruíssem da dinâmica de poder existente tirando vantagens para si no relacionamento com a superpotência, a estrutura estaria mantida (WOHLFORTH, 1999; WALT, 2005).

 

3.A CRISE DE LEGITIMIDADE DOS EUA E A "ASCENSÃO DO RESTO"

No contexto imediato do pós Guerra Fria, verificou-se um novo marco histórico em que presumia-se, como sugerira Fukuyama (1992), um mundo de paz baseado na adesão universal a valores liberais. Novos tempos, acreditava-se, seriam particularmente diferentes e melhores. Os Estados Unidos, uma vez bem sucedidos no conflito leste-oeste, desempenhariam papel fundamental nesta nova ordem - "mais livre da ameaça do terror, mais forte na busca pela justiça, e mais segura na busca pela paz" (BUSH SR., 1991).

Apesar da polêmica invasão do Panamá em 1989 e do envolvimento na Guerra do Golfo em 1991, o governo de Bush Sr. indicou dar continuidade à política multilateral nos moldes da década de 1940. Deste modo, nos anos que se seguiram, o país ofereceu suporte para a criação do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA), da Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico (APEC) e da própria OMC, além de ter iniciado o debate sobre a expansão da OTAN para o leste europeu (IKENBERRY, 2001).

A administração Clinton, durante o primeiro mandato, entre 1993 e 1997, chegou a perseguir, inclusive, uma versão do multilateralismo liberal ainda mais ambiciosa. Através da publicação do National Security Strategy of Engagement and Enlargement em 1995, o governo buscava demonstrar o comprometimento dos EUA com as causas globais, apontando a atuação do país nas principais temáticas do planeta e enfatizando que ao representarem a maior potência mundial reconheciam, junto a este status, determinadasresponsabilidades. Entre elas se destacava evitar o isolacionismo e o protecionismo, abrir mercados estrangeiros, promover a democracia para além das fronteiras, encorajar o desenvolvimento sustentável e perseguir novas oportunidades de paz (WHITE HOUSE, 1995).

A partir do segundo mandato de Clinton, no entanto, notou-se que em diversas instâncias os interesses dos EUA apresentavam um verdadeiro desalinhamento cósmico em relação aos interesses de outros países. Estas contradições se materializaram, no âmbito multilateral, à partir de alguns pontos de conflito, à exemplo do debate sobre as quotas da ONU, das sanções praticadas contra Cuba, Irã, Iraque e Líbia, do tratado ligado às minas terrestres e ao aquecimento global, da criação do tribunal internacional contra crimes de guerra, de questões no Oriente Médio, do uso da força contra o Iraque e a então Iugoslávia, bem como as sanções econômicas aplicadas entre 1993 e 1996 à mais de trinta países (HUNTINGTON, 1999).

Assim, por mais que a estratégia norte-americana tenha, inicialmente, obtido êxito na manutenção da estabilidade do sistema internacional, a conduta exterior dos Estados Unidos passava por transformações flagrantes no final dos anos 1990. A política externa norte-americana, frente a um contexto de unipolaridade tácita, distanciava-se dos interesses globais e, travestida de uma hegemonia benevolente, mostrava-se cada vez mais unilateral. Ao fazer referência à fala de um diplomata japonês, Huntington (1999) argumentou que a política externa norte-americana teria se transformado de um "globalismo unilateral", no início da década de 1990, para um "unilateralismo global" nos últimos anos do século XX. Neste sentido, distanciava-se da busca pela convergência universal de interesses e passava a agir por conta própria em uma extensa lista de assuntos internacionais. Transformava-se, assim, numa "superpotência solitária" ao final do governo Clinton, postura que se intensificaria após os atentados em 11 de setembro de 2001, já sob a presidência de George W. Bush (NYE, 2002).

Os ataques terroristas às torres do World Trade Center, portanto, fizeram com que o governo norte-americano não mais agisse de acordo com a dupla barganha liberal/realista que marcara o início de sua gestão, quando apesar de certo ceticismo, o país ainda operava dentro da lógica das instituições (IKENBERRY, 2001). A partir de então, a política externa do país deu uma guinada unilateral em direção ao realismo. Se, em 1999, a intervenção da OTAN em Kosovo empreendida às margens da ONU havia sido um ponto de inflexão, a invasão do Iraque sem o consentimento do Conselho de Segurança em 2003 explicitou a falta de compromisso das potências com o universalismo e consolidou a lógica do 'multilatreralismo a la carte' na política externa dos EUA (HAASS, 2010). A consequência disso, para além de uma estratégia malfadada de luta contra o terror, foi que os países passaram a executar uma espécie de soft balancing em relação aos EUA (PAPE, 2005).

Diante desse soft balancing, que constrange os EUA em suas ações e o isola internacionalmente através de instituições, políticas econômicas e arranjos diplomáticos, o governo Bush se viu obrigado, no seu segundo mandato, a dar uma guinada em direção a condutas mais multilaterais, principalmente na medida em que o mundo se tornava mais marcadamente multipolar.

A relativização do poder dos EUA, que diante do desgaste político e da crise econômica passou a mostrar, cada vez mais, a incapacidade do país gerir questões globais de forma unilateral. Ao mesmo tempo, o centro do "imperium" americano (KATZENSTEIN, KEOHANE e KRASNER, 1998) - Alemanha e Japão - estão em relativo declínio: o primeiro por dificuldades relacionadas ao bloco europeu, o segundo por questões domésticas. Neste sentido, o sintoma mais óbvio da emergente multipolaridade é que, na esteira dos argumentos de Khanna (2008)e Zakaria (2008), o mundo está crescendo na periferia, potencialmente através dos BRICS.

Assim, mesmo que os EUA não tenham deixado de ser a principal potência do sistema, a julgar pela dimensão de sua economia e pelo alcance planetário de seu poderio militar, estas questões passaram a fazer parte do comportamento estratégico dos norte-americanos.

Isso indica que a estratégia realista utilizada (IKENBERRY, 2001) para construir a hegemonia no pós Segunda Guerra já não parece ser de grande utilidade. Mais ainda, a estratégia de invasão/ocupação com intenções geopolíticas mais profundas (Iraque/Afeganistão) não deu certo, o que reforça a necessidade de reatar os laços multilaterais.

Ao mesmo tempo, a estratégia liberal (IKENBERRY, 2001) que também ajudou também a fundar a hegemonia norte-americana sobre o mundo (e, sobretudo no ocidente capitalista) mostra sinais de crise: o sistema de Bretton Woods está em colapso, o Conselho de Segurança está visivelmente desatualizado, a OMC está travada e Conferência de Copenhague de 2009 não logrou êxito.

 

4. O NOVO MULTILATERALISMO E O CASO DO G20

O multilateralismo, ao ser assimilado como construção social, é definido por Flávia de Campos Mello (2010), como função de processos fundamentalmente dinâmicos e, portanto, sujeito às transformações. Neste marco, tanto valores quanto instituições são, antes de tudo, elementos historicamente determinados e que se encontram instituídos e sustentados pelas lideranças e normas ligadas à determinada conjuntura particular (NEWMAN, THAKUR E TIRMAN, 2006 apud MELLO, 2010).

Nesse sentido, a falência dos ideais de promoção de um universalismo abrangente, consensual, homogêneo e de alcance global, não necessariamente exclui toda e qualquer possibilidade de constituição de regimes multilaterais, eventualmente diversos, heterogêneos e fragmentados em arenas variadas, muito embora a tendência à seletividade dos atores (bem como dos temas incorporados à agenda internacional) coloque em questão a própria definição de seu princípio fundamental (MELLO, 2010).

Diante das dificuldades enfrentadas pelo sistema multilateral americano, de uma nova configuração de poder no sistema internacional e, conseqüentemente, na ausência de consensos amplos - como foi o anticomunismo no mundo ocidental durante a Guerra Fria ou a democracia associada ao capitalismo liberal durante a era Bush Sr./Clinton - o século XXI assiste à emergência de novas formas de se conceber o multilateralismo. Entre elas, estão arranjos heterogêneos e que objetivam responder à demandas cada vez mais coletivas (ALEXANDROFF, 2010).

Ao discutir este novo cenário em um artigo publicado no início de 2010, Richad Haass afirmou que "o multilateralismo deste século seria à imagem do próprio século, mais fluído e, por vezes, mais confuso em relação ao que se estava acostumado" (HAASS, 2010: 03, tradução nossa). O autor sugeriu então, como resposta à inoperância do "multilateralismo clássico", o conceito de "multilateralismo frouxo". Assim, segundo Richard Haass (2010), embora com contornos pouco definidos, algumas alternativas ao "velho" multilateralismo poderiam se concebidas à partir do elitismo, do regionalismo, do funcionalismo e do informalismo (Haass 2010).

Outras perspectivas, o multilateralismo informal ou chamado de 'multilateralismo light' também remontaram ao Concerto Europeu do século XIX como forma de interação. Em termos simples, para atuar enquanto instrumento de governança, os agrupamentos deveriam essencialmente incluir todas as potências capazes de desestabilizar a ordem do sistema (PENTILLÄ, 2009 apud MELLO, 2010).

A criação de processos G-X, como ficaram conhecidos diversos agrupamentos de países nas últimas décadas, data do início dos anos 70. Em 1975, constituía-se, através de sua primeira cúpula em Rambouillet, na França, o então G-6. O grupo incluía, nesta ocasião, os países mais desenvolvidos e industrializados da época: Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Alemanha, Japão e Itália e um ano mais tarde, em um encontro em Porto Rico, decidiu pela incorporação do Canadá. A partir de então, estava constituído o G-7 (G20, 2001).

Desde a instituição do grupo, foram estabelecidas reuniões regulares, até que, em 1998, o grupo decidiu ampliar-se ainda mais, passando a incluir também a Rússia (ALEXANDROFF, 2010).

O então G-7+Rússia, mais tarde denominado G-8, representava a missão de resguardar os interesses dos países membros e, além disso, "promover globalmente os valores da democracia aberta, das liberdades individuais e do progresso social" (KIRTON, 2009:40).

Apesar de analistas como John Kirton (2009) considerarem que o G-8 constituiu um potencial centro de governança global - ao ter, por exemplo, contribuído para pacificar a Rússia e boa parte mundo comunista e ter ajudado a evitar o genocídio no Kosovo, bem como ter se envolvido no combate à proliferação nuclear, ao terrorismo, à mudança climática, às doenças como o HIV e à pobreza - sob a ótica de multilateralismo como 'concerto', tanto o G-7 quanto o G-8 não constituíram de fato processos legítimos. O primeiro, por não incluir a União Soviética, e o segundo por não abarcar a China, países que à época de atuação de cada um dos grupos tinham (e têm) grande representatividade em diversas áreas capazes de afetar globalmente a estabilidade do sistema. Neste panorama, o G20 financeiro, ao contrário, corresponderia na atualidade, a "um concerto global de potências envolvidas na tentativa de implementar uma administração conjunta do sistema internacional" (MELLO, 2010).

O G20 surgiu em 1999 envolto na expectativa de que representaria um importante movimento rumo a uma governança que melhor representasse o mundo do século XXI. Acreditava-se, nessa ocasião, que ele representaria um fórum mais inclusivo em relação ao G-8, na medida em que seria permissivo à maior liderança dos países emergentes como China, Índia e Brasil (LOURES, 2009; KOLODKIN, 2009).

Englobando as vinte maiores economias do planeta, o grupo é composto por África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia, Turquia e União Européia (representada através da Comissão Européia, da Presidência e do Banco Central Europeu) (G20, 2011).

A princípio o G20 havia se constituído como uma instância ministerial e de caráter técnico e estava designado a promover a interação entre Ministros da Fazenda e Presidentes dos Bancos Centrais. Entre suas principais atribuições estavam temas relacionados à política econômica e financeira, bem como a cooperação. Ao longo de sua existência, o G20 orientou-se neste sentido e, finalmente, em setembro de 2009, na Cúpula de Pittsburgh, foi alçado ao posto de foro oficial contensor da crise financeira. Assim, o grupo que abarca cerca de 80% da população mundial e em média 90% do PIB global, chegou a injetar 1 trilhão de dólares para recuperar a economia global, bem como prenunciou as discussões acerca das reformas do FMI e do BIRD (TORRES, 2009), além de ter promovido as discussões sobre a implementação de um possível 'Basiléia III' para operações financeiras (G20, 2011).

A Declaração dos Líderes nesta Cúpula anunciava, detalhadamente, como atribuições do G20 a partir daquele momento:

1)Lançar um arcabouço que estabeleça as políticas e a forma em que trabalharemos juntos para gerar um crescimento, forte, sustentável e equilibrado.
2)Garantir que nosso sistema regulatório de bancos e empresas financeiras controle os excessos que levaram à crise
3)Reformar a arquitetura global para atender às necessidades do século XXI.
4)Tomar novas medidas para aumentar o acesso a alimentos, combustível e financiamento entre os países mais pobres do mundo, restringindo os fluxos externos ilícitos
5)Eliminar gradualmente e racionalizar no médio prazo os subsídios ineficientes ao consumo de combustíveis fósseis, prestando apoio direcionado aos mais pobres. 
6)Manter nossa abertura e voltar-se para o crescimento mais verde e mais sustentável (G20, 2009).

Nesta ocasião, o próprio presidente norte-americano Barack Obama chegou a dizer que reconhecia no G20 "uma oportunidade de construir uma economia global mais forte, balanceada, uma reforma do sistema financeiro e a elevação dos países mais pobres" (KOLODKIN, 2009).

Na prática, as discussões latentes durante as cúpulas do G20 no período de crise levaram ao comprometimento das instituições de Bretton Woods em transferir maior poder de voto aos países em desenvolvimento. No fim de abril de 2010, houve aumento de 3,13% neste sentido dentro do Banco Mundial e foi acordado que, no FMI, a parcela envolveria, no mínimo, um aumento de 5%. Além disso, o processo de seleção dos presidentes das instituições financeiras internacionais passou a compor os debates, reclamando que fossem feitas com maior transparência e competitividade, bem como foram debatidas medidas que levassem a maior regulamentação do sistema financeiro, especialmente no que tange ao estabelecimento de um reforçado marco regulatório, a necessidade de supervisão de risco efetiva e aos meios para conduzir e resolver crises sistêmicas. Criou-se também o Conselho de Estabilização Financeira (FSB) e financiaram programas ligados ao desenvolvimento de energia limpa. Além disso, pressionou-se o BIRD a financiar uma nova Iniciativa de Segurança Alimentar para países de baixa renda e anunciaram o apoio ao acordo de Copenhague, através de negociações do United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC) (G20, 2009).

Depois deste encontro em Pittsburgh, os países voltaram a se reunir no Canadá e na Coreia, em 2010. Em novembro deste ano, o G20 chegou a emitir um pacto destacando seu comprometimento com ações em infra-estrutura, comércio, desenvolvimento de recursos humanos, investimentos no setor privado, geração de empregos, segurança alimentar, compartilhamento de conhecimento e crescimento sustentado (WHITE HOUSE, 2010). Em 2011, um encontro na França está previsto para novembro.

Retomando a questão conceitual que remete ao novo multilateralismo, portanto, o G20 pode ser enquadrado como um mecanismo efetivo de governança na medida em que demonstrou reunir: 1) autoridade política para gerenciar problemas globais, 2) construção de uma estabilidade, 3) articulação de interesses coletivos, 4) estabelecimento de direitos e deveres e 5) mediação de diferenças e 6) coordenação de políticas (TORRES, 2009).

O "multilateralismo light" representado pelo grupo, desta maneira, permite incorporar países emergentes com agilidade e, neste sentido, garante uma representação mais condizente com a distribuição de poder. Ao mesmo tempo, este sistema seria conveniente na medida em que trabalharia de maneira dual: "poderia fornecer uma complementaridade funcional entre os arranjos informais (os grupos exclusivos que tomariam decisões) e as organizações formais, às quais caberia legitimar e garantir os mecanismos de cumprimento dos resultados alcançados na informalidade" (Pentillä 2009, p. 41 apud MELLO, 2010).

 

5.CONSIDERAÇÕES FINAIS

As transformações geradas a partir da Nova Ordem Internacional foram agravadas por questões estruturais e conjunturais dos últimos anos. No campo norte-americano encontra-se, particularmente, a estratégia de combate ao terror e suas duas guerras conseqüentes - Afeganistão e Iraque, bem como a crise financeira de 2008. Tais condições, somadas à emergência de novas potências estariam sinalizando pouco a pouco a relativização do poderio dos EUA e, de alguma maneira, permitindo o questionamento da representatividade das estruturas de governança que, pensadas sob a teoria da estabilidade hegemônica, teriam sido erigidas a partir dos interesses dos norte-americanos, mas que ofereceriam respaldo deficiente à diversos países na configuração de poder do século XXI.

Ao observar, por um lado, o recente colapso do sistema de Bretton Woods, a paralisia da ONU, cuja reforma, especialmente do Conselho de Segurança, jamais foi levada a cabo, e o caso da Rodada Doha da OMC, estacionada há pelo menos uma década, e notar, paralelamente o fortalecimento de arranjos como o G20 financeiro, torna-se possível pensar que o multilateralismo estaria sendo concebido a partir de uma nova perspectiva, constituído, em alguma medida a partir de issue areas.

Trata-se de uma experiência complexa e que permite refletir o próprio conceito de governança global, pois se por um lado estes mecanismos refletem com maior acuidade os novos interesses e valores emergentes, eles levantam também uma séria discussão a respeito de sua legitimidade, pois ao não terem passado por um processo natural de institution-building, poderiam surgir, muitas vezes como expressão de demandas "ad hoc" de países como os BRIC. Ademais, na esteira destas supostas carências, estariam também o caráter informal destes agrupamentos, bem como elementos que tangenciam a efetividade e a paridade de interesses, muitas vezes antagônicos e desconexos, entre os membros.

Além disso, como não há uma estrutura fixa, com "key players" bem-definidos, neste sistema internacional pós-GF (ou pós-11 de setembro), o mundo está saindo de um âmbito completamente multilateral e está rumando para um conglomerado de coalizões circunstanciais, "minilaterais", em que os alinhamentos são muito fluidos.

Assim, se por um lado isso aumenta o poder de barganha dos emergentes, diante de estruturas prévias muito rígidas às quais eles não têm acesso, por outro também gera incertezas, na medida em que cria um duplo problema: as estruturas antigas perdem a legitimidade da qual gozaram durante a Guerra Fria, e as novas estruturas nascem com uma legitimidade ainda baixa.

Simultaneamente, permanece a noção que as estruturas de governança são dinâmicas e capazes de se transformar e adaptar às novas circunstancias, fazendo com que tanto o formato antigo - representado pelo sistema americano - quanto o novo modelo atuem através de um processo de complementação mútua.

Este é, sem dúvida, um debate grandioso e de certo controverso. Longe de ambicionar ter esgotado o debate, este artigo espera estimular a reflexão sobre esta problemática e contribuir para a discussão deste tema.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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