Print ISBN 2236-7381
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3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011
A China diante dos desafios internacionais pós-hegemônicos no século XXI: alternativas de poder num período de caos sistêmico
Fernando Marcelino
Graduado em Relações Internacionais e mestrando em Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: fernandomarcelinopereira@gmail.com
RESUMO
Este trabalho objetiva discutir, a partir da perspectiva histórica de Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrihi, a caracterização da China como potencial nova hegemonia no século XXI. O trabalho está dividido em três partes. Na primeira, discuto a ascensão da hegemonia dos Estados Unidos, na segunda trato de alguns aspectos políticos da caracterização do regime chinês e na terceira aponto os impasses militares da ascensão chinesa.
Palavras-chave: China, Estados Unidos, hegemonia, soft power
1. Estados Unidos entre a crise hegemônica e o caos sistêmico: um horizonte no Oriente?
Este novo século se apresenta com variadas transformações no sistema internacional, em especialmente em relação à morfologia do poder dos Estados Unidos. Na última década a crise e as ocupações militares no Afeganistão, no Iraque e agora na Líbia aprofundaram as potencialidades de sérias crises de legitimação internamente e externamente. Por mais que dependa dos outros Estados para ter o apoio necessário para exercer sua hegemonia, com seus devidos custos políticos e econômicos, esse apoio se torna cada vez mais marginal diante da atuação unilateral que trata os "aliados" como meros ativos estratégicos úteis conforme suas conveniências. Operou-se uma mudança política na política externa em que se "esta conosco ou contra nós". Mas como a maior superpotência da história chegou nesta situação? Seria o declínio da hegemonia mundial dos Estados Unidos? Mas o Século XXI não seria um "novo século norte-americano"?  .
Para Immanuel Wallerstein, a ascensão hegemônica dos Estados Unidos começou com a recessão mundial de 1873 quando, com o retrocesso da economia britânica, a Alemanha e os Estados Unidos aumentaram suas participações nos mercados globais. Dessa forma, entre 1873 e 1914 ambos se tornaram "os principais países produtores em certos setores de base: aço e, mais tarde, automóveis no caso dos Estados Unidos; produtos químicos industriais no caso da Alemanha" (Wallerstein, 2004, pág.22). Com a eclosão da "guerra dos trinta anos", entre 1914 e 1945, a única grande potência industrial que saiu ilesa da destruição de infra-estruturas e população foi os EUA, avançando assim rapidamente na consolidação de sua hegemonia. No período da Guerra Fria, a bipolaridade entre os Estados Unidos e a URSS foi construída por um "equilíbrio do terror" que foi seriamente posto à prova apenas três vezes: no bloqueio de Berlim (1948-1949), na Guerra da Coréia (1950-1953) e na crise dos mísseis em Cuba (1962). Em todos estes casos o resultado foi a restauração do status quo (ibidem, p. 24). Este período seria de "estabilidade hegemônica" em que
os Estados Unidos capitalizaram o ambiente de Guerra Fria para lançar esforços maciços de reconstrução econômica, primeiro na Europa Ocidental e depois no Japão, bem como na Coréia do Sul e Taiwan. A fundamentação lógica era óbvia: de que adiantava ter uma superioridade produtiva tão esmagadora se o resto do mundo não podia oferecer uma demanda efetiva para ela? Além disso, a reconstrução econômica ajuda a criar uma clientela nas nações que recebiam auxílio; esta sensação de obrigação encorajava uma disposição para entrar em alianças militares de uma subserviência política (ibidem, 24).
Conforme Giovanni Arrighi, no fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos detinham enormes capacidades sistêmicas tanto militares quanto financeiras, porém não detinha as condições para a criação de uma hegemonia mundial, pois necessitavam enfrentar o desafio criado pela insatisfação social. Para a expansão transnacional do capital, o governo dos Estados Unidos criou as condições para sua consolidação interna com incentivos fiscais e planos de seguros e externa com proteção militar e política. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial contribuiu para transformar a Europa Ocidental em uma área privilegiada de investimentos externos diretos dos Estados Unidos (2001, p. 148) que detinham mais da metade do PIB mundial concentrado em suas mãos. Dessa forma, o governo dos Estados Unidos "não poupou dinheiro nem energia para criar na Europa um espaço político-econômico suficientemente grande para permitir que o capital de corporações de capital norte-americano remoçasse em uma segunda juventude do outro lado do Atlântico. Mediante o uso habilidoso de incentivos econômicos (muito especialmente o Plano Marshall), ele estimulou a cooperação européia e a redução de barreiras econômicas intra-européias" (idem, p. 149). Dessa maneira, essas corporações se tornaram um mecanismo importante para a manutenção e ampliação do poder dos Estados Unidos num contexto de New Deal e dos mecanismos keynesianos de regulação, distribuição e intervenção governamental sobre a economia em grande escala. Isso possibilitou uma maior integração social, pois
requereu nos Estados Unidos uma trégua baseada em uma troca: o governo e as grandes empresas aceitavam a permanência do sindicalismo, enquanto os sindicatos aceitavam o direito de a administração introduzir mudanças contínuas na organização da produção para aumentar a produtividade. O governo prometeu usar os instrumentos macroeconômicos de que dispunha para garantir o pleno emprego, enquanto as empresa cederiam uma parcela de seu lucro maior, proveniente do aumento da produtividade, sob a forma de elevação dos salários reais. Isso, por sua vez, garantiu um mercado de massas para a produção crescente da indústria e permitiu a despolitização e o aplacamento do conflito capital-trabalho, mediante a promessa do "consumo de massas" - ou seja, a promessa do acesso universal ao "sonho americano" (ibidem, p. 213)
Além disso, o sistema de Bretton Woods aceitou a possibilidade que os governos usassem tais medidas para melhorar suas condições sociais, o desemprego e as pressões inflacionárias. Foi a "época de ouro do capitalismo" com a consolidação da hegemonia mundial dos Estados Unidos com altos índices de crescimento econômico e expansão do Welfare State nos países mais desenvolvidos e das políticas de descolonização e o desenvolvimentismo na Ásia, África e América Latina.
Tanto Wallerstein como Arrighi identificam o início da sua crise hegemônica por volta de 1970. Por mais que a capacidade militar dos Estados Unidos continue crescente em relação ao resto do mundo, com a recuperação econômica do Japão e da Europa Ocidental o hiato de produtividade foi quase eliminado no final dos anos 1960 tornando-se competitivos até mesmo no mercado interior dos Estados Unidos. Os ápices simbólicos deste processo foram a guerra do Vietnã, as revoltas de 1968, a queda do muro de Berlim em 1989 e os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Como reparou Robert Cox, é inevitável fazer um paralelo da condição dos Estados Unidos com a crise da URSS e seus índices decrescentes de produtividade, gastos militares elevados e um déficit orçamentário impossível de pagar (Cox, 2007, p. 404).
Vale atentar também que a competição econômica no mercado mundial também está modificando sua centralidade para a Ásia Oriental cujo caso mais paradigmático é o da China que economicamente cresce a passos largos e que, ao que tudo parece, em alguns anos irá ultrapassar os Estados Unidos como a Grande Indústria do mundo. A China também está expandindo seu poder internacional via sua inserção institucional e diplomática, poderio bélico, reservas econômicas e soft power com investimento em comunicação, formação acadêmica, tecnologia de ponta e o confucionismo. A China também tem crescente legitimidade ideológica para produzir "novos consensos" diante de sua relevância econômica como "fábrica do mundo" e da crise do neoliberalismo. Apesar de sua condição subalterna aos países mais desenvolvidos do sistema que olham com maus olhos a divisão de seu poder com o Oriente, a China tem representado a experiência mais enigmática pela escala titânica de seu dinamismo econômico sem seguir a cartilha neoliberal espalhada pelo Consenso de Washington. É neste processo que o prestígio dos Estados Unidos em relação aos outros participantes do sistema vem perdendo força. Conforme o historiador e demógrafo Emmanuel Todd (2003) os EUA que foram uma potência incontestável entraram em um declínio irreversível. Ele não possui mais o poder para dominar atores econômicos e estratégicos como a União Européia, a Rússia, o Japão e a China. Sua importância para os outros diminui e a grande virada é que os EUA necessitam cada vez mais do resto do mundo para financiar sua condição de compradora em última instância. Dessa forma os EUA recorrem a supremacia militar a países fracos para justificar sua posição de país indispensável para a segurança mundial, evidente no caso do Afeganistão e do Iraque.
A amplitude dos conflitos oriundos do declínio da hegemonia dos Estados Unidos depende de sua adaptação a esse processo. A "guerra ao terror" foi uma saída contrária a essa adaptação. A virada neoconservadora apenas acabou por fazer de tudo para tentar manter sua posição privilegiada passando por cima até mesmo das instituições que construiu e dos aliados. Em entrevista, quando perguntado sobre a possível hegemonia pós-Estados Unidos, Arrighi respondeu qu.
não há novas potências agressivas que sejam dignas de crédito, capazes de provocar o colapso do sistema mundial centrado nos Estados Unidos, mas essa nação tem uma capacidade ainda maior do que teve a Grã-Bretanha, cem anos atrás, para converter sua hegemonia decrescente em uma dominação exploradora. Se o sistema vier a entrar em colapso, será sobretudo pela resistência norte-americana à adaptação e à conciliação1
Ele enfatiza que com o fracasso no Iraque, os Estados Unidos ainda são dominantes, porém sem o poder hegemônico já que, não tem mais a capacidade de fazer o resto do mundo se mobilizar para atuar segundo seus interesses. A ligação que se faz aos Estados Unidos não é mais de ordem e sim de caos. Aqui está a crise terminal que está ligada também a condição da China como grande vencedora da guerra contra o terror e a maior dependência dos Estados Unidos em relação ao sudeste asiático. Se essa região conseguir encontrar os meios de superação da extrema desigualdade existente poderia se tornar o epicentro da economia mundial. Na síntese de Paulo Vizentini,
o sistema internacional pós-hegemônico, marcado pela globalização e pela formação dos blocos regionais, bem como pela instabilidade estrutural que acompanha a competição econômica, e o reordenamento político internacional dos anos 1990 sinalizam o início de uma nova fase de crise e transição, na luta pelo estabelecimento de uma nova ordem mundial. Nela, configura-se a emergência da Ásia Oriental, particularmente da China, como novo pólo desafiante da liderança anglo-saxônica. Além disto, a base deste período consiste na busca de estruturas que permitam um desenvolvimento estável, o que passa pelo domínio e pela acomodação dos paradigmas da Revolução Científico-tecnológica, que presentemente está implodindo as estruturas preexistentes (Vizentini, 2004, p.4).
2. Uma nova era centrada na Ásia Oriental?
A ascensão da China na hierarquia mundial de poder e riqueza é um dos fenômenos mais importantes da economia política internacional contemporânea. Como a ascensão chinesa afeta a dinâmica do sistema-mundo? Quais são as causas do seu estonteante crescimento econômico nas últimas décadas? Quais são os impactos da Economia Socialista de Mercado num contexto de crise mundial? Poderia a China ser uma nova hegemonia mundial pós-Estados Unidos? Como está ocorrendo sua inserção internacional, sua política externa, comércio exterior, desenvolvimento institucional e militar? No que seu padrão de desenvolvimento se diferencia do padrão ocidental? Diante da crise de hegemonia dos Estados Unidos, a China representa uma nova potência capaz de exercer um poder econômico, político e cultural suficiente para ser considerada uma nova hegemonia rumo a um novo sistema-mundo ou aprofundaria as determinantes negativas da atual crise mundial? Afinal, como seria mais correto caracterizar a experiência chinesa contemporânea?
Quando o assunto é China, parte considerável dos analistas fica completamente sem palavras. No Brasil essa situação é ainda mais desesperadora pela falta de institutos de pesquisa sobre a Ásia e seus impactos no sistema mundial. Além disso, fica claro que o enfoque realista da disciplina de Relações Internacionais é amplamente insuficiente para desvendar as múltiplas facetas do enigma chinês, seja pelo papel do comércio exterior nas relações de poder internacionais, das forças sociais pós-revolucionárias, o próprio caráter do Estado chinês e suas relações com a sociedade civil além dos fundamentos ideológicos e institucionais de sua política externa. O enfoque ocidentalista do realismo, ao não conseguir interpretar o fenômeno chinês e o sistema interestatal da Ásia Oriental, trás a luz do dia uma renovada crítica aos seus postulados
Desde a formação da China moderna em 1949, o ciclo econômico vem apresentando alto ritmo de crescimento dos investimentos em capital fixo. A partir de 1980 a China é o país que mais cresce no mundo. Com um território de cerca de 9.597.000 de quilômetros quadrados e uma população de 1,5 bilhão de pessoas, a China é a principal oficina do mundo liderando a produção de milhares de mercadorias. Em 2005 a China ultrapassou os Estados Unidos na produção manufatureira chegando a 13,1% da produção global. Essa liderança chinesa não se restringe a produtos de baixo valor agregado como brinquedos e calçados, mas corresponde, por exemplo, a cerca de 30% da fabricação mundial de equipamentos de computador. O PIB chinês teve um crescimento médio do Produto Interno Bruto (PIB) de 10% entre 1980 e 2010 e um crescimento de do PIB per capita de US$ 205,1 em 1980 para US$ 4.282,9 em 2010. Esse processo dinâmico e altamente produtivo deixa cada vez mais claro que o mundo depende da China, em especial num meio internacional de recessão econômica e desnorteamento político generalizado. Enquanto para Wallerstein a crise estrutural do sistema-mundo não dará espaço para a ascensão de uma nova hegemonia, conforme Arrighi,
As conseqüências da ascensão da China são grandiosas. A China não é vassala dos Estados Unidos, como o Japão ou Taiwan, nem é uma reles cidade-Estado como Hong Kong e Cingapura. Embora seu poderia militar empalideça quando comparado ao dos Estados Unidos e o crescimento de suas indústria ainda dependa das exportações para o mercado norte-americano, a riqueza e o poder dos Estados Unidos dependem igualmente, ou ainda mais, da importação de mercadorias chinesas baratas e da comprar, por parte da China, de títulos do Tesouro norte-americano. O mais importante é que, cada vez mais, a China vem substituindo os Estados Unidos como principal motor da expansão comercial e econômico na Ásia oriental e em outras partes do mundo (2008, p. 23).
No livro final de sua trilogia, Arrighi enfatiza que a ascensão dos neoconservadores nos Estados Unidos, os ataques de 11 de setembro e a subseqüente invasão ao Afeganistão e ao Iraque intensificou sua crise hegemônica. Para Arrighi,
o fato de o governo Bush ter adotado o Projeto para o Novo Século Norte-Americano como reação aos acontecimentos de 11 de setembro de 2001 foi, em aspectos importantes, uma tentativa de dar vida ao primeiro império verdadeiramente global da história do mundo. O fracasso abissal do projeto no campo de testes iraquianos não eliminou, embora tenha reduzido bastante, a possibilidade de o império global centrado no Ocidente vir a se concretizar. A possibilidade de um caos mundial interminável provavelmente aumentou. Mas aumentou também a possibilidade de assistirmos à formação de uma sociedade de mercado mundial centrada na Ásia Oriental (idem, p. 23).
Arrighi salienta que uma civilização mundial menos desigual somente será possível se, na China, a longa tradição do desenvolvimento baseado no mercado e centrado em si mesmo, e de governo com a participação das massas, não for abandonada em favor de um desenvolvimento propriamente capitalista. O fracasso neste caminho poderia transformar a China num "epicentro de caos social e político", estimulando as potências ocidentais a restabelecerem novamente seu domínio sobre o mundo.
2.2. Aspectos políticos do chamado "socialismo com características chinesas"
Os marxistas ocidentais descartam a idéia de que ainda exista algum socialismo na China, independentemente que seja de mercado ou qualquer outro tipo. Uma economia de mercado socialista seria um paradoxo insolúvel que deveria ser descartado como mais uma anomalia pós-revolucionária, como o stalinismo. Afinal, o capitalismo foi restabelecido na China? O que existe lá é um Capitalismo de Estado? O "Muro da China" já caiu? David Harvey estaria correto ao identificar as reformas de Deng com um "neoliberalismo com características chinesas"?
As reformas de Deng introduziram um novo curso na "institucionalização da revolução chinesa" que não remontam ao modelo kruschoviano de "desestanilização". Mao não foi o culpado das dificuldades anteriores e nem demonizado, como fora Stálin. A Mao foram ligados os enormes avanços históricos conquistados na construção do partido comunista e na direção da luta revolucionária. Também houve críticas sobre os graves erros cometidos, em especial a partir de 1955, mas que foram colocados sob o prisma geral de um contexto de experiências extremamente complexas que acompanham o processo de construção de uma sociedade nova, sem precedentes históricos. Esse caminho evitou a perda de legitimidade do poder revolucionário e fez surgir gradualmente o "Socialismo de Mercado". As reformas de Deng construída sobre princípios maoístas e levou a um aumento na expectativa de vida, alfabetização e produção de alimentos e, finalmente, as reformas mais recentes e boom da China. O governo chinês, também, investiu na criação das Zonas de Processamento para Exportação, na expansão e modernização da educação superior, em grandes projetos de infraestrutura e intervém diretamente para promover a colaboração entre universidades, empresas e bancos estatais no desenvolvimento da informática. O tamanho continental e o excedente populacional permitiram a China aceitar a industrialização voltada para a exportação, induzida em parte pelo investimento estrangeiro, com a vantagem de ter uma economia nacional centrada em si mesma e resguardada pelo idioma, pelos costumes, pelas instituições e pelas redes, aos quais os estrangeiros só tinham acesso por intermediários locais. Arrighi conclui que o relativo gradualismo com que as reformas econômicas foram realizadas e a ação compensatória com a qual o governo chinês promoveu a expansão do mercado nacional e as novas divisões sociais do trabalho contemplam uma reforma com características smithianas ("caminho natural") se opõem às terapias de choque, os governos minimalistas, com setores da burguesia contra qualquer tipo de projeto nacional e os mercados auto-regulados. Talvez o que mais chame a atenção na China seja a hibridização entre Estado e Capital. Esse processo envolve uma estrutura autoritária do Estado para manter a "ordem pública" ao mesmo tempo em que é um agente ativo na redistribuição de renda baseada em par cela da acumulação em escala gigantesca do crescimento econômico. Mas então, como caracterizar a China? A nosso ver a enigmática experiência chinesa não pode ser caracterizada como um Capitalismo de Estado. A China não é capitalista, mas uma economia de mercado social-nacional com um sistema estatal pós-liberal. Em suma, a China tem características pós-capitalistas por mais que seja altamente influenciada pelas determinações destrutivas do capital no atual período histórico. Algo novo ocorre lá, mais dinâmico e produtivo que o capitalismo ocidental e sem a qualquer perspectiva de democracia que deixa perplexo até os analistas mais argutos. Samir Amin acredita que enquanto o princípio de acesso igual à terra continue a ser reconhecido e implementado, não é tarde demais para que a ação social na China contemporânea desvie a evolução numa direção anti-capitalista. Arrighi acredita que, apenas da disseminação das trocas de mercado na busca de lucro, a natureza do desenvolvimento na China não é necessariamente capitalista.
É claro que isso não significa que o socialismo vá bem na China comunista, nem que esse seja o provável resultado da ação social. Significa apenas que, mesmo que o socialismo já tenha sido derrotado na China, o capitalismo, segundo essa definição, ainda não venceu. O resultado social do imenso esforço de modernização da China continua indeterminado e, pelo que sabemos, socialismo e capitalismo, entendidos com base na experiência passada, podem não ser as noções mais úteis para acompanhar e compreender como a situação evolui (2008, p. 39).
Estaria chegando a hora de uma nova revolução chinesa para ultrapassar o pós-capitalismo do Estado-Partido?
2.3. Nova institucionalidade militar
Com o declínio da hegemonia dos Estados Unidos não se pode falar da perda da capacidade coercitiva relativa do poder norte-americano. O próprio Arrighi admite uma anomalia: enquanto os caos sistêmicos anteriores foram marcados pela fusão do poder financeiro e militar sob a jurisdição da nação hegemônica ascendente, no presente momento ocorre uma fissão destes dois poderes: o financeiro migrando para a Ásia Oriental, e o militar permanecendo nas mãos dos EUA. A capacidade estadunidense de intervenção é única na história e pode usar o recurso da imprevisibilidade do envio rápido de tropas por estar entendido pelos quatro cantos do mundo com suas bases militares. Seu poder territorial é como o de qualquer império precedente. Segundo Gill
Os Estados Unidos possuem algo entre 700 e 1000 bases militares em todo o mundo (dependendo de como elas são categorizadas e contatas); possui mais de 6000 dentro dos Estados Unidos e em seus próprios territórios. Um pessoal uniformizado de cerca de 250.000 funcionários civis, mais cerca de 45.000 funcionários contratados localmente (o que não exclui os novos envios ao Iraque, cerca de 140.000, nem o pequeno exército de contratantes privados que trabalham a seu lado como parte do modelo dos Estados Unidos de operações de guerra quase privatizadas). Ao menos 4, ou talvez 6 novas bases estão sendo construídas hoje no Iraque. Desde 11 de setembro de 2001, as forças dos Estados Unidos construíram, modernizaram ou expandiram as dependências militares em Bahrain, Qatar, Kuwait, Arábia Saudita, Omã, Turquia, Bulgária, Paquistão, Uzbequistão e Quirguistão (Gill, 2006, p. 51).
As bases militares estadunidenses estão em cerca de 130 países e possuem um sistema de guerra único para garantir a defesa de seus interesses e práticas em constante expansão que, mesmo com o fim da Guerra Fria, não se conteve. O projeto Future Image Architecture, ou FIA, mostra isso. Ele é uma expansão massiva de seu sistema de satélites espiões e custeará US$ 25 bilhões em vinte anos. Em comparação, o projeto Manhattan que teve o propósito de construir a bomba atômica na Segunda Guerra Mundial custou US$ 20 bilhões de dólares atuais. Esse projeto se encaixa perfeitamente sobre a expansão constante de tecnologia militar a fim de dominar, além de tudo, o espaço e a cibernética (idem, p. 52). Como ficou claro no recente "Nova Estratégia Internacional para o Ciberespaço" encabeçado pelos Estados Unidos, serão usados "todos os meios necessários - diplomáticos, informativos, militares e econômicos - que sejam apropriados e consistentes com a legislação internacional" contra aqueles que ameaçarem o ciberespaço global com "atos agressivos". Conforme o documento, "certos atos hostis conduzidos no ciberespaço pode obrigar a tomar ações pelos compromissos que temos com nossos sócios de tratados militares. Quando seja justificado, os Estados Unidos responderão aos atos hostis no ciberespaço como responderíamos a qualquer outra ameaça a nosso país". Assim, os Estados Unidos não se limitam a garantir a segurança de seu próprio território, mas de todo o ciberespaço global diante das ameaças dos "terroristas cibernéticos" que podem se encontrar em qualquer lugar do mundo. Com isso, "os Estados Unidos assegurará que os riscos associados a atacar e explorar nossas redes pese mais que os potenciais benefícios". Dessa forma o Pentágono considera a partir de agora que qualquer ciberataque de outro país é um ato de guerra, uma agressão virtual que pode desencadear um ataque militar tradicional. Esta não seria uma espécie de "doutrina Bush no ciberespaço"? Esta não seria a tentativa do governo Obama de dar um passo a mais no controle progressivo da rede, uma espécie de militarização da segurança global sobre a propriedade intelectual?
Então, uma coalizão entre China, Rússia, Índia, Brasil (e suas regionalidades) colocaria exclusivamente, politicamente, informacionalmente, militarmente e estrategicamente uma resistência a atuação unilateral dos Estados Unidos e da OTAN? Estas "forças mundiais" teriam interesses e forças similares ou antagônicas?
Talvez a experiência mais intrigante neste processo seja Organização de Cooperação de Xangai, organização que não é dirigida contra nenhum país ou bloco e aparece como uma entidade institucionalmente flexível capaz de conjugar diversos interesses de seus participantes da Ásia Central. A OCX adentra numa área de mais de 30 milhões de quilômetros quadrados, um contingente humano de cerca de 25% da população mundial - sem contar os membros observadores. Na parte econômica essa cooperação ganha dinamismo, impulsionada pela riqueza de hidrocarbonetos, recursos minerais e agrícolas. Em termos de "capital humano" de exércitos, desenvolvimento tecnológico da área militar e máquina econômica capaz de sustentar conflitos, é possível dizer que os Estados Unidos não permaneceram a única superpotência militar do mundo. A disjunção entre aspectos militares e econômicos é inviável a longo prazo.
Do consenso de Washington ao consenso de Beijing, a América Latina é uma área de tensão nesse processo global, assim como a África, o Oriente Médio, a Oceania e parte da Ásia. Entretanto, o pensamento chinês já apreende de forma geral que a crise financeira de 2008 causou transformações históricas na ordem internacional e que posições relativas de muitas forças estratégicas mudaram em diferentes graus. Isso é: está claro que a China saiu fortalecida da crise e que a existência de uma "balança de poder" com a supremacia absoluta dos Estados Unidos é cada vez mais inviável no sistema internacional. Os Estados Unidos vem perdendo a multiplicidade do poder para outros agentes. Por mais que necessite urgentemente de mais "soft power" não existem mais todas as capacidades para desenvolvê-lo. Os constrangimentos que os Estados Unidos têm para exercer uma ordem unipolar aumentam junto com a ascensão da Ásia que detém um sistema mais produtivo e dinâmico sob uma estrutura política autoritária. Com a transformação de uma ordem unipolar numa multipolar, um novo padrão de relacionamento entre as grandes potências emerge. Na realidade, mudanças nas relações entre as potências desenvolvidas ocidentais e os poderes emergentes se tornaram o tema central de transformação na ordem mundial. Paradoxalmente o único meio de manter e reverter o declínio da sua hegemonia é pelo processo de liderança na promoção da cooperação com aliados tradicionais como União Européia, Japão, Coréia e Austrália e poderes emergentes como China, Índia, Rússia e Brasil. Assim seria possível que os Estados Unidos mantenham suas vantagens e adquiram novas reconstruindo sua posição dominante. Esta seria uma estratégia de transição da hegemonia unipolar à multipolar que manteria a liderança dos Estados Unidos no sistema internacional. Entretanto, os EUA multiplicam guerras tropas no Médio Oriente, Sul da Ásia, na África e Caribe e contribui para a instabilidade política na América Latina; a China proporciona investimentos e empréstimos para a construção de infraestrutura, estação de minérios, produção de energia e instalações de montagem na África. A China assina acordos de comércio e investimento de muitos milhares de milhões de dólares com o Irão, Venezuela, Brasil, Argentina, Chile, Peru e Bolívia, assegurando acesso a recursos energéticos, minerais e agrícolas estratégicos; Washington proporciona bilhões de ajuda militar à Colômbia, assegura sete bases militares do presidente Uribe (para ameaçar o Brasil e a Venezuela), apóia um golpe militar em Honduras e denuncia o Brasil e a Bolívia por diversificarem os seus laços econômicos com o Irã. Entretanto, a China provavelmente não vai disputar agressivamente a hegemonia dos Estados Unidos na América Latina. Esta área é vista pelos chineses como espaço de influência natural do "grande irmão". Os custos ainda seriam muito elevados, mas esta posição pode potencialmente se transformar quando a disputa por recursos naturais e energéticos se acirrar. Portanto, será a auto-determinação dos povos latino-americanos que poderá superar esta condição de servidão voluntária ao Império.
Nesse processo a China se apresenta neste século como um enigma entre o declínio da hegemonia dos Estados Unidos, uma economia política muito pouco conhecida num processo de ascensão da Ásia como centro de poder do sistema mundo que sofre, cada vez mais, perturbações gigantescas devido ao seu modo de reprodução.
Referências:
ARRIGHI, Giovanni & SILVER, Beverly J. Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial. Rio de Janeiro, UFRJ-Contraponto, 2001.
ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim. São Paulo, Boitempo, 2008.
COX, Robert W. Gramsci, hegemonia e relações internacionais: um ensaio sobre o método. In: GILL, Stephen (org.). Gramsci: materialismo histórico e relações internacionais. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. p. 102-123.
GILL, Stephen. Gramsci, materialismo historico e relações internacionais. Rio de Janeiro, UFRJ, 2007.
Vizentini, Paulo Fagundes. "A vida após a morte: breve história mundial do presente pós-fim da história", 2004, disponível em http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/artg16-3.pdf
WALLERSTEIN, Immanuel. O Declínio do Poder Americano: os Estados Unidos em um mundo caótico. Rio de Janeiro, Contraponto, 2004.
1. Disponível em http://www.italiaoggi.com.br/not07_0907/ital_not20070902a.htm