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Print ISBN 2236-7381

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

As regulamentações privadas no contexto da governança global*

 

 

Flávia Maria de Mattos Donadelli

Instituto de Relações Internacionais -Universidade de São Paulo (IRI -USP), e-mail: donadelliflaviamaria@hotmail.com

 

 


RESUMO

Recentemente, diversas têm sido as práticas de regulamentação global promovidas por atores privados. Assim, a emergência da autoridade privada, insere, definitivamente, no universo das Relações Internacionais, a idéia de Governança Privada como possível fornecedora de bens públicos. Diante dessa constatação, julga-se necessário problematizar essa nova racionalidade regulamentadora. Além dos argumentos que apontam para a possível inefetividade desses novos tipos de regulamentação, muitas vezes, o grande potencial regulamentador da iniciativa privada acaba revelando-se uma verdadeira ameaça aos interesses públicos, em processos pouco legítimos e pouco inclusivos de produção de regulamentações. Dessa forma, com a intenção de fornecer algumas contribuições a esse recente debate, o objetivo desse artigo é tanto o de traçar um panorama teórico da emergência de novas formas de regulamentação e autoridade privada nas relações globais, quanto de apontar e debater algumas das principais críticas que vêm sendo direcionadas a esse fenômeno.

Palavras-Chave: governança privada, regulamentações globais privadas, legitimidade, efetividade


 

 

1. Introdução

Entre os diversos temas que têm sido objeto de atenção recente de teóricos das Relações Internacionais, pode-se afirmar que a questão das regulamentações globais, apesar de sua imensa importância e crescente número de evidências empíricas, conta ainda com poucos estudos sistemáticos (LIPSCHUTZ & FOGEL, 2002, p.115). Enquanto os impactos da globalização são amplamente discutidos em termos de novas fontes de poder político e econômico, a questão do poder regulamentador e da nova racionalidade jurídica surgida nas últimas décadas ainda não foram objeto de uma análise mais ampla. A proposta desse artigo, portanto, é exatamente a de fornecer algumas contribuições a esse debate e de estimular a reflexão acadêmica sobre o tema das regulamentações globais.

 De acordo com a definição de Walter Mattli e Ngaire Woods (2009, p.01), regulamentações podem ser entendidas de maneira geral como "a organização e o controle de atividades políticas, econômicas e sociais por meio de criação, implementação, monitoramento e enforcement de regras". Historicamente calcada na noção de Estado nacional como única fonte de poder e autoridade jurídica, a produção de regras globais, bem como sua implementação, monitoramento e enforcement, pode ser considerada, em vistas de seus diversos desafios teóricos e práticos, uma das últimas fronteiras do debate sobre governança global. Apesar de não contar com um sistema jurídico tradicional nem com a unificação e estruturação passíveis de serem atingidas em um sistema nacional, diversos autores são enfáticos ao defenderem a tese de que a produção de regras deixou de ser monopólio dos Estados e vêm, gradualmente, transferindo-se para uma pluralidade de atores e processos, não apenas nacionais como também transnacionais (TEUBNER, 1997, p.7; CUTLER, 2002, p.23.; MATTLI & WOODS, 2009, p.4).

Por meio dessa constatação, observa-se como um fenômeno cada vez mais aceito pela literatura de Relações Internacionais, a emergência de novas fontes de autoridade regulamentadora distantes dos tradicionais pólos públicos tais como entidades da sociedade civil sem fins lucrativos, grandes corporações transnacionais, associações setoriais ou parcerias entre esses diversos atores (RUGGIE, 2004, p. 500). A emergência da autoridade privada ou semi-privada capaz de criar regimes e regras mundiais tem gerado, na visão de diversos autores, uma realocação ou ao menos um compartilhamento da governança pública com arenas privadas nacionais e transnacionais (CUTLER, 2002, p.34, HALL & BIERSTEKER, 2002, p. 5; VOGEL, 2009 p.153, MATTLI & WOODS, 2009, p. 4)

Argumenta-se assim, que as falhas estatais em fornecer diversas regulamentações que possam amenizar as externalidades econômicas, sociais e ambientais da globalização, vêm sendo, em muitos casos, supridas por atores da iniciativa privada que além de possuírem mais incentivos para a provisão desse tipo de bem público, possuem também (em alguns casos) maior expertise técnica e disponibilidade de informações (ABBOTT & SNIDAL, 2009, p. 64). Isso estaria conduzindo o ambiente regulatório mundial para muito além das tradicionais disposições de organizações internacionais ou do direito internacional público. A esse novo cenário, autores como Ronnie D. Lipschutz e Cathleen Fogel (2002, p.117) dão o nome de "a nova divisão global da atividade regulatória" e serão exatamente sua natureza e limitações que procurarão ser exploradas nesse trabalho.

Portanto, o objetivo desse artigo será, além de fornecer as premissas teóricas básicas da qual evolui a noção de regulamentações globais privadas como bens públicos, apresentar as principais ressalvas que devem ser feitas ao excesso de otimismo em relação ao fenômeno.

 

2. As regulamentações privadas globais como bens públicos

Com o avanço tecnológico das comunicações e transportes, e com o aumento da necessidade de interação e coordenação internacional ao longo do século passado, novos problemas surgiram para o universo de estudo das ciências sociais e novos conceitos e teorias passaram a ser necessários. A idéia de ordem global, um dos conceitos basilares das Relações Internacionais, foi entendida inicialmente como as condições de coexistência e padrões de interação apenas dos Estados soberanos. Nessa concepção inicial, observada tanto por autores realistas quanto racionalistas, ordem global e ordem internacional acabavam tornando-se sinônimos, pois os únicos atores do cenário global a serem considerados eram os Estados (HURREL, 2007, p. 2).

Ao longo do século XX, entretanto, diversos foram os desafios a esse tipo de abordagem da ordem global. A evolução do que foi definido por diversos autores como globalização, levou à emergência de novos temas e a inserção de diversas novas fontes de poder e autoridade nesse contexto. Questões como direitos humanos, meio ambiente ou direitos econômicos e sociais, passaram a desafiar definitivamente a imaculada soberania estatal e atores da sociedade civil e da iniciativa privada adquiriram voz e possibilidades de influência nessa, que deixa de ser apenas um ordem internacional para tornar-se, definitivamente, uma ordem global.

Assim, fruto de um contexto teórico cujo ponto focal da definição de ordem global apoiava-se principalmente na autoridade estatal, e ciente das profundas mudanças do século XX, James N. Rosenau (2000) deu início a um dos grandes debates das Relações Internacionais. Ao atribuir autoridade e possibilidade de ordenação das relações mundiais a outros atores além dos Estados, o autor inclui nesse debate os sistemas de regras produzidos por todos os níveis de atividade humana, "desde famílias até organizações internacionais".

Esse autor cunha, então, o conceito de governança que é contraposto à noção de governo como uma forma de ordenação das relações mundiais que não emana, necessariamente de autoridades formalmente constituídas. Nas palavras do autor:

[...] governo sugere atividades sustentadas por uma autoridade formal, pelo poder da polícia que garante a implementação das políticas devidamente instituídas, enquanto governança refere-se a atividades apoiadas em objetivos comuns, que podem ou não derivar de responsabilidades legais e formalmente prescritas [...] Em outras palavras, governança é um fenômeno mais amplo do que governo, abrange as instituições governamentais, mas implica também mecanismos informais, de caráter não-governamental, que fazem com que as pessoas e organizações dentro de sua área de atuação tenham uma conduta determinada, satisfaçam suas necessidades e respondam às suas demandas. (ROSENAU, 2000, p.4)

Recentemente, portanto, diversas práticas de atores privados, tais como o estabelecimento de agendas para organizações internacionais, a garantia de contratos internacionais, o estabelecimento de regulamentações setoriais independentes ou a certificação da responsabilidade socioambiental de processos produtivos vêm sendo praticadas e consideradas legítimas fornecedoras de bens públicos globais.

Diante das restrições impostas à capacidade regulatória estatal por um contexto institucional marcado por uma agenda neoliberal de livre mercado (BARTLEY, 2003), e das dificuldades de coordenação estatal para a provisão de bens públicos globais (CARBONE, 2007), as regulamentações privadas acabam sendo vistas como uma alternativa válida para o fornecimento de bens públicos (BARTLEY, 2003; CUTLER, 2002).

De acordo com Mancur Olson (1965, p.14), bens públicos são caracterizados pela produção de benefícios que não são nem exclusivos, nem rivais. Ou seja, todos podem ter acesso aos seus benefícios e o número de pessoas que se beneficia não interfere nas chances de benefícios dos demais.

Sendo assim, como ressalta John Ruggie (2004, p. 500), o fornecimento de bens públicos não está limitado aos governos ou instituições públicas. Esse fenômeno, segundo o autor, pode ser claramente demonstrado pela recente tendência de ampliação da atuação de atores da sociedade civil e de corporações transnacionais em projetos de responsabilidade sócio-ambiental. Empresas passam assim, como diria Claire Cutler (2002, p. 32), em muitos aspectos "a funcionar basicamente como governos".

Entre os autores que compactuam com a hipótese de que atores da iniciativa privada vêm exercendo um papel importante na provisão de bens públicos globais, podemos citar, também, David Levi-Faur (2005). Para esse autor os pressupostos neoliberais de desregulamentação e privatização vêm sendo desafiados e complementados por uma nova onda de regulamentações e práticas de boa governança. Essa nova onda, chamada por ele como "capitalismo regulatório", vem colocando uma série de questões aos entendimentos tradicionais das relações entre política e economia e entre mercado e Estados nacionais. Por ter se revelado um elemento limitador da governança, a desregulamentação dos mercados e os pressupostos da "mão invisível" 1 estão sendo progressivamente superados, e não se pode mais afirmar que esse seja um elemento constitutivo do contexto atual. (LEVI-FAUR, 2005, p. 2)

Ainda para esse autor, a regulamentação não apenas é importante, mas é fundamental para a globalização econômica. É por meio dela que o capitalismo neoliberal se torna um sistema econômico legítimo aos olhos de seus participantes e que as relações econômicas se tornam mais confiáveis em um ambiente (o mercado internacional) que necessariamente envolve mais riscos. Assim, o "capitalismo regulatório", entre outros elementos, seria caracterizado por três aspectos centrais: (1) uma nova divisão de tarefas regulamentadoras entre Estado e sociedade; (2) um aumento da delegação de questões à comunidade científica (que, conseqüentemente, tem adquirido muito mais importância) e por fim, (3) uma proliferação de novas tecnologias de regulamentação, com a formalização de mecanismos auto-regulatórios que não contam com a participação estatal. (LEVI-FAUR, 2005, p. 2-10).

Entretanto, apesar de representarem uma promissora estratégia institucional para o fornecimento de bens públicos, é importante mencionar também os aspectos potencialmente negativos do fenômeno das regulamentações globais privadas. Na próxima seção, portanto, levantaremos algumas das possíveis críticas a esses novos mecanismos regulamentadores e indicaremos as principais fragilidades e desafios a serem superados no contexto das regulamentações privadas como bens públicos.

 

3. Limitações e desafios às regulamentações privadas

3.1. Legitimidade

Acredita-se, diante de evidências teóricas e empíricas, que a legitimidade é um conceito particularmente importante em termos de governança privada. Inspirado em Suchman (1995), Cashore (2002, p.515) a define como "uma percepção ou pressuposição generalizada de que as ações de uma entidade são desejáveis, próprias ou apropriadas dentro de algum sistema de normas, valores, crenças e definições socialmente construídas". Assim, a inexistência de mecanismos de inclusão e legitimação social pode representar um grande desafio às regulamentações privadas.

Nesse sentido, diversas são as críticas que vêm sendo feitas à falta de legitimidade de mecanismos de regulamentação privada. Walter Mattli e Ngaire Woods (2009, p.10), por exemplo, ao contraporem-se à visão de inquestionável benevolência atribuída aos autores de tais regulamentações, ressaltam o fato de que tais mecanismos estão extremamente expostos à possibilidade de captura por interesses "especiais", contrários ao interesse público. Sem afirmar que a "captura" das regulamentações privadas seja um fenômeno constante, os autores ressaltam, entretanto, que a incorporação e análise das possibilidades e probabilidades de que ela ocorra são fundamentais para que se pondere o excesso de otimismo em relação ao fenômeno.

 Além disso, tais autores relativizam a questão da provisão de bens públicos globais por atores privados em função dos custos e benefícios a ela associados. Por fim, Mattli e Ngaire (2009, p. 20) atentam para o fato de que o ambiente institucional transnacional do qual essa nova onda de regulamentações emerge é ainda mais complexo e distante dos tradicionais mecanismos democráticos associados à produção de regulamentações públicas. Dessa forma, a possibilidade de que existam fontes difusas de regulamentação traz oportunidades muito maiores de decisão e influência a atores auto-interessados, que tenham objetivos completamente divergentes das demandas da população global.

Assim, analogamente a uma vasta corrente de Relações Internacionais que buscou a problematização do déficit democrático existente não apenas em organizações internacionais como em diversos mecanismos de governança global (KEOHANE, STEPHEN & MORAVCSIK, 2009; MORAVSCIK, 2004; DAHL, 1999), é fundamental que se insira a questão da desigualdade de recursos para a criação e a captura por interesses privados auto-interessados na produção de regulamentações globais privada. Esses casos, portanto, seriam conseqüências da interação de aspectos processuais pouco inclusivos, fechados e secretos aliado a uma demanda pública e/ou privada insuficiente para gerar pressões de mudanças ou o monitoramento necessário (MATTLI & WOODS, 2009, p. 20).

Desse modo, apesar de perfeitamente possível em condições em que a demanda e o contexto institucional adequado estejam presentes, a regulamentação privada global como uma forma legítima de provisão de bens públicos deve ser observada com cautela. Desde que em contextos institucionais, níveis de demanda e envolvimento social específicos, entretanto, acredita-se que os atores da iniciativa privada possam, de fato, atuar como legítimos provedores de bens públicos globais, suprindo lacunas importantes da atuação estatal transnacional.

Dentre as diversas formas de regulamentação privada, portanto, as mais legítimas tendem a incluir diferentes setores sociais (empresas, ONGs, movimentos sociais) e a apresentar processos inclusivos de criação de regras e monitoramento por terceiras partes independentes. Aspectos como: padrões rigorosos; certificação por terceira parte independente; processo inclusivo e negociado de criação de padrões; transparência; inclusão de padrões sociais (publicados por governos ou organizações internacionais); certificação de cadeia de custódia e natureza global, são apontados como fundamentais à legitimidade desse tipo de instrumento (SCHEPERS, 2009, p. 280). Entre todos os sete aspectos, entretanto, acredita-se que o processo inclusivo e negociado de criação de padrões seja um dos mais importantes.

Como ressalta Voivodic (2010) referindo-se ao Forest Stewardship Council, (instituição responsável pela criação de padrões para a certificação do manejo e produtos florestais), é durante o processo de tomada de decisões interna que acontece o principal processo de legitimação desse sistema. Assim, uma estrutura inclusiva e balanceada de diálogo multi-setorial, revela-se como elemento-chave da legitimidade desse e dos diversos mecanismos de regulação privada.

3.2. Efetividade

Outro desafio central às regulamentações privadas, a questão da efetividade em realmente alterar condutas tem sido frequentemente debatida pela literatura. O primeiro ponto a causar polêmica sobre o tema refere-se ao fato de que a adoção de tais mecanismos é necessariamente voluntária, e não conta com o auxílio dos tradicionais mecanismos coercitivos do Estado em sua implementação. Alguns autores indagam, assim, como poderiam os atores privados, voluntariamente, adotar padrões mais restritivos e aumentar seus custos de operação sem que haja qualquer ameaça formal de coerção?

De acordo com a visão de George W. Downs, David M. Rocke e Peter N. Barsoom (1996, p. 379-406), por exemplo, padrões de auto-regulamentação voluntária jamais trarão resultados expressivos em termos de alteração de condutas. Ao se contraporem à possibilidade de que instituições2 sejam efetivas sem a existência de coerção formal, os autores enfatizam o aspecto de endogeneidade dos mecanismos voluntários. O fato de serem os próprios atores os responsáveis pela escolha das regras às quais serão vinculados (conceito de endogeneidade), tornaria vazias, de acordo com essa visão, as afirmações a respeito da efetividade de tais regras como reais alteradoras de comportamentos. Dessa forma, de acordo com esse ponto de vista, poder-se-ia afirmar que as regulamentações privadas tornam-se meros reflexos das preferências dos atores, elevando muito pouco o nível de cooperação e padrões efetivamente adotados em sua ausência. (DOWNS, ROCKE & BARSOOM, 1996, p. 379-406)

Outros autores a questionarem a efetividade de mecanismos voluntários de governança são Darnall e Sides (2008). Analisando empiricamente a adoção de programas voluntários de proteção ambiental por empresas, os autores utilizam um modelo estatístico para a verificação da efetividade dos programas voluntários de proteção ambiental de cerca de 30.000 empresas. Os autores, surpreendentemente concluem que, no geral, o desempenho ambiental de empresas com programas voluntários privados tende a ser inferior àquele de empresas que não os adotaram.

Ainda mais enfático na crítica a "modelos de governança negociada" baseados em alterações voluntárias de comportamento, Krawiec (2003, p. 491) afirma que, em algumas circunstâncias, tais modelos servem apenas como "fachada" (window-dressing), fornecendo legitimidade e reduzindo o nível de responsabilidade legal das empresas, sem de fato alterar condutas. Esse tipo de crítica alia-se às diversas vozes que costumam criticar iniciativas de responsabilidade social corporativa como mera estratégia vazia de aumento de reputação e manipulação de informações, o famoso "green-washing".

Por outro lado deve-se observar também que o ceticismo em relação à efetividade de padrões voluntários de governança privada não é unânime. Benjamin Cashore (2002, p. 504), por exemplo, afirma que incentivos de mercado e a opinião de "audiências-chave" (como consumidores ou grupos ambientalistas) pode de fato resultar em obediência a normas voluntárias por parte das empresas. Nesse sentido, a importância de se considerar as empresas como atores imersos em seu contexto social é fundamental (FLIGSTEIN, 2001; BORDIEU, 1994; HOFFMAN, 2001).

Como observa Hoffman (2001, p. 13) em uma análise da evolução do ambientalismo corportativo nos EUA, o "campo organizacional" em que a empresa atua é um fator crucial na explicação do comportamento empresarial. Para esse autor, portanto, mais do que a busca de "metas objetivas de eficiência e maximização" as empresas são "organizações socialmente fundamentadas" que buscam a "meta subjetiva da sobrevivência e legitimação".

Por essa perspectiva, a alteração voluntária de condutas ambientais não pode ser considerada um fenômeno unicamente endógeno, como alegado por George W. Downs, David M. Rocke e Peter N. Barsoom (1996, p. 379-406) (acima). Ela deve, ao contrário, ser compreendida como o resultado da constante interação social, que por sua vez leva a mudanças em interpretações, valores e capitais (sociais, políticos, culturais) decisivos para a empresa.

Desse modo, apesar de existirem casos em que a necessidade de instituições de referência, que forneçam ao menos uma ameaça de coerção, se justifique, em muitas outras situações essa "coerção" advém, ainda que em níveis reconhecidamente modestos, das próprias exigências valorativas da sociedade e da necessidade da empresa de obter uma "autorização" social de operação.

Adepto dessa mesma visão, Michael E. Conroy (2007, p. 16) demonstra que, na medida em que aumenta o valor do ativo intangível da marca das corporações, aumenta também sua vulnerabilidade. Assim, estratégias de "naming and shaming" 3, por meio da qual organizações da sociedade civil expõem e enfatizam práticas socioambientais recrimináveis das empresas, convidando os consumidores a boicotar a compra e utilização de seus produtos, têm se demonstrado extremamente eficazes.

A grande novidade que se observa, portanto, são as novas exigências de prestação de contas à sociedade e os novos dispositivos institucionais criados para que as empresas atendam a essas demandas (como códigos de conduta, selos e códigos setoriais, padrões privados internacionais e certificações multistakeholders4).

Nesse contexto, torna-se compreensível que além de atender as exigências da sociedade civil, as próprias empresas podem ter interesse em aumentar seus padrões ambientais, sem que isso seja imposto pelo poder público sob a ameaça de sanções. Em nenhum desses casos, portanto, pode-se identificar a situação de endogeneidade que fundamenta as alegações do trabalho de Downs, Rocke e Barsoom (1996) de que a coerção é um elemento fundamental do processo de compliance.5

Alguns autores chegam até mesmo a afirmar que o momento atual caracteriza-se pelo surgimento de um tipo completamente novo de racionalidade jurídica. Gunther Teubner (1996, p. 15, 16 e 17), por exemplo, tratando do aparente paradoxo ao axioma legal da necessidade de que contratos sejam "enraizados" em ordens legais pré-existentes, capazes de julgar, monitorar e estabelecer o enforcement necessário para o seu cumprimento, afirma que esse modelo já foi, há muito, superado pela prática social. (TEUBNER, 1996, p.15, 16, 17). A criação de instituições privadas com mecanismos de auto-verificação e forte reconhecimento da opinião pública pode conferir, na opinião desse autor, a validade e legitimidade necessárias para a efetividade dos contratos.

 

4. Conclusão

Portanto, como vimos, o cenário global tem caracterizado-se cada vez menos pela centralidade do poder formal dos Estados como únicos agentes da ordem global. A emergência da autoridade privada, reconhecida como legítima por parcelas cada vez mais significativas da população mundial, insere definitivamente, no universo das Relações Internacionais, a idéia de Governança Privada, e das novas fontes de regulamentação global. Nesse sentido, as regulamentações privadas podem inclusive ser analisadas como provedoras de bens públicos globais, que, muitas vezes, em função de incentivos institucionais contrários e problemas de ação coletiva, podem deixar de ser fornecidos pelos Estados.

Dessa forma, como ressalta Gunther Teubner (1983; 1996), por estarmos vivenciando um momento de transição social, é fundamental que se deixe de observar o mundo sob as lentes do passado. A racionalidade que, para esse autor, representa o momento atual, incorpora como leis as regulamentações produzidas de maneira difusa e fragmentada pelos diversos novos atores da ordem global.

Diante dessa constatação, entretanto, não se deve deixar de ressaltar os enormes desafios à efetiva produção de bens públicos. O grande risco de "captura" desses tipos de regulamentações por atores auto-interessados pode muitas vezes representar um risco iminente de afrontas ao interesse geral, em processos pouco transparentes e pouco inclusivos de produção de regulamentações. Assim, a necessidade de processos participativos e abertos de produção de padrões foi enfatizada como elemento central da legitimação social desses novos mecanismos.

Críticas quanto à efetividade dessas novas regras também foram consideradas. Diante da ausência de possibilidades de coerção formal e do caráter voluntário da adoção de tais regras, problematizou-se a questão da endogeneidade de sua adoção (o que limita a efetiva alteração de condutas). Nesse sentido, buscou-se enfatizar a inserção social dos atores e as exigências decorrentes dessa inserção. Dessa forma, argumentou-se que a necessidade de legitimação e prestação de contas à sociedade pode, muitas vezes, revelar-se um elemento de pressão suficiente para que o risco de endogeneidade seja descartado e que ocorram efetivas alterações de comportamento.

Por fim, acredita-se que a aceitação e reconhecimento das novas fontes privadas de regulamentação global, já são, por si só, passos fundamentais para que se possa discutir e aplicar ideais normativos de modelos mais legítimos e efetivos para a provisão de bens públicos globais.

 

5. Referências Bibliográficas

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* Área temática: Instituições e Organizações Internacionais
1. O termo "mão invisível" foi cunhado por Adam Smith em seu célebre trabalho "A Riqueza das Nações" (1976) e refere-se à idéia neoliberal de que a economia possui mecanismos autônomos de regulamentação e que, portanto, não precisa de interferências externas.
2. Na concepção desses autores instituições são entendidas como regras, normas, regimes ou quaisquer tipos de mecanismos públicos ou privados que influenciem as expectativas dos atores.
3. Nomeando e envergonhando.
4. Para mais detalhes sobre os diferentes mecanismos de regulamentação privada vide: NADVI, Khalid; WÄLTRING, Frank. Making sense of global standards. In: SCHMITZ, Humbert (Org.). Local Enterprises in the Global Economy: Issues of Governance and Upgrading. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 2004. p. 53-94.
5. Cabe ressaltar, no entanto, que tais autores desenvolveram esse argumento com foco mais voltado a regimes internacionais públicos, o que eventualmente torne o argumento menos adequado para a analise de regimes privados.