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Print ISBN 2236-7381

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Ativismo partidário internacional como forma de intervir nas relações inter-estatais: algumas influências na construção da união de nações sul-americanas (Unasul)

 

 


RESUMO

A Unasul trilha por uma nova estratégia política de integração. Por um lado isso ocorre por causa da emergência de lideranças políticas com uma visão de integração menos econômica. Por outro lado a isto foi possível por conta da experiência de um fórum de partidos de esquerda, o Foro de São Paulo, que congregou diversos líderes de esquerda que vieram a ser tornar presidentes na região. Esta investigação propõe compreender este processo de integração. Com a proposta de alguns atores políticos reunirem-se no Foro de São Paulo que fez com que, quando estes partidos se tornaram governos, mudassem a forma pela qual a política internacional era compreendida. No estudo são alinhadas as diferentes Instituições criadas para integração (ALALC, ALADI e Mercosul) para verificar as ênfases ideológicas de cada momento, possibilitando compreender a ruptura ou permanência de cada uma das Instituições.

Palavras-Chave: Unasul, integração sul-americana, política internacional


 

 

Introdução

Em outubro de 2002, semanas após ter sido eleito presidente da República Federativa do Brasil, mas ainda antes de tomar posse, Luiz Inácio Lula da Silva convence o então presidente brasileiro, Fernando Henrique Cardoso, a enviar um navio petroleiro à Venezuela com o objetivo de ajudar o governo de Hugo Chávez a superar uma crise de abastecimento naquele país. Em Caracas, junto à embaixada brasileira, ajudando as negociações, está Marco Aurélio Garcia, secretario de relações internacionais do Partido dos Trabalhadores (o futuro assessor especial da presidência da República para assuntos internacionais). O que poderia ser observado como um fato normal de negociação internacional será tomado, na pesquisa, como um marco da mudança na política sul-americana, como será observado ao longo do presente texto.

Apesar de próximos fisicamente, a integração entre os países sul-americanos não foi, por muito tempo, prioridade política dos governos da região. Isto se deveu, em grande parte, à fragilidade de suas economias, muito dependentes de países mais desenvolvidos, notadamente os países europeus e os Estados Unidos da América (EUA). Mas a contínua relação de dependência aplicada de diferentes formas acabou por proporcionar na primeira década dos anos 2000 um momento especial em que se pôde olhar para a região de forma singular e iniciar um processo de integração diferenciado1.

Como uma rápida introdução à história do continente, podemos dizer que a década de 1960 foi marcada pela sequencia de golpes de Estado que irromperam ditaduras militares, acabando com o curto período democrático que parte destes países havia vivido. Estas ditaduras foram o resultado da divisão bipolar do mundo no pós-Segunda Grande Guerra quando, por medo de que movimentos nacionalistas ou contrários à ingerência estadunidense em seus países resultassem em mudanças em seus governos, como ocorrido em Cuba, os Estados Unidos deram apoio a governos que instaurassem a ordem interna de seus países2. Nos países sob o regime ditatorial os direitos civis e políticos foram suprimidos e os movimentos que se opunham ao governo tinham seus militantes levados à extradição, à ilegalidade e à cadeia, muitas vezes seguida de tortura e morte.

Este período obscuro da história de diversos países sul-americanos, o Brasil incluído, gerou uma série de movimentos civis que buscavam o retorno das instituições democráticas e dos direitos perdidos, assim como a luta pela implementação de uma série de direitos sociais que ainda não existiam. Junto dos problemas políticos, se somavam diversos problemas econômicos, sendo o maior exemplo a dívida externa, que em países como o Brasil chegou à metade de seu Produto Interno Bruto3. No final da década de 1970 por conta de grande pressão externa, que via como necessário o retorno da democracia aos países sul-americanos, e por conta do crescimento da força dos movimentos nacionais contrários às ditaduras, inicia-se um processo de mudança que tem, na década seguinte, seus primeiros resultados, com o retorno dos direitos civis e políticos e com a realização de eleições presidenciais.

A eleição de presidentes nos países da América do Sul não modificou a relação de dependência entre eles e os países mais desenvolvidos. Em alguns casos esta relação inclusive aumentou, principalmente tendo em vista o receituário econômico que se apresentava ao mundo, com o ascenso do ideário do Consenso de Washington. Em grande parte das eleições ainda pairavam no ar as tensões provocadas pela divisão do mundo entre os países capitalistas e socialistas, ainda mais após a queda do Muro de Berlim. Foram grandes os esforços dos países da Europa ocidental e dos EUA, na maior parte das vezes indiretos, para que ganhassem, no continente, presidentes com maior identidade a este ideário. Grande parte das medidas neoliberais tomadas por eles, como a abertura dos mercados aos capitais internacionais sem suporte à produção nacional, assim como os contínuos empréstimos feitos junto ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional (FMI) acabaram por desestruturar as economias do continente sul-americano.

Este ciclo de liberalização e dependência de países desenvolvidos começa a dar sinais de esgotamento na virada dos anos 1990 para os anos 2000. Os sintomas são visíveis de maneira bastante homogênea nos diversos países, a maioria com altos índices de desemprego, muita pobreza, desigualdade social, economias frágeis e um crescente movimento popular por mudanças.

 

A partir do Brasil: o PT e o início da construção de um novo modelo de integração

Vendo as mudanças a partir do ponto de vista brasileiro, é importante ressaltar o papel do Partido dos Trabalhadores (PT) nas transformações. O PT foi fundado oficialmente em fevereiro de 19804 como o resultado da associação de movimentos sociais organizados, sindicatos, intelectuais de esquerda, grupos ligados à Teologia da Libertação, enfim, de uma miríade de atores até então ligados pela luta de redemocratização do país e que apostaram neste novo partido como forma de transformar o Brasil com a conquista do Estado. Seu surgimento só é possível como um resultado daquele momento histórico.

O PT conquistou logo algumas vitórias mas, para a investigação, é importante uma derrota, em 1989. Naquele ano houve a primeira eleição direta para a presidência da República no Brasil, em que concorreram vinte e dois candidatos. Foram para o segundo turno Fernando Collor de Mello, apoiado pelas elites tradicionais brasileiras e Luiz Inácio Lula da Silva, candidato pelo PT que, apesar do apoio que teve do terceiro e do quarto colocados no 1º turno, não conseguiu se eleger. Mas a derrota não esfria a discussão partidária sobre o país e sobre os projetos da esquerda. Ela possibilita que o Partido conheça com maior profundidade os problemas nacionais em diferentes áreas e que pense em políticas públicas que visem melhorar o país. Possibilita também que o PT, um partido novo em um país periférico, divulgue sua plataforma e amplie seu leque de alianças para fora do país. Para isso é proposta a constituição um fórum de partidos de esquerda. Como diz o Lula:

"(...) nós tínhamos saído muito fortalecidos do processo eleitoral e era preciso, então, fazer um chamamento de todas as organizações de esquerda que militavam na política na América Latina, para que pudéssemos começar a estabelecer uma estratégia de procedimento entre a esquerda da América Latina"5.

Com esse objetivo o PT convida diversos partidos para uma reunião em São Paulo. Como ressalta o conselheiro do governo cubano para a América Latina, Roberto Regalado:

"apesar da escassa presença centro-americana e caribenha, o Encontro de São Paulo foi um acontecimento histórico, pois pela primeira vez se encontraram, em um mesmo espaço, partidos e movimentos políticos que abarcaram todo o espectro da esquerda latino-americana. Desta convergência se derivaram dois feitos inéditos: um foi a participação de todas as correntes de orientação socialista; a outra foi a justaposição das correntes socialistas com correntes social-democratas e com outras de caráter progressista"6.

Com a reunião institui-se o Foro de São Paulo. Sua secretaria executiva fica sob a responsabilidade do Partido dos Trabalhadores e seus encontros devem ser realizados anualmente (o que ocorre, com exceção de 1999). Nestes encontros são organizados grupos de trabalho sobre questões pertinentes à América Latina e sobre as formas de se constituir uma resistência ao capitalismo vigente, além de serem reforçados os apoios a candidatos de esquerda do continente. Regalado nota que no XI encontro, em 2002, acontecido em dezembro daquele ano, "a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva na eleição presidencial acontecida no Brasil em 27 de outubro foi o acontecimento de maior impacto" e explicita o motivo:

"A eleição de Lula à presidência do Brasil, em 27 de outubro de 2002, abre uma nova etapa uma história do Foro de São Paulo. O Partido dos trabalhadores não era o primeiro membro do grupo que chegava ao governo. Além do Partido Comunista de Cuba e das organizações que acompanharam Chávez nos comícios venezuelanos de 1998, também já haviam chegado, em um ou outro momento, sós ou em coalizão, neste último caso como força principal ou secundária, membros do Foro da Argentina, Bolívia, Chile, Dominica, Guiana, Haiti, Panamá, República Dominicana e da própria Venezuela. Mesmo assim, a vitória da coalizão eleitoral encabeçada pelo PT tinha um significado especial: em Cuba exercia o poder uma revolução socialista que triunfou mais de quatro décadas antes, nas condições que imperavam no desaparecido mundo bipolar; na Venezuela, a vitória de Chávez se produziu em meio ao desmoronamento do sistema institucional imperante, circunstância que permitiu mudar a Constituição e empreender outras transformações de envergadura; e, finalmente, nenhum dos outros governos dentre os que haviam participado ou participavam membros do Foro era reconhecido como paradigma da Nova Esquerda. Alías, vários deles nem podiam se considerar progressistas. O especial da eleição do Lula se baseia em que esta sim era a vitória que a Nova Esquerda esperava desde 1988."7

Apesar da importância do Foro para o PT e deste partido para o Foro, o Partido dos Trabalhadores não se limitou, internacionalmente, à participação neste grupo. Sendo formado por movimentos sociais, a busca por uma solidariedade transnacional nas mais diferentes frentes de ação é destacada, com a aproximação de movimentos correlatos em outros países.

Na década de 1990, há o crescimento do número de Organizações Não-Governamentais (ONGs), que passam a atuar no Brasil enquanto mais uma alternativa da sociedade civil organizada. A proliferação de demandas estimulada pelo tipo de ação desenvolvida pelas ONGs as leva para uma organização entre elas que também encontra abrigo no Partido dos Trabalhadores, receptivo aos atores contra-hegemônicos em um movimento centrípeto que fortalece o partido, ao mesmo tempo que ajuda, em um movimento contrário, centrífugo, a articulação das redes entre ONGs, movimentos, parlamentares e governos.

O movimento contra-hegemônico ganha força, neste período, não apenas no Brasil. As ONGs transacionalizam-se construindo pontes entre a sociedade civil de diversos países, construindo e fortalecendo redes de solidariedade e luta. Toma corpo um movimento que discute a possibilidade global de transformação social a partir da sociedade civil, materializada em um Fórum Social Mundial (FSM), em 2001. Ele buscou congregar os diferentes grupos organizados ao redor do mundo, entre ONGs, movimentos sociais, partidos políticos que, com o mote de que "Um outro mundo é possível" lutavam por mudanças e convergiam propostas para ações neste sentido. Também no FSM a presença do PT foi importante, como instituição articuladora, junto ao outras, e como base institucional, já que o I FSM ocorre em uma cidade governada pelo Partido em um estado também governado pelo partido. Prefeitura e governo trabalharam no sentido de apresentar a cidade dentro de uma perspectiva política de esquerda8. Tal referência foi importante para o momento seguinte, já que parte da carga simbólica ali gerada, ajudou a alimentar as perspectivas para o candidato do PT nas eleições presidenciais do ano seguinte, 2002, Lula.

Apesar das duas vertentes internacionais apresentadas serem importantes para a consolidação internacional do PT e da sua principal liderança, o Lula, desde o seu princípio o PT organizou-se internacionalmente como se poderia esperar de um partido da esquerda9. Desde o começo da década de 1980 há, na estrutura do Partido, uma secretaria específica para tratar o tema, a Secretaria de Relações Internacionais (SRI) que em seu início era voltada para relações de solidariedade entre partidos e movimentos. Comandaram secretaria tanto parlamentares como intelectuais. Dois deles ficaram bastante tempo, como foi o caso de Luis Eduardo Greenhalg, que foi secretário entre 1980 e 1990 e Marco Aurélio Garcia, secretário entre 1990 e 2000, este sempre com a colaboração da militante argentina Ana Maria Stuart. No período, Garcia colaborou para a construção de laços entre o PT e diversos partidos de esquerda na América Latina e no Mundo e que consolidou o Foro de São Paulo como alternativa de articulação entre os partidos da esquerda sul-americana. Como aponta Oliveira, o PT, dentre os partidos que fizeram parte da Comissão Parlamentar Conjunta (CPC) do Mercosul, era o único que trazia em seu programa, diretrizes para uma atuação internacional10, ou seja, era o único partido grande do Brasil com tais preocupações.

Em 2002, Lula, beneficiário de toda carga simbólica contra hegemônica que recheava e orbitava o PT, constrói uma estratégia eleitoral de concertação. Ao mesmo tempo que criticava a política do governo anterior, mantinha vários personagens conservadores em seu entorno. Caminhando entre a transformação social, bandeira da esquerda, e da estabilidade econômica, discurso das classes médias e de parte dos grupos reativos ao partido, Lula constrói um discurso forte pela esperança de transformação, mas com ênfase na responsabilidade com uma sociedade globalizada (inserida na lógica do capitalismo financeiro).

Como último passo em direção à acomodação dentro do modelo econômico vigente, Lula apresenta a Carta ao Povo Brasileiro, em que é enfático ao dizer que o modelo econômico do governo anterior é insustentável e que remete aos cidadãos a esperança nas mudanças. Mudanças "corajosas e responsáveis"11. Responsáveis pois garantia, no documento, o cumprimento das dívidas que herdaria de governos anteriores. Corajosas por apresentar metas audaciosas te transformação social. Com uma plataforma ampla, o apoio histórico das esquerdas, com o caminho ao centro trilhado com a ajuda dos programas eleitorais produzidos por Duda Mendonça12 e com o discurso com peso autobiográfico de priorização dos pobres, Lula é eleito com quase 53 milhões de votos, 20 milhões de votos à frente do segundo colocado, José Serra.

Como sempre houve grande preocupação com as relações internacionais, o recém eleito presidente apresenta para chefiar o Ministério das Relações Exteriores (MRE) Celso Amorim, ligado ao grupo progressista do ministério (MRE), que já havia sido ministro entre os anos entre 1993 e 1994 e que foi um grande opositor, dentro da máquina do Estado, da ditadura militar13. Fortalece-se Samuel Pinheiro Guimarães, diplomata nacionalista e opositor do projeto da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas). E a esquerda ganha espaço com a indicação do Marco Aurélio Garcia para ser Assessor Especial da Presidência para Assuntos Internacionais.

O trânsito de Marco Aurélio pelas esquerdas latino-americanas se confirma em sua primeira missão, relatada no início do presente texto, com a resolução da crise venezuelana. A medida também sinaliza a aproximação dos governos eleitos pela esquerda na América Latina, que se conheciam e que haviam trabalhado juntos em diversas reuniões do Foro de São Paulo14. A sua relevância no governo aumenta durante o período, pois há a ascensão de diversos governos também de esquerda na América do Sul. A esquerda cresce no continente e sua articulação é sólida, já que o internacionalismo partidário possibilitou, no continente, a reunião de seus principais líderes durante uma década.

 

Política sul-americana de integração. O caminho para a constituição da Unasul

No mundo da política internacional, mais notadamente no exercício diplomático, há uma série de regras, implícita e explicitas, que conformam um mundo simbólico bastante fechado. A fuga a determinadas regras ou suas modificações são tidos como expressões de intenção, e não como gafes, como poderiam ser. Da mesma forma, na construção de um documento, cada palavra é minuciosamente pensada, inclusive com suas possíveis traduções, que não devem dar margem (a não ser intencional) a ambigüidades. E a disputa sobre os conteúdos de documentos é imensa15. É a partir deste contexto que esta investigação compreende a constituição da Unasul como um propósito muito firme da expressão que o governo do presidente Lula e de seus colegas presidentes sul-americanos sobre o que acreditavam ser um passo além na integração regional. A Unasul foi constituída para ser um organismo político, que absorve demandas econômicas, mas que ultrapassa essa esfera, ao contrário do que se tinha antes. E esta decisão foi uma decisão política, com todas as conseqüências que disso advieram. Mais do que isso, pode ter sido, em detrimento de acontecer em uma instituição de tradição policial, um momento político16.

Os tratados de integração e declarações anteriores à Unasul, excluindo-se as Declaração de Cuzco e a Declaração de Cochabamba, que serviram como base para Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas17, todos os demais traziam consigo a ênfase na economia. Seguindo em movimento retrospectivo, a partir do ponto de vista brasileiro, houve a criação da Alalc, da Aladi, e do Mercosul, sem contar a Área de Livre Comércio Sul-Americana (Alcsa), proposta por Celso Amorim em 1993 e a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), que não serão objeto neste texto pois,  apesar de sua importância, acabaram não sendo contituídas.

O primeiro documento oficial que coloca em evidência a construção de uma união de países da América do Sul, no sentido da Unasul, é a Declaração de Cuzco, em dezembro de 2004. Onze presidentes assinaram a declaração que trazia, em seu parágrafo inicial, o resgate de líderes independentistas do continente que serviriam de modelo para a construção de um futuro comum, possível com a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA). O documento é dividido em três partes. Na primeira parte há um registro do momento vivido pela América do Sul que

"tem enfrentado [ao longo da história] desafios internos e externos comuns" e apresenta um "pensamento político filosófico (...) [que] reconhecendo a primazia, de sua dignidade e direitos, a pluralidade de povos e culturas consolidou uma identidade sul-americana compartilhada e valores comuns tais como: a democracia, a solidariedade, os direitos humanos, a liberdade, a justiça social, o respeito à integridade territorial e à diversidade, a não-discriminação e a afirmação de sua autonomia, a igualdade soberana dos Estados e a solução pacífica de controvérsias"18

e que busca a "convergência de seus interesses políticos, econômicos, sociais, culturais e de segurança (...)19"

Os aspectos levantados pelo texto destoam dos documentos de integração anteriores. Não é uma resposta ao movimento econômico que acontece fora do continente, mas a necessidade de uma união interna ao continente que mobiliza os presidentes. A Comunidade busca a convergência de seus interesses, tendo como base os valores apresentados anteriormente. Importante notar a ordem dos interesses. O primeiro item é o político, que revela que o escopo da comunidade não é apenas econômico, mas estratégico para outras áreas, sem deixar a economia de lado. Aparece como um dos itens a segurança, até então deixada de lado, levada em conta tendo em vista o mundo inseguro que o governo estadunidense criava, com suas iniciativas bélicas explodindo guerras em diversos países do oriente médio, como Afeganistão e Iraque, passando por cima da opinião da comunidade internacional e das recomendações da Organização das Nações Unidas (ONU). A falta de estratégias de segurança no continente é notada pelos presidentes, que adiantam o que veio a ser a primeira grande iniciativa depois de constituída a Unasul, que é planejar uma estrutura comum de defesa. Outro ponto de se ressaltar é a mudança no enfoque econômico, que deixa a visão mais financeirizada, que buscava o crescimento dos países, para uma visão de desenvolvimento sustentável, que busca a superação dos problemas sociais como o objetivo de qualquer crescimento.

A segunda reunião dos presidentes, em 2005, foi bastante tensa. Os presidentes de quatro países (Colômbia, Guiana, Suriname e Uruguai) não compareceram, o da Argentina, Nestor Kirchner, foi ao Brasil mas não participou da cúpula, e vários presidentes mandaram representantes. A tônica do encontro foi a discordância dos pontos de vista brasileiro e venezuelano sobre a função do organismo e de sua efetividade. Apoiando sua argumentação em uma contra-proposta de texto elaborada pelo presidente uruguaio, o presidente venezuelano Hugo Chávez inviabilizou a assinatura de uma declaração conjunta. O chanceler brasileiro, Celso Amorim, e o presidente Lula rebateram as críticas e postergaram um texto definitivo para uma reunião do Mercosul. A dissidência foi importante para redesenhar os propósitos de uma comunidade de países da América do Sul e explicitou a dificuldade do governo Lula de um posicionamento mais firme à esquerda.

Uma declaração conjunta ocorreu apenas no ano seguinte, com a realização da segunda reunião da Comunidade Sul-Americana de nações, já prevista na Declaração de Cusco, em 2006, em Cochabamba, Bolívia (no primeiro ano do governo Evo Morales). A declaração possui quatro pontos e um Plano Estratégico para o Aprofundamento da Integração Sul-Americana. Da mesma forma que o documento anterior, o primeiro ponto é bastante ideológico e traz consigo diversas reflexões sobre a conjuntura daquele momento. Inicia falando do aprofundamento das assimetrias entre países e continentes em decorrência da debilidade do multilateralismo e que a globalização interferiu no desenvolvimento das economias. Neste sentido

"a integração regional deve ser uma alternativa para evitar que a globalização aprofunde as assimetrias, contribua com a marginalização econômica, social e política, que deve aproveitar para desenvolver oportunidades para o desenvolvimento"20.

Evitando o ocorrido um ano antes, o texto indica que a integração buscada

"é um novo modelo de interação, com identidade própria, pluralista (...) reconhecendo as distintas concepções políticas e ideológicas que correspondem à pluralidade democrática dos países"21.

Assim dentro da declaração podem estar contidos governos como o da Venezuela, do Brail e da Colombia, com diferentes alinhamentos ideológicos. Outros parágrafos do primeiro ponto seguem a Declaração de Cusco.

O segundo ponto é ampliado e muda de direção. Na declaração de Cusco era o momento da inserção da economia. Neste, são reiteradas as premissas do primeiro ponto:

"São os princípios norteadores: (i) solidariedade e cooperação na busca de uma maior equidade, redução da pobreza, diminuição das assimetrias e fortalecimento do multilateralismo como diretriz das relações internacionais; (ii) soberania, respeito à integridade territorial e autodeterminação dos povos segundo os princípios e objetivos da ONU, assegurando a prerrogativa dos Estados nacionais de decidir suas estratégias de desenvolvimento e sua inserção internacional, sem ingerências externas em seus assuntos internos; (iii) paz, para que a América do Sul continue sendo uma zona de paz na qual os conflitos internacionais se resolvem através da solução pacífica de controvérsias; (iv) Democracia e pluralismo para consolidar uma integração sem ditaduras e respeitosa dos direitos humanos e da dignidade humana dos povos originários, dos afrodescendentes e imigrantes, com igualdade de gênero e respeito a todas as minorias e suas manifestações linguisticas e culturais, reconhecendo a participação dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e seu direito a uma participação democrática em cada um dos países sul-americanos neste processo de integração; (v) os direitos humanos são universais, interdependentes e indivisíveis. Debe-se dar um impulso similar tanto ao desenvolvimento dos direitos civis e políticos como dos direitos economicos, sociais e culturais, reconhecendo o direito ao desenvolvimento como um direito substantivo, sob a égide integradora e multidisciplinar dos direitos humanos da sociedade cilvil e seu direito a uma participaçaõ democrática em cada um dos países no processo de integração; (vi) Harmonia com a natureza para um desenvolvimento sustentável garantindo que as preocupações de caráter ambiental e as referidas à mudança climática estejam presentes em todas as iniciativas de desenvolvimento regional, principalmente nas obras de infra-estrutura e energia, preservando o equilíbrio dos ecossistemas e a proteção da biodiversidade, com a valorização e o reconhecimento dos valores tradicionais"22.

Como se percebe, há a reiteração daquilo que diferencia o momento sul-americano em detrimento do desenvolvimento do capitalismo financeiro. Com a instabilidade causada pelo golpe militar na Venezuela e dos constantes boicotes da oposição boliviana, é ressaltada a tônica da autodeterminação dos povos e a autonomia na estratégia de desenvolvimento de cada país. Estes dois países propõe contruir o que chamam de socialismo do século XXI e aproveitam a integração regional como garantidor da continuidade da institucionalidade de seus governos23.

Vale a pena destacar que há, no resto do documento, referência à cooperação economica e comercial; a integração financeira (compatíveis com as condições específicas das políticas economicas e fiscais de nossos países); integração industrial e produtiva; Cidadania sul-americana, que implica no reconhecimento dos direitos civis, políticos, trabalhistas e sociais de um Estado membro em todos os demais; Participação cidadã, que busca desenvolver mecanismo de diálogo entre as instituições da Comunidade Sul-Americana e da sociedade civil que permitam uma maior participaçaõ na formulação das políticas de integração sul-americana e a; Cooperação na área de Defesa, com o intercâmbio de informação e de experiências entre os Ministérios da área dos países da região. É perceptível a pluralidade de pensamentos a partir das diferentes possibilidades propostas, contemplando os diversos governos presentes.

Da parte do texto que versa sobre o "plano estratégico" dois pontos são relevantes. O primeiro é que as declarações conjuntas da comunidade devem ser adotadas por consenso, reflexo do ocorrido um ano antes e modo de forçar coesão. O segundo é o convite aos parlamentos do Mercosul e dos demais países a elaborar uma proposta de parlamento sul americano.

Enfim, depois das duas declarações e da clara disputa dos termos utilizados na redação dos documentos revelando uma tensão polarizada entre Brasil e Venezuela, mas com dissensões tambem da Argentina e da Colombia, em maio de 2008 é constituída a comunidade, mas com outro nome. Surge a União de Nações Sul-Americanas, Unasul (houve disputa pelo nome do organismo, que deixa de ser Comunidade Sul-Americana de Nações, CASA). Seu texto é bastante avançado em comparação a qualquer texto anterior.

Sua redação une a necessidade de integração rumo a um desenvolvimento sustentável e como passo decisivo em direção ao multilateralismo, sendo seus princípios basilares o irrestrito respeito à soberania, integridade e inviolabilidade territorial dos Estados; autodeterminação dos povos; solidariedade; cooperação; paz; democracia, participação cidadã e pluralismo; direitos humanos universais, indivisíveis e interdependentes; redução das assimetrias e harmonia com a natureza para um desenvolvimento sustentável; a única referência à economia é feita quando há a referência à qualidade da integração que se pretende. O parágrafo, por sinal, é simbolica e politicamente redigido. Visa-se não apenas uma integração, mas a construção de uma identidade e cidadania sul-americanas, passo bem mais ousado que os qualquer documento anterior e desenvolver um espaço regional integrado no âmbito político, econômico, social, cultural, ambiental, energético e de infra-estrutura, ou seja, a integração deve se dar em todos os âmbitos apresentados, o que muda o caráter da integração e; por último, esta integração busca contribuir para o fortalecimento da unidade da América Latina e Caribe, compreendendo como meta de longo prazo ampliar a integração.

Os objetivos caminham no mesmo passo que a declaração de Cochabamba, dando ênfase ao caráter humanista da integração e visando a diminuição da desigualdade social em diferentes frentes. Além disto, busca uma integração física e energética e propõe, nos moldes da União Européia, a condição de cidadão sul-americano, com o reconhecimento dos direitos dos cidadãos de um Estado Parte, nos demais Estados integrados. Outro objetivo é o envolvimento da sociedade civil nos espaços decisórios e a integração de diversos atores sociais na proposição das políticas de integração, marcando a gradual descentralização do poder. Para tanto, há a proposição de um parlamento, mas sem desenho institucional definido. A pessoa Jurídica da Unasul é representada por uma presidência pró-tempore, que aparece na organização institucional, mas que, ao que parece, dará lugar a uma Secretaria- Geral, que dará a a cara do organismo.

Da maneira como se pretende organizar, com uma Secretaria geral e um parlamento, sua estrutura em muito se assemelha à ONU, que conta com uma Secretaria-Geral e uma Assembléia Geral, em que os Estados se fazem representar nos seus mais diferentes modelos institucionais. Em relação a um projeto de integração, a Unasul revela um novo paradigma, em que a economia é apenas um dos elementos, mas que valoriza, antes disso, a perspectiva política e uma visão humanista.

 

Considerações finais

Como considerações finais, pode-se dizer que no plano da integração regional da América do Sul, foco da investigação, há a perspectiva de um acontecimento político24 com a constituição da Unasul, que modifica a lógica de integração, submetendo a integração economica a uma estratégia política que tem como base a autonomia, a autodeterminação dos povos, a garantia da democracia e a diminuição das desigualdades sociais. Também vale destacar que o processo de criação da Unasul destaca um campo de disputa política do protagonismo das transformações permitidas pelo momento em que os governos da Venezuela e da Bolívia, mais à esquerda, buscam a intensificação da mudança; os governos da Colombia e do Peru, buscam proeminência comercial do bloco, mantendo-se alinhados a uma preocupação estadunidense (à direita); e o Brasil serve com o um nó de convergência das oposições.

Por ser um momento de indeterminação25, não é possivel auferir, com a análise, se o momento é de inflexão à esquerda ou surgimento de uma nova forma de experimentação neoliberal. Certo é que no centro desta disputa o Brasil e, mais fortemente o presidente Lula, ganham um destaque internacional ainda não vivido por um presidente ou um governo brasileiro, que carrega consigo não apenas o Brasil, mas o conunto sul-americano de países.

Por último, convém destacar a valorização dos mandatários dos cargos, mostrando que as determinações políticas não são da ordem das instituições, mas que se relacionam com as vontades e relações pessoais destes mandatários. Exemplo, na investigação, é a presença e liderança do presidente Lula, que construiu um espaço de autonomia ao Estado brasileiro que, ocupado por um particular grupo de atores da política externa, permitiu que surgissem novas demandas políticas, que mudaram o sentido da integração.

 

8. Referências Bibliográficas

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1. Cf. Bandeira, M (1997 e 2009) e Ayerbe, L (2002).Cf. Moniz Bandeira.
2. Cf. Dinges, J. Os anos do Condor. Cia das Letras. 2005; Ayerbe, L.F. Os Estados Unidos e a América Latina. Ed. UNESP. 2002 e; Fausto, B e Devoto F. J. Brasil e Argentina: Ensaio de história comparada. Ed. 34.
3. Cf Moniz Bandeira (2009).
4. Sobre a relação e ruptura como MDB e fundação, cf. Carta de Princípios, de 1979 e Manifesto de Fundação, disponíveis em http://www.pt.org.br/portalpt/documentos/documentos-historicos-32/pagina-1/.
5. Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no encerramento do Encontro de Governadores da Frente Norte do Mercosul Belém-PA, 06 de dezembro de 2007.
6. Regalado (2008). p.36.
7. Idem. p.209.
8. O PT tem uma formação bastante eclética, oriunda dos diversos movimentos e grupos que o conformaram. Mas seu estatuto apresenta o Partido como socialista, além de conhecidamente e historicamente ele carregar as bandeiras da esquerda. Sobre a situação atual do partido, após o governo Lula, entenderemos como inflexões dentro de um campo de esquerda. Mas cabe ressalvar um desvio ao centro, em uma perspectiva shumpeteriana. Porém, para a análise, manteremos a referência da esquerda.
9. Em seu programa de governo de 1998, por exemplo, o PT expõe sua posição sobre as relações internacionais da seguinte maneira: "Quanto à relação entre as nações, o PT defende uma política internacional de solidariedade entre os povos oprimidos e de respeito mútuo entre as nações que aprofunde a cooperação e sirva à paz mundial. O PT apresenta com clareza a sua solidariedade aos movimentos de libertação nacional e a todos os movimentos de âmbito internacional que visam criar melhores condições de vida, justiça e paz para a humanidade". (Programa do PT, 1998, p.3 Apud Oliveira, M. 2003. p.143.
10. cf. Oliveira, M. 2003. p.141.
11. Carta ao Povo Brasileiro.
12. Publicitário contratado para fazer a campanha eleitoral.
13. Diplomata de careira, Celso Amorim já era diplomata na época da ditadura, quando se afastou da profissão para não defender um Estado de Exceção.
14. Regalado Op. Cit.
15. Cf. Góes filho, obra cit. pp.181-191.
16. Segundo a perspectiva de Jacques Rancière, a política é "uma mudança na percepção do mundo sensível", quando passam a ser ouvidos aqueles que antes não eram reconhecidos como dotados de fala. Em contraposição à esta visão, polícia seria o a gestão por instituições (um Estado que não permite o novo, a não ser por assimilação). Cf. Rancière (2000), perspectiva que vem sendo estudada pelo grupo e estudos dos orientados da Profa. Dra. Maria Célia Paoli, do qual faço parte.
17. Trataremos, a partir de então, como Tratado da Unasul.
18. Declaração de Cusco, de 2004.
19. idem.
20. Declaração de Cochabamba, 2006.
21. idem.
22. Ibidem.
23. Assim como o ocorrido na Venezuela em 2002, há por parte dos países da Comunidade momentos de solidariedade em virtude de instabilidades internas destes países.
24. Cf nota 17, sobre a visão política de Rancière.
25. Cf. Oliveira 2007.