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Print ISBN 2236-7381

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Vinte anos de Mercosul: as partes e o todo

 

 

Hoyêdo Nunes Lins

Programa de Pós-Graduação em Economia e Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade federal de Santa Catarina

 

 


RESUMO

O artigo focaliza a trajetória do Mercosul, cujo documento fundador, o Tratado de Assunção, completa vinte anos em 2011. Considerando a intenção original dos signatários, de lograr uma melhor inserção internacional de seus países por meio da integração regional, argumenta-se que nas últimas duas décadas a diferenciação entre esses Estados se aprofundou. O Brasil fortaleceu ainda mais a sua importância econômica e a liderança regional, distanciando-se em termos de inserção internacional, algo que reflete as enormes assimetrias estruturais internas ao Cone Sul. Inicia-se com uma breve discussão teórica sobre a distribuição dos efeitos dos processos de integração, seguida de periodização em que se atribui, grosso modo, a condição de belle époque do Mercosul aos anos 1990 e a de "quase réquiem" aos 2000. As duas seções seguintes exploram o problema das desigualdades entre os países, principalmente entre Argentina e Brasil, examinando, pela ordem, o comércio intrarregional e os investimentos estrangeiros diretos, no segundo caso destacando a situação da indústria automotiva. A última parte antes das considerações finais volta-se à mudança nos padrões produtivos da indústria e ao problema da concentração/dispersão das atividades industriais no Mercosul.

Palavras chaves: Mercosul; Assimetrias estruturais; Desigualdades socioterritoriais


 

 

1 Introdução

Em março de 1991, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai assinaram o Tratado de Assunção no intuito de criar o Mercado Comum do Sul (Mercosul). O objetivo dos signatários era "acelerar seus processos de desenvolvimento econômico com justiça social" (TRATADO..., 1991, p. 1), crentes de que os "acontecimentos internacionais, em especial a consolidação de grandes espaços econômicos" (ibid.), mereciam reação à altura do seu significado: mostrava-se essencial "lograr uma adequada inserção internacional para seus países" (ibid.). O tratado expressaria o entendimento coletivo de que o "processo de integração constitui uma resposta adequada a tais acontecimentos" (ibid.).

Duas décadas representam trajetória convidativa a "balanços", e este ensaio é uma espécie de resposta à sedução desse desafio. Mas que o senso de realidade prevaleça: focaliza-se só um aspecto do Mercosul, aquele evocado na assertiva dos quatro governantes sobre a importância de uma adequada participação desses países numa dinâmica internacional crivada de grandes transformações. Para os presidentes, como sugerido no tratado, a integração deveria propiciar uma melhora coletiva nessa direção. O eixo do ensaio refere-se, assim, aos reflexos da integração no conjunto dos países implicados. Começa-se falando sobre o problema referente à distribuição dos efeitos dos processos de integração, de uma forma geral, para "enquadrar" a observação do Mercosul.

 

2 Dinâmica da integração regional: o problema relativo à incidência dos reflexos

A distribuição dos efeitos da liberalização comercial e da uniformização do comércio com terceiros mercados, dois pilares da integração entre países, é uma questão chave no debate sobre o assunto em foco. A natureza e a intensidade desses efeitos influenciam a própria trajetória da integração. Por exemplo, onde o impacto da concorrência for mais adverso, pode ocorrer atrofia ou até desaparecimento de atividades, algo capaz de nutrir sentimentos e ações contrários à integração. Mas a competição não é tudo. Também importante é a incidência geográfica dos investimentos, ligada ao fato de que a integração provoca reestruturação produtiva com dimensões espaciais.

Um ângulo de abordagem sobre esse assunto vê na integração capacidade de gerar aproximação entre os níveis de desenvolvimento dos territórios implicados. A liberalização dos fluxos de capitais e mercadorias permitiria às empresas explorar as reservas de mão de obra de menor custo comparativo nas regiões menos industrializadas, que cresceriam economicamente e "convergiriam" com as regiões mais afluentes. Venables (2003) explora essa perspectiva, calcada nas vantagens comparativas, assinalando que pode ocorrer convergência das rendas per capita quando a união alfandegária envolve países ricos. Quando se trata de países pobres com situações nacionais de vantagem comparativa "extrema" - em dotação de mão de obra não qualificada -, ocorreria aumento da divergência em prol do país com nível "intermediário" dessa vantagem. A lógica é que os países com vantagem comparativa "extrema" em mão de obra não qualificada  são os mais pobres de uma união alfandegária de países pobres. Aqueles com vantagem comparativa "intermediária" - com mão de obra não qualificada relativamente maior do que os  países mais ricos, porém menor do que os países mais pobres - suprirão os segundos com produtos mais intensivos em trabalho qualificado, protagonizando desvio de comércio em seu benefício e aprofundando as desigualdades.

Visão contrária é a que enxerga tendência ao aumento das disparidades socioterritoriais, argumentando que a redução ou supressão dos entraves à mobilidade de fatores e mercadorias favorece a concentração dos investimentos nos locais mais industrializados, mesmo que os salários sejam maiores. Isso resulta, principalmente, das externalidades e das economias de escala, que compensam os custos de mão de obra maiores.

Para Krugman (1991), "a interação de retornos crescentes e custos de transporte pode explicar o desenvolvimento regional desigual numa escala ampla, com regiões que largaram na frente (...) atraindo a indústria desde aquelas em condições iniciais menos favoráveis" (p. 83). Puga e Venables (1998) propõem que as "[i]nterações entre concorrência imperfeita, custos comerciais e a estrutura insumo-produto criam incentivos para as firmas se localizarem perto de fornecedores e clientes" (p. 243), resultando em aglomeração e em crescimento industrial restrito a alguns países. Entre os menos industrializados, o salto industrial de uns em relação aos outros, na integração comercial, depende de fatores como tamanho do mercado doméstico e política capaz de atrair a indústria antes dos demais.  Mas não está ausente o que Krugman e Venables (1990) chamam de "ambiguidade básica" nos efeitos nas regiões periféricas: estas tanto podem se beneficiar da instalação de atividades em busca de menores salários como acusar a preferência das empresas pelas externalidades das áreas centrais.

O destaque dessas questões no debate sobre a integração não é fortuito. A redução das atividades em alguns locais, para não falar em abandono de regiões, é sempre fonte de problemas. Áreas que perdem atividades experimentam sensação de "desindustrialização", em regra com reações estridentes. Mas também provocam tensões as novas capacidades produtivas, criadas por investimentos de origem local ou externa à região, que costumam vincar a paisagem na integração: quando a preferência locacional recai sobre ambientes já industrializados, a integração aprofunda as desigualdades.

Problemas desse tipo pontuaram o ceticismo de Krugman (1991) sobre as chances das regiões externas ao core europeu nos primeiros passos da União Econômica e Monetária, uma posição que ressoava inquietações surgidas já no início do processo europeu de integração: Giersch (1949-1950) assinalou que a liberalização dos fluxos fortaleceria "a atratividade dos centros altamente industrializados" (p. 91) e Byé (1958) advertiu que o aumento ou criação de capacidades produtivas ocorreriam  "no local mais rentável (...), não importa qual seja a origem dos recursos [, pois os] mercados poderão ser abastecidos de um local qualquer" (p. 194).

Os termos desse debate inspiraram a concepção deste ensaio, cujo foco é a problemática das assimetrias.

 

3 Mercosul: da belle époque ao "quase réquiem"

O processo que conduziu ao Tratado de Assunção registrou o término de dois longos regimes autoritários no Cone Sul, na Argentina e no Brasil, e o fortalecimento da cooperação entre esses países, rivais históricos na região. O Programa de Integração e Cooperação Argentina-Brasil, de 1986, mostrou-se decisivo, assim como o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, de 1988, acompanhado da Ata de Buenos Aires no ano seguinte.

O final de 1994 foi definido como prazo para a efetiva colocação em cena do Mercosul. Isso exigiu esforços em diversos grupos de trabalho, cujos desempenhos, contudo, revelaram-se heterogêneos. De todo modo, o início do Programa de Liberação Comercial coincidiu com exportações de bens para o mercado mundial, considerando-se o Mercosul como um todo, que saltaram de US$ 45,9 bilhões para US$ 62,1 bilhões entre 1991 e 1994. Desde então essas exportações cresceram, com inflexões somente em 1998 e 1999 devido a resultados argentinos e brasileiros que refletiram prolongadas conjunturas adversas. A tabela 1 evidencia essa fase de adversidades na coluna para o período 1998-2003.

Na ótica deste ensaio, o final dos anos 1990 e o começo dos 2000 formam um divisor de águas entre o que se pode chamar de belle époque e de "quase réquiem" do Mercosul. A aguda crise argentina de 2001-2002 sobressaiu nessa transição, mas o maior destaque ficou reservado à maxidesvalorização da moeda brasileira no início de 1999. Após anos de real apreciado, o impacto foi enorme no comércio externo brasileiro e, por extensão, nas relações no âmbito do Mercosul: a decisão do Brasil "representou, na prática, o fim do Mercosul (...). Se isso não ficou claro para os argentinos em um primeiro momento, quase dois anos de recessão e de um claro processo de desindustrialização fizeram com que os sonhos do Mercosul virassem fumaça" (BARROS, 2001, p. B2).

A desvalorização do real potencializou os atritos e a desconfiança, principalmente na Argentina (GIAMBIAGI; MARKWALD, 2002). Não admira, assim, que desde então "a agenda bilateral (...) [tenha] se concentrado em administrar focos de conflito econômico (...)" (BOUZAS, 2009, s/p). Pelos efeitos nas exportações dirigidas ao Brasil, o caminho sinalizado para a Argentina foi a "especialização" em commodities, em sintonia com suas vantagens comparativas, o que significaria uma "reprimarização" inaceitável. A situação macroeconômica argentina deteriorou-se nesse período, culminando na desvalorização do peso em 2002, com congelamento dos depósitos bancários e uma insolvência generalizada, tudo seguido por fortes reações populares. Por conta disso a alteração das tarifas de importação, recorrente na trajetória do Mercosul, exibiu um movimento drástico na Argentina: para estimular o crescimento econômico, derrubou-se a tarifa para bens de capital e aumentou-se a dos bens de consumo no começo de 2001, um tipo de iniciativa acompanhado por Paraguai e Uruguai  a despeito da contrariedade do Brasil.

Cabe assinalar, sobre a conjuntura de meados dos anos 2000, que, embora a Argentina experimentasse crescimento após o fim do Plano de Conversibilidade (ou Plano Cavallo, vigente desde 1991), foi o Brasil que se destacou economicamente. Empresas brasileiras projetaram-se no exterior, adquirindo ativos e se instalando até nos Estados Unidos (BENSON, 2004). Investidas desse gênero ocorreram especialmente no Mercosul: empresas transnacionais brasileiras - ilustrando o que a CEPAL (2006) chamou de "translatinas" - entraram na Argentina em distintos setores, atraídas pelos novos preços relativos naquele país  (KRAKOWIAK, 2004). Esse processo se aprofundou nos anos 2000, pois, segundo Simonetti (2006), entre 2002 e 2005 empresas brasileiras investiram cerca de US$ 5,1 bilhões naquele país, quase o triplo do que ocorreu durante toda a década de 1990. Internacionalmente, o Brasil passou a ser saudado como "gigante de uma nova ordem econômica mundial" (WOOD, 2008), qualificação que teve nas descobertas de promissoras reservas de petróleo uma fonte de inspiração básica (AN ECONOMIC..., 2008).

 

4 Comércio intrarregional como evidência de assimetrias

As trocas intrarregionais representam uma boa indicação do significado do Mercosul para os países membros. Examiná-las, como permite a figura 1, condiz com o papel da liberalização comercial como carro chefe dessa integração. Com dados de 1990 a 2008, a figura mostra a participação das exportações intrarregionais de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai nas exportações totais desses países, além de apontar os principais destinos nacionais para cada um na região.

No início, a participação dessas exportações foi crescente em todos os casos, as mais altas incidências aparecendo o final dos anos 1990. Mas a importância é diferenciada: no Brasil, 17,4% foi o máximo atingido (em 1998), enquanto na Argentina alcançou-se 36,3% em 1997, no Uruguai 55,3% em 1998 e, no Paraguai, 63,5% no ano 2000. Ou seja, o Mercosul significa coisas distintas para esses países, o que, em si, é aspecto das grandes assimetrias desse processo.

Os anos 2000 contrastam com os 1990 quanto à importância do Mercosul para essas exportações. Na Argentina, aquela proporção recuou para menos de 20%; no Brasil, para cerca de 10%. Também no Paraguai e no Uruguai houve redução, apesar das escalas muito diferentes: o Mercosul respondeu por metade das vendas paraguaias e por cerca de 30% das uruguaias até 2008. O Brasil tem figurado como principal mercado regional para os países do bloco.

Ferrer (2000) considera que o "peso relativo de Argentina e Brasil no contexto do Mercosul e do espaço sul-americano confere à relação bilateral (...) uma influência significativa na evolução do sistema sub-regional e nas perspectivas da integração na América do Sul" (p. 205). Assim, mirar os vínculos entre esses dois países significa privilegiar o "eixo" da integração regional. As exportações argentinas ao Brasil passaram de quase US$ 1,5 bilhão em 1991 para US$ 3,6 bilhões em 1994, mais do que dobrando durante a preparação do Mercosul. Vitalidade semelhante ocorreu no sentido contrário: quase US$ 1,5 bilhão em 1991 e US$ 4,1 em 1994. A figura 2 mostra saldos positivos brasileiros na primeira metade dos anos 1990 e  inversão do quadro na esteira da política de câmbio do Plano Real. A queda nas vendas argentinas para o Brasil foi pronunciada em 1999, ano da maxidesvalorização do real, porém os números se contraíram ainda mais logo depois: refletindo a crise do país vizinho, 2003 registrou US$ 4,7 bilhões de vendas, pouco mais de metade do valor de 1997. Também eloquente foi a queda das exportações brasileiras para aquele país: o valor recuou para US$ 2,3 bilhões em 2002, o segundo menor desde a assinatura do Tratado de Assunção.

Daí em diante, pelo menos até 2008, quando eclodiu a crise financeira mundial ligada ao estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos, as vendas mútuas cresceram rapidamente. Mas isso ocorreu com acúmulo de superávits pelo Brasil, nutrindo o entendimento de que esse país "não tem cumprido o papel de 'motor' das vendas externas de Argentina, Uruguai e Paraguai, e o acesso ao mercado brasileiro pouco tem contribuído para a diversificação de suas exportações" (MARKWALD, 2005, p. 25). Os motivos têm base estrutural: "apesar de que a paridade peso/real é claramente favorável à Argentina, o sistema produtivo não parece capaz de reverter a falta de competitividade de cada ramo industrial com respeito (...) [ao Brasil]" (GIGLIANI; JUNCAL, 2007, p. 17).

Sintomaticamente, os anos 2000 foram plenos de iniciativas unilaterais que dificultaram o comércio bilateral. Nesse processo, intensificado com a crise global, a Argentina exibiu o maior destaque. Por exemplo, repetindo providência de março de 2009, esse país aumentou em abril daquele ano o regime de licenças não automáticas de importação, que permite administrar a entrada de produtos estrangeiros no mercado doméstico. Foram atingidos produtos que representaram 1/5 das vendas brasileiras para a Argentina no ano anterior (GUIMARÃES, 2009a).  Embora cedendo nas negociações, o Brasil não deixou de protestar contra aquela essa protecionista (GUIMARÃES, 2009b).

O comércio bilateral é questão particularmente sensível na Argentina, para quem o Brasil sempre foi o mais importante mercado regional. A recíproca é verdadeira, mas, enquanto o Brasil chegou a receber (em 1997) quase 31% de todas as exportações argentinas de bens, o país vizinho nunca ultrapassou, no período observado, a marca de 13% das vendas brasileiras. Quer dizer, o mercado brasileiro tem sido muito mais importante para a Argentina do que o mercado argentino para o Brasil. Essa desigualdade tornou-se eixo de debate naquele país, nos anos 1990, sobre o que se chamou de "Brasil dependência" (CHUDNOVSKY et al., 1996). Mas também no Brasil o comércio intrarregional interessa: atualmente crescem as inquietações sobre as investidas comerciais chinesas na América Latina, especialmente na Argentina, que estariam deslocando o Brasil nas vendas de máquinas, calçados e artigos têxteis (BARROS, 2009).

Seja como for, a integração produziu resultados comerciais de relevo nos anos 1990. Na Argentina, a política de abertura comercial e a estabilização dos preços dinamizaram a demanda, o que foi aproveitado pelo Brasil. Neste, a estabilização dos preços combinada à política cambial repercutiu nas exportações argentinas, inclusive com maior qualidade produtiva comparativamente à pauta global do país vizinho. Mesmo assim, as pautas de ambos nas vendas bilaterais permaneceram distintas quanto ao conteúdo tecnológico e ao valor agregado dos produtos. Dados para 2009 da Secretaria de Comércio Exterior, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio do Brasil, mostram que 2/3 dessas importações brasileiras envolveram material de transportes, principalmente automóveis, tratores e acessórios/partes (quase 39%), produtos do reino vegetal, sobretudo cereais e oriundos da indústria de moagem (15%), e combustíveis, óleos e ceras minerais (cerca de 12%). As principais vendas brasileiras à Argentina, totalizando 61% do total, implicaram material de transporte (28%), um grupo com caldeiras e máquinas, aparelhos e instrumentos mecânicos e elétricos (superando 21%) e produtos minerais (12%) (cf. www.mdic.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=5&menu=2081).

 

5 Investimentos estrangeiros diretos: as assimetrias e seus sintomas

Os investimentos estrangeiros diretos (IED) cresceram fortemente no Mercosul nos anos 1990 (Tabela 2). A Argentina despontou como destino na primeira metade da década e o Brasil liderou amplamente na segunda, chegando a canalizar 75% do total para o Mercosul no ano 2000. Também comparativamente o Mercosul se destaca: a figura 3 mostra que em 1999 o valor aproximou-se de 60% do total dirigido à América Latina e ao Caribe.

Na Argentina, a atração inicial refletiu as privatizações e a estabilização ligadas ao Plano de Conversibilidade, embora a própria integração influenciasse. Destacaram-se como destinos, além dos serviços privatizados (eletricidade, telefonia) e outros serviços (hotelaria, distribuição), setores industriais como o automotivo. Em meados dos anos 2000, a CEPAL (2006) apontou as manufaturas baseadas em recursos naturais e os combustíveis, além dos serviços de engenharia, entre os principais setores implicados nesse país. No Brasil, os fluxos após 1994 superaram amplamente os do começo daquela década e os dos anos 1980. Laplane e Sarti (1997) sublinharam a influência das reformas estruturais e apontaram os serviços privatizados e atividades industriais como as do complexo automotivo entre os  principais destinos brasileiros naqueles anos. Nos anos 2000, despontaram a produção de manufaturas, baseadas em recursos naturais e de peças de automóveis e aeronáutica, e também os combustíveis e a mineração (CEPAL, 2006).

Na década de 2000, a participação do Mercosul nos IED para América Latina e Caribe caiu para nível bem inferior ao do final dos anos 1990. Isso é claro para a Argentina e para o Brasil. Em termos absolutos, porém, os resultados brasileiros merecem realce: em 2007 e 2008 entraram nesse país, pela ordem, US$ 34,6 bilhões e US$ 45,1 bilhões, superando o pico de 2000. A situação é distinta na Argentina, que sequer se aproximou do valor mais alto da  década de 1990.

O setor automotivo sobressaiu nesses investimentos, na produção tanto de veículos como de autopeças, sob o impulso das vendas internas. Mas, diferentemente dos anos 1990, quando aumentar a capacidade produtiva era o foco principal, nos 2000 o objetivo foi modernizar as estruturas de produção e desenvolver e lançar novos produtos (CEPAL, 2010b). A proeminência do setor automotivo nos IED não surpreende, devido à importância atribuída pelas empresas à complementaridade produtiva e à divisão espacial do trabalho em nível regional, perspectiva que fez da integração um elemento chave das mudanças nessa indústria no Brasil e na Argentina, afetando as decisões de investimento e localização de fábricas. "As maiores montadoras, que planejaram ter plantas de montagem em ambos os países por volta do ano 2000, estavam começando a racionalizar a produção de veículos e (...) se abastecer em componentes importantes a partir de uma única localização em cada país" (HUMPHREY; MEMEDOVIC, 2003, p. 13). Veículos fabricados na Argentina tiveram ampliadas as suas vendas no Brasil, e a posição do país vizinho como destino das exportações brasileiras cresceu consideravelmente.

O comércio entre Argentina e Brasil é indicativo sobre a utilização por essas empresas das possibilidades abertas pela integração. Em 2009, Material de Transporte - basicamente automóveis, tratores e seus acessórios e partes - foi o grupo de produtos que concentrou o maior valor individual exportado bilateralmente: US$ 4,35 bilhões pela Argentina e US$ 3,57 bilhões pelo Brasil (cf. www.mdic.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=5&menu=2081), representando o melhor exemplo de comércio intraindustrial no Mercosul.

Todavia, embora sem de fato comprometer longamente o intercâmbio, a desvalorização da moeda brasileira em 1999 atingiu a estrutura que tomara corpo no Mercosul.  "O tamanho do mercado e as políticas implantadas durante a década de 1990 (reforçadas pela desvalorização do real em 1999) fizeram com que uma grande quantidade de multinacionais, automotrizes e de autopeças, se instalassem no Brasil (...). Esta situação contribuiu para acirrar as assimetrias (...) neste setor entre a Argentina e o Brasil" (BEKERMAN; MONTAGU, 2009, p.144-145). As consequências da desvalorização afetaram, de fato, a divisão do trabalho regional envolvendo montagem de veículos e fabricação de autopeças (LAPLANE; SARTI, 2000). O impacto foi considerável, como sugerido por manchete de jornal do tipo "[m]ontadoras trocam a Argentina pelo Brasil" (PFEIFER, 2001, p. C-1). A situação fez pensar em crises regionais no país vizinho, particularmente em Córdoba e sua área, onde se localizavam as maiores montadoras em operação na Argentina (ADACHI, 2000a).

Nessa conjuntura, noticiou-se no Brasil que a "Argentina retalia com guerra fiscal" (ADACHI, 2000b, p. 2-5), recolocando na agenda arestas anteriormente surgidas (ALMEIDA et al., 1997). Tratava-se da ofensiva de províncias argentinas para estancar o êxodo das empresas para o Brasil, em boa parte fabricantes de peças e componentes. Houve fechamentos parciais locais, forçando o abastecimento em produtos intermediários desde  o Brasil, e transferências de linhas, assim como casos de completa desativação (ADACHI, 1999), oportunizando um debate na Argentina sobre as condições industriais do país: Fuera de juego foi a grande manchete do caderno Economía & Negocios do jornal La Nación em 28/11/1999, com ênfase na "perda de competitividade" (FERRARESE, 1999, p.2-1) dos exportadores, "uma situação que piorou com a desvalorização do Brasil" (ibid.).

Os problemas da indústria automotiva provocaram medidas pontuais que se refletiram no comércio bilateral. Em 2006, os dois países alteraram para baixo o valor das importações mútuas livres do pagamento de tarifa (DIANNI, 2006). Na base estava a pressão argentina motivada pela grande entrada em seu mercado de carros fabricados no Brasil. Dois anos depois, fabricantes instalados no Brasil transferiram à Argentina a montagem (em termos agregados) de cerca de cem mil veículos antes produzidos no primeiro, para posterior venda no Mercosul e para exportação (FÁBRICAS..., 2008), uma ação motivada pelo interesse em reorganizar a produção em escala regional, com abertura de espaço para novas linhas em plantas situadas no Brasil.   

6 Integração, concentração industrial e desigualdades

Os resultados para o comércio intrarregional e os investimentos estrangeiros diretos (IED) refletem assimetrias históricas e são fatores de assimetrias, simultaneamente. É assim também para a incidência espacial das atividades industriais, um assunto importante no Mercosul.  Esse tema é explorado por Sanguinetti, Traistaru e Martincus (2004) em estudo sobre os reflexos da integração nos padrões produtivos de Argentina, Brasil e Uruguai entre 1985 e 1998, cobrindo a fase de avanço na cooperação e, nos anos 1990, o que se logrou instalar como área de livre comércio e união alfandegária. Sem dados sobre o Paraguai, e comparando os subperíodos 1985-1990 e 1995-1998, os autores evidenciam mudanças setoriais nas exportações e estruturas produtivas.

O Uruguai aumentou a sua participação no valor da produção industrial total, em escala de bloco, nas indústrias de uso intensivo de insumos agrícolas. A Argentina também exibiu incremento, mas com grande variação interssetorial. O Brasil, cuja base industrial é a mais forte da região, "tem uma maior importância relativa em setores que usam intensivamente insumos manufaturados e vendem uma grande fração da sua produção para firmas industriais (...)" (SANGUINETTI; TRAISTARU; MARTINCUS, 2004, p. 11). Comparando os subperíodos 1985-1990 e 1995-1998, os autores detectam crescimento em participações relativas que mostram coerência com os perfis nacionais em dotação de fatores e  intensidade no uso destes. Pelo estudo, portanto, a integração afeta os padrões produtivos do Mercosul principalmente em função das vantagens comparativas de cada país: a "liberalização comercial preferencial no Cone Sul impulsiona uma reorganização espacial da produção de acordo com as vantagens comparativas internas (...)" (op cit., p. 24).

O Uruguai, o menor desses países, participa escassamente nos setores em que as margens preferenciais no comércio intrarregional são maiores, como vários da indústria de transformação, um efeito que se intensifica entre 1990 e 1998, com o acordo comercial. Assim, parece válida para o Mercosul a postulação (seção 2) de que, quando implica países menos desenvolvidos e muito desiguais, a integração afeta negativamente a produção industrial dos que, além de menores, têm vantagem comparativa "extrema" principalmente na agricultura.

Traistaru e Martincus (2003), por seu turno, examinam a concentração das atividades industriais no Mercosul (sem o Paraguai pela falta de dados). O foco é a concentração relativa, traduzida na diferença entre a distribuição espacial de uma dada indústria e aquela de toda a indústria: uma atividade industrial é relativamente concentrada quando o correspondente indicador supera o da totalidade da indústria. Essa opção evita o viés imposto pelo tamanho. Considerar a concentração absoluta, dada simplesmente pelo grau de presença das atividades em distintos países, permite conclusões apenas limitadas, pois os grandes territórios nacionais tendem a ostentar maiores participações na distribuição de uma indústria. O período examinado, de 1971 a 1998, inclui boa parte do que se chamou de belle époque do Mercosul.

O estudo indica aumento da concentração relativa da indústria por conta das diferenças nas intensidades de trabalho, capital humano e tecnologia. No Brasil, diferentemente de Argentina e Uruguai, cresceu nos anos 1990 a presença relativa de setores mais intensivos em capital e tecnologia (instrumentos profissionais, máquinas elétricas). Essa maior presença parece favorecida pela concentração do gasto - "o mais importante determinante da localização industrial" (TRAISTARU; MARTINCUS, 2003, p. 25) -, aspecto que remete ao tamanho dos mercados nacionais. Também os custos comerciais mostram-se um condicionante maior, indicando que "maiores barreiras tarifárias externas em relação ao resto do mundo tendem a promover uma maior concentração relativa de indústrias no interior do bloco (...)" (ibid.).

Com a integração, o peso comparativo dos determinantes da concentração relativa da indústria parece ter se alterado. Pela análise, com o início da liberalização comercial as intensidades relativas de fatores, isto é, suas dotações relativas, passam a representar a melhor explicação dos padrões dessa concentração. A intensidade relativa da mão de obra é especialmente importante para a geografia industrial na integração. De um modo geral, os "resultados sugerem que a localização da demanda e os fatores de vantagem comparativa são as principais forças orientadoras dos observados padrões de concentração relativa, e que o Mercosul parece influenciar o seu comportamento" (op. cit., p. 28). Estudos desse tipo agregam conhecimento sobre as assimetrias no Mercosul. O assunto tem grande importância no debate sobre a integração, pois, sobretudo em períodos difíceis para os países, as desigualdades provocam ações unilaterais que prejudicam a coesão política e, portanto, a trajetória dos blocos. O Mercosul não foi poupado, como se observou sobre o comércio intrarregional. Deve-se frisar que ocorreu aprofundamento da concentração econômica intrabloco, segundo os estudos considerados. Seja em termos quantitativos ou qualitativos, o Brasil aparece em posição vantajosa. Também parecem ter aumentado desigualdades entre as regiões subnacionais. No Brasil, pesquisas como a de Porto (2000) mostram que as regiões Sudeste e Sul canalizaram os maiores benefícios. A distribuição dos investimentos da indústria automotiva na segunda metade dos anos 1990 é eloquente a esse respeito (ARBIX, 2002). Já nos países menores, e em várias regiões destes, o quadro é completamente distinto.

 

7 Considerações finais

As assimetrias históricas e as vinculadas à integração regional são uma realidade incontornável no Mercosul. Este artigo debruçou-se sobre o assunto, destacando a posição proeminente do Brasil, uma condição impulsionada pelos próprios movimentos da economia, como no tocante ao comércio e aos investimentos externos diretos (IED).

Ao contrário dos países vizinhos, o Brasil não depende (ou depende pouco) das trocas intrarregionais. E na comparação entre os produtos por ele vendidos e comprados na região, o conteúdo tecnológico e o valor agregado dos primeiros superam bastante os dos segundos. O país também é o principal destino dos IED no Cone Sul, o que se fortaleceu com a integração. Isso é bem ilustrado pela indústria automotiva, cujas opções de localização tendem a privilegiar o Brasil. A reorganização espacial da produção promovida pelo Mercosul mostra a influência do modo como os países se apresentam tanto em dotação de fatores como em intensidade do seu uso, e também a do tamanho do mercado. Isso reforça a participação brasileira nas atividades mais intensivas em capital e a relativa concentração destas no Brasil, com realce nesse processo para as regiões mais dinâmicas.

Tudo somado, o país logrou nas últimas duas décadas uma inserção internacional sem paralelo na região e ampliou a sua importância econômica no Cone Sul. Em decorrência, ganhou força a liderança regional desse país.

Mas falar em liderança regional implica perscrutar além dos aspectos econômicos da integração. Questões políticas são igualmente importantes, ambas as esferas - a econômica e a política - mostrando-se ligadas e reciprocamente determinantes. Na teorização neorealista sobre integração, por exemplo, "os objetivos econômicos da integração regional não derivam da busca de bem estar, mas da íntima relação que existe entre riqueza econômica e poder político (...)" (HURRELL, 1995, p. 48). Portanto, uma análise ampla sobre o problema da liderança no Mercosul exigiria explorar aspectos políticos, ainda mais que as relações entre Argentina e Brasil exibem períodos de forte rivalidade, com disputas pela liderança no Cone Sul (CANDEAS, 2005). Não se pretendeu explorar esses aspectos neste ensaio, e não há como sequer tangenciá-los nessas considerações finais, mas vale acentuar que também no jogo político o Brasil ostentou desenvoltura que  robusteceu o seu peso e a sua condição de líder regional, algo observado especialmente na década de 2000.

Nos anos 1990, com Fernando Henrique Cardoso na presidência, a política externa brasileira mirava a liderança regional; o mecanismo era a criação de consensos na América do Sul sobre as posições defendidas pelo país (BURGES, 2006). Nos anos 2000, com Lula, a construção da liderança ganhou em evidência. As ações foram quase sempre ruidosas, como na busca de vaga no Conselho de Segurança das Nações Unidas e nas tentativas de interferir em questões internacionais de grande apelo. Ora, num processo de integração como o do Mercosul, cuja deplorável lacuna de espaços institucionais próprios representa convite à chamada "diplomacia presidencial" (MALAMUD, 2005), um perfil  de governo como o de Lula haveria de significar, além de grande visibilidade internacional, o  fortalecimento da liderança regional do Brasil também na esfera política.

Todavia, a "ascensão" internacional derivada desse estilo de política externa não incorporou todo o Cone Sul. A rigor, "se a medida do sucesso da estratégia regional do Brasil é a criação de um bloco regional com significativo grau de coesão interna e capacidade para aumentar o poder da região no mundo, cabem poucas dúvidas de que a estratégia falhou" (HURRELL, 2008, p. 55). É que o "ativismo dos anos Lula foi excessivamente personalista e voluntarista, para que um impacto institucional pudesse ocorrer (...)" (ibid). Além disso, há registros na América Latina de "numerosos exemplos de resistência ao papel do Brasil (...)" (ibid.), posições nutridas inclusive pelas apreensões ligadas ao aumento do poder bélico do país (ARIAS, 2009).

Que o início de um novo governo no Brasil, com o admitido interesse estratégico na América Latina e sobretudo no Cone Sul - sugerido pela escolha da Argentina como primeiro destino estrangeiro da nova presidente, em janeiro de 2011 -, possa resgatar os princípios fundadores do Mercosul quanto a uma melhor inserção internacional de toda a região. O patrimônio de relações já acumulado é considerável. Mas é preciso torná-lo objeto de uma adequada e profícua valorização.

 

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