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3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Avanços e empecilhos na governança global: uma análise de três níveis

 

 

Italo Beltrão Sposito

Mestrando IRI-USP

 

 


RESUMO

Este artigo buscará discutir a literatura recente sobre governança global e o problema de déficit de accountability das instituições internacionais através de uma análise baseada em três níveis que busca separar os âmbitos individual, estatal e global de modo a facilitar o entendimento de como se desenvolvem as relações entre estas esferas. Os principais desafios para a formação de uma ordem "mais democrática" no sistema internacional são as falhas de jurisdição, de participação e de incentivo, que dificultam o provimento dos bens públicos globais e a institucionalização de mecanismos formais de accountability. O modelo para analisar esta nova configuração mundial será desenvolvido com o objetivo de criar um quadro teórico em que possa se conferir legitimidade à governança global a partir da idéia de que os indivíduos são os stakeholders que delegam seu poder às organizações internacionais; e que insira os novos atores das relações internacionais dentro desta nova ordem. Também erá argumentado que a assimetria dentro destes níveis é o maior empecilho à democratização das organizações internacionais.

Palavras-chave: Governança global, accountability, assimetria, organizações internacionais


 

 

Introdução

A dissolução do bloco soviético significou uma importante mudança na ordem global, o que resultou na ascensão de diversas leituras sobre o padrão de funcionamento da política internacional. A partir da percepção de novos fenômenos oriundos da atuação de organizações da sociedade civil (OSC) e de corporações transnacionais (CTN), a literatura de Relações Internacionais (RI) levantou questões sobre as limitações da corrente realista (mainstrean) em explicar o papel e a importância de novos atores que passaram a influenciar diretamente a atuação dos Estados. Assim, novas leituras passaram a analisar o sistema internacional (SI) a partir de modelos que englobam: diversos níveis interligados (local, nacional e global); diversas formas de governança e diferentes loci de autoridade; inexistindo uma hierarquia clara entre os níveis e canais.

A "vitória" do bloco ocidental significou o predomínio de seu sistema econômico e ideológico em escala global. Primeiro, há o domínio do sistema capitalista; dentro desta perspectiva, se torna necessário pensar que o capital permeia todas as relações sociais e que os tipos de arranjos globais mais avançados são destinados à facilitação do fluxo de capital e à abertura de mercado às CTN. Segundo, este tipo de sistema incentiva a produção de bens privados, deixando um vácuo no provimento de bens públicos para a população. Terceiro, como conseqüência deste modelo político-econômico, se instala também um vácuo na evolução de regras e procedimentos que garantam ordem na atuação das Organizações Internacionais (OI) e dos Estados em relação questões de interesse público no âmbito internacional. O resultado é a necessidade de desenvolver arranjos e mecanismos para o provimento de soluções conjuntas para problemas não restritos às fronteiras nacionais: um modelo de governança global, em que seja primordial o provimento de bens públicos globais1 (BPG), a inserção de atores não-governamentais e a criação de mecanismos de accountability2.

A inserção destes novos temas e atores no debate atentou para a necessidade de se repensar as RI de modo a inserir nas análises os novos fenômenos observados: "enhanced openess, growning systemic risks, and the policy demands of the growing number of transnational actors in both business and civil society" (KAUL, GRUNBERG e STERN, 1999, p. 450).

Segundo Ruggie, "the spatial map characteristic of the traditional international political world has undergone a major transformation" (2004, p. 507), levando a um novo princípio organizacional que não tem base territorial no Estado e no qual os atores não-estatais têm um importante papel na causa e solução dos problemas transnacionais. Para alcançar um novo modelo eficiente no provimento de soluções seria necessário superar três principais falhas: 1) de participação - a cooperação internacional ainda é primordialmente intergovernamental, entre Estados; 2) de incentivo - persuasão moral é insuficiente para incentivar os países a cooperar em prol dos BPG; 3) jurisdicional - na atual conjuntura, o desenvolvimento de políticas é essencialmente nacional (KAUL, GRUNBERG e STERN, 1999). Considerando esta realidade recente do SI descrita acima e as três principais falhas no provimento de soluções para problemas transnacionais e de BPG, serão discutidos meios para superá-las.

A literatura abordada centra as discussões no conceito de governança global que Rosenau (1995) define como: "system of rules, levels of human activity, the pursuit of goals and transnational repercussions" (p. 13) - conceito que será utilizado neste trabalho. Segundo Dingwerth e Pattberg (2006), seria através destes tipos de arranjos que a autoridade poderia ser exercida em um sistema com vários níveis interativos sem hierarquia clara e a partir de esferas de autoridade independentes da soberania estatal. Rosenau (1997) considera que passamos por um momento de transição em que ainda não se desenvolveu um arranjo global para coordenar a ação dos Estados de modo a garantir o provimento dos BPG.

O modelo para analisar esta nova configuração mundial será desenvolvido com o objetivo de inserir tais conceitos na discussão e criar um quadro teórico em que se possa conferir legitimidade à governança global a partir da idéia de que os indivíduos são os stakeholders que delegam seu poder às OI. Assim, será discutido o tema do déficit democrático das OI a partir da ótica da participação da sociedade civil, defendendo a idéia de que a criação de mecanismos formais de accountability pode aproximar a gestão das OI daquilo desejado pelo público, além de abrir espaço à fiscalização da atuação dessas instituições. Defende-se a idéia de que a interação entre os níveis por meio de regras formais e delimitada por estruturas mais rígidas pode levar à superação das falhas elencadas por Kaul, Grunberg e Stern (1999).

A configuração básica do modelo a ser proposto é simples e está diagramado na figura 1 abaixo. O SI pode ser estruturado a partir das relações existentes entre três níveis fundamentais: I) nível 1 ou individual, formado pelos indivíduos que constituem a base de legitimação da governança global, que são, portanto, os stakeholders. Junto a eles, estão as OSC (grupos de indivíduos) que representam seus interesses junto às instituições políticas dos outros níveis; II) nível 2 ou estatal, formado pelos Estados nacionais e principais atores das RI, os quais são os representantes dos indivíduos na arena internacional e os shareholders das OI; portanto, são aqueles que delegam poder e devem defender os interesses gerais dos indivíduos nestas organizações; III) nível 3 ou supra-estatal,  de alcance global ou regional dependendo da área de atuação, é aquele no qual se buscam soluções para os problemas de cunho transnacional e o provimento de BPG para os indivíduos. Como representado na figura 1, os canais de atuação e relacionamento entre estes níveis estão representados pelas letras "a", "b" (relação entre níveis 1 e 3), "c", "d" (relações entre níveis 1 e 2), "e" e "f" (relações entre níveis 2 e 3), e serão especificados durante o artigo.

 

 

A diferença de tamanho entre as unidades dentro de cada um dos níveis representa a assimetria existente entre estes atores. Sendo assim, dentro do nível 1, existe diferença de poder dos indivíduos e das OSC dependendo se habitam/atuam em países desenvolvidos ou em países em desenvolvimento. Dentro do nível 2, as diferenças representam a assimetria de poder entre os Estados, seja no âmbito econômico, político, ideológico ou militar. Dentro do nível 3, há diferença de poder entre as OI que regulam questões econômicas e OI que regulam outros temas com menor interesse para os Estados. A assimetria dentro destes níveis e principalmente no nível 2, como será argumentado no trabalho, é o principal empecilho para uma mudança significativa no SI.

 

1. A legitimidade das Organizações Internacionais e seu papel na governança global

Esta parte do trabalho buscará analisar as relações entre os indivíduos e as OI; as flechas denominadas por "a" e "b" na figura 1. Segundo será argumentado, a existência de canais de comunicação entre os indivíduos e as agências multilaterais seria um modo de conferir legitimidade a estas organizações mesmo que estas não sejam análogas às democracias domésticas nem tenham representantes diretos da população dentro de seu quadro de oficiais.

O déficit democrático é considerado pela literatura como o principal empecilho à legitimidade das instituições internacionais; tendo em vista que estas organizações regulam temas de vital importância para todos os indivíduos do globo, deveriam representar os interesses dos mesmos; no entanto, a legitimidade desta relação de representação é questionada devido à enorme distância entre os indivíduos e as Instituições Internacionais (II) e à inexistência de delegação direta de autoridade por parte dos stakeholders. Segundo Zürn (2004), a mudança da autoridade decisória em alguns temas do círculo nacional para as OI resultou em problemas normativos. O déficit democrático ocorre porque as decisões são tomadas em instituições executivas multilaterais, o que dificulta: a participação do público nos processos de desenvolvimento de políticas, a identificação de quem toma as decisões políticas e a obtenção das informações necessárias para analisar a atuação destas instituições.

Apesar disso, para estabelecer um padrão democrático nessas organizações é preciso pensar, além da coerência filosófica, em sua viabilidade pragmática. Frente à impossibilidade prática da participação política direta dos cidadãos em II, a segunda melhor opção e a primeira possível, é a delegação de poder; complementarmente, devido à complexidade prática, à incerteza política das RI, torna-se necessária expertise para tratar de problemas transnacionais. Assim, a viabilidade prática impõe que o poder seja delegado para indivíduos com expertise nos temas e trabalhos necessários à organização da governança global (MORAVISCSIK, 2004).

Já que o controle público sobre assuntos de relações exteriores é complicado mesmo no âmbito doméstico, aparece como solução a delegação, através do Estado, de poder às OI para regular problemas de natureza transnacional, afinal, estes fogem da jurisdição estatal (KEOHANE, MACEDO e MORAVISCIK, 2009). Por isso, a legitimidade de atuação destas instituições pode emanar de sua especialização em atuar em temas complexos, afinal, este mesmo quadro já existe dentro das democracias domésticas que são consideradas legítimas, já que na regulação de assuntos em que é necessária expertise, o poder é delegado às instituições não-majoritárias do poder executivo (KAHLER, 2004).

Assim, as OI devem representar os indivíduos em uma relação de delegação semelhante à existente nas democracias domésticas. Neste modelo de representação política há atribuição ao representante de uma posição autônoma que supõe que sua ação seja direcionada para representar o interesse dos stakeholders de acordo com sua própria leitura, ou seja, em razão do bem comum, que seria o provimento dos BPG (BOBBIO, MATTEUCCI e PASQUINO, 1998).

O princípio central de accountability é a legitimidade política da autoridade do gabinete e o modo para garantir uma governança eficiente e legítima é a existência de mecanismos formais para checar se os oficiais agem de acordo com o objetivo originário - meios de controle público. Como sua autoridade é delegada, sua legitimidade depende da conformidade com normas comuns e leis estabelecidas (GRANT e KEOHANE, 2005).

Visto a impossibilidade de "copiar" o modelo de democracia doméstica na esfera internacional (mesmo porque não há apenas um modelo), aparece como um canal para garantir maior legitimidade às OI algumas formas de accountability que não são únicas da democracia; vale lembrar que a democracia não é a única fonte de legitimidade moral para uma instituição. Segundo Grant e Keohane (2005), existem meios para restringir o abuso de poder na esfera internacional: os padrões de comportamento (já institucionalizados na política mundial), a aplicação de sanções (mecanismo em que a assimetria de poder ainda é muito influente) e a disponibilização de informação.

Dado a realidade do SI, as relações entre os Estados são delimitadas através de normas informais que podem ser separadas em três padrões: conformidade com normas compartilhadas pelas elites e cidadãos dos Estados desenvolvidos; princípios normativos aplicáveis na esfera global; e pressão sobre padrões de desigualdade econômica e política global. Como não está estruturada por leis, a accountability atua através da reputação e da pressão, assim, as II têm sua atuação regulada por dois tipos de accountability que sãoinformais: supervisão por parte dos Estados (shareholders), que restringem a atuação destas agências para que sirvam a seus interesses e atuem para alcançar os objetivos definidos em seu estabelecimento; e fiscal, já que estas instituições dependem do financiamento dos Estados para que existam (GRANT e KEOHANE, 2005).

Por outro lado, mesmo sabendo dos problemas de viabilidade prática discutidos acima, ainda seria possível contestar a legitimidade das OI em termos de coerência filosófica a partir de uma das falhas elencadas em relação à lógica de delegação de poder às II por Kaul, Grunberg e Stern (1999), denominada de falha de participação - trata-se da restrição das decisões ao círculo trans-governamental. Este tipo de arranjo, em que existem apenas mecanismos informais de accountability e pouca inserção de atores não-estatais no processo decisório ou no processo de desenvolvimento de políticas, é questionável normativamente porque existe uma distância enorme entre o público e esferas de regulação internacional (seria uma relação de "delegação da delegação).

Novamente tendo com pré-condição a viabilidade prática, seria necessário realizar um trade-off entre pragmatismo e normatividade, mantendo a delegação da autoridade decisória em temas de alcance global às II, mas promovendo o desenvolvimento de mecanismos formais de accountability que garantam à população a institucionalização de canais de informação e abrindo espaço para que OSC participem e "vigiem" as OI.

Apesar das limitações e questionamentos da legitimidade das OI, avanços importantes foram concretizados e outros estão em curso; o aumento da disponibilização de informação e o início de abertura ao público são passos importantes. É necessário lembrar que mesmo a democracia no âmbito doméstico é um processo inacabado e em contínua transformação; portanto, os arranjos globais em desenvolvimento precisam estar em constante aperfeiçoamento através da criação de procedimentos formais para a resolução de disputas e criação de mecanismos de enforcement que tornem os custos de trapaça superiores aos seus benefícios (DOWNS, ROCKE e BARSOOM, 1996).

Outros avanços podem ser citados: o aumento da disponibilização de informação pela Organização Mundial do Comércio através da diminuição da restrição a documentos e sítios na internet que provêm informes sobre os processos de negociação; a criação do Inspection Panel pelo Banco Mundial, um fórum privado de participação para cidadãos que se sentem diretamente afetados por projetos desta II; o Independent Evaluation Office do Fundo Monetário Internacional, que busca analisar os casos controversos em que o Fundo atuou.  No entanto, faltam mecanismos análogos em muitas OI (KAHLER, 2004).

Segundo Scholte (2004), as OSC também podem ter um papel importante para o ganho de legitimidade das OI na governança global, através de diversos mecanismos: pressão exercida sobre as II para que aumentem a visibilidade pública de sua atuação; monitoramento de suas atividades e a produção de estudos para documentar as consequências de sua atuação; busca de retificação sobre regras e atuação de líderes errôneas; promoção de mecanismos formais de accountability através da institucionalização de meios para monitorar as agências através de assembléias e relatórios. No entanto, são necessários avanços na obtenção de recursos para que as OSC tenham profissionais qualificados, para que possam formar redes de informação que permitam promover campanhas de alcance global; há a necessidade de reconhecimento formal do papel das mesmas pelas autoridades das II, do aumento da quantidade e qualidade da informação divulgada pela mídia, e principalmente, da criação de mecanismos para que os stakeholders possam monitorar suas ações, permitindo que suas reivindicações junto às agências internacionais possam ter maior legitimidade.

Por outro lado, também é necessário frisar que o espaço das OSC só será legítimo desde que estas sejam representantes do público, ou seja, defensoras do provimento de BPG, e permitam aos indivíduos inserir suas idéias e debatê-las em arenas destinadas à discussão sobre o desenvolvimento de políticas. Uma iniciativa interessante nessa direção foi a Lei brasileira nº 9.790/1999 que regula a atuação das OSC de interesse público, as OSCIP, que surgiu dado à necessidade de

imprimir, cada vez mais, credibilidade às organizações da sociedade civil mediante a qualificação, no universo do Terceiro Setor, do subconjunto daquelas que atuam de acordo com princípios da esfera pública na produção do bem comum. Isso implica criar mecanismos legais de visibilidade, transparência e controle públicos, permitindo definir melhor o acesso a eventuais benefícios e incentivos governamentais e doações [...] Desse modo, a qualificação de OSCIP acolhe e reconhece legalmente as organizações da sociedade civil cuja atuação se dá no espaço público não estatal (FERRAREZI, 2001, p. 18).

Este tipo de lei ajuda na regulação das ações das OSC e garante as mesmas maior legitimidade. A harmonização entre modelos semelhantes pode significar um avanço na regulamentação destas instituições, questão que poderia ser sugerida pelas OI e "internalizadas" pelos países que delas fazem parte. A relação entre estes níveis serão discutidas a seguir.

 

2. Estados e Organizações Internacionais: incentivos recíprocos à democratização

Agora serão analisados as relações entre os Estados e as OI, as interações entre os níveis 2 e 3, demonstrados pelas flechas "e" e "f" na figura 1. A natureza desta relação é de delegação de autoridade, ou seja, os Estados, como shareholders, delegam poder às OI para que atuem em problemas que transcendem a jurisdição dos Estados. Esta relação pode trazer benefícios mútuos: os Estados podem pressionar as agências multilaterais para que estas desenvolvam políticas eficientes para prover os BPG e para que divulguem as informações reunidas através de seus estudos e ações; e as II podem diminuir os casos de não-cumprimento de regras e de abuso de poder pelos Estados, além de incentivar a democratização dos Estados. Apesar da possibilidade desta relação trazer benefícios mútuos, a assimetria de poder entre os Estados e o conceito de soberania nacional ainda são fortes empecilhos aos avanços que serão apresentados; a estes problemas se soma a assimetria de poder entre as próprias OI, das quais aquelas que regulam assuntos econômicos têm maior espaço na agenda internacional.

Por um lado é preciso investigar como as II afetam o comportamento dos Estados ("f"). O modo como a relação entre burocracia internacional e Estado nacional se desenvolve é analisado pelos autores através de diferentes modelos e variáveis, no entanto, todos consideram que de alguma forma as II podem exercer um papel decisivo no outcome da política doméstica ou no comportamento dos Estados em relação a política internacional.

Segundo Cortell e Davis (1996), as OI podem influenciar a política doméstica através da institucionalização de leis internacionais. Este resultado pode ser alcançado através de quatro caminhos: mudança dos valores de atores domésticos; incorporação de procedimentos utilizados nas II; evocação de regra internacional para apoiar interesses na esfera doméstica; incorporação de leis internacionais na Constituição nacional. Apesar dos autores frisarem que a atuação de oficiais para legitimar uma regra internacional no âmbito doméstico pode ter interesses políticos especiais por trás, o importante outcome político desta interação vem da coordenação de regras, normas e leis internacionais junto às instâncias domésticas.

Drezner (2003) propõe algumas hipóteses sobre maneiras para que as II consigam ter influência importante outcome das políticas domésticas. Vale frisar aqui: 1) os policymakers podem utilizar as OI para relegar comprometimento e credibilidade e embasar a defesa da "internalização" de normas internacionais; 2) interações repetidas entre II e instituições domésticas podem aumentar chances de ratificar normas internacionais nas instituições internas. Estes são resultados importantes por promoverem a harmonização das regras nacionais, facilitarem o entendimento e a cooperação transnacional.

O perigo nesta interação aparece com a forma de coercion. Apesar de sua eficiência, este tipo de mecanismo é constantemente utilizado pelas potências para produzir resultados políticos de acordo com interesses próprios, sua aplicação indiscriminada pode significar a manutenção do status quo. Primeiro, apenas os Estados fracos podem ser coagidos a cumprir as regras; segundo, as normas que são institucionalizas e coordenadas nos âmbitos nacionais podem estar muito distantes da realidade dos países fracos, tornando o custo de ajustamento muito alto para aqueles que têm menos recursos para introduzir mudanças estruturais. Novamente aparece o problema da assimetria entre os Estados, que dificulta a harmonização de regras internacionais necessárias ao aperfeiçoamento da governança global.

As OI também podem promover os valores democráticos através de cláusulas que exijam a seus membros a manutenção de regimes democráticos como condição para continuar como um Estado-membro. Através da retórica, seus membros também podem condenar governos que obtiveram o poder através de golpes de Estado (ROSENAU, 1997).

Num momento em que as democracias detêm a maior parte do poder militar, político, ideológico e econômico mundial, o cenário é otimista porque remete a possibilidade de um círculo virtuoso entre democracia, paz, interdependência e fortalecimento das II. No entanto, a crença no poder evolutivo do spill-over é perigosa, a vontade política dos atores em tal processo é essencial, já que o fortalecimento das organizações internacionais depende dos Estados.

Para superar o problema de incentivo, Kaul, Grunberg e Stern (1999), consideram necessário: a coordenação entre os modelos políticos domésticos através da aproximação com as normas internacionais; o cumprimento das regras pelos Estados através da criação de mecanismos de enforcement que aumentem relativamente os benefícios da cooperação e que promovam institucionalização das leis internacionais. Downs, Rocke e Barsoom (1996) também defendem a importância de mecanismos de enforcement como ferramenta necessária ao aprofundamento de padrões de cooperação.

Kahler (2004) afirma que as OI são instituições criadas e dirigidas pelos governos nacionais, portanto, os avanços em direção à democratização, ou a criação de mecanismos formais de accountability, dependem em grande parte da vontade dos Estados, o que dificulta mudanças estruturais visto que as potências, definidoras da agenda, defendem a manutenção do status quo.

Por isso, duas condições estruturais do SI aparecem como empecilhos à democratização das OI: a assimetria de poder e o conceito de soberania. Algumas considerações sobre esses complexos conceitos serão feitas na próxima parte do artigo.

 

3. Considerações finais: a assimetria de poder como um empecilho estrutural  

Mesmo vistos estes avanços nos mecanismos formais de accountability das II e na regulamentação das OSC, ainda existe um déficit de accountability nas OI, que, segundo Held (2003), remete a dois problemas inter-relacionados: a assimetria de poder entre os Estados e entre os atores estatais e não-estatais na formulação da política pública global. O autor também afirma que a dificuldade em solucionar problemas em escala mundial ocorre devido à sobreposição de funções entre as agências internacionais, o que dificulta a responsabilização entre as mesmas.

Nesta linha, o principal empecilho para o aprofundamento e o aumento da accountability nas II é a vontade dos Estados, que são aqueles que delegam o poder às OI e que definem a agenda política destas instituições, além disso, são os atores com maior força política para reivindicar mudanças e informações sobre a atuação de organismos multilaterais. No entanto, os avanços são dificultados pela assimetria de poder entre os Estados, já que as potências não estão sujeitas à supervisão ou sanções por parte das OI, além disso, por definirem a agenda das principais II, evitam que temas relacionados à distribuição da riqueza e do poder decisório global sejam discutidos nas instâncias multilaterais.

A pressão para que os Estados atuem em conjunto para efetivar avanços na governança global pode partir dos indivíduos (nível 1) por serem estes os legitimadores dos governos nacionais. Visto que os países ricos são na maioria democracias, os indivíduos residentes em tais têm a possibilidade de contestar e pressionar seus representantes para que reestruturem a governança global e para que diminuam problema de participação levantado por Kaul, Grunberg e Stern (1999).

A estrutura doméstica pode ser influente no modo como a ação dos atores inseridos nesta esfera, sejam oficiais ou grupos de interesses, evocam leis ou normas internacionais para apoiar seus interesses na disputa política interna. Existem dois componentes da estrutura doméstica que são determinantes no jogo político: o modelo de tomada de decisões do Estado e o padrão de relação entre Estado e sociedade. Quanto mais aberto o modelo de tomada de decisões e mais próxima a relação entre Estado e sociedade, maiores as chances de participação pública na esfera doméstica, e consequentemente, maiores as informações e canais de aproximação às OI (CORTELL e DAVIS, 1996).

Voltando ao nível 2, a desigualdade entre os Estados também determina o modo como cada um influencia o SI e é influenciado pelo mesmo. Se por um lado, os Estados fracos sofrem dois tipos de pressão política: internacional, através da coerção das potências e das OI, e nacional, através da pressão de atores domésticos ligados aos interesses econômicos transnacionais, para adotar modelos de Estado adequados à integração financeira e econômica mundial. Por outro lado, as potências conseguem definir a agenda global e influenciar de forma assimétrica as negociações internacionais. De modo complementar, visto que as regras são formadas de acordo com as preferências das potências, estas têm menores custos em adaptar-se aos modelos propostos (HURRELL e WOODS, 1995).

A busca por mudanças estruturais dentro do nível 3 também depende diretamente de ações nos níveis 2. Os Estados fracos devem pressionar as potências para que reduzam as assimetrias através de políticas de distribuição de riqueza e os Estados poderosos devem democratizar as OI de modo a concretizar modelos de governança global que privilegiem o bem-estar do indivíduo; no entanto, este cenário é pouco provável no curto prazo.

Mas o cenário futuro pode ser otimista, visto o aumento da circulação de informações e a melhora na mobilização da população com o boom das comunicações virtuais. No nível estatal, há maior poder direto para mudar a estrutura, no entanto, depende em grande parte, da vontade das potências; "a luz no fim do túnel" apareceu com a maior distribuição da riqueza mundial resultante da ascensão das economias emergentes, que agora têm maior poder de pressão para requisitar mudança nas estruturas das OI. O aumento da presença de CTN nos países em desenvolvimento e o envelhecimento das populações nos países desenvolvidos também apontam para a distribuição do poder e da riqueza no SI e pelo maior respeito da atuação do capital privado aos mercados emergentes.

Já que, na prática, as organizações multilaterais que regulam as principais áreas da governança global são instituições que servem aos interesses dos governos nacionais, o modo de atuação das OI depende diretamente da postura dos Estados em relação às mesmas. O déficit de accountability predominante nestas instituições resulta da escolha de seus principais Estados membros que temem ter sua atuação restringida pelas regras das II (KAHLER, 2004). Ademais, políticas públicas para divulgar à população sobre quais as OI os Estados são shareholders, o trabalho desempenhado pelas mesmas e a inserção destes temas em debates e escolas públicas são meio complementares de diminuir a enorme distância entre a esfera pública nacional e as II.

Um tipo de relação estreita entre Estado e sociedade se une aos mecanismos de accountability das OI para o provimento de informação e inserção de atores não-governamentais no desenvolvimento de políticas transnacionais - questões discutidas na primeira parte do trabalho - para superar outra falha elencada por Kaul, Grunberg e Stern (1999), que se referem ao problema de participação.

A superação dos problemas oriundos da assimetria de poder entre os Estados e a aceitação da flexibilização da inviolável soberania estatal, através da desenvolvimento/cumprimento de normas e arranjos internacionais que possibilitem um cenário mais cooperativo e que permita às OI regular temas de alcance transnacional dentro da esfera doméstica de cada membro, são os meios pelos quais seria possível superar o problema jurisdicional.

Em linhas gerais, defendeu-se neste trabalho que a amenização ou superação das falhas na governança global pode ocorrer: 1) na participação: através das relações entre indivíduos/OSC e OI (atualmente, decisões são estritamente trans-governamentais) e pela aproximação nas relações entre indivíduos/ OSC e o Estado por meio de mecanismos democráticos; 2) no incentivo: nas relações entre os Estados e as OI pela criação de mecanismos de enforcement que aumentem os benefícios da cooperação e os custos de trapaça; 3) jurisdicional: a diminuição das assimetrias entre os Estados para a formação de um SI mais equilibrado, que poderá levar a uma ordem internacional em que as potências não tenham total poder na definição da agenda global, cumpram as regras. Isto facilitaria a distribuição dos custos e responsabilidades para o provimento dos BPG.

 

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Orientadora: Prof. Dra. Janina Onuki

1. Segundo Kaul, GRUNBERG e Stern. (1999), os bens públicos têm duas propriedades principais: são não-excludentes e não-rivais no consumo. Os principais tipos de bens públicos globais elencados pelos autores são: "natural global commons" - atmosfera e meio ambiente - "human-madeglobal commons" - normas universais, conhecimento e infra-estrutura - e "global conditions" - paz, saúde, liberdade da pobreza, sustentabilidade ambiental, igualdade e justiça.
2. O conceito de accountability se refere à obrigação de membros de instituições públicas em prestar contas regularmente sobre suas atividades a instâncias controladoras e seus representados.