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Print ISBN 2236-7381

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

A política externa do regime militar: entre o ranço ideológico e a atuação pragmática*

 

 

Juliana Ramos Luiz

 

 


RESUMO

É cediço na bibliografia sobre política externa brasileira do regime militar que, mesmo identificada sobre tal denominação, é marcada por características heterogêneas entre os diferentes governos que a compuseram. Seus cinco governos traçaram variados planos de ação, tendo-lhes sido conferidos, inclusive, diferentes denominações/nomenclaturas. Portanto, é recorrente na literatura especializada a discussão sobre as diferenças da política externa do regime militar, mas isto implica em negar-lhe similitudes? Tanto o golpe quanto o regime foram mantidos sob um discurso ideológico direto e/ou transversal, marcante em maior ou menor grau, de forma que este traço não pode ser negligenciado das análises sobre sua política externa. Este artigo se propõe a observar tais similitudes, tendo em seguida como enfoque o período Médici pois, simultaneamente, abriu as portas para a formulação da famosa política externa do Pragmatismo Responsável do governo seguinte, e - concomitantemente - foi o marco da maior repressão e perseguição político-ideológica no país. Estas clivagens tornam-se importantes para percepção de que mudanças e permanências no discurso e na atuação brasileira necessitam de maior análise, reflexão e discussão.

Palavras-chave: política externa, regime militar, pragmatismo, ideologia


 

 

Introdução

A ditadura civil-militar, instituída no Brasil a partir do golpe de 31 de março de 1964, marcou uma profunda transformação não apenas na política interna brasileira, mas também na formulação de política externa.

Quanto à política interna, a interrupção da ordem democrática, com a deposição de um presidente eleito, a suspensão de garantias fundamentais, a cassação de mandatos e cargos políticos, a censura, além da tomada do controle governamental pelas forças armadas, são exemplos de transformação política interna vivenciada no país.

Quanto à política externa, houve também uma profunda transformação de suas bases, tendo em vista que, a Política Externa Independente (PEI) ora desenvolvida pelo Itamaraty, de cunho globalista, marcadamente independente e autônoma, retrocedeu para uma política externa americanista, considerada por Amado Cervo, "um passo fora da cadência"(1992, p.332), com prevalecimento das questões ideológicas para formulação de política externa1.

A partir desta transformação, mais de duas décadas de regime militar nos são abertas para a análise e comparação. E, no interregno dos cinco governos existentes - Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo - diferentes orientações de política externa puderam ser observadas, sem, contudo, retirá-las do mesmo contexto histórico: trata-se de um país governado pelas forças armadas, durante a Guerra Fria e seu embate ideológico entre o capitalismo ocidental e o comunismo soviético.

O governo Médici, em especial, marca com maior ênfase essa aparente dicotomia, tendo em vista que é reconhecido tanto pelo auge da repressão interna (pelas prisões, torturas, mortes e desaparecimentos) como por ter propiciado as bases e condições necessárias para inaugurar uma nova fase da política externa brasileira.

O advento dos sequestros políticos de diplomatas no Brasil é um caso empírico que bem denota tais assimetrias. Sob a gestão do então Chanceler Mário Gibson Barboza, o Brasil alcançou o chamado "Milagre Brasileiro" ao mesmo tempo em que declarou guerra ao terrorismo subversivo na Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Em razão deste caleidoscópio de eventos, buscaremos no decorrer deste artigo indagar: Até que ponto estão unidas e/ou separadas as diferentes políticas externas dos governos militares?

 

Política externa do regime militar: histórico preliminar

Levando em consideração as diferentes políticas implementadas e intituladas por cada um dos governos militares, faremos nos itens a seguir um panorama dos governos militares, não somente no que tange aos dados históricos, mas sim a respeito das construções teórico-conceituais sobre suas políticas externas.

a) O Governo Castello Branco e a Política da Interdependência

O governo do Marechal Castello Branco (1964-1967) apresenta características de política externa bastante distintas dos demais governos militares. Este fato se deve, em larga escala, pela sua aproximação ideológica com os EUA e os ditames do conflito leste-oeste, ao incorporar o discurso anticomunista e de segurança hemisférica na lógica da política externa.

Amado Cervo, conforme citado anteriormente, refere-se ao período como "um passo fora da cadência" e Paulo Vizentini como uma "política externa interdependente" (2004, p.21). Letícia Pinheiro o inclui dentro do "paradigma americanista" (2004, p.37), mostrando que, ao observar a trajetória da política externa até o momento, o período castelista se constituiu por uma profunda revisão para adequação do componente ideológico que legitimava o novo governo.

Já Carlos Estevam Martins, aponta o período como de institucionalização do "projeto elitista", com prevalecimento da "segurança coletiva", para a doutrina militar e de "ideologia liberal-imperialista". Sua linha de atuação externa era voltada para cooperação com os EUA e o capital internacional, pois, ainda segundo o autor, buscava-se um "desenvolvimento dependente e associado" (1975, p.57).

Para alguns, estes dados são suficientes para situar o período como de retomada do alinhamento automático com os EUA. Esta definição não é unânime, mesmo que a associação dependente com os EUA o seja.

A contestação é disposta por conta de algumas posturas do Brasil, como a manutenção das relações com países socialistas, além da percepção, já próxima ao fim do governo, que a articulação com os EUA não gerara os frutos esperados ao governo: o capital nacional sofreu em demasia com a perda de poder econômico e a desnacionalização da economia, esta posta em marcha recessiva.

b) O Governo Costa e Silva e a Diplomacia da Prosperidade

O governo Costa e Silva (1967-1969) foi marcado pela transformação das bases políticas tanto no âmbito interno, quanto externo. Para o âmbito interno, como dissemos anteriormente, houve a manutenção do regime, agora no comando do setor conhecido como "linha-dura", que não só manteve os militares no poder, como intensificou as políticas de repressão, controle e segurança.

As divergências entre os grupos militares criavam conflitos mais acirrados, na medida em que o temor de uma possível rearticulação das forças depostas se mostrava possível, especialmente pela condução "abrandada" de Castello Branco no "combate ao comunismo e na guerra contra a subversão"2.

Para a política externa, as transformações são bastante notórias. Conforme relata Letícia Pinheiro, há "a reincorporação das teses mais nacionalistas ao modelo de desenvolvimento" (2004, p.40), trilhando uma postura mais autonomista para o Brasil. Amado Cervo denomina este novo período pela "recuperação das tendências" (1992, p.342), já que houve um equívoco no governo anterior em não perceber a importância do papel do Estado como articulador necessário ao processo produtivo.

Paulo Vizentini aponta o governo Costa e Silva como representante de uma "ruptura profunda em relação ao governo anterior, contrariando frontalmente Washington" (2004, p.78) e Carlos Estevam Martins entende que as marcas da frustração da política anterior permitiu "uma guinada sensacional na história da política externa brasileira" (1975, p.67).

A diplomacia da prosperidade do chanceler Magalhães Pinto foi marcada pelo aprofundamento da détente entre EUA e URSS, redirecionando a lógica dos discursos do leste-oeste para norte-sul: ou seja, havia a retomada da preocupação econômica entre desenvolvidos e subdesenvolvidos.

 Há o enfoque no nacionalismo e a preocupação com o nacional-desenvolvimento, especialmente pelo saldo negativo gerado pela abertura ao capital estrangeiro do governo anterior. Além disto, é marcante a diminuição do uso do discurso ideológico da Guerra Fria para formulação da política externa. Amado Cervo conclui que, a reformulação aqui disposta não só teve efeito frente à política anterior, mas tornou-se diretriz inalterável a partir de então (1992, p.343).

Apesar disto, embora Estevam Martins, Amado Cervo e Vizentini reforcem o papel transformador da PEB em Costa e Silva, Letícia Pinheiro frisa que esta transformação não colocava "em xeque o alinhamento político e militar ao Ocidente" (2004, p.41).

c) O Governo Médici e a Diplomacia do Interesse Nacional

Ao tratar do governo Médici (1969-1974) duas questões se colocam fundamentais: em primeiro lugar está o caráter de maior repressão e autoritarismo do regime militar nestas duas décadas e, em segundo, a guinada econômica para aquilo que se denomina "milagre econômico".

Estas duas variáveis não são excludentes; pelo contrário: mantém significativa correlação, visto que apenas com uma economia em franco desenvolvimento, proporcionando melhor condições de vida para população em geral, as medidas não-democráticas puderam ser implementadas sem maior reivindicação popular; sem contar que, os poucos focos de resistência não se consubstanciam como parcela significativa da população, mas sim pequenas redes isoladas, logo desmanteladas pela repressão do aparato policial-militar.

Sendo assim, o discurso anticomunista é substancialmente forte para o período, assim como as políticas internas balizadas no conteúdo ideológico da luta do ocidente contra o comunismo. Por outro lado, a política externa brasileira, que desde Costa e Silva já se encontrava desenlaçada das perspectivas ideológicas, mantinha essa vertente nacional-desenvolvimentista, orientada para o nacionalismo de fins.

Conforme aponta Amado Cervo, o cenário internacional serviu para "ampliar a dimensão e fortalecer o exercício do poder nacional" (1992, p.359). Se houve um deslocamento das questões leste-oeste para política externa desde o governo anterior, o atual governo tratou de fortalecer essa separação, mas de maneira individualizada, tendo em vista que a atuação multilateral do governo Costa e Silva terminou infrutífera e pouco eficaz.

Sendo assim, conforme ressaltado por Letícia Pinheiro, embora as tendências ao globalismo tenham sido percebidas em Costa e Silva, o governo Médici retardou a aplicação deste paradigma na política brasileira. Isto porque, a chamada Diplomacia do Interesse Nacional, do chanceler Gibson Barboza tinha como objetivo transformar não o sistema internacional, mas o papel do Brasil neste sistema (2004, p.42). Desta forma, a via percebida para o desenvolvimento do Brasil não era uma via em conjunto, mas sim uma via separada, a fim de transformar o país em potência, tal qual prognosticado por Stefan Zweig em Brasil: O país do futuro.

Estevam Martins aborda a política externa de Médici através da ascensão política e econômica da burguesia estatal (1975, p.77), onde passou a se enxergar o investimento estatal como alavanca para o desenvolvimento.

Para Paulo Vizentini há, nesse momento, a definição do modelo do tripé econômico: empresas estatais, empresas transnacionais e capital privado nacional dando respaldo ao desenvolvimento econômico. Nas palavras do autor, havia maior preocupação "com os ganhos, mesmo que às vezes modestos, do que com as concessões feitas" (2004, p.139), portanto, não mais havia o forte discurso anti-imperialista do governo anterior, mas sim o esforço em melhor situar o país no cenário mundial existente.

Frisa-se que nenhum dos autores nega a participação do país nos foros multilaterais: há sim uma reorientação das prioridades, sem ignorar os demais papéis do Brasil, que ficavam agora em segundo plano, ou melhor, fazendo jus as necessidades impostas ao desenvolvimento nacional. O problema deste raciocínio foi o exacerbado peso conferido aos assuntos internos no desenvolvimento do Brasil no exterior.

É por estas razões que boa parte dos autores julga o período Médici como período de construção das bases para o que viria a ser o pragmatismo responsável do governo seguinte.

d) O Governo Geisel e o Pragmatismo Responsável

Ao apresentar as características do governo Geisel (1974-1979), é importante destacarmos que a conjuntura ora apresentada é completamente distinta do período anterior. Ao contrário do governo Médici, respaldado pelo milagre econômico, o governo Geisel já sofria com o esgotamento deste modelo, além das repercussões negativas por todo o mundo do choque do petróleo e do colapso do sistema financeiro de Bretton Woods.

A importância do então denominado Pragmatismo Responsável pode ser interpretada tanto por retomar alguns dos princípios da Política Externa Independente, como por manter algumas de suas características até a data presente.

Conforme apontado por Letícia Pinheiro, é neste momento que as fronteiras ideológicas, que de alguma forma tolhiam direta ou indiretamente o comportamento diplomático brasileiro, reduzindo seu leque de opções, foi finalmente desvinculada da política externa, que, agora calcada no pragmatismo e no realismo, abria suas portas para diversificação e intensificação das relações do Brasil com todo o mundo (2004, p.45).

Para a realização deste fim, frisa-se o papel fundamental desenvolvido na elaboração das políticas externas do Brasil pela parceria entre o presidente Geisel e o seu chanceler Azeredo da Silveira, constituindo aquilo chamado de foreign policy executive.

Para Paulo Vizentini o período corresponde à segunda fase da política externa brasileira do regime militar: trata-se do apogeu e declínio do modelo construído nos governos anteriores. Apogeu de uma reconstrução da autonomia e independência, e declínio pela separação, mais profunda e irresoluta, dos parâmetros inicialmente estabelecidos para PEB com o golpe de 1964.

Além disto, com o esgotamento dos mercados, atrelado ao contexto internacional de policentrismo econômico, multipolaridade política e declínio do poder dos EUA, abre-se a necessidade de transformação da atuação externa (2004, p.207). Esta transformação é, inclusive, usada como válvula de escape de tensões internas, através de uma abertura gradual e lenta do regime, tal qual anunciada pelo próprio presidente no seu discurso de posse.

Amado Cervo por sua vez, reforça a dinâmica exercida pela nova política com o resto do mundo, como a cooperação sul-sul em complemento às relações norte-sul, e a diversificação da atuação para outras áreas do globo: Europa, Ásia, Europa, Oriente Médio. Sendo assim, o autor faz suas observações sobre o novo governo atrelado aos sucessos e conquistas do governo anterior de Médici, consubstanciando a lógica da continuidade da atuação diplomática e de que as bases do pragmatismo estavam sendo moldadas deste antes (1992, p.380).

Estas características se moldam ao modelo desenhado por Gelson Fonseca Jr. como ocidental autônomo, onde "a rapidez do processo de industrialização do país leva ao crescimento da nossa presença econômica internacional e, consequentemente, a necessidades diferenciadas de projeção" (1998, p.272).

O pragmatismo manteve-se a partir daí, apesar do aumento das adversidades encontradas na arena interna e internacional, tal qual exposto no item subseqüente.

e) O Governo Figueiredo e a Política Universalista

O último e mais longo governo militar, sob o controle do General João Batista Figueiredo (1979-1985) prometeu, desde o início, tanto a abertura política, como dar continuidade aquilo pregado por Geisel no governo anterior.

No que tange à política externa, além de manter as prerrogativas e linhas de atuação do pragmatismo responsável, enfrentou, com maior peso e intensidade uma conjuntura internacional altamente desfavorável, com um quadro econômico mundial recessivo e a instabilidade das políticas ministradas internamente. É por estes dados que a maioria dos autores segue a mesma linha de raciocínio para o período em questão.

Conforme apontado por Letícia Pinheiro, a atuação manteve-se fiel aos princípios do pragmatismo, além de aprofundar as relações com os países do sul. É por este aprofundamento que a mesma ganhou a "qualificação de universalista, em oposição ao pragmatismo" (2004, p.49). Já Amado Cervo, além de frisar a deterioração da estrutura internacional, aponta as dificuldades encontradas em gestar a política interna e externa face às críticas da imprensa direitista e, mais especificamente, da perda do papel do Itamaraty para resolução dos problemas de âmbito econômico, que ficou nas mãos dos setores tecnocratas/especialistas dos gabinetes da fazenda e desenvolvimento (1992, p.390).

Vizentini acompanha este raciocínio ao dizer que "a crise da dívida inchou a agenda internacional de temas econômicos" (2004, p.277), obrigando o Itamaraty a se adaptar ao espaço decisório. Também coloca que sobre o "progressivo desalinhamento com os Estados Unidos como uma tendência histórica" (2004 p.279), situando a questão não apenas com o advento da segunda guerra fria, pela eleição de Reagan aos EUA, como pelo quadro interno brasileiro, com novos atores capazes de influir na agenda doméstica para política externa.

É frente a tal quadro crítico das relações brasileiras na década de 1980 que o regime militar chega ao seu término, mesmo que, o novo governo Sarney (primeiro governo civil) ainda ter/guardar fortes traços do governo militar, consubstanciando a retomada ao regime democrático da maneira segura e planejada, tal qual vislumbrado pelos grupos no poder.

 

Embate discursivo: "A autonomia do autoritarismo"

Após desenvolvimento deste quadro geral, muitas marcas distintivas foram apontadas pelos autores estudiosos do tema. Contudo, aquilo que propusemos enfatizar neste artigo está no outro lado deste contexto: nosso objetivo é apontar características que reúnam a lógica aparentemente conflitante entre política interna e externa.

No plano interno, o ápice da repressão é marcado pela decretação do Ato Institucional nº5, em 13 de dezembro de 1968, que deu ensejo a um novo quadro político no Brasil, definido pela historiografia como o "golpe dentro do golpe", marcando o recrudescimento da ditadura e a reformulação da sua própria lógica interna. A transformação repercutiu igualmente na orientação dos movimentos de contestação.

Após o AI-5, houve um refluxo do movimento de massas, onde "foram derrotados os projetos românticos revolucionários, políticos e estéticos"3. Deste refluxo se consolidou uma nova forma de oposição4, notadamente pela desarticulação dos setores tradicionalmente reconhecidos, para uma ação política de vanguarda pelos movimentos de contestação.

Dentre os aspectos dessa transformação, a valorização da violência, segundo Maria Paula Araújo, "fazia parte de um processo mais amplo e complexo, no interior da esquerda, de questionamento das práticas políticas tradicionais dos partidos comunistas e socialistas e do próprio jogo político parlamentar" (2008, p.225).

E, dentre os diferentes atos e procedimentos desta "esquerda revolucionária", uma das táticas implementadas foi do sequestro político. O primeiro deles, e de maior notoriedade, foi o sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, em 04 de setembro de 1969. Deste primeiro, outros três sequestros se seguiram e também foram bem sucedidos, obtendo, como moeda de troca dos diplomatas sequestrados, a libertação de presos políticos.

Na medida em que os sequestros foram ocorrendo, a repressão interna foi se tornando cada vez mais brutal, afinal, nesta espiral causativa - onde a repressão incitava a necessidade deste tipo de ação pela esquerda; e a esquerda contribuía para a justificativa e a intensificação da repressão - a desigualdade de forças fez valer o peso do poder estatal.

Sendo assim, durante o governo Médici, a intensidade da repressão foi marca indelével de todo o governo analisado e os sequestros são estudo empírico deste contexto no qual o período está disposto.

Desta faceta, retomamos a observação quanto à política externa, onde, a política nacionalista de inspiração militar (LAFER, 2001, p.100), buscava a transformação do papel estratégico do Brasil dentro do sistema internacional.

O desenvolvimento econômico, marcado pelo Milagre Brasileiro, não só corroborava com uma aceitação da sociedade brasileira à conjuntura interna, como também proporcionava uma atuação mais independente do país no cenário internacional, creditando-se à disparada da economia o "governo forte de Médici" atrelado ao impacto da propaganda governamental, simbolizada pelo slogan ufanista, Brasil: Ame-o ou deixe-o (COUTO, 1999, p.114).

Sendo assim, questões relativas aos aspectos de segurança nacional não estão afastadas da lógica da política externa brasileira. O sistema político autoritário deu capacidade de livre atuação ao governo em diversos temas, notadamente para as questões econômicas, sem a necessidade de buscar chancelas democráticas.

O principal problema observado nas análises de PEB para o período está no peso excessivo ao quadro conjuntural econômico. A ascensão brasileira em Médici ofusca outros planos de atuação da chancelaria brasileira que ressaltam aspectos de um governo ainda militar, extremamente autoritário e, consequentemente, ainda preocupado com questões de segurança, ideologia e expansão do comunismo no Brasil e no continente.

Conforme apontado por Stepan, o governo Médici foi marcado pelo esforço de preservação da unidade dos militares (GONÇALVES, 1993, p.224), daí a legitimidade por eles conferida ao novo governo, sob chefia do ex-diretor do Serviço Nacional de Informações (SNI), para buscar com maior afinco os objetivos o projeto de Brasil Potência do regime militar.

O caso dos sequestros ora apresentado é um aspecto importante, de realce e destaque deste panorama maior no qual a chancelaria brasileira está inserida no momento. Afinal, conforme alerta o chanceler Gibson Barboza, "foram anos de violência no Brasil, os de 60 e 70" (BARBOZA, 1992, p.190).

Inclusive, a onda de difusão dos sequestros como arma política tornou-se um crescente no espaço latino-americano de modo que as preocupações com os incidentes ganharam espaço na assembléia geral da OEA, sob forma de convenção interamericana para dar forma conjunta de combate e prevenção à prática. O Brasil, contudo, negou a aceitação da convenção por ser demasiadamente branda, conforme relatado pelo chanceler: "invertiam-se os papéis: os terroristas e seqüestradores eram as vítimas de injustiças políticas e sociais; e as autoridades passavam a constituir-se em forças repressoras" (1992, p.187).

Este papel do chanceler na OEA é ainda frisado por Orlando de Barros, quando diz que, "enquanto o aparato repressor punha fim sistemático ao terrorismo interno, Gibson Barboza propunha à OEA decidida frente repressora ao terror no continente" (1997, p.96).

Outras questões também frisam o peso das forças armadas, bem como do pensamento político-ideológico nos trâmites de política externa: a expansão de regimes socialistas no continente, a participação e apoio brasileiro em golpes de estado preventivos pela América Latina, a manutenção da comunidade luso-brasileira no continente africano, até mesmo, pela reformulação do organograma interno do Itamaraty, com a ascensão da Divisão de Segurança e Informação (um braço do SNI no Itamaraty) para assessoramento direto do ministro das relações exteriores (CASTRO, 2009, p.558).

Sendo assim, em que pese os aspectos econômicos da política desenvolvida do período, o anticomunismo não havia sido expurgado do discurso de política externa, bem como as preocupações com a segurança nacional e hemisférica. Pois, segundo Gustavo Bezerra, "tal posição da diplomacia brasileira durante o regime militar não demonstra contradição alguma, mas, sim, uma complementaridade perfeitamente lógica" (2010, p.89).

 

Rupturas e Continuidades: Há uma política externa do regime militar?

Apesar da subida de um governo autoritário, não-democrático, sob o comando militar do Exército em 1964 não ter sido suficiente para tornar os padrões de conduta do Brasil no exterior inalteráveis, outras questões são postas para análise.

Há marcas distintivas fortes para cada período que torna o estudo de cada governo como uma atividade fundamental para melhor compreensão do momento. Não é por menos que autores atuais, além da própria chancelaria de cada período militar tenha se preocupado em nomear distintamente a sua atuação em política externa (diplomacia da interdependência, da prosperidade, do interesse nacional, do pragmatismo responsável e do universalismo). Contudo, ao passo que a maior parte dos autores guarda a preocupação em realçar os traços particulares de cada período do regime, julga-se pertinente apontar continuidades e semelhanças entre os programas de políticas externa.

Em primeiro lugar, há uma marca que segue como orientação da política externa brasileira, que é do nacionalismo. Apesar de o governo Castello Branco aparecer como destoante a tais princípios, o interesse nacional não deixou de ser perseguido/almejado pelo primeiro governo militar; continha, contudo, uma orientação "de meios" diversa dos demais governos. No entendimento dos formuladores da política externa, manter o alinhamento com os EUA e com o ocidente significava propulsionar o desenvolvimento nacional, pelo auxílio do país hegemônico, quanto dos aliados ocidentais.

Além disto, há a teoria dos círculos concêntricos, onde, pensando na América Latina, o Brasil atuaria como potência hegemônica regional, nos moldes de um subimperialismo. De maneira que, não há um entreguismo brasileiro aos ditames da política americana, mesmo que os resultados pretendidos ficaram longe dos almejados.

Outro dado a ser apresentado é quanto à correlação política externa X política interna. Inicialmente, é possível encontrar divergências entre a política externa adotada pelo Brasil e a política exercida dentro do país.

Com exceção do governo Castello Branco em maior grau, há uma dificuldade enorme em ajustar o regime militar autoritário e não-democrático, com os princípios e propostas cada vez mais audaciosas de política externa.

Mesmo com altos e baixos, o Itamaraty representa um órgão próprio voltado para elaboração da política externa brasileira e de relações do Brasil com o resto do mundo. Além da sua tradição desde sua fundação pelo Barão do Rio Branco, a política externa representa, na maioria dos casos, mais que uma política de governo, representa uma política de Estado, não só por necessitar de continuidade, como ser mais dificilmente alterada, vide os compromissos com os demais atores externos.

Há também o dado da política externa ter sido, desde muitos anos, uma política longe dos holofotes da imprensa, da política interna e da opinião pública em geral, normalmente restrita a espaços próprios e/ou técnicos.

Além disto, julga-se importante observar que a política externa serviu aos interesses da política interna do regime sempre que: a) fazia peso às políticas de exceção usadas para respaldar o regime imposto (Castello Branco); b) abria diferentes frentes no mundo, sem, contudo, romper com algumas linhas gerais do pensamento anticomunista (Costa e Silva) c) legitimava o autoritarismo, de modo a projetar o poder nacional para o plano internacional (Médici); d) canalizava as tensões internas com problemas de política externa (Geisel); e) tornava a crise interna como um reflexo da conjuntura internacional (Figueiredo).

Portanto, mesmo que haja diferentes linhas de atuação ao comparar política externa e interna, a política externa serviu, sempre que possível, para justificar e/ou conter a política interna.

Ao observarmos os 20 anos dos militares no poder, o discurso ideológico não foi absolutamente cortado das relações diplomáticas brasileiras, vide a demora em abrir pontos específicos (Cuba, regimes socialistas, governos de esquerda na América Latina), que feriam diretamente alguns setores das forças armadas que participavam com voz e poder de influência no processo decisório. E, pelo peso que consistiam, puderam manter alguns princípios que perduraram tanto na sociedade brasileira quanto nas linhas de atuação da política externa por algum tempo.

Portanto, entendemos que o avanço para uma atuação pragmática não foi suficiente para retirar o peso do ranço ideológico em temas e matérias afeitas à segurança nacional e que ofendessem diretamente a luta anticomunista travada pelo regime militar, uma vez presente no poder, na mão das forças armadas, desde 1964.

Há, também, como marca do regime militar, um grau decrescente e não excludente de ideologia no interior do processo decisório sobre política externa, atuando com maior ênfase no governo Castello Branco e perpassando boa parte da orientação da PEB da ditadura, até chegar numa ênfase bastante diminuta, já precária e pouco sustentável, face à ascensão de atores políticos, da transformação da ordem internacional, de do próprio processo de abertura controlada e gradual dos últimos anos do regime militar.

 

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* III ENCONTRO NACIONAL DA ABRI.
1. Quanto à classificação de política externa entre os paradigmas globalista e americanista ver PINHEIRO, 2004, p.66.
2. Segundo o entendimento de Carlos Fico, "não se podem negar os traços de moderação e legalismo de Castello Branco" tendo em vista que sua ascensão tanto impediu a pronta subida ao poder de Costa e Silva, quanto criou alguns obstáculos à onda de punições que havia se iniciado com o golpe e o AI-1, por exemplo, o curto prazo para finalização dos inquéritos" (FICO, 2004, p.72). Samantha Quadrat, contudo, ressalta que, "sem dúvida alguma, as leis editadas durante o governo 'castelista' fortaleceram a ditadura e prepararam paulatinamente o terreno para a radicalização futura" (QUADRAT, 2006, p.133).
3. O romantismo revolucionário, termo cunhado por Lowy & Sayre, representa uma alternativa humanizada, sendo uma reação formulada no seio da própria sociedade moderna que concebe e constata que o meio social presente carece de certos valores humanos essenciais; estes não mais presentes, pois foram completamente alienados pela generalização do capitalismo. (RIDENTI, 2000, p.46).
4. Importante frisar que a luta armada não foi uma criação do pós AI-5, tendo em vista que desde pré-1964 determinados setores e grupos já apostavam no modelo de guerilha como foi o caso das Ligas Camponesas ( pelo reflexo do sucesso das lutas em Cuba, por exemplo). Contudo, conforme apontado por grande parte da historiografia, houve um papel determinante com o AI-5, pois "coagida e limitada, a radicalidade experimentada por essa juventude canalizou-se para a ação armada" (ARAÚJO, 2008, p.270)
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