ISBN 2236-7381 versión
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3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011
O papel da memória histórica imperial na política externa: França, Inglaterra, Rússia e Japão em perspectiva comparada
Juliana Ramos Luiz
RESUMO
O estudo da memória não implica na observação de um tempo cristalizado no passado. Trata-se, na realidade, da relação dialética entre passado e presente, de maneira que os acontecimentos são constantemente reconstruídos, a conferir verdadeiro dinamismo à memória e ao ato de rememorar. Contudo, mesmo que o passado seja algo ressignificado, frisa-se que a prática de lembrar implica no resgate de um tempo pretérito que ainda permanece na mentalidade contemporânea. E, essa permanência pode assumir diferentes aspectos, dentre eles, o da nostalgia. Sendo assim, a proposta desta exposição estará em observar comparativamente diferentes estudos sobre política externa contemporânea, mais precisamente de países como Japão, Rússia, Inglaterra e França. Isto porque, todos possuem em comum a memória de um passado "glorioso" dos tempos em que foram impérios mundiais e/ ou regionais. Nessa reverberação do passado no presente, o objetivo está em analisar e refletir sobre o peso da memória dos impérios e, ao tratar de memória e nostalgia, vê-se como as mudanças políticas e do cenário internacional influem nessa memória de grandeza - ainda que idealizada - e reverbera no presente enquanto memória, (re)apresentação, (re)sentimento.
Palavras-chave: memória, nostalgia, império, Rússia, Japão, Inglaterra, França, política externa
Introdução
O fim da Guerra Fria marcou uma transformação no cenário internacional, muito além da simples desintegração da União Soviética. Marcou, com maior peso, as transformações na ordem global, na composição de forças de um mundo outrora bipolar para uma nova realidade multipolar, multifaceta e de difícil síntese.
Tal qual descreve James Schlesinger, com a perda da "resoluta simplicidade"1 (1991, p.3) na qual o mundo era compreendido e articulado, passou-se de uma simples estabilidade para uma instabilidade geral, a partir de uma miríade de forças, valores e processos cognoscitivos deste novo ambiente internacional.
Em momentos de incertezas, a sociedade se respalda em referenciais no passado e a eles se remetem com uma intensidade amplificada (BELL, 2006, p.6). Na pergunta Devemos fazer tabula rasa do passado? levantada pelo marxista Jean Chesneaux, em seu livro homônimo, o autor remete o uso da história como forma de manutenção do status quo, bem como projeção do passado no futuro.
Neste ensaio, pretendemos apresentar algumas considerações acerca do reflexo do passado no futuro, bem como o uso da memória na realidade contemporânea dos países e, mais especificamente, na orientação dos Estados para suas políticas externas.
Os países trabalhados, Inglaterra, França, Rússia e Japão, dois no oeste e dois no leste do mundo, guardam ao menos, a despeito dos momentos cronológicos e fatores históricos particulares, um elemento em comum: todos foram grandes impérios. Sejam eles terrestre, marítimo, político e/ou econômico: marcaram a história mundial com suas grandes conquistas, expansão regional/mundial, fizeram-se grandes e notórios nos espaços onde se imiscuíram e introjetaram sua longa manus. Contudo, o tempo verbal aplicado nos remete a uma segunda semelhança entre os quatro países: não mais o são.
Na esteira dos raciocínios de autores como Paul Kennedy e Jean-Baptiste Duroselle, não só testemunhamos a fatídica irreversibilidade da ascensão e queda das grandes potências, mas também, concordamos com a mesma ênfase categórica de Duroselle, de que todo império perecerá.
Retomando a problemática da incerteza, e, consequentemente, da perda do referencial do ser, interrogamo-nos como tais países lidam com essa atual conjuntura, e observamos, de modo geral, a presença de uma reverberação deste passado na realidade presente, no dever-ser. Perfaz-se a nostalgia de um tempo que já passou. Essas são as observações e contribuições elencadas nas páginas a seguir.
Quedam-se os reis. Queda-se a majestade?
Ao tratarmos do estudo da memória, sempre temos ao seu lado o estudo da história, seus conceitos estão interligados pois ambos tratam, no que tange ao aspecto social, da busca de uma interpretação do passado e/ou reflexão sobre determinado fato histórico. Afinal, "lembrar o passado e escrever sobre ele não se apresentam como as atividades inocentes que julgávamos até pouco tempo atrás" mas sim como processos de seleção, sejam eles conscientes ou inconscientes, por meio da interpretação e/ou distorção (BURKE, 2006, p.70).
Sendo assim, neste processo seletivo, acompanhado pela transformação do estudo da memória desenvolvido por Halbwachs, sendo não só um processo mnemônico do cérebro, mas sim "quadros sociais da memória" (apud BOSI, 1994, p.54), a seleção do passado imperial, nos discursos e práticas presentes é compreendida pelo fato das "memórias serem maleáveis", tornando-se impar "compreender como são concretizadas" (BURKE, 2006, p.73).
Em primeiro lugar, antes de tratarmos dos países especificamente, temos em mente, e uso constante, o conceito de Império. Preocupado com o "anacronismo vicioso" da recorrência ao termo e disposto a desenvolver uma sintética arqueologia do conceito, Arend destaca que:
Império hoje é um termo que se refere a um certo tipo de poder abrangente. Um poder que se dissemina por um grande território que a tudo domina. Império se refere a duas dimensões do poder: a espacial e o exercício da autoridade. O imaginário do império remete-se rapidamente a uma representação de poder, força, domínio e grandeza que, na maior parte das vezes, recebe uma conotação pejorativa, embora não possamos ignorar alguns usos do conceito para denotar orgulhosamente uma posição de poder e autoridade (2006, p.155)
E que, muito além da tradição jurídica romana, o império está relacionado às práticas de dominação, independentemente de albergarem a tradição do direito romano, cabendo outros territórios e processos de fora do espaço europeu e de herança romana. Portanto, Inglaterra, França, Rússia e Japão perfazem-se impérios pela representação de poder que encarnavam.
Ainda no que tange ao conceito de Império, Silva & Olivieri (2006), no estudo da teoria imperial, elencam quatro características presentes no conceito: 1. O poder exercido não tem limites: é regime que abrange toda a totalidade do espaço; 2. O império se apresenta como modo de governo sem fronteiras temporais: portanto, fora da história, atemporal; 3. Ele administra o território e a população, e, além disto, cria o mundo que habita: o poder de mando funciona em toda a ordem social; 4. Apesar de banhar-se em sangue, o império é dedicado à paz: perpétua e universal.
A atemporalidade e a totalidade lhe são marcas específicas, e corroboram com o sentido da sua extensão e longa duração. Ao lado destas características, contudo, vemos a perda concreta do status quo imperial, alguns dos países alcançando, em melhor hipótese, a gradação de potência média (SENNES, 1998), portanto, em posição intermediária no sistema global2.
Hoje, portanto, os estados se adaptam às suas soberanias reestruturadas e ressignificadas, ou, até mesmo, "lutam contra tendências históricas mais fortes", de modo que o "conceito e a idéia de império permanecem vivos e nos confrontando através das metamorfoses da soberania" (AREND, 2006, p.161).
Importante ressaltar que esta sobrevida da vontade de Império tem fundamento por ser a memória não apenas um fenômeno socialmente construído, mas por ser elemento constituinte do próprio sentimento de identidade, pois é ela que confere coerência e continuidade ao ser, ao grupo, à coletividade. Podemos, portanto, espelhar o argumento de Pollak sobre o sentimento de identidade, do indivíduo para os estados, que seria:
"A imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros" (1992, p.204)
Na construção dos Estados-Nação, as estratégias de rememoração foram operacionalizadas de maneira similar, pela transferência de valores qualitativos do mundo dos impérios pré-modernos, para o mundo dos estados modernos. "Tudo aquilo que foi considerado de valor do passado imperial foi desenterrado e reinterpretado para a nova ordem moderna" (BARTELSON, 2006, p.47).
A apropriação de sentidos jamais foi invenção deste século, pois é inerente a sociedade em si e sua formação enquanto tal. O destaque frisado neste ensaio, portanto, vai além do processo de construção da inteligibilidade coletiva, que por si concede à nova ordem política, estabilidade e legitimidade. Buscamos frisar, através do prolongamento das concepções de si, que a velha ordem política também depende de estabilidade e legitimidade, notadamente nos dias presentes, onde as certezas dissipam-se e desmancham-se no ar.
Uma história de Impérios
Tendo exposto algumas observações sobre os impérios, cabe a tarefa de apresentá-los, seja a partir do esforço de reconhecer seus contextos históricos, seja pela reverberação deste status pretérito no presente, notadamente dos discursos de política externa. Portanto, cada um deles serão apresentados nos subitens a seguir.
a) Japão e o Império do Sol
O Japão, pequeno país no leste asiático, se assemelha à Grã-Bretanha por ainda possuir sua estrutura de governo imperial, apesar de também já não mais representar o controle de fato da vida política, assumida pelo primeiro ministro. Sua história de expansão guarda séculos, especialmente pela constrição geográfica na qual vive a ilha, contudo, o expansionismo japonês foi categoricamente identificado a partir da Restauração Meiji no final do século XIX.
Além de restaurar o poder nas mãos do imperador, a restauração também deu o impulso para transformação do Japão similarmente ao processo observado na Europa, segundo Eisenstadt, pelo estabelecimento de um "novo tipo de Estado-nação moderno, de regime autocrático-constitucional (...) e um processo de transição relativamente rápido para uma economia política capitalista, com concomitante processo de urbanização e de industrialização" (2010, p.14).
Para tanto, a expansão territorial era meio e fim do imperialismo japonês, sustentado pelo crescimento econômico que dependia de matérias primas e do élan ao investimento maciço na militarização do país. Após a expansão pela Ásia e a invasão do império russo no início do século XX, o país continuou com sua política expansionista pelo oriente, ocupando enorme extensão do leste asiático, sendo interrompido apenas na II Guerra Mundial, com a derrota do eixo e a explosão das duas bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.
A perda da guerra, a crise interna e os acordos firmados pela sua não-remilitarização puseram o projeto de projeção de poder japonês pela via militar em suspenso, mas a rápida reconstrução do país, notadamente com o auxílio americano que até hoje se faz presente no setor de segurança nacional, o Japão pôde traçar um novo status de potência, notadamente a partir da terceira revolução industrial.
Segundo Paul Kennedy a diplomacia japonesa é autoproclamada como "diplomacia pacífica unidirecional" que pode ser traduzida, cinicamente, de "ser tudo para todos" (1989, p.436), de modo que concorda com a permanência das pretensões do país notadamente na região do leste asiático.
A possibilidade desta diplomacia busca ao mesmo tempo aumentar as relações com o entorno e estabelecer um estável equilíbrio de poder na região. E, segundo Tow, é o crescimento japonês a ferramenta capaz de fornecer tal equilíbrio (2001, p.48).
Contudo, essa busca de um equilíbrio é facilmente vista com objetivos realistas de expansão e projeção do poder (seja militar, seja econômico) pelos seus vizinhos. Não é por menos que esse temor está presente na maioria das análises de política externa japonesa, como é o caso descrito em Samuels que, "muitos vizinhos do Japão estão convictos que o militarismo japonês (...) se espreita logo abaixo da superfície" (2006, p.112), apesar da própria crítica interna no Japão quanto gastos e incentivos no setor militar.
De toda forma, a estratégia da expansão pela via econômica confere ao modelo o que Paul Kennedy chama de uma variante japonesa do "imperialismo do livre comércio" (1989. p.446) e sua preocupação é ainda mais notória com o crescimento chinês na região, já que, sua política externa de coalizão segura entre os atores regionais através da cooperação e do comércio seria uma forma, puramente realista, de estratégia de equilíbrio regional a seu favor (TOW, 2001, p.52).
Além disto, a relação negativa por vezes intensificada entre Japão e China só corrobora com a intensificação da rivalidade pela liderança na região (SUTTER, 2002, p.37), bem como o intuito japonês de melhorar seu próprio equilíbrio e status regional (YANG, 2006, p.134), atuando como um ator hegemônico regional, apesar de agora através da cooperação, da economia e dos acordos regionais, como a ASEAN.
b) Rússia e o Império Czarista
Dentre os países analisados, a Rússia nos oferece o exemplo mais concreto da manutenção do status imperialista. Segundo Hancock, o país se identifica como "única superpotência regional, com enormes recursos naturais, um glorioso passado e politicamente capaz de atuar fortemente no cenário global" (2007, p.71). E, com a reformulação territorial, política e estratégica decorrente do desmantelamento do império soviético, "não são fortuitas, portanto, as recorrências aos precedentes e padrões da política da Rússia imperial" (ZHEBIT, 2003, p.154).
A fundação do império russo é datada do século XV, como forma de refrear e conter o poder mongol. A extensão territorial do império foi aumentando ao longo dos séculos, tornando o império russo, já desde o século XVII, uma dos maiores em extensão territorial do mundo, albergando os Bálcãs, o Cáucaso, o Báltico e a Ásia Central.
A revolução russa novamente deu ao Estado o ímpeto expansivo, agora pela ideologia, além da necessidade da proteção militar, política e estratégica da União Soviética contra penetração do ocidente. A cortina de ferro alcançou longos territórios que isolavam o império soviético da Europa ocidental.
Portanto, o conceito de esferas de influência foi historicamente útil, não só por separar o império das demais potências rivais, funcionando como invólucros de proteção, mas também por proporcionar bases para uma busca incessante de poder, influência e segurança (TRENIN, 2009, p.6).
Hoje, a preocupação regional ainda subsiste como um dos elementos centrais da política externa russa, tanto como forma de evitar a expansão militar (via OTAN, por exemplo), como por ingerência econômica, para manutenção e expansão da chamada "Rússia Inc." Contudo, essa visão, como relata Hancock, força e reforça uma idéia de proeminência russa não sustentada pela sua real posição econômica (2007, p.87).
A pressão da entrada da Rússia no atual G-8, incompatível com seu peso financeiro (somente militar e energético) reforça a idéia de que a "Rússia não questiona seu papel entre o alto escalão das potências mundiais do século XXI" (ORLOV; FUGFUGOSH, 2006, p.40).
Os discursos, textos e análises de política externa russa, trazem em comum a recorrência quanto seu status de poder, mesmo que sua relação com seus vizinhos esteja posta não mais em termos ideológicos, mas sim pragmáticos. A preocupação com a entrada militar e econômica do ocidente nos países vizinhos é uma forma de garantir seu pólo de poder regional, ao mesmo tempo em que reforça a postura russa identificada por Solchanck como verdadeira "doença imperial" (apud MIELNICZUK, 2006, p.240).
De fato, a Rússia manifesta sua influência na região em termos 1) políticos - como no caso da revolução das cores 2) militares - como na desmilitarização dos espaços ora soviéticos 3) econômicos - como no consumo, transporte e extração de gás e petróleo, além de pólos econômicos exclusivos 4) territoriais - pela reivindicação de territórios e revisões fronteiriças.
Portanto, a Rússia ainda está, por diferentes razões, ainda em altíssima evidência através das suas pretéritas fronteiras imperiais (TRENIN, 2009, p.17).
c) Grã-Bretanha e o Império dos Mares
O império britânico3 existe até hoje, tanto pela sua monarquia como pela manutenção do vínculo entre suas antigas colônias e protetorados, hoje países dentro da commonwealth. Muitos, inclusive, ainda reconhecem a monarquia britânica como chefe de Estado, além, é claro, desta também ser a chefe da própria comunidade entre as nações4.
A Inglaterra estendeu seu império por quase todo o mundo, seja pela capacidade da sua esquadra marítima, seja pela difusão de um novo modelo político-econômico-cultural através da revolução industrial. Esse status perdurou por séculos, só verdadeiramente quebrado após as duas guerras mundiais e a ascensão dos Estados Unidos para substituir a pax britannica pela pax americana.
O Reino Unido, conforme assinala Kennedy, também é o "legado de um passado histórico - e, naturalmente, de uma posição geográfica - que influencia fortemente sua política para com o mundo exterior", mas se com fosse um estado sem pretensões ou ambições, a perda do seu poder imperial seria totalmente irrelevante para o sistema internacional, portanto, frisa o autor que, "embora muito reduzida desde o auge da época vitoriana, a Grã-Bretanha ainda continua sendo - ou pretende continuar - uma das principais potências de tamanho médio no mundo" (1989, p.456-7).
Uma das formas de manutenção desse poder se dá basicamente pela aliança especial dedicada entre Estados Unidos e Inglaterra. A expressão clássica foi cunhada e generalizada por Churchill, mas como estratégia diplomática, pode ser observada desde a virada do século XIX para o XX (REYNOLDS, 1988-9, p.95) onde o papel da Inglaterra estaria assegurado pela cooperação entre as potências anglo-saxões.
Paira sobre a noção de relação especial a percepção elementar/essencial desenvolvida pela Grã-Bretanha entre o novo e o velho continente, promovendo uma ponte de ligação dos Estados Unidos com a Europa. A posição insular britânica, afora seu passado e cultura interligados, seria elo fundamental entre o oceano atlântico e o canal da mancha.
Contudo, essa posição privilegiada é discutida por muitos autores, pois, "se observada objetivamente, os resultados práticos da sobrevida desta relação especial tornaram-se por fim escassos, em alguns momentos até mesmo decepcionantes" (HARRIS, 2002, p.30). Para Kramer, "com o declínio do poder britânico e seu relativo isolamento do continente, o peso e influência da relação especial foi signficativamente diminuído" (2003, p.93), sem contar que, com o crescimento rivalidade à atuação americana dentro do continente europeu e da União Européia, a posição britânica de intermediária pode terminar como ambígua, dificultando sua relação entre ambos os lados.
A guerra ao terror promovida pelos Estados Unidos, chancelada pela Inglaterra e fortemente rechaçada pela maioria dos países europeus (especialmente o eixo França-Alemanha) foi exemplo maior dessa crise de relacionamento que colocou em xeque a operacionalidade desta aliança especial.
O papel dos EUA no mundo, com múltiplos interesses globais, faz com que este desenvolva inúmeras "relações especiais" ao redor do mundo, como o é com Japão, México, Canadá, etc, o que torna a relação com a Inglaterra tão especial como qualquer outra (RACHMAN, 2001, p.9).
Apesar disso, embora as circunstâncias não mais favoreçam para um papel especial desenvolvido pela Inglaterra no cenário mundial, conforme apontam Marsh e Baylis, "a metalinguagem do 'especialismo' ainda cria uma percepção pública que coloca as relações anglo-americanas em separado das demais relações internacionais" (2006, p.201), o que corrobora com o aumento do prestígio da política externa britânica, bem confere legitimidade ao papel de destaque que se pretende ter/promover.
d) França e o Império Revolucionário
A França alcançou sua maior expansão imperial após a Revolução Francesa e as guerras napoleônicas, ampliando não só o papel da França na Europa, mas também pela propulsão da exportação dos ideários da própria revolução. Contudo, sua expansão além-mar se deu muito antes do século XVIII, com projetos de colonização desde o século XVII, vide a tentativa de implementação da França-Antártida no Brasil, a colonização nas Antilhas, no Canadá, etc.
No entanto, sua maior expansão pôde ser observada em território africano, já no final do século XIX. Notadamente na África ocidental, esta, alvo da ingerência francesa até o processo de descolonização da década de 1960 em adiante.
O discurso de potência é, portanto, recorrente e se faz presente em inúmeros aspectos, tornando a análise de política externa bastante complexa. Por um lado, há a insistência, face aos perigos de um unilateralismo americano, de alternativas na composição do sistema internacional. O destacado papel francês, como aponta Kramer, vem em razão da vocação mundial que os princípios evocados pela revolução francesa lhe confere (2000, p.364).
Foi com maior ênfase externalizada durante a gestão do General De Gaulle, e sua busca de uma terceira via para o congelamento do poder mundial durante a Guerra Fria. O desenvolvimento nuclear, por exemplo, foi meio de pressionar as superpotências para uma maior atuação/participação da França no jogo de forças do poder mundial.
De fato, com o fim da guerra fria e a constatação da supremacia do poder americano, a política externa francesa desponta com discurso que coloca o país em posição destacada no tabuleiro de negociações. Conforme apontado por Macleod e Voyer-Léger, "as referências discursivas francesas ao multilateralismo e à multipolaridade, e de uma noção de segurança coletiva são constantes, recorrentes e atravessam todo período estudado" (2004, p.89).5
O uso do modelo das Nações Unidas, da União Européia e de procedimentos de segurança coletiva pela França acaba por trazê-la como "porta-voz" desse modelo alternativo, logo, em papel destacado de atuação internacional. Há também o legado pós-colonial francês em toda a áfrica francófona, na qual mantém "já enraizadas práticas de estreitos laços econômicos, de assistência militar e intervenção direta" (BOWEN, 2005, p.102).
A África ainda é, sem dúvida, região de forte peso deste status quo francês, seja pelo peso da ingerência política, econômica e cultural na região, seja pela conveniência de forjar uma nova imagem francesa na região, face o passado histórico colonial.
A França, em caráter proativo, instiga pelos meios que lhe cabem e restam a sua ainda ingerência nas questões mundiais, sendo uma potência média com aspiração de potência mundial, portanto, "deseja recuperar a 'grandeur de tempos pretéritos" (GALLIS, 2006, p.9).
Memória e nostalgia
Após termos apresentado os países estudados e as principais características das reminiscências imperiais na política externa de cada um deles, distinguimos essa memória perpetrada da memória traumática, já que esta, por descrever um evento em especial, inesperado e/ou catastrófico, está relacionada a "um sentimento de traição em relação a nossas expectativas sobre a ordem das coisas" (EDKINS apud RESENDE, 2010, p.222).
Por essa razão que a memória que aqui tratamos, não está relacionada a um evento abrupto, mas a uma linha no tempo difusa entre passado e presente. Ela também reverbera como uma dor, dor daquilo que não mais se tem. Define-se nostalgia como um estado de melancolia, tristeza, saudade de um passado distante. Portanto, dentro da memória ela é reverberada na formação da identidade, mesmo levando em consideração que, pautando-se no construtivismo crítico, identidade e interesse são construídos reciprocamente.
Das idéias de Kennedy, fica a lembrança, no que concerne ao sistema internacional, que tanto a riqueza como o poder são conceitos relativos, portanto as potências não são absolutas, e que, conforme frisa Duroselle, a definição de grande potência é, em si, uma definição histórica, e, por mais longe que retornemos, encontraremos impérios. "O tempo e os lugares lhes impõem estruturas próprias, porém o fenômeno é idêntico. A conquista insaciável, a submissão dos povos pelo domínio de outros povos, a força, o imperium" (2000, p.408). Além disto, por mais profundo que estudemos, encontraremos sua "morte", seja pela violência, pela desagregação interna ou pelo surgimento de novos impérios.
Lidar com a perda não segue a mesma velocidade que a perda em si e está aí o poder das forças profundas. Nas palavras de Renouvin e Duroselle, dentre as características geográficas e econômicas, os traços da mentalidade coletiva e as grandes correntes sentimentais são "as forças profundas que formaram o quadro das relações entre os grupos humanos e, em grande parte, lhe determinaram o caráter" (1967, p.6). O status mantém-se reverberado numa lógica consciente/inconsciente e se manifesta pela continuação de práticas não condizentes com a realidade em si.
Todos os países, salvo o Japão (apesar do esforço diplomático neste sentido) são membros do conselho de segurança da ONU, participam ativamente das discussões mundiais, em aspectos de segurança, política e economia. Contudo, é por entre suas esferas de influência que mais exercem seu poder de mando reverberado: A Inglaterra na Commonweath e pelo império britânico, a França pela região francófona, o Japão pelo leste asiático e a Rússia pelos países ex-União Soviética.
Seja em caráter pós-imperial (políticas de potências médias em busca de estabilidade e prosperidade através das leis e direito internacional) ou neo-imperial (políticas agressivas em busca de estabelecimento de um verdadeiro império informal para emergência de uma grande potência), os países seguem através do esforço de se manterem no centro do poder6.
Há tempos, a neurociência trabalha com a teoria do membro-fantasma, que seria "a experiência de possuir um membro ausente que se comporta similarmente ao membro real" (SCHOLL-FRANCO, DEMIDOFF, PACHECO, 2007, p.234) em pacientes que sofreram amputações em partes do corpo. Estes sentem todo o tipo de sensações em uma parte que não mais existe fisicamente. Em raciocínio análogo, tal qual um membro-fantasma, os países outrora imperiais agem, se comportam e se ressentem como se ainda possuíssem tal aspecto não condizente com sua real posição.
A nostalgia de um passado é marca recorrente na memória dos países por vivificar tempos idos de glória, auge e poder. Lidar com essa perda também é um processo doloroso, daí finalizarmos este ensaio pelos versos resignados do poema Ulysses de Lord Tennyson acerca da perda e permanência:
Apesar de muito ter sido tomado, muito permaneceu; e embora/ nós não sejamos mais aquela força de outrora/ que movia terra e céu; o que somos, somos/ um temperamento igual de corações heróicos/ enfraquecidos pelo tempo e pelo destino, mas fortes na vontade/ de lutar, de buscar, de encontrar, e não de ceder7.
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ZHEBIT, Alexander. A Rússia na ordem mundial: com o ocidente, com o oriente ou um pólo autônomo em um mundo multipolar? Revista Brasileira de Política Internacional. v.46, n.1, p.153-181, 2003.
1. Esta e as demais citações em língua estrangeira foram livremente traduzidas para este artigo.
2. O conceito de Potência Média não exclui os argumentos levantados, pois, segundo o raciocínio desenvolvido por Ricardo Sennes, a participação nos sistemas regionais e sub-regionais de forma intensa seria um reflexo do status imperial. Além disto, o autor cita Myers, que identifica três dimensões presentes nos estados hegemônicos ou aspirantes: capacidade material, militar e motivacional. A última destas, a capacidade motivacional, se atrela a todo o conteúdo desenvolvido neste artigo, tendo em vista que o ímpeto de império perpassa as políticas contemporâneas dos países em análise.
3. Pelo uso, por vezes, indiscriminado das terminologias - Grã-Bretanha, Inglaterra, Reino-Unido - pelos autores analisados, valemo-nos da sua aplicação como sinônimos, apesar de identificarem diferentes organizações políticas.
4. A Commonwealth possui como chefe a Rainha Elizabeth, mas o exercício governamental é realizado por um Secretário-Geral. Para maiores informações, ver: www.thecommonwealth.org
5. Em distinção bastante sintética: o multilateralismo está correlacionado à forma de atuação (por exemplo, EU, UN), já a multipolaridade, ao próprio sistema internacional (uni/bi/multipolar). Portanto, na posição francesa, o multilateralismo é usado como forma de promoção da multipolaridade a fim de desafiar a hegemonia americana contemporânea (MACLEOD; VOYER-LÉGER, 2004, p.80)
6. Para maiores detalhes acerca da atuação pós e neoimperial ver: WALLANDER, 2007.
7. No original: "Tho' much is taken, much abides; and though/ We are not now that strength which in old days/ Moved earth and heaven; that which we are, /we are;/ One equal temper of heroic hearts,/ Made weak by time/ and fate, but strong in will/ To strive, to seek, to find, and not to yield."