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ISBN 2236-7381 versão impressa

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Segurança humana, ajuda externa e política externa japonesa*

 

 

Juliano Akira de Souza Aragusuku

Doutorando em Ciência Política Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Departamento de Ciência Política

 

 


RESUMO

A promoção da segurança humana no plano internacional é utilizada pelo Japão e instrumentalizada de acordo com a lógica de uma postura pacifista, calcada em uma política externa de cooperação entre as nações. Nesse âmbito, a Assistência Oficial para o Desenvolvimento (ODA) é uma ferramenta de grande importância, com ênfase no conceito de segurança humana. Dessa forma, qual a finalidade da promoção da segurança humana? E qual a finalidade da oferta de ajuda externa no âmbito da segurança humana? Não trabalhamos aqui com a hipótese de que o Japão promove a segurança humana e fornece ajuda externa em razão de uma postura altruísta. Existem motivações e interesses que sustentam essa linha de atuação na sua política externa. Porém, essas motivações e interesses não são claros, o que proporciona a sensação de benevolência e altruísmo. O objetivo deste trabalho consiste em identificar essas motivações, que acabam por fazer do Japão um grande entusiasta da segurança humana nas relações internacionais.

Palavras-chave: Ajuda externa, segurança humana, política externa japonesa


 

 

Introdução

A partir do final da Guerra Fria, o tradicional conceito de segurança passou por uma onda de contestações. A disciplina das Relações Internacionais, alicerçada nos marcos da paz e da guerra, foi constituída nos anos que sucederam a Primeira Guerra Mundial com a preocupação de encontrar meios para evitar a guerra. Após um breve período de idealismo em torno da paz, ganharam espaço na disciplina as perspectivas focadas na sobrevivência do Estado frente às ameaças externas. A segurança internacional permaneceu um longo período sob o predomínio dessa linha de raciocínio, o que acabou proporcionando uma forte ligação entre segurança internacional e segurança nacional. Dessa forma, o objeto de estudo da segurança internacional esteve durante muito tempo vinculado à segurança nacional, à integridade territorial, à soberania.

O pós Guerra Fria apresentou uma situação favorável para a formação de um novo conceito no âmbito dos estudos de segurança internacional, o conceito de segurança humana. O objeto de referência para a segurança humana não é o Estado, mas o ser humano enquanto indivíduo. Esse ponto é consensual entre aqueles que trabalham com a segurança humana. Os problemas emergem na definição das ameaças das quais devem ser protegidos os indivíduos. A definição proposta pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no "Human Development Report" de 1994 é a mais utilizada, mas não é a única. O problema está no fato de que as ameaças que formam o objeto de estudo da segurança humana são muitas e de diversas naturezas. Esse fator acaba por tornar a segurança humana inoperável como um conceito para programas de pesquisa. O conceito é muito vago, e acaba por não oferecer um modelo de análise operável.

As naturezas das ameaças elencadas são quase que consensualmente políticas, econômicas, militares, sociais e ambientais. Dentre essas naturezas, são colocadas as mais diversas ameaças: pobreza, doenças, fome, desemprego, crime, tráfico de drogas, conflitos sociais, repressão política, violência, desastres ambientais entre outras coisas que afligem a dignidade humana. É notável a relação de muitas dessas ameaças com as questões do desenvolvimento. O desenvolvimento previne os indivíduos de grande parte dessas ameaças. Com isso, observamos uma relação muito forte entre o conceito de segurança humana e o conceito de desenvolvimento humano também trabalhado pelo PNUD.

Dessa forma, a cooperação internacional para o desenvolvimento se apresenta como fundamental para a implementação da segurança humana, e a ajuda externa é colocada como uma importante ferramenta para tal. Por meio da ajuda, os países desenvolvidos podem prover os países receptores dos meios necessários ao seu desenvolvimento. Nesse contexto, o Japão exerce um papel de grande importância, destacando-se como um dos principais fornecedores de assistência oficial para o desenvolvimento (ODA). Durante toda a década de 1990 o Japão despontou como o principal fornecedor de ODA, incorporando o conceito de segurança humana na sua linha de conduta internacional. Porém, por meio da ajuda, os países podem buscar interesses específicos paradoxalmente contrários aos fins alardeados em prol da segurança humana. Enquanto na segurança humana o indivíduo é colocado como objeto de referência, a ajuda externa pode apresentar motivações estritamente ligadas ao Estado, como a promoção de sua reputação internacional.

Nessa lógica, faremos uma discussão em torno do conceito de segurança humana levando em conta suas definições com todas as suas ambigüidades, que acabam por gerar as complicações que se apresentam tanto para os pesquisadores como para os formuladores de políticas. Como observaremos, para os formuladores não chega a ser exatamente um problema, servindo até mesmo para determinados fins. Posteriormente desenvolvemos uma discussão sobre a relação entre a segurança humana e o desenvolvimento, apresentando a ajuda externa como uma importante ferramenta para a promoção do desenvolvimento e para a prevenção das ameaças que afligem os indivíduos. Com isso, pretende-se discutir como o conceito de segurança humana é incorporado na política externa japonesa.

 

O conceito de segurança humana

Os debates acadêmicos em torno do conceito de segurança apresentaram nos últimos anos intensas discussões em torno de seus paradigmas. Tradicionalmente, a segurança é observada pelas lentes da segurança militar. Sheehan (2004) aponta que essa associação ocorre pelo próprio caráter teórico que marcou a disciplina das relações internacionais ao longo do século XX. O autor coloca que o longo período de domínio realista no século XX, com a sua lógica de que o Estado é o único (ou mais importante) ator nas relações internacionais, contribuiu para a percepção de que a segurança a ser promovida é a segurança do Estado frente às ameaças externas. King e Murray (2001) acrescentam:

The traditional view of security has focused on using the military to ensure the territorial integrity of sovereign states. Security studies and the security establishment have long been focused on foreign and defense policy mechanisms to avoid, prevent, and if need be win interstate military disputes. (KING & MURRAY, 2001, p. 588)

Durante a década de 1990, essa lógica sofreu um intenso questionamento de caráter ontológico. A segurança do Estado, que predominou nos estudos de segurança internacional, passa a ser observada como um ponto num plano ou escala que vai do individual ao global. Buzan e Wæver (2009) trabalham essa questão. Dentro da idéia de um plano ou de uma escala, os autores colocam no nível mais alto o global, trabalhando a idéia de uma análise sistêmica desenvolvendo os conceitos de macrosecuritização e constelações de segurança.

Essa escala que passa pelo nível do Estado e culmina no global possuí um começo, um nível de análise mais baixo. Nesse nível de análise temos o indivíduo, o ser humano como objeto de referência para os estudos de segurança. Apesar de não avançar na questão do indivíduo, os autores forneceram certo instrumental teórico para tal ao abandonar a idéia de que os estudos de segurança são exclusivamente os estudos sobre a guerra. Buzan, Wæver e Wilde (1998) registram que ao falarmos de segurança, falamos de sobrevivência. A sobrevivência de determinado objeto de referência pode sofrer ameaças, sendo que a existência dessas ameaças exige ou legitima medidas extraordinárias, medidas de segurança. Buzan, Wæver e Wilde (1998) elencam cinco distintas modalidades de ameaças: as militares, as políticas, as econômicas, as sociais e as ambientais.

Emma Rothschild (1995) demonstra a importância dos cerimoniais e processos de reconstrução após grandes conflitos internacionais para os princípios e definições de segurança. A autora escreve que o final da Guerra Fria proporcionou grandes mudanças nas definições de segurança. Esse momento proporcionou a ascensão da segurança dos indivíduos ao nível de um objeto de política internacional. Nessa onda surgem novos conceitos, como "segurança comum" e "segurança humana". King e Murray (2001) reforçam essa idéia colocando que o colapso da União Soviética, a redução das ameaças de uma guerra entre os grandes poderes e os supostos dividendos da paz levaram a uma abertura para novos temas que deveriam ser abarcados pelos estudos de segurança. King e Murray (2002), tendo em vista essa ebulição que envolveu os estudos de segurança no pós Guerra Fria, colocam:

These debates led to calls to consider security from a global perspective rather than only from the perspective of individual nations and the idea of common security. More recently, writers have settled on the phrase human security to emphasize the people-centered aspect of these efforts. The argument of human security in the security literature captured the view that the focus of security studies should shift from the state to the individual and should encompass military as well as nonmilitary threats. (KING & MURRAY, 2002, p. 588-589)

É nessa conjuntura da década de 1990 que, em 1994 para ser mais específico, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) trabalha o conceito de segurança humana. Com a supervisão de Mahbub ul Haq, o PNUD publicou no Human Development Report de 1994 um capítulo onde foi registrado que o conceito de segurança foi durante muito tempo interpretado de forma restrita: mais relacionada à segurança dos Estados do que à das pessoas (UNDP, 1994, p. 22). Essa perspectiva acaba por ignorar outras dimensões de grande importância que antes não recebiam atenção nos estudos de segurança.

Forgotten were the legitimate concerns of ordinary people who sought security in their daily lives. For many of them, security symbolized protection from the threat of disease, hunger, unemployment, crime, social conflict, political repression and environment hazards. (UNDP, 1994, p. 22)

Com essa perspectiva o PNUD traça uma nova definição para o conceito, estabelecendo o conceito de segurança humana. De acordo com o relatório de 1994, a segurança humana não tem como preocupação as armas, seu foco está na vida e na dignidade humana. O relatório define esse novo conceito da seguinte forma:

Human security can be said to have two main aspects. It means, first, safety from such chronic threats as hunger, disease and repression. And second, it means protection from sudden and hurtful disruptions in the patterns of daily life - whether in homes, in jobs, or in communities. Such threats can exist at all levels of national income and development. (UNDP, 1994, p. 23)

O conceito é interpretado como universal, sendo relacionado às pessoas em todos os lugares do planeta. "When human security is under threat anywhere, it can affect people everywhere." (UNDP, 1994, p. 34). As ameaças que afligem a segurança humana, de acordo com o PNUD (1994), podem ter sua origem nas forças da natureza ou no próprio homem. O homem é visto como a própria ameaça nos casos de escolhas políticas erradas. Aqui acabamos por adentrar num campo de grande litígio dos debates teóricos das relações internacionais. O que é uma escolha política errada? E quem define o que é certo ou errado num mundo onde não são poucas ou pequenas as diferenças sociais e culturais? Essa é uma das grandes complicações geradas pela universalização de conceitos.

O relatório coloca que muitas são as ameaças que afligem a segurança humana, mas que sete principais categorias podem ser consideradas: segurança econômica, segurança alimentar, segurança médica, segurança ambiental, segurança pessoal, segurança comunitária e segurança política (UNDP, 1994).

É assim estabelecida uma nova idéia sobre o conceito de segurança. Um fator é consenso entre os autores que trabalham o conceito academicamente e os formuladores de políticas para a segurança humana: trata-se da segurança e do bem estar dos indivíduos, e não mais do Estado como nos estudos tradicionais de segurança. Porém, o consenso termina por aí. Como foi possível observar no trecho acima, o marco conceitual estabelecido pelo Human Development Report de 1994 é bastante amplo e demasiadamente abrangente. Se levarmos em conta todas as ameaças que afligem a segurança dos indivíduos o conceito acabaria por mostrar-se inoperável. Diversas são as fontes de ameaças para a segurança humana: sociais, econômicas, políticas, ambientais, militares. Sendo que no interior dessas fontes, as ameaças são ainda subdivididas. Essa abrangência acaba por se tornar um grande desafio para a consolidação do conceito de segurança humana. Enquanto o tradicional marco teórico dos estudos de segurança de cunho estatocêntrico está solidamente construído e consolidado, o mesmo não se pode dizer da segurança humana.

Como foi registrado, o grande problema do conceito de segurança é a sua abrangência que acaba por gerar ambigüidade. King e Murray (2001) colocam que as definições propostas para o conceito de segurança são criticadas justamente por esse motivo: "by trying to encompass everithing, they wound up not meaning anything" (2001, p. 593). Paris acrescenta: "if human security is all these things, what is not?" (2001, p. 92).

De acordo com Paris, dois são os problemas principais que dificultam a utilização do conceito tanto pelos estudiosos como pelos formuladores da política internacional. Primeiro, como já foi salientado, o conceito carece de uma definição precisa. As definições existentes são demasiadamente vagas e abrangentes, abrigando tudo aquilo que se coloca entre a segurança física e o bem estar psicológico. Isso implica em imensas dificuldades tanto para os formuladores de políticas como para os pesquisadores, pois não há como definir com exatidão tanto as políticas a serem priorizadas como aquilo que deve ser estudado. Segundo, os principais promotores da segurança humana aparentam possuir interesse na manutenção dessa imprecisão que paira sobre o conceito. Para Paris (2001), tal interesse existe porque esse impreciso conceito de segurança humana é o elemento que permite a formação de uma coalizão desordenada entre Estados de "poder médio", agências para o desenvolvimento e organizações não-governamentais (ONGs). A coalizão é desordenada porque envolve os mais diversos interesses, e esses interesses se tornam compatíveis justamente em razão da falta de precisão que envolve a segurança humana. Dessa forma, Paris coloca que esses atores podem somar forças no esforço de desviar os recursos das questões convencionais de segurança para as questões do desenvolvimento internacional.

Paris menciona a existência de tentativas para prover de maior precisão o conceito de segurança, e aqui dialoga diretamente com King e Murray (2001). Os autores colocam que:

For our definition, we include in human security only those domains of well-being that are essential or extremely important. We do not pretend to have a unique way to put this normative concept into operation. However, we think that one helpful approach may be to include only those domains of well-being that have been important enough for human beings to fight over or to put their lives or properties at great risk. (KING & MURRAY, 2001, p. 593)

Com isso, levando em conta aquilo pelo que é importante o suficiente para lutar e para arriscar vidas ou propriedades, os autores elencam cinco indicadores principais para o bem estar: pobreza, saúde, educação, liberdade política e democracia. Como a segurança humana é baseada nos riscos de severas privações, King e Murray (2001) colocam que a pobreza é um indicador chave. Geralmente, a pobreza é definida em termos de renda, por isso, os autores utilizam como subsídio uma literatura que define a pobreza com maior abrangência, envolvendo a privação de qualquer competência básica. Os autores enfatizam que o seu objetivo é tratar da segurança das pessoas independentemente de sua localização, na lógica do pertencimento a uma comunidade global de forma que aquilo que seja considerado como digno para um seja assim considerado para todos.

Ao trabalhar nessa lapidação da segurança humana os autores atingem certo sucesso na tentativa de limitar o conceito. Paris (2001) nota que essa limitação acaba por prover o conceito dos artifícios necessários para trabalhá-lo academicamente, pois possibilita a identificação dos fatores que reforçam ou reduzem a segurança dos indivíduos ou grupos particulares. Dessa forma, a segurança humana se torna um conceito trabalhável analiticamente. Porém, nota também que com isso emerge outro problema. Para obter tal resultado, os autores são compelidos a prover de maior importância determinados valores. Paris coloca que esse é um fator complicador primeiro porque o consenso em torno do significado de segurança humana é muito minguado. Diferentes valores podem receber distintos tratamentos de diferentes pesquisadores. Segundo porque mitiga a ambigüidade do conceito. Com a ambigüidade mitigada, o conceito perde a função de elemento que possibilita a coalizão desordenada mencionada anteriormente. Por essa razão, não há interesse por parte de importantes atores para a segurança humana na melhor definição do conceito. Um conceito melhor definido acabaria por agravar as diferenças entre os interesses amontoados no contexto de uma coalizão construída justamente sobre as bases da ambigüidade. O agravamento das diferenças levaria ao enfraquecimento da coalizão como um todo.

O Human Security Centre, no "Human security report" de 2005, coloca que todos concordam que o objetivo prioritário da segurança humana é a proteção dos indivíduos. Mas coloca que esse consenso não existe na identificação das ameaças das quais devem ser protegidos os indivíduos. E nessa falta de consenso o relatório identifica dois grupos. Um propõe uma definição estreita, com foco nas ameaças da violência. O outro propõe uma definição mais abrangente, incluindo entre as ameaças a fome, as doenças, os desastres naturais, a insegurança econômica e as ameaças à dignidade humana.

O relatório concentra seu foco no conceito mais estreito e menciona dois motivos. Primeiro, porque já existem diversos relatórios anuais com análises sobre as ameaças trabalhadas pelo conceito mais abrangente. O segundo motivo é metodológico: "a concept that lumps together threats as diverse as genocide and affronts to personal dignity may be useful for advocacy, but it has limited utility for policy analysis" (HUMAN SECURITY CENTRE, 2005, p. VIII). É por esse mesmo segundo motivo que o relatório justifica a ausência do conceito de segurança humana articulado pelo "Human Development Report" de 1994 do PNUD nos programas de pesquisa acadêmicos. O "Human security report" de 2005 coloca que o debate é uma parte inerente à evolução de novos conceitos na academia, mas acrescenta que esse debate é de pouco interesse por parte dos formuladores de política. No entanto, é registrado que o conceito de segurança humana está cada vez mais sendo utilizado pela comunidade política, pois proporciona uma inter-relação entre segurança, desenvolvimento e proteção aos civis (HUMAN SECURITY CENTRE, 2005). Aqui podemos construir uma ponte com as idéias apresentadas por Paris (2001) mencionadas anteriormente. A imprecisão do conceito apresenta condições favoráveis a certos interesses.

Com toda essa névoa que envolve a definição do conceito de segurança humana, imensas dificuldades obstruem a sua utilização, pois não oferece um modelo de análise consistente tanto para a pesquisa acadêmica strito sensu como para a formulação de políticas. Mas como é possível observar, esses entraves não impedem a sua utilização no meio prático da formulação de políticas, sendo que talvez nesse caso o efeito seja o inverso. Como solução para a utilização do conceito na academia, Paris (2001) sugere a utilização da segurança humana como uma categoria dentro da qual seriam contextualizadas as ameaças não militares que afligem as sociedades, os grupos e os indivíduos. Essa categoria seria um contraste à outra categoria, a categoria que abarca as perspectivas mais tradicionais com foco na proteção dos Estados frente às ameaças externas.

 

Segurança e desenvolvimento

A segurança humana abrange diversas modalidades de ameaças, sendo que algumas delas estão diretamente relacionadas ao desenvolvimento. Ameaças provenientes da pobreza, da fome, da saúde e da educação são fatores de desenvolvimento. O "Human Development Report" de 1994 ressalta essa conexão, mas atenta para o fato de que a segurança humana não deve ser confundida com o desenvolvimento humano. Os autores do relatório colocam que o desenvolvimento humano está relacionado ao processo de expansão das possibilidades de escolhas dos indivíduos. O "Human Development Report" de 1990 define o conceito de desenvolvimento humano da seguinte forma:

Human development is a process of enlarging people's choices. The most critical ones are to lead a long and healthy life, to be educated and to enjoy a decent standard of living. Additional choices include political freedom, guaranteed human rights and self-respect. (UNDP, 1990, p. 10)

A segurança humana, por outro lado, implica no fator que possibilita aos indivíduos o exercício de suas escolhas de forma segura e livre. Implica também num fator que torna as pessoas relativamente seguras de que as oportunidades que existem hoje não estarão totalmente perdidas amanhã (UNDP, 1994).

Portanto, segurança humana e desenvolvimento humano são coisas diferentes. Mas estão estritamente relacionadas. E essa relação é evidente:

There is, of course, a link between human security and human development: progress in one area enhances the chances of progress in the other. But failure in one area also heightens the risk of failure in the other, and history is replete with examples. (UNDP, 1994, p. 23)

O que podemos observar aqui é que a cooperação internacional para o desenvolvimento se mostra como um instrumento de grande importância para a manutenção da segurança humana. Cabe ressaltar que segurança humana consiste em um conceito recente, mas já no período que sucedeu a Segunda Guerra Mundial podemos observar idéias de correlação entre segurança e desenvolvimento. Könz (1994) e Soares (1994) indicam que o baixo nível de desenvolvimento dos Estados menos favorecidos, decorrente dos processos de descolonização e emancipação do pós Segunda Guerra Mundial, passaram a ser foco de grande preocupação dos países desenvolvidos. Essa preocupação criou condições para o desenvolvimento da cooperação internacional com vistas ao desenvolvimento. Amorim (1994) aponta que o atraso estrutural da América Latina e o deslocamento dos focos de tensão do centro desenvolvido para a periferia fortaleceram o viés desenvolvimentista da cooperação internacional.

O "Human Development Report" de 1994 coloca que as novas demandas da segurança humana geram a necessidade de um novo modelo de cooperação internacional, uma renovação das relações entre norte e sul (UNDP, 1994). Nesse ponto o relatório reitera a importância do papel da ajuda externa, da Assistência Oficial para o Desenvolvimento (ODA) para a cooperação internacional para o desenvolvimento. Baru (1998) coloca que as iniciativas para a diminuição da desigualdade no interior das nações devem ser empenhadas no esforço para a diminuição da desigualdade entre as nações. Porém, relembra as manifestações de Mahbub ul Haq de que as economias industriais falharam no compromisso assumido frente à Organização das Nações Unidas (ONU) de destinar 0,7% de seu PIB para a ajuda externa. A média entre os principais fornecedores de ODA é de 0,3%.

Ao trabalhar a relação entre desenvolvimento e segurança, Pureza coloca que "como tecnologia de uma biopolítica global [...], a segurança humana situa-se na convergência de dois componentes essenciais: um componente de desenvolvimento e um componente de segurança" (2009, p. 30). O componente do desenvolvimento é interpretado da seguinte forma:

[...] o subdesenvolvimento é uma ameaça e, por isso mesmo, a grande interpelação trazida pela nova noção é a de securitização do desenvolvimento. Esse é o sentido dominantemente apontado para as políticas de capacity building, envolvendo, necessariamente, o primado político da prevenção de conflitos, da assistência humanitária in situ, da utilização da ajuda ao desenvolvimento como mecanismo da gestão de equilíbrios entre os diferentes grupos. (PUREZA, 2009, p. 30)

Já naquilo que toca o componente da segurança, o autor recorre ao sentido estrito da segurança:

[...] em relação ao componente de segurança, temos de tomá-lo em seu sentido estrito, ou seja, a assunção do horizonte normativo da responsabilidade de proteger as pessoas tendo, portanto, como objetivo estratégico, dar aos Estados, a todos os Estados, a capacidade efetiva de, in loco, criarem condições para que as pessoas sob a sua jurisdição sintam-se dia a dia seguras. (PUREZA, 2009, p. 30)

Observamos dessa forma um processo que podemos chamar de securitização do desenvolvimento. Pureza (2009) atenta para o fato de que essas idéias, e podemos acrescentar aqui a questão da universalização dos valores englobados pela segurança humana, favorecem o incremento do intervencionismo internacional. Mas não alongaremos aqui as discussões nesse sentido.

As ameaças à segurança humana podem ser combatidas, mas podem ser também prevenidas. Nessa lógica inserimos a cooperação internacional para o desenvolvimento. O fornecimento de ajuda externa para o desenvolvimento por parte dos países desenvolvidos apresenta a potencialidade de propiciar aos países em desenvolvimento a prevenção frente a tais ameaças. A ajuda externa é uma ferramenta que pode ser utilizada para a prevenção de ameaças que afligem o ser humano. De acordo com essas idéias, o Japão promove o conceito de segurança humana ocupando importante papel dentre os principais fornecedores de assistência para o desenvolvimento.

 

A segurança humana na política externa japonesa

Discutido o conceito de segurança humana, cabe agora observar como é inserido no contexto da política externa japonesa, já que de acordo com Akiyama (2004) o governo do Japão é um dos mais entusiastas promotores da segurança humana. No final da década de 1980 e início da década de 1990 especulava-se sobre os rumos que tomariam as relações internacionais. O colapso da União Soviética implicava em mudanças, e apontava-se para um papel de grande importância a ser assumido pelo Japão. Após um longo período de crescimento econômico que remontava aos anos da reconstrução posterior à Segunda Guerra Mundial o Japão apresentava-se ao mundo como a segunda maior economia e maior credor do globo, impressionando o mundo com o notável avanço tecnológico. Aventou-se no período até mesmo a possibilidade de um novo conflito entre Japão e Estados Unidos, uma nova Guerra do Pacífico em razão de interesses conflitantes.

Nesse período, a academia apontava duas posturas distintas que poderiam vir a ser adotadas pelo Japão: assumir o papel de um Estado pacífico com atuação internacional economicista ou buscar uma posição de liderança assumindo maior responsabilidade na manutenção da segurança, o que deveria ser acompanhado pela flexibilização dos constrangimentos aos recursos militares japoneses. Essa última linha de atuação sofre rígidos constrangimentos, pois desde o final da Segunda Guerra Mundial o Japão possui restrições naquilo que concerne ao seu exercício militar. Com a sua capitulação em 1945 foram impostas limitações ao orçamento e às manobras militares, restringindo a capacidade de defesa japonesa que veio a ser assegurada pelos Estados Unidos no âmbito da Guerra Fria. O marco legal dessa restrição é o Artigo 9º da Constituição japonesa. Em razão desses fatores, a busca por uma posição de liderança no plano internacional deveria ser acompanhada por uma flexibilização dessas restrições.

A postura de um Estado pacífico, por outro lado, é compatível aos traços pacifistas da Constituição japonesa. Consiste numa atuação internacional pacifista calcada numa política externa de cooperação entre as nações e de cunho economicista, característica marcante da atuação internacional japonesa ao longo de toda a segunda metade do século XX. Os anos se passaram e o Japão não assumiu o papel especulado na virada dos anos 1980 para os anos 1990. Uehara (2003) aponta como uma das causas para isso o foco economicista, pois com interesses econômicos e comerciais o país evitava tomar posições firmes no plano internacional. Evitando gerar atritos que eventualmente poderiam mitigar oportunidades econômicas, o Japão evitou confrontos diretos no plano internacional.

Na primeira década do século XXI a postura japonesa continuou da mesma forma que se encontrava na década de 1990, ao não assumir o papel especulado no final dos anos 1980. A situação foi agravada pela estagnação econômica dos anos 1990. Ou seja, as posturas desenhadas permaneceram latentes no debate político japonês sem a escolha definitiva por uma das duas. Alguns advogam pela remilitarização, outros pelo pacifismo. Movimentos nas duas direções podem ser observados no plano doméstico japonês. De um lado, temos a flexibilização dos constrangimentos aos recursos militares. De outro lado, a atuação na cooperação internacional para o desenvolvimento. É nessa lógica que podemos observar o papel da segurança humana na política externa japonesa.

A promoção da segurança humana no plano internacional é utilizada pelo Japão e instrumentalizada de acordo com a lógica de uma postura pacifista, calcada numa política externa de cooperação entre as nações. Nesse âmbito, a Assistência Oficial para o Desenvolvimento (ODA) é uma ferramenta de grande importância, enfatizando o conceito de desenvolvimento humano. Dessa forma, qual a finalidade da promoção da segurança humana? Qual a finalidade da oferta de ajuda externa? Discutindo a natureza da ajuda externa, Peterson (2004) interpreta o fenômeno como uma obrigação moral dos países desenvolvidos para com os países em desenvolvimento. Na lógica do autor, se estiver ao alcance de um determinado Estado fornecer assistência a outros Estados com a finalidade de prevenir a ocorrência de um mau que pode ser evitado, não há porque não fazê-lo, e tal ação se coloca como uma obrigação moral. Essa idéia é plenamente compatível com o conceito de segurança humana, pois a ajuda aparece como um meio para o combate das ameaças compreendidas pelo conceito.

Não trabalhamos aqui com a hipótese de que o Japão promove a segurança humana e fornece ajuda externa em razão de uma postura altruísta. Existem motivações e interesses que sustentam essa linha de atuação na sua política externa. Porém, essas motivações e interesses não são claros, o que proporciona a sensação de benevolência e altruísmo. Em suma, não existe realmente um interesse específico. "With the promotion of human security in its foreign policy, the Japanese government did not intend to realize any specific (or concrete) national interests in bilateral or multilateral diplomacy vis-à-vis other states" (AKIYAMA, 2004, p. 257).

Qual seria então a sua finalidade? Os resultados visados pelos Japoneses não são específicos ou concretos como colocou o autor citado acima. A idéia consiste sobremaneira em prover o Japão de importância política no plano internacional. Como colocamos, a atuação internacional japonesa pelas vias tradicionais (forças militares) é limitada, o que acaba por restringir a importância política japonesa nas relações internacionais. Através da promoção da segurança humana e da oferta de ajuda externa os japoneses buscam suprir lacunas nas suas contribuições para a segurança internacional oriundas da carência de ferramentas tradicionais de segurança, ou seja, militares. A ajuda externa contribui também para alavancar a reputação do Japão no plano internacional, e assim o seu poderio econômico é instrumentalizado com uma finalidade política. Dessa forma, a ajuda fornecida nos termos da segurança humana possui uma finalidade simbólica, proporcionando maior peso político ao Japão.

O conceito japonês de segurança humana está contextualizado naquilo que já foi debatido nos trechos anteriores.  Apresentado no Diplomatic Bluebook de 2003 como um eixo central da política externa japonesa, o conceito foi colocado como tendo uma perspectiva centralizada no ser humano, no indivíduo (JAPÃO, 2003). E dentro da promoção da segurança humana, o foco japonês está em proporcionar ao indivíduo uma vida digna, criando as condições necessárias para que possa desenvolver plenamente suas capacidades. A conseqüência dessas ações seria o desenvolvimento econômico.

Portanto, a promoção da segurança humana é um item de grande importância na agenda da política externa japonesa. Enquanto o Japão reforça suas contribuições para a manutenção da paz e da segurança por meio da ajuda externa, busca também a promoção de sua reputação no plano internacional. Com isso, coloca-se como um dos principais promotores da segurança humana no âmbito global, já que com isso alavanca a importância de sua linha de atuação. Um conceito que enfatiza a segurança do ser humano enquanto indivíduo acaba por possuir seu fim no Estado, como nos estudos tradicionais de segurança.

 

Considerações

O grande desafio que se colocou para o recente avanço do conceito de segurança humana foi a sua ambigüidade e a sua exagerada abrangência. No entanto, essa mesma ambigüidade que limitou o avanço do conceito no plano acadêmico - em razão da escassez de artifícios necessários para trabalhá-lo analiticamente - favoreceu sua intensa utilização pelos promotores da segurança humana, que de acordo com Paris (2001), formam uma coalizão que reúne os mais diversos interesses. Essa união de interesses altamente diversificados só é possível em razão da tal ambigüidade. Como coloca Paris: "These actors have in effect pursued a political strategy of 'appropriating' the term 'security', which conveys urgency, demands public attention, and commands governmental resources" (2001, p. 95).

Pureza (2009) acrescenta que essa ambigüidade e a exagerada abrangência do conceito de segurança humana:

[...] facilitou o seu uso como instrumento de conquista de um capital de especialização no jogo diplomático internacional - vejam-se os casos do Canadá, do Japão, da Áustria ou da Noruega - sem que isso, em algum momento, tenha significado a modificação dos business-as-usual de suas opções políticas fundamentais. (PUREZA, 2009, p. 33)

Pureza vai além:

[...] a exigência transformadora da segurança humana foi, em grande medida, cooptada pela agenda dos poderes hegemônicos, vindo a integrar, como componente de soft power, a paleta de tecnologias de controle social segundo uma lógica de inspiração liberal protagonizada na periferia do sistema mundo por articulações heteróclitas entre os Estados, empresas e organizações não-governamentais. (PUREZA, 2009, p. 33)

Como colocamos, não trabalhamos aqui com a hipótese de que a ajuda externa, importante ferramenta no âmbito da segurança humana, seja oriunda de posturas altruístas ou obrigações morais. A ajuda externa japonesa decorre de interesses e motivações, apesar de esses não aparecerem claramente. Fornecida em prol do desenvolvimento e da prevenção de ameaças legitimadas pelo guarda-chuva da segurança humana, a ação acaba apresentando características que possuem maior compatibilidade com as perspectivas mais tradicionais da disciplina das relações internacionais. Pois, de certa forma, retornamos ao Estado como objeto de referência. Trata-se de uma ação do Estado que possuí no Estado os seus fins. Os esforços da ajuda externa podem ser pelas potências econômicas direcionados à formação do espectro de um poder simbólico que proporcione maior peso político no jogo das relações internacionais.

 

REFERÊNCIAS

AKIYAMA, Nobumasa. Human security at the crossroad: human security in the Japanese foreign policy context. In: SHINODA, Hideaki; JEONG, How-Won. Conflict and human security: a search for new approaches of peace-building. Hiroshima: IPHSU Research Report Series, 2004. p. 252-270.

AMORIM, Celso Luiz Nunes. Perspectivas da cooperação internacional. In: MARCOVITCH, Jacques (Org.). Cooperação internacional:estratégia e gestão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. p. 149-163.

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* Área temática: Segurança Internacional