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ISBN 2236-7381 versión impresa

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Conflito internacional sobre recursos hídricos - uma análise quantitativa*

 

 

Leticia Caroline Barche Tatemoto

Mestre em Relações Internacionais - PUC Minas

 

 


RESUMO

O trabalho apresenta uma investigação quantitativa sobre conflitos internacionais por recursos hídricos, com os resultados de uma pesquisa diagnóstica amostral explorando 71 bacias hidrográficas internacionais escolhidas aleatoriamente. Entre as bacias da amostra, para aquelas nas quais se verificou a presença de conflito ou cooperação entre os países compartilhadores de águas,  foram analisados  o papel da escassez, dos recursos de poder, do acesso a recursos da bacia a partir da localização em relação ao fluxo das águas, e do número de países envolvidos frente à existência de conflito, ao grau de conflito, e à existência de tratados de cooperação.  Os resultados da pesquisa sinalizam que as relações entre países que compartilham bacias hidrográficas transfronteiriças são preponderantemente cooperativas, que conflitos são fenômenos restritos a situações particulares, e que escassez de água, significativa heterogeneidade quanto a recursos de poder, e divisão das bacias entre um maior número de países são fatores que aumentam a probabilidade de conflito.

Palavras-chave: conflito internacional; recursos hídricos transfronteiriços; cooperação


 

 

Como podem mudanças ambientais levar a conflito agudo? Alguns especialistas propõem que mudanças ambientais podem deslocar o balanço de poder entre Estados seja regionalmente ou globalmente, produzindo instabilidades que poderiam levar à guerra. (HOMER-DIXON, 1991, p. 76, versão livre)1

Uma afirmação como a de Homer-Dixon baseia-se no entendimento de que recursos ambientais não são estáticos, uma vez que podem ser transformados por atividades humanas e, mais ainda, dele dependem muitas das condições que mantêm essas atividades e a estabilidade internacional. Atualmente, a discussão acerca dos recursos hídricos tem ganhado bastante destaque, em conjunto com as mudanças climáticas. No entanto, mesmo no início da década de 1990, quando os possíveis efeitos das mudanças climáticas sobre os recursos hídricos ainda não eram conhecidos, a água já era objeto de grande preocupação.

A água doce, como os demais recursos da superfície do planeta, se distribui de forma desigual pelos territórios dos diversos países. E, em muitos casos, essa distribuição acontece de forma alheia a fronteiras. Rios correm no fluxo de seus leitos, atravessando fronteiras políticas. Se dois ou mais países dependem de rios transfronteiriços para obter sua água, tem-se um problema de política internacional. Quando a população de dois ou mais países depende dos recursos de uma mesma bacia, a conseqüência mais imediata é que tais países se tornam interdependentes. E, dado o número e a distribuição das bacias transfronteiriças, o nível de interdependência em relação a recursos hídricos no planeta é bastante alto.

As bacias hidrográficas internacionais - represas ou reservas, incluindo lagos e lençóis de água subterrânea pouco  profundos,  partilhados por mais de um país - cobrem quase metade da superfície terrestre. Duas em cada cinco pessoas no mundo vivem atualmente nestas bacias hidrográficas, que também são responsáveis por 60% do total de caudais fluviais. [...] Em 1978, havia 214 bacias hidrográficas internacionais. Hoje, existem 263. A profunda interdependência que estes números sugerem fica patente na quantidade de países situados em bacias hidrográficas partilhadas - 145 ao todo, englobando mais de 90% da população mundial. Mais de 30 países estão integralmente situados dentro dos limites de bacias transfronteiriças. (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO, 2006, p. 205)

Quando tais rios se encontram em regiões com especial importância geopolítica, como o Oriente Médio, o problema torna-se ainda mais claramente uma questão de segurança. Mas as questões de segurança normalmente são pensadas como "tudo ou nada". No caso das águas transfronteiriças, é difícil conceber uma situação de total bloqueio do fluxo de águas por parte de um país. As relações entre países sobre os rios que compartilham são preponderantemente problemas de distribuição de benefícios - ou, águas.

O presente trabalho representa um esforço para a compreensão da real situação dos Estados compartilhadores de recursos hídricos. Seria essa situação tão conflitiva quanto supõem os que entendem a água como questão de sobrevivência nacional, ou há espaço e disposição política para cooperar em relação às águas transfronteiriças? A água, principalmente quanto escassa, é sem dúvida um recurso de poder. É preciso compreender, então, como o acesso a este específico recurso de poder se contrapõe aos recursos tradicionais das relações internacionais, ou, em que medida o acesso a água altera as relações de poder entre compartilhadores de recursos hídricos.

A maior parte dos recursos de água doce não é estática. Mesmo os lagos dependem de novos fluxos de água para reposição. Além da distribuição geograficamente desigual, outro aspecto físico fundamental para a análise das bacias transfronteiriças é o sentido dos fluxos d'água. A água flui da nascente - ou montante - para a foz - ou jusante. Se o(s) Estado(s) a jusante recebem o volume total de águas do rio descontado o volume utilizado pelo(s) Estado(s) a montante, recebem também todas as alterações causadas nesta água. Essas alterações são as chamadas externalidades, ou seja, conseqüências não intencionais de atividades que ocorrem no território de um país e que são sentidas em outro(s). Uma bacia hidrográfica, via de regra, é formada por um rio principal e diversos afluentes ou tributários, que podem ter maior ou menor importância para o volume total de águas. Em muitos casos, um país pode ter parte de uma bacia transfronteiriça em seu território, mas não ter acesso ao curso d'água principal. Ainda assim, tal país não pode deixar de ser considerado como parte do conjunto porque, como provedor de águas para o fluxo principal, ele pode ser também um causador de externalidades.

A gestão destes conjuntos não-estáticos de recursos por dois ou mais "proprietários", os Estados, é freqüentemente problemática. Para a compreensão de tal gestão pode-se propor a contraposição entre os recursos de poder gerados pela distribuição geográfica das bacias hidrográficas e as capabilities conforme são pensados pelas teorias tradicionais das Relações Internacionais. O fato de o Estado com maior concentração de capabilities na bacia situar-se próximo à nascente ou foz do curso principal interfere nas relações de cooperação ou conflito entre os países?

Entre as 263 bacias hidrográficas transfronteiriças identificadas no planeta (PROGRAMA DAS NAÇÕS UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO,2006), uma amostra de 71 bacias foi selecionada aleatoriamente para este trabalho. A partir desta amostra, foram sistematizados dados sobre: a) número de países e porcentagem da área da bacia nos mesmos (PROGRAM IN WATER CONFLICT MANAGEMENT AND TRANSFORMATION, 2002); b) presença de tratados internacionais ligados ao compartilhamento dos recursos da bacia, (PROGRAM IN WATER CONFLICT MANAGEMENT AND TRANSFORMATION, 2007); c) ocorrência de conflito2 sobre os recursos da bacia, (PROGRAM IN WATER CONFLICT MANAGEMENT AND TRANSFORMATION, 2008); d) localização dos países em relação ao fluxo dos rios, a partir de mapas hidrográficos. Assim, entre as bacias para as quais se verifica a existência de tratados ou conflitos, os seguintes dados sobre os países compartilhadores foram sistematizados: e) Produto Interno Bruto - PIB; f) PIB per capita; g) população; h) extensão territorial; i) homens capazes para o serviço militar (CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY, 2009); j) gasto militar (STOCKHOLM INTERNATIONAL PEACE RESEARCH INSTITUTE,2009); l) porcentagem do território sob stress hídrico (JAY EMERSON ET AL, 2010).

PIB per capita, população, extensão territorial, gasto militar e homens capazes para o serviço militar são um conjunto de variáveis capaz de expressar as capabilities ou recursos de poder em geral. A porcentagem do território sob stress hídrico foi um dado adicionado à pesquisa em um momento posterior, devido a necessidades específicas, que serão mencionadas adiante. Certamente, por se tratar de um estudo quantitativo, a homogeneização dos dados pode gerar problemas de interpretação. No entanto, dado o tamanho da amostra necessária a fim de se conseguir resultados representativos, os limites da pesquisa restringem a possibilidade de refinamento em relação às mudanças históricas ou particularidades regionais, aceitando os dados mais confiáveis e recentes como adequados para o escopo "diagnóstico" da pesquisa.

***

Peter Gleick, em 1995, afirmou que

Há uma longa história de disputas relacionadas á água, de conflitos sobre o acesso a recursos hídricos a ataques intencionais a sistemas de abastecimento durante guerras. A água e os sistemas de abastecimento de água foram as raízes e instrumentos de guerra. O acesso a recursos hídricos compartilhados foi cortado por razões políticas e militares. Fontes de abastecimento de água têm estado entre as metas de expansionismo militar. E as desigualdades no uso da água têm sido a fonte dos atritos e tensões regionais e internacionais. Esses conflitos continuarão - e em alguns locais se tornarão mais intensos - à medida que populações crescentes demandam mais água para o desenvolvimento agrícola, industrial e econômico. (GLEICK, 1995, p.83, versão livre)3

Além de Gleick, outros teóricos e autoridades apontaram para a probabilidade de aumento dos conflitos ligados a recursos hídricos compartilhados. Entre eles, o ex-vice-presidente do Banco Mundial, Ismail Serageldin, que em 1995 afirmou: "Se as guerras deste século foram travadas pelo petróleo, as do próximo serão travadas pela água" (LANGER, 2009, p.1, versão livre4). Em relação à amostra analisada, o primeiro dado relativo à ocorrência de conflitos pode parecer alarmante: entre as 71 bacias da amostra, em 15 foi identificada a ocorrência de conflitos (21,1% dos casos). No entanto, a tendência à cooperação, até o presente, é clara, sendo que em apenas um caso (1,4%) de conflito não existe também um tratado entre os compartilhadores. Trata-se da bacia do Rio Drin, compartilhada por Albânia, Sérvia e Montenegro, e Macedônia. O conflito em questão foi a manifestação de descontentamento com más práticas ambientais. (PROGRAM IN WATER CONFLICT MANAGEMENT AND TRANSFORMATION, 2008)

Sobre os eventos de conflito e cooperação, o banco de dados empregado neste trabalho classifica os eventos catalogados gradualmente de acordo com uma escala que vai de (-7) a (+7), sendo (-7) o equivalente a uma declaração formal de guerra, (+7), a unificação de dois Estados, e (-1), por exemplo, leve expressão verbal de desacordo.

Foram 15 os eventos de conflito identificados na amostra. Entre eles, 66,6% dos casos são de menor gravidade , (-1) e (-2). O caso da bacia do rio Drin, único caso na amostra em que se verifica ocorrência de conflito e onde não há nenhum tratado entre os países da bacia, foi classificado como grau (-1). Três dos cinco eventos de gravidade maior, (-3) a (-5), ocorreram em bacias na Ásia. Em outros continentes os eventos são na Bacia do Prata e na do rio Narva, na fronteira entre Rússia e Estônia. O caso mais grave (-5) é o da Bacia Kura-Araks (Azerbaijão, Irã, Geórgia, Turquia e Rússia), numa região de escassez, poluição e marcantes conflitos entre os Estados. O caso de grau (-4) é o Mar de Aral, de significativa escassez. O último caso, de grau (-3), também na Ásia, é do rio Indo, marcada pelo conflito entre Índia e Paquistão.

Em 66,6% dos casos de conflito de menor gravidade, (-1) e (-2), à exclusão da bacia do rio Drin, o país onde se localiza a maior área da bacia é também o primeiro na hierarquia de capabilities; e em 44,4% das bacias, neste mesmo grupo, o primeiro na hierarquia de capabilities também controla a nascente. Ainda, entre os casos de conflitos de maior gravidade, (-3) a (-5), também existe prevalência de casos em que o primeiro país do grupo na hierarquia de capabilities controla a nascente (60% dos casos) ou a maior área da bacia (também 60%). Em relação ao total de bacias em que há conflito, 15, em 53,3% dos casos o país com maior concentração de capabilities detém a nascente; e em 60% dos casos este país controla a maior parte da área da bacia. Ainda, em 6 casos o país que controla a nascente tem em seu território, também, a maior área da bacia.

Se há uma conclusão plausível a partir dessas informações é a de que existe a tendência a conflito - de qualquer grau - quando o país com maior concentração de capabilities é também aquele que tem maior acesso aos recursos da bacia. No entanto, trata-se de uma hipótese provisória, já que ainda é necessário examinar os dados sobre cooperação e contrapô-los aos já aqui descritos para confirmar tal conclusão.

Considerando que os critérios estabelecidos inicialmente (sinteticamente: posição na bacia do país que mais concentra capabilities versus conflito) não são capazes de fornecer resultados significativos, ao menos enquanto são consideradas apenas as relações de conflito, é possível, neste momento da pesquisa, dada a finalidade preponderantemente diagnóstica, tomar em consideração os critérios que outros autores estabelecem a fim de enriquecer os resultados.

Gleick (1995, p 84-85) afirma que:

As características que tornam a água passível de tornar-se uma fonte de rivalidade estratégica são: (1) o grau de escassez, (2) a medida em que o recurso é compartilhado por mais de uma região ou Estado, (3) o poder relativo dos Estados da bacia, e (4) a facilidade de acesso a fontes alternativas de água doce. (GLEICK, 1995, p. 84-85, versão livre)5

A escassez (1) é tida pela quase totalidade dos autores como determinante do conflito. Por isso, será examinada em um quadro próprio, a seguir. Dados sobre acesso a fonte alternativa de água (4) são de difícil obtenção e, assim, não serão apurados. O poder relativo (3) é o cerne da pesquisa, e vem sendo analisado com vagar neste trabalho. Finalmente, o grau de compartilhamento (3) é, certamente, uma variável importante e, aparentemente, uma relação bastante óbvia, dado que se há um maior número de compartilhadores, há um maior número de possíveis descontentes. Além disso, o grau de compartilhamento pode ser observado com facilidade a partir dos dados já expostos. Assim, considerando a média do número de países por bacia, a amostra indica o seguinte: a) as bacias com ocorrência de conflito de grau (-1) e (-2) são compartilhadas, em média, por 3,7 países; b) as bacias com ocorrência de conflito de grau (-3), (-4) e (-5) são compartilhadas, em média, por 5 países.

Certamente, em um número tão pequeno de casos os desvios tendem a alterar as médias significativamente. No entanto, mesmo isolando os grupos por grau, a relação entre número de países e grau de conflito parece evidente, como propõe Gleick (1995). Mas se parece óbvio que dado um maior número de compartilhadores, há um maior número de possíveis descontentes, é importante testar também a possibilidade de que dado um maior número de compartilhadores, há um maior número de possíveis cooperadores. Tal possibilidade será analisada adiante, em momento oportuno. Em seguida analisa-se a variável "escassez".

Há diferentes metodologias empregadas para estimar a escassez de água em uma dada região ou país. Nesta pesquisa empregam-se os dados de "porcentagem do território sob stress hídrico" que indica o espaço onde a demanda por recursos hídricos é superior à oferta. A forma mais simples (e que pela simplicidade traz a vantagem da fácil compreensão dos resultados) de manipular esses dados a fim de conseguir uma indicação objetiva sobre a relação entre stress hídrico e conflito é o cálculo da média simples de stress hídrico para o conjunto de países de cada bacia.6 Assim, temos os seguintes resultados de média de escassez:

a) conflito (-1) e (-2): Incomati, 25,5%; Dniester, 28,1%; Drin,0,5%; Elbe, 6%; Lima e Tejo, 23,5%; Kunene, 28,7%; Lago Chade, 14%; St. Lawrence, 11,4%; Amazonas, 8,8%;

b) conflito (-3) a (-5): Prata, 10,3%; Indus, 28,8%; Narva, 1,6%; Mar de Aral, 25,3%; Kura-Araks, 24,6%.

Ainda que sejam considerados os problemas dos dados e técnica, não há dúvida de que a escassez, na amostra, não define o grau de conflito entre os Estados. É evidente que, como já foi afirmado, a técnica aplicada não permite que a partir dos resultados obtidos se possam fazer afirmações generalizantes acerca da relação entre escassez de água e grau de conflito; o que, inclusive, negaria a quase totalidade do que afirmam os principais teóricos do campo de conhecimento, além do senso comum. No entanto, o que é certamente possível afirmar é que a escassez, por mais importante, não é necessária para a existência de conflitos sobre os recursos de bacias hidrográficas, e tampouco suficiente para tal. Os motivos que levam ao conflito sobre recursos hídricos podem ser completamente diversos de fatores como escassez ou abundância de água, como os que são ligados, por exemplo, a formas concorrentes e/ou incompatíveis de uso das águas (geração de energia ou transporte; pesca e consumo humano ou eliminação de dejetos tóxicos, por exemplo), assim, a escassez não é condição necessária para o conflito. Ainda, em casos onde os países da bacia mantêm relações próximas, a escassez pode não ser razão suficiente para conflito.

Até este momento verifica-se que na amostra (a) há apenas um caso em que houve conflito entre os compartilhadores da bacia, mas inexiste um tratado relacionado à bacia; (b) o número de conflitos em que há movimentos hostis efetivos é baixíssimo, de apenas 5 casos em 71; (c) não há relação clara entre relações de poder (capabilities), acesso a recursos da bacia e grau dos conflitos; (d) bacias compartilhadas por um maior número de países tendem a apresentar conflitos de maior grau; (e) a escassez, como foi medida no presente estudo, não apresenta relação direta com o grau dos conflitos.

Diversos fatores (físicos, internos aos atores e ligados à interação entre eles) são relevantes para determinar a capacidade e a disposição para cooperar, as regras dessa cooperação e o comportamento dos atores (Keohane e Ostrom, 1995). Ainda,

[...] é possível admitir que a cooperação não surge apenas da necessidade de superar conflitos, podendo também ser desenvolvida pelo desejo de exploração conjunta dos recursos. Nesses casos, a criação de normas e procedimentos é facilitada pelo fato de que existe um interesse comum. (SOUZA, 2002, p.9)

Uma das questões centrais discutidas por autores consultados é o papel da heterogeneidade/homogeneidade entre os atores para a cooperação. Martin (1995) e Young (1995) entendem que a heterogeneidade de preferências e capabilities tende a facilitar a cooperação a partir da formação de lideranças e possibilidades de ganho por trocas, e que a cooperação depende fundamentalmente das "regras do jogo" e da seqüência da interação.

Nos 71 casos da amostra, verifica-se que para 18 deles existe pelo menos um tratado acerca dos recursos da bacia, e nenhum conflito relatado. Analisando a relação entre a concentração de poder e o acesso a recursos dessas bacias, bem como a média simples da porcentagem do território sob stress hídrico, a primeira informação que salta aos olhos é que o número de países por bacia é significativamente menor que nos 15 casos de conflito. A média de países por bacia passa de 4,33 entre as bacias com ocorrência de conflito para 2,66 entre aquelas com ocorrências cooperativas. Esse dado certamente reforça a afirmação anterior, a partir de Gleick (1995), de que há maior tendência a conflito em bacias compartilhadas por mais Estados. Existem 38 bacias na amostra que não foram examinadas em nenhum dos grupos, dado que não apresentaram relatos de conflito tampouco de realização de tratados nos bancos de dados consultados.  A média de países por bacia neste caso é de 2,21. Portanto, o que os dados obtidos a partir da amostra, que contém mais de um quarto das bacias hidrográficas compartilhadas do planeta, permitem afirmar é que nos casos onde há conflito ligado aos recursos da bacia entre os Estados compartilhadores, o grau de compartilhamento da bacia/número de países na bacia é significativamente maior do que naqueles onde não há conflito. Ou seja, o número de países compartilhadores interfere diretamente na chance de ocorrência de conflito.  A diferença do número médio de países entre as bacias para as quais há tratado e aquelas para as quais não há tratado ou conflito é bastante pequena e, portanto, inconclusiva.

Em relação à escassez, na seção anterior chegou-se à conclusão de que ela não apresenta relação direta com o grau dos conflitos. Tomada a média simples entre as porcentagens de stress hídrico, para os casos de conflito tem-se 15,8% de território sob stress hídrico. Para os casos cooperativos, no entanto, o resultado é de 12% de território sob stress hídrico. Trata-se de uma diferença significativa, que torna possível afirmar que ainda que a escassez, como medida neste trabalho, não pareça influir no grau dos conflitos, é plausível admitir que influa na probabilidade de conflitos ligados ao acesso a recursos hídricos compartilhados.

Na seção anterior propôs-se a hipótese provisória de que há tendência ao conflito, de qualquer grau, quando o país com maior concentração de capabilities tem também maior acesso aos recursos da bacia. No entanto, os dados para os países cooperadores podem derrubar essa hipótese. Em 10 bacias hidrográficas entre as 18, o que equivale a 55,5%, o país com maior PIB está localizado na nascente do curso d'água principal. Em relação à área, em 61,1% dos casos - ou 11 em 18 - a maior área da bacia se localiza no país com maior PIB. As duas ocorrências concomitantes, controle da nascente e da maior área, se verificam em 7 dos casos, ou 38,8%. Assim, não parece haver relação direta entre a concentração de capabilities e de acesso a recursos da bacia hidrográfica por um mesmo país e a ocorrência de conflito ou de cooperação.

Essa conclusão não oferece uma resposta completa aos objetivos da pesquisa. A hipótese central a ser testada é, pois, que os interesses dos países com maior concentração de capabilities são determinantes para a construção dos acordos para uso compartilhado de recursos hídricos de bacias transfronteiriças, e que Estados com maiores vantagens sobre o acesso a recursos de bacias transfronteiriças só conseguem sobrepor-se aos hegêmonas regionais quando o grau de assimetria entre os mesmos não é alto. Os números acima nada nos dizem acerca dos interesses dos países. No entanto, a ausência de relação clara entre concentração de poder e conflito ou cooperação é, certamente, um dado a se considerar.

Finalmente, esta seção trata da análise do grau de heterogeneidade quanto a recursos entre os Estados compartilhadores das bacias. Diferentes autores abordam a questão da heterogeneidade de capabilities e sua influência na cooperação internacional, mas não há consenso sobre seus resultados. Entre tais autores, Martin (1995) entende que, via de regra, a heterogeneidade facilita a cooperação, e Snidal (1995) defende que há ocasiões em que a homogeneidade entre os compartilhadores de um CPR conduz à cooperação. A compreensão dessa divergência, para o autor, é facilitada a partir da análise da importância da estrutura institucional, uma vez que, segundo ele, as várias formas de heterogeneidade podem ser afetadas por arranjos institucionais políticos e sociais pertinentes.

Não são interessantes, nesse momento, os aspectos institucionais, mas a fim de avaliar se na amostra são perceptíveis tendências à cooperação ou ao conflito a partir da heterogeneidade de capabilities é possível empregar comparação similar feira anteriormente. Neste caso, optou-se por medir a heterogeneidade de capabilities usando como indicador apenas o PIB de acordo com a taxa de câmbio oficial. O cálculo empregado é a proporção (razão) entre o maior e o menor PIB entre os países da bacia.

Os dados obtidos deixam evidente que a heterogeneidade de capabilities, pelo menos em relação às capabilities econômicas7, é significativamente maior entre os países de bacias com ocorrência de conflito. É importante relembrar, no entanto, que neste grupo de bacias só existe um caso em que há registro de conflito sem que exista pelo menos um tratado relacionado à bacia. Assim, se por um lado os dados permitem concluir com tranqüilidade que a maior heterogeneidade em relação a capabilites entre os Estados que compartilham uma mesma bacia hidrográfica está relacionada à ocorrência de conflitos sobre os recursos desta bacia, é importante reforçar que essa heterogeneidade não é impedimento para a cooperação.

***

A pesquisa diagnóstica descrita ao longo deste texto foi capaz de esclarecer diferentes questões relacionadas ao conflito e cooperação sobre recursos hídricos compartilhados. A questão mais superficial, mas que perpassa uma percepção corrente tanto entre estudiosos da área de recursos hídricos e cooperação internacional quanto do senso comum, é a idéia de que a crescente escassez de água já motiva muitos conflitos e, no futuro próximo, pode motivar guerras. Entre as bacias selecionadas para amostra estudada nesta pesquisa, obtida por seleção aleatória, só foram identificados dois casos de conflito com alto grau de hostilidade entre as partes: Kura-Araks e Mar de Aral. Nos dois casos, não se pode isolar a questão hídrica como origem de quaisquer indisposições entre os países das bacias.

A água é um recurso limitado, mas que, com uso adequado, não é esgotável. No entanto, a água é indispensável para o funcionamento de todos os setores da sociedade, da economia e o meio ambiente, e cerca de 40% da população mundial vive em áreas de bacias transfronteiriças. Por tudo isso, afirma Homer-Dixon (1995), a percepção de que o risco de "guerras por água" está crescendo é comum. O entendimento do autor, assim como demonstra esta pesquisa, é de que se trata de uma percepção equivocada.

A história é mais complicada do que parece à primeira vista. As guerras por águas fluviais entre vizinhos a montante e a jusante são provaveis apenas em um pequeno conjunto de circunstâncias: o país a jusante deve ser altamente dependente da água para o seu bem-estar nacional; o país a montante deve ser capaz de restringir o fluxo do rio; deve haver uma história de antagonismo entre os dois países e, mais importante, o país a jusante deve ser militarmente mais forte do que o país a montante. Há, de fato, muito poucas bacias hidrográficas em todo o mundo onde todas estas condições se verificam. (HOMER-DIXON, 1995, p.1, versão livre.)8

Certamente não é papel desta pesquisa testar as proposições de Homer-Dixon. Contudo, é plenamente razoável a idéia de, em uma situação de escassez, um país com poucos recursos localizado à jusante de um país poderoso não ser capaz de fazer muito mais do que pedir para que o país a montante não prejudique seu acesso a água. Segundo o autor, esse tipo de alarmismo quanto a "guerras por água" é, além de infundado, prejudicial, já que desvia a atenção dos reais riscos relacionados à escassez de água, preponderantemente ligados a questões sociais internas.

"Conflito" significa muito mais que "guerra". Divergências e desentendimentos, conflitos em grau bastante leve, são relativamente comuns entre países que compartilham bacias hidrográficas. No entanto, a existência de pelo menos um tratado entre os países compartilhadores de 14 entre as 15 bacias em que há registro de conflito na amostra estudada demonstra que a disposição ou necessidade de cooperar independe dos desentendimentos.

Esperava-se constatar, com esta pesquisa diagnóstica, algum tipo de relação entre a localização do país mais poderoso da bacia em relação ao curso d'água da mesma e a ocorrência de conflitos. Isto não foi possível. É notável, inclusive, que o país com maior concentração de recursos de poder na bacia é, muito freqüentemente, aquele que controla a nascente e/ou a maior parte da área da mesma, sem que isso implique em variação nos casos de conflito ou acordo entre os países. É provável que, como sustentam alguns dos autores citados, a disposição para cooperar esteja ligada a outras variáveis, principalmente de interdependência, e que o contexto institucional no qual se dá a interação dos países quanto a seus recursos compartilhados possa atender melhor aos interesses dos países mais poderosos. No caso dos países com maior concentração de capabilities e maior acesso aos recursos da bacia, seja em relação à área ou à nascente, é plausível supor que eles, como atores mais interessados, aceitem bancar a maior parte dos custos decorrentes do uso compartilhado (com ou sem presença de mecanismos formais de cooperação) em função não apenas da necessidade como também da possibilidade de trocas em outros campos de relacionamento com os demais co-usuários da bacia.

Esperava-se, também, que a escassez se destacasse como variável importante ou central para a ocorrência de conflitos. Não foi possível medir a escassez por bacia, pois não foram encontrados dados desse tipo para todos os casos considerados. No entanto, a partir da média de território sob stress hídrico dos países das bacias, os dados obtidos apontam para a importância da escassez em geral na ocorrência de conflitos. Mas maior grau de escassez não parece implicar maior grau de conflito.

Outra conclusão obtida a partir do estudo diagnóstico é relativa à importância do número de compartilhadores para a ocorrência de conflito. Ficou demonstrado que as ocorrências de conflito encontradas estão em bacias compartilhadas por um maior número de países e, ainda, que o maior número de compartilhadores parece estar ligado a conflitos de maior grau.

Finalmente, os resultados demonstram que não há relação clara entre as relações de poder, acesso a recursos da bacia e o grau dos conflitos. Mas a maior heterogeneidade em relação a capabilites entre os Estados que compartilham uma mesma bacia hidrográfica está relacionada à ocorrência de conflitos sobre os recursos desta bacia. Ou seja, em bacias compartilhadas por Estados significativamente desiguais a ocorrência de conflitos é maior. Mais uma vez, dada a importância conferida pelos autores consultados à questão, é importante reforçar que essa heterogeneidade não é impedimento para a cooperação, dado que divergências e acordos se verificam concomitantemente na imensa maioria dos casos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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* Este artigo representa uma porção da dissertação "Poder e conflito em bacias hidrográficas internacionais" apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Todos os dados empregados estão explícitos na mesma, e podem ser disponibilizados mediante solicitação (letatemoto@gmail.com)
1. How might environmental change lead to acute conflict? Some experts propose that environmental change may shift the balance of power between states either regionally or globally, producing instabilities that could lead to war.
2. Considera-se, na pesquisa diagnóstica, apenas um valor para cada bacia, ou seja, em bacias com duas ou mais ocorrências de conflito, considera-se o mais grave, de acordo com o critério do banco de dados.
3. There is a long history of water related disputes, from conflicts over access to water supplies to intentional attacks on water systems during wars. Water and water-supply systems have been the roots and instruments of war. Access to shared water supply has been cut off for political and military reasons. Sources of water supply have been among the goals of military expansionism. And inequities in water use have been the source of regional and international frictions and tensions. These conflicts will continue - and in some places grow more intense - as growing populations demand more water for agricultural, industrial and economic development.
4. If the wars of this century were fought over oil, the wars of next century will be fought over water.
5. The characteristics that make water likely to be a source of strategic rivalry are: (1) the degree of scarcity, (2) the extent to which the water supply is shared by more than one region or state, (3) the relative power of the basin states, and (4) the ease of access to alternative fresh water sources.
6. Certamente, principalmente nos casos de países com extensões territoriais maiores, esse método, por não levar em conta a extensão territorial da bacia em cada país, pode indicar resultados totalmente distintos da realidade de cada região. No entanto, o próprio dado bruto empregado gera problemas similares como, por exemplo, o caso do Peru que, com 31,5% de seu território sob stress hídrico, principalmente na região desértica, é o segundo país em área na bacia do Amazonas, extremamente úmida, mas não aproveita essa água na área desértica dada a dificuldade de transportá-la através dos Andes; porém, na análise diagnóstica quantitativa, o dado de 31,5% de território sob stress hídrico não pode ser desconsiderado.
7. Na amostra estudada fica claro que para a quase totalidade dos grupos de países aquele com maior PIB é também o que tem maior gasto militar. A variação ocorre com maior freqüência em relação a território, população, PIB per capita e homens capazes para o serviço militar. Nesta seção opta-se por empregar apenas o PIB devido às dificuldades de se quantificar a importância relativa de cada um dos indicadores citados em um índice único.
8. The story is more complicated than it first appears. Wars over river water between upstream and downstream neighbors are likely only in a narrow set of circumstances: the downstream country must be highly dependent on the water for its national wellbeing; the upstream country must be able to restrict the river's flow; there must be a history of antagonism between the two countries; and, most importantly, the downstream country must be militarily much stronger than the upstream country. There are, in fact, very few river basins around the world where all these conditions hold.