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ISBN 2236-7381 versão impressa

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Uma agente internacional iminternacional im"BRIC"ada: os novos caminhos e desafios da política externa brasileira no século XXI

 

 

Marcus Maurer de Salles

Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM/USP), Mestre em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria (MILA/UFSM). Bolsista CAPES, Pesquisador membro do UNCTAD Virtual Institute, E-mail: marcus.salles@usp.br

 

 


RESUMO

O presente ensaio sustenta que a política externa brasileira, ao longo da primeira década do século XXI, está mais do nunca, im"BRIC"ada. Para além de um simples jogo de palavras, isto significar dizer que a complexidade com que interage - ora convergindo, ora divergindo - às diversas prioridades de uma agenda internacional de um país emergente como o Brasil, fica cada vez mais patente.  Isto fica claro ao analisar três grandes prioridades da agenda internacional brasileira: a busca por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, a liderança de coalizões e alianças Sul-Sul e; a prioridade à integração sul-americana. Perceber que todas estas frentes de uma política externa estão im"BRIC"adas é uma clarividência que urge ao Brasil, sob pena de não reconhecer que tensões e contradições sejam naturais para todo e qualquer país que almeje algum grau de protagonismo internacional. Reconhecida a naturalidade do ônus, caberá ao Brasil decidir se quer assumi-lo ou não, com todas as conseqüências - positivas e negativas - decorrentes de tal decisão.

Palavras-chave: Brasil; BRICs; Política Externa; Multilateralismo; América do Sul


ABSTRACT

The present essay sustains that Brazilian foreign policy, during the first decade of the 21st century, is more than ever, im"BRIC"ated. That stands for more than just a simple play on words. It means that the complexity of the interaction - either converging or diverging - the various actions of an international agenda of an emerging country such as Brazil, is progressively becoming more latent. This becomes clear throughout the analysis of three major priorities of the Brazilian international agenda: the quest for a permanent seat at the United Nations Security Council, the leadership of South-South alliances and coalitions, and the priority of South-American integration. To realize that all these foreign policy fronts are im"BRIC"ated is an urging awareness for Brazil. Otherwise, it will not be able to recongnize the naturalness of the tensions and contradictions within an international agenda of any country that aims some level of international protagonism. Once this naturalness is comprehended, it will be up to Brazil to decide whether it will assume this role or not, with all the consequences - such positive as negative - that result from this decision.

Key words: Brazil; BRICs; Foreign Policy; Multilateralism; South America


 

 

1. INTRODUÇÃO

O presente ensaio, de caráter analítico-descritivo, pretende perpassar as grandes linhas da política externa brasileira ao longo da primeira década do século XXI, mais especificamente durante os dois mandatos de Luis Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010), a fim de identificar em que medida a agenda internacional brasileira foi afetada a partir da sua categorização como BRIC em 2003.

Parte-se da premissa de que a política externa brasileira, ao longo da primeira década do século XXI, está mais do nunca, im"BRIC"ada. Para além de um simples jogo de palavras, isto significar dizer que a complexidade com que interagem - ora convergindo, ora divergindo - a as prioridades da agenda internacional de um país emergente das relações internacionais, como o Brasil, fica cada vez mais patente. .

Para embasar tal afirmação, a proposta é perpassar três grandes prioridades da agenda internacional brasileira: (i) a busca por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, (ii) a liderança de coalizões e alianças Sul-Sul e; (iii) a prioridade à integração sul-americana.

A análise de tais temas específicos da agenda internacional brasileira serve para demonstrar, em primeiro lugar, se houve, de fato, alguma mudança na agenda, para em segundo lugar, caso aja alguma espécie de mudança, avaliar os impactos e desafios decorrentes de uma suposta nova identidade internacional brasileira, agora elevada ao status de BRIC.

Como se depreenderá da breve análise deste ensaio, pode-se perceber que não houve, na verdade, mudança substancial na agenda internacional brasileira. Desde meados do século XX, as prioridades brasileiras em política internacional têm se mantido as mesmas. A ruptura que houve, sim, foi na mudança de forma para alcançar os objetivos. As metas continuaram as mesmas. Mudaram-se os caminhos.

O escopo fundamental deste ensaio, portanto, é concluir se a forma como o Brasil conduz a sua agenda internacional contemporânea corresponde de fato à postura de um ator emergente das relações internacionais e se esta postura condiz com as pretensões - se é que tais existem - de se afirmar como liderança da América do Sul, do Sul Global, e do mundo.

 

2.  UMA POLÍTICA EXTERNA IM"BRIC"ADA

Desde os primeiros anos do século XX, uma das maiores aspirações da política externa brasileira tem sido o reconhecimento internacional condizente com a crença de que o país deveria assumir seu papel "natural" de "grande país" nas questões mundiais.

As aspirações de "grandeza" brasileira sempre estiveram associadas a atributos de soft power - população, território e perfil econômico - e não ao acúmulo de poder na sua forma mais bruta, o poderio militar. Dado relevante neste aspecto é que o Brasil, em 2008, detinha em termos de percentual de PIB, apenas o 62º maior orçamento militar do mundo e o 4º na América do Sul, atrás de Colômbia, Equador e Chile.1

Quando em 2003, o banco privado Goldman Sachs divulgou relatório2 diagnosticando que, até 2050, Brasil, Rússia, Índia e China, os "BRIC" seriam maiores que a economia do atual G-6 (Alemanha, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido), novas dinâmicas de forças internacionais se estabeleceram.3

Em relação ao Brasil, finalmente obtinha-se o reconhecimento que tanto almejara com sua "grandeza", consolidando a afirmação centenária de Joaquim Nabuco: "o Brasil sempre teve consciência do seu tamanho e tem sido governado por um sentimento profético de futuro".4 No entanto, será que esta credencial colocaria o "país do futuro" agora mais próximo das suas aspirações?

No mesmo ano, a ascensão de Luís Inácio Lula da Silva à Presidência da República leva a diplomacia brasileira a um patamar de ativismo e personalismo que até então o Brasil não havia experimentando. A conjunção de ambos os fatores - ascensão de Lula ao poder e ascensão do Brasil à condição de BRIC - potencializaram a imagem internacional do país e o legitimaram a instaurar uma nova fase da política externa brasileira.

O início do governo Lula foi cercado de grande expectativa - inclusive de temor no caso de investidores estrangeiros -, pela ascensão do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder. No entanto, o que se viu ao longo dos dois mandatos do governo Lula e PT foi a manutenção de uma série de políticas econômicas e financeiras de natureza ortodoxa, dando continuidade, no plano interno, a grande parte das reformas estruturais implantadas pelo seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999- 2002) Na realidade, foi na política externa brasileira que o Brasil apresentou as maiores rupturas em relação ao governo anterior.5

Mas, de fato, pode se falar em uma "nova" política externa brasileira? O que há de novo? Houve alguma mudança significativa - seja de metas, seja de caminhos - na agenda internacional brasileira nesta primeira década do século XXI? Como conseqüência, estaria o Brasil construindo uma nova identidade internacional para o século XXI? Quais os impactos que esta nova credencial - ser BRIC - representou para a política externa brasileira? O Brasil estaria, de agora em diante, fadado a abandonar os seus companheiros do Terceiro Mundo e finalmente aceitar o convite para juntar-se ao "Clube dos Ricos"?6

Diante de tais dilemas, pode-se afirmar que a política externa brasileira estaria im"BRIC"ada. Dois motivos sustentam esta afirmação. O primeiro diz respeito ao fato do Brasil estar assumindo uma proeminência internacional muito mais contundente desde 2003, o que deu maior visibilidade e responsabilidade ao Brasil como ator das relações internacionais. O segundo decorre da definição semântica do trocadilho: "imbricado: diz-se de um conjunto em que uma peça é parcialmente coberta pela anterior e assim cobre a subseqüente; quando há sobreposição de partes para a formação de um conjunto".7

Ora, conforme se perceberá com a análise de três das prioridades da política externa brasileira, se a forma de consecução da agenda se altera, este é um reflexo sintomático do fenômeno da im"BRIC"ação.

 

3. A MESMA AGENDA, POR NOVOS CAMINHOS

3.1. A Cadeira Permanente no Conselho de Segurança

Em relação à busca pela cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), o Brasil caminha lentamente na construção de apoio para, quando houver reforma da estrutura institucional da ONU, ele venha a ser indicado como membro permanente, ainda que desprovido do direito de veto. Este objetivo histórico, embora pareça estar longe de se concretizar, é um tema constante, que ao longo desta década permaneceu como prioritário na agenda da política externa brasileira.

O Brasil ocupa atualmente assento não-permanente no CSNU para o mandato 2010-2011. Esta é décima vez que o país é eleito, tornando-se, ao lado do Japão, o membro que mais vezes ocupou assento eletivo naquele Conselho. Além disso, é o país que, como membro não-permanente, ocupou cadeira por mais tempo consecutivo: 14 anos.

Ao longo desta década, o Brasil lançou mão de duas iniciativas, no âmbito do multilateralismo político, inéditas para a política externa brasileira: a liderança de uma missão de paz da ONU, no Haiti, e a mediação de um impasse nuclear com o Irã. Embora não seja expresso pela diplomacia brasileira, ambas as ações podem ser interpretadas como caminhos para se legitimar o objetivo maior, qual seja, a cadeira permanente no CSNU.

A participação brasileira na MINUSTAH8 é o principal envolvimento do Brasil em operações de manutenção da paz. O Brasil é o maior contribuinte de tropas para a missão no Haiti e exerce seu comando militar desde 2004. Já enviou mais de 9000 soldados e oficiais ao país e mantém hoje contingente superior a 2000 efetivos. Além da MINUSTAH, o Brasil participa atualmente, também, de outras nove operações de manutenção da paz com cerca de 2200 militares e policiais.9

A outra iniciativa que pode ser interpretada como um caminho rumo à cadeira do CSNU, se revela como um dos temas mais controvertidos da política externa brasileira ao longo dos dois mandatos de Lula. Trata-se do caso da recente mediação do impasse da comunidade atômica internacional com o Irã.

Ocorre que a posição adotada pelo governo brasileiro, ao mediar a paz no Oriente Médio buscou respaldo no argumento da produção de energia nuclear para fins pacíficos10. Além disso, visou evitar eventual escalada de tensão em relação ao Irã por parte do G-5+111. Por fim, a iniciativa é condizente com a reorientação da política externa brasileira em matéria de não-proliferação de armas nucleares.

A política externa brasileira em matéria de não-proliferação nuclear teve marco fundamental da história recente. Tanto as ações de Collor, por meio do acordo bilateral com a Argentina para a supervisão mútua de estoques nucleares, chamado de Declaração de Fiscalização Mútua, firmada em 28 de novembro de 1990, quanto a posterior criação da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC). Durante o mandato do presidente FHC, também houve a adesão ao TNP, em 1998. Nesta seara o Brasil, que não é signatário do Protocolo Adicional do TNP, mantém uma posição de rejeição a qualquer compromisso neste sentido, até que os países com armas nucleares cumpram sua promessa de desarmament.

No entanto, na tentativa de sustentar o ideário da paz internacional, o Brasil sofreu críticas internas e internacionais e se colocou perigosamente em rota de colisão com as potências nucleares. Além disso, o regime de Teerã foi alvo de sucessivas sanções do CSNU12.

De fato, tanto a liderança da MINUSTAH como a mediação com o Irã são ações internacionais que indiretamente servem ao propósito fundamental, galgar passos rumo ao CSNU. Para tanto, o Brasil precisou revisar alguns dos seus paradigmas fundamentais da política externa: a questão da não-intervenção em assuntos internos, ao liderar uma missão de paz, e a não-proliferação de armas nucleares, ao mediar uma situação extremamente complexa e crítica, envolvendo um regime autoritário que trabalha constantemente num programa de enriquecimento de urânio, e que apenas permite fiscalização parcial da Agência Internacional de Energia Atômica.

3.2. A liderança de coalizões e alianças Sul-Sul

A agenda contemporânea da política externa brasileira em relação aos países em desenvolvimento - antigamente chamados de Terceiro Mundo, atualmente chamados de Sul Global - tampouco representa novidade.

Historicamente, o núcleo da agenda internacional sempre foi condicionado pelo modelo econômico vigente no país. Sempre houve consenso de que as principais vulnerabilidades externas a que o Brasil estava sujeito eram predominantemente de natureza econômica, ao invés de militar. Isto se intensifica especialmente a partir da década de 1930 quando o Brasil adota um modelo desenvolvimentista por meio da industrialização por substituição de importações (ISI).

Houve dois momentos conjunturais críticos que moldaram o modelo de desenvolvimento brasileiro e conseqüentemente ditaram novos comportamentos em matéria de política externa. O primeiro ocorreu nos anos 1930, com a crise do modelo agroexportador e a conseqüente adoção do modelo de industrialização por substituição de importações (ISI); e a segunda, nos anos 1990, com o esgotamento do regime ISI e a sua substituição por um modelo de integração competitiva à economia global. É exatamente entre estes dois momentos históricos que o Brasil se consolida como ator relevante em temas envolvendo o multilateralismo econômico.

O Brasil foi um dos exemplos mais bem sucedidos do modelo ISI, no qual as principais características eram: papel central do Estado na regulação, provisão de incentivos e subsídios a produção e relativa discriminação contra produtos importados. Nos anos 1960 e 1970, a política externa se tornou um instrumento fundamental para o modelo ISI. As demandas brasileiras pelo tratamento diferencial entre países em desenvolvimento cresceram no regime do comércio internacional. Tanto pela não-reciprocidade no comércio destes com os países desenvolvidos, quanto pela criação de um Sistema Geral de Preferências (SGP) e por fim, pelo Sistema Global de Preferências Globais (SGPC).

O ativismo político brasileiro nas coalizões do Terceiro Mundo nas décadas de 1960 e 1970, particularmente na Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) e nas propostas de reforma do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, em inglês) foi voltado para atender interesses econômicos, e não políticos. Ao lado de países como Índia e México, o Brasil desempenhou papel proeminente na coordenação de alianças de países do Sul, em especial, através da liderança do Grupo dos 77 (G-77).

Durante a Rodada Uruguai, a agenda comercial se tornou mais ampla e complexa, pelo fato das negociações terem ido além das medidas tarifárias tradicionais e passado a incluir novos temas, como propriedade intelectual, serviços e investimentos. Tais temas teriam grandes repercussões domésticas entre países em desenvolvimento. Essas mudanças na Rodada Uruguai levaram à desintegração política do G-77 e a conseqüente flexibilização da posição desenvolvimentista nas negociações do GATT.

Já na vigência da Organização Mundial do Comércio (OMC), a formação da coalizão do G-20 na reunião de Cancún, em 2003, representa de certa forma o renascimento do espírito de uma aliança terceiro-mundista, desenvolvimentista, de âmbito sul-sul. A criação do G-20 levou a uma mudança estrutural das negociações internacionais junto a OMC e foi uma oportunidade para o Brasil renovar o seu papel de liderança como intermediário indispensável entre os fracos e fortes.

Portanto, percebe-se que este engajamento brasileiro nos foros econômico-comerciais multilaterais não é novidade. Ao consolidar o multilateralismo econômico como paradigma da sua atuação externa, o Brasil o faz assumindo uma identidade reivindicatória e reformista, manifestando a dupla identidade internacional: de país em desenvolvimento e de país sul-americano, em todo foro multilateral do qual participe.

Hoje a atuação do G-20 se destaca tanto junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), em busca de revisão das condicionalidades e do poder de voto, especialmente desde a crise financeira de 2008; no Banco Mundial (BIRD), pela abertura de novas linhas de financiamento para políticas específicas para países de menor desenvolvimento relativo; quanto na OMC, pelos esforços de dar continuidade da unidade negociadora na Rodada de Doha, mesmo havendo claras divergências dentro do grupo.

Por outro lado, a intensidade do foco brasileiro nos foros informais de cooperação Sul-Sul, como as reuniões ministeriais dos BRICs, do G-20 e do IBAS13, podem caracterizar uma mudança de caminho para as coalizões entre países em desenvolvimento. Embora grande parte da temática debatida seja atinente às reformas dos sistemas multilaterais, políticos e econômicos, tais foros estão se transformando em espaços de articulação e aproximação que servem como fins em si mesmo, especialmente depois do fracasso recente das negociações de Hong Kong, em 2005.

Estes foros estão paulatinamente se transformando em alternativa aos foros multilaterais das organizações internacionais, contrastando com a prática formalista da política externa brasileira do século XX. Isto se revela ainda mais claramente no contexto da integração sul-americana.

3.3. Prioridade à integração sul-americana

Em relação à política externa brasileira para a América do Sul, faz-se necessário analisar dois aspectos que sofrem influência desta im"BRIC"ação da agenda internacional brasileira.

O primeiro aspecto refere-se à reorientação do foco regional dado pela diplomacia brasileira, reduzindo drasticamente a atuação em relação à integração da América Latina, passando a focar-se intensamente rumo à integração da América do Sul. Esta mudança de orientação da política externa brasileira fundamenta-se, em parte, pela constatação de que a noção de América Latina, que possui raiz histórica e ideológica, é muito pouco realizável, pelo alto grau de assimetria entre a América do Sul e o Caribe.

Além disso, a forte influência norte-americana no Caribe gera uma polarização desnecessária com o Brasil. Prova disso foi o recente episódio do golpe de Honduras. Nesse sentido, caminhar em direção à integração da América do Sul garantiria uma zona de influência muito mais confortável ao Brasil.14

A sustentação e ampliação paulatina desse trabalho de aproximação bilateral no âmbito da América do Sul intensificou-se nesse novo século, a partir da primeira cúpula de chefes de Estado sul-americanos em Brasília, em 2000, e aprofundou-se com o processo de lançamento da Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA) em 2004, que culminou com a assinatura do acordo da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), em 2008.

Este estreitamento em torno do eixo sul-americano foi possível em grande parte devido a um momento sui generis dos partidos de esquerda no continente. Isto fomentou uma maior aproximação de caráter ideológico-partidário entre países do Cone-Sul (Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai e Chile) e os países andinos (Equador, Bolívia, Venezuela). Como decorrência, a união destes países, levou a uma aproximação dos seus respectivos blocos comerciais - o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) e da Comunidade Andina (CAN) - que culminou na rejeição definitiva do projeto da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) em 2005.15

O segundo aspecto refere-se ao MERCOSUL. Desde o seu relançamento em 2000, os membros do bloco estão obrigados a negociar acordos comerciais internacionais de forma conjunta16. Ao mesmo tempo em que isso deu uma identidade internacional conjunta aos países do Cone Sul, impediu a ligação do MERCOSUL com outros países ou blocos.

Em grande parte este "fechamento" do MERCOSUL para o exterior deve-se à priorização dada por seus membros, em especial o Brasil, às negociações multilaterais de liberalização comercial da rodada de Doha. Tal priorização foi fortemente criticada e hoje o MERCOSUL começa a dar demonstrações de relativização desta prioridade, tendo em vista a celebração de recentes acordos comerciais: Israel, Egito, Índia e a União Aduaneira da África Austral (conhecida pela sigla SACU, em inglês).

 

4. CONCLUSÃO: SER OU NÃO SER BRIC? EIS A QUESTÃO!

Como se pode perceber deste breve ensaio, nessa passagem do século XX para o XXI, a agenda internacional brasileira não mudou em sua essência. A partir de 2003, com a elevação de Brasil, Rússia, Índia e China ao status de BRIC, até o presente, o que mudou foram os caminhos trilhados para alcançar os objetivos da mesma agenda.

Ocorre que, de fato, a política externa está im"BRIC"ada. Significa afirmar que todas as frentes de atuação da política externa brasileira estão, em maior ou menor medida, interligadas, sobrepostas. Dar algum nível de coerência a este entrelaçamento de ações internacionais é o grande desafio Brasil para o século XXI. Há exemplos de sobra a esse respeito, conforme se pôde apurar.

Em relação à busca pela cadeira permanente do CSNU, há uma série de ações que exemplificam a im"BRIC"ação da política externa brasileira. A mediação do impasse iraniano, ao mesmo tempo que aproximou o Brasil dos países árabes, afastou-o dos países membros permanentes. Também o fato de o Brasil se candidatar alegando necessidade de dar representatividade e voz à América do Sul o coloca em situação delicada perante a Argentina, que não reconhece o Brasil como seu interlocutor nos foros multilaterais.

Em relação à cooperação Sul-Sul, apesar de este ser o objetivo da agenda que mais rende frutos ao Brasil atualmente, poderá tornar-se um empreendimento demasiadamente oneroso num futuro próximo. O país deve assumir a complexidade e as conseqüências da toda ação coletiva. A manutenção da unidade do G-20 será um dos grandes desafios dos próximos anos da política externa brasileira, se persistir em apostar nas negociações multilaterais por meio de aliança sul-sul. Esta onerosidade pode ter como causa a materialização do desenvolvimento brasileiro.

O problema reside em que tornar-se de fato uma potência emergente pode negar os paradigmas historicamente construídos pela diplomacia brasileira. Ser BRIC trouxe uma expectativa de desenvolvimento que, caso venha a se concretizar, poderá afastar o país definitivamente dos paradigmas de política externa que o orientou ao longo do século XX. Ou seja, quanto mais o Brasil se torna BRIC, mais ele se afasta do conceito de país em desenvolvimento e do conceito de sul americano.

Nesse sentido, os BRICs poderão não ter mais credibilidade para serem porta-vozes dos países em desenvolvimento e as relações que terão com os seus parceiros do sul já não serão mais tão simétricas assim. Enfim, o deslocamento do Brasil da periferia para o centro da economia mundial fará com que ele tenha que readequar suas prioridades e paradigmas de política externa.

Ao mesmo tempo, harmonizar multilateralismo, diplomacia sul-sul e integração sul-americana é um desafio vital para o Brasil. A manutenção e o aprofundamento dos projetos de integração sul-americana para além da UNASUL é fundamental para que a integração, de fato, gere frutos permanentes. Focar em iniciativas estruturais, tais como a Iniciativa para Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), bem como o Fundo para Convergência Estrutural do MERCOSUL (FOCEM) podem ser importantes balizadoras de um processo de integração que vá além dos fluxos comerciais, tão suscetíveis de desequilíbrios em tempos de crises financeiras e cambiais.

Apenas com o investimento em iniciativas de caráter estrutural, de longo prazo, é que o projeto de integração sul-americana poderá se consolidar para além das afinidades ideológico-partidárias. O fato de Lula estar saindo do poder no final de 2010 aumenta ainda mais o desafio para o Brasil devido ao fato de sua presidência ter levado adiante, durante os dois mandatos, uma diplomacia altamente personalista, carismática e em grande parte intransferível.17

Ainda em relação à América do Sul, o MERCOSUL encontra-se em um período de crise de identidade, da qual só sairá quando seus membros decidirem se seguirão mantendo a receita do regionalismo endógeno, fechado em si mesmo, ou se embarcarão no fenômeno contemporâneo de proliferação de acordos bilaterais, a fim de se integrarem substancialmente no mercado mundial. Esta opção ainda não foi feita pelo MERCOSUL. Se tardar demais, pode perder o bonde da história.

Caberá ao Brasil ter a capacidade de corresponder às projeções do relatório de Goldman Sachs. Isto vai depender muito mais de política interna do que de política externa, muito embora a política externa brasileira tenha assumido, desde o pós-guerra, uma posição estratégica fundamental para viabilizar projetos de desenvolvimento nacional. Pensar uma política de desenvolvimento para o Brasil sem levar em consideração a política externa seria um retrocesso caro demais ao país.

Ter a habilidade diplomática de manter a atual agenda internacional im"BRIC"ada, sem negar as raízes, tanto desenvolvimentistas como sul-americanas, é o grande desafio da política externa brasileira. Para tanto, é fundamental ter presente as contradições naturais entre a abordagem bilateral, regional e multilateral no conjunto da política externa, especialmente no mundo em desenvolvimento. Ainda, considerar as limitações de recursos e de poder constitui uma cautela produtiva e necessária para este novo patamar para o qual caminha a atuação internacional do Brasil.

Por fim, perceber que todas estas frentes estão im"BRIC"adas é uma clarividência que urge ao Brasil, sob pena de não reconhecer que as tensões e contradições na atuação internacional sejam naturais para todo e qualquer país que almeje algum grau de protagonismo internacional. Reconhecida a naturalidade do ônus, caberá ao Brasil decidir se quer assumi-lo ou não, com todas as conseqüências decorrentes de tal decisão.

 

BIBLIOGRAFIA

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1. Dados do Stockholm International Peace Research Institute, em http://www.sipri.org/.
2. Ver PURUSHOTHAMAN, Roopa; WILSON, Dominic (2003) Dreaming with BRICs: the path to 2050. Goldman Sachs. Global Economics, paper # 99. New York: Goldman Sachs. October 1st.
3. O acrônimo BRICs não representa a existência de uma organização internacional propriamente dita ou fórum permanente de coordenação entre os 4 países. Na realidade, há mais discordâncias do que semelhanças entre os países, em termos de política externa e interesses estratégicos. Para maior análise comparativa dos BRICs, ver HURREL, Andrew... (et.al.) (2009) Os BRICs e a ordem global. Rio de Janeiro, FGV.ARMIJO, Leslie E.; BURGES Sean W. (2009). Brazil, the Entrepreneurial and Democratic BRIC. Polity (32-3497): Northeastern Political Science Association.
4. NABUCO, Joaquim. (1908). O sentimento da nacionalidade na História do Brasil. Conferência na Universidade de Yale. In LAFER, Celso (2007). A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado, presente e futuro. 2ª Ed. São Paulo: Perspectiva.
5. Para maiores análises sobre a rupturas e continuidades do Governo Lula, ver CEPALUNI Gabriel; VIGEVANI, Tullo (2007). A Política Externa de Lula da Silva: A Estratégia da Autonomia pela Diversificação. Contexto Internacional. Rio de Janeiro, vol. 29, no 2, julho/dezembro; e ALMEIDA, Paulo Roberto (2007). O Brasil como ator regional e como emergente global: estratégias de política externa e impacto na nova ordem internacional. Revista Cena Internacional. Brasília: UnB-IREL, vol. 9, nr 1.
6. Expressão referente ao convite feito em 2009 pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ao Brasil para integrar a organização, ao qual o país denegou. A OCDE é a organização que reúne as 33 maiores economias do mundo. Ver http://www.ocde.org.
7. Verbete do Dicionário Houaiss.
8. A Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH) está em ação desde 2004 sob coordenação do Brasil. É uma missão sui generis pois pela primeira vez na história das missões de paz da ONU, um grupo de Estados que desempenha um papel secundário no sistema internacional compõe uma missão de estabilização. Dos Estados que integram originariamente a missão, a quase totalidade é de países em desenvolvimento, na sua maioria, latino-americanos.
9. Desde 1948, o Brasil participou de mais de 30 operações de manutenção da paz, tendo cedido um total de mais de 17 mil homens. Integrou operações na África (entre outras, no Congo, Angola, Moçambique, Libéria, Uganda, Sudão), na América Latina e Caribe (El Salvador, Nicarágua, Guatemala, Haiti), na Ásia (Camboja, Timor-Leste) e na Europa (Chipre, Croácia). Embora tenha enviado militares e policiais em diversos casos, apenas a cinco operações o Brasil cedeu tropas, isto é, unidades militares formadas: Suez (UNEF I), Angola (UNAVEM III), Moçambique (ONUMOZ), Timor-Leste (UNTAET/UNMISET) e Haiti (MINUSTAH).
10. Além de reiterado perante a Assembléia Geral da ONU, em discurso recente (set. 2010), o Chanceler Amorim afirmou: "O Brasil tem procurado corresponder ao que se espera de um membro do Conselho de Segurança, mesmo não-permanente, que é contribuir para a paz. Por essa razão, nos empenhamos em encontrar um instrumento que pudesse representar avanço para a solução do dossiê nuclear iraniano. Ao fazê-lo, nos baseamos em propostas apresentadas como "oportunidade ímpar" para criar confiança entre as partes. A Declaração de Teerã de 17 de maio, firmada por Brasil, Turquia e Irã, removeu obstáculos que, segundo os próprios autores daquelas propostas, impediam que se chegasse a um acordo. A Declaração de Teerã não esgota a matéria. Nem foi essa a intenção."
11. Trata-se dos membros do Conselho de Segurança somado à Alemanha.
12. O Brasil, como membro não-permanente do CSNU também teve que assinar a mais recente sanção ao Irã. Trata-se da Resolução 1929 adotada na Reunião do Conselho de Segurança de nº 6335, em 9 de junho de 2010. Disponível em: http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N10/396/79/PDF/N1039679.pdf?OpenElement
13. O Fórum de Diálogo IBAS é uma iniciativa de cooperação entre Índia, Brasil e África do Sul, de amplo espectro, que visa tanto uma coordenação política para negociações internacionais, como para  estabelecer cooperação técnica em temas específicos. Ver: http://www.forumibsa.org/.  
14. LAFER, Celso (2007). A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira: passado, presente e futuro. 2ª Ed. São Paulo: Perspectiva.
15. SADER, Emir (2009). A nova toupeira: os caminhos da esquerda latino-americana. São Paulo: Boitempo.
16. Decisão do Conselho Mercado Comum no. 32/2000 - Relançamento do MERCOSUL - Relacionamento Externo. in http://www.sice.oas.org/trade/mrcsrs/decisions/dec3200p.asp.
17. RICUPERO, Rubens (2010). À sombra de Charles de Gaulle: uma diplomacia carismática e intransferível. In Novos Estudos (n. 87, Julho). São Paulo: CEBRAP. p. 58.