ISBN 2236-7381 versión
impresa
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3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011
Discurso e política externa brasileira
Maria Izabel Mallmann
RESUMO
Nos últimos anos, o Brasil tem estado crescentemente comprometido com a agenda internacional, seja intensificando ou readequando as relações tradicionais, seja incorporando novos assuntos em sua própria agenda. Esse protagonismo que coloca o país em posição de destaque, gera importantes custos como contrapartida. Entre eles, o desgaste político provocado por algumas ações externas mais polêmicas. O discurso oficial que expressa essa nova realidade, procura não macular a decantada tradição diplomática brasileira. Este estudo analisa alguns discursos oficiais de 2003 a 2010 com o objetivo de perceber os argumentos e as estratégias legitimadores das ações adotadas em momentos cruciais desse período.
Palavras-chave: Política externa brasileira, relações sul-americanas, discurso, interesse nacional
Introdução
Desde os anos 1990, o Brasil tem estado crescentemente comprometido com a agenda internacional, seja intensificando ou readequando as relações tradicionais, seja incorporando novos assuntos em sua própria agenda. Durante os dois mandatos de Lula da Silva (2003-2010), os esforços de projeção internacional ocorreram em várias frentes simultaneamente. Houve tanto investimentos no plano multilateral visando à recomposição de forças e à diversificação da agenda, quanto no plano das relações sul-sul no qual se inserem a maior atenção despendida à América do Sul e à África, além da coordenação de posições com os então chamados países emergentes (Rússia, Índia e China), aos quais se somou, mais recentemente, a África do Sul.
O protagonismo do país nesse período o colocou em posição de destaque internacional, mas não foi isento de custos, particularmente aqueles decorrentes da escassa sustentação interna a posições do governo em negociações envolvendo a distribuição de benefícios oriundos da cooperação internacional. Dois casos emblemáticos foram as negociações do Brasil com a Bolívia e com o Paraguai em torno da "questão do gás" e da renegociação do Tratado de Itaipu, respectivamente. Nos dois casos, as posições assumidas pelo governo brasileiro foram consideradas, por setores da sociedade brasileira, lesivas aos interesses nacionais do país. Ao final das negociações, o Brasil, de fato, acatou as principais reivindicações dos vizinhos, configurando o que qualificamos neste estudo como uma atitude "compreensiva".
Contudo, é interessante observar como o governo brasileiro fez acompanhar suas ações de um discurso legitimador que adequou a noção de interesses nacionais aos desafios postos pelo maior protagonismo internacional do país e pela maior sensibilidade às assimetrias regionais do grupo no poder, sem descuidar de dimensões caras à política externa brasileira, como a preferência pela via da negociação diplomática e o apreço pelo desenvolvimento nacional.
Neste artigo, analisam-se discursos e pronunciamentos proferidos por autoridades do governo brasileiro (Presidente da República, Ministro das Relações Exteriores, Assessor Especial da Presidência para Assuntos Internacionais) durante as negociações, nos quais busca-se identificar os principais argumentos utilizados para justificar e legitimar as posições oficiais assumidas.
Entende-se que os discursos e pronunciamentos selecionados são políticos, porque visam à persuasão, ao convencimento (Pinto, 1999); procuram persuadir argumentativamente os interlocutores acerca da legitimidade das posições adotadas pelo governo brasileiro e moldar percepções sobre o quanto tais posições refletem os interesses do Brasil e da região. Toma-se a argumentação como "uma atividade verbal e social" que incide, através do discurso, sobre opiniões, atitudes e comportamentos, favorecendo ou não a aceitação de um "ponto de vista controverso" (Grize e Van Eemeren et alli apud Charaudeau e Maingueneau, 2008, p. 52, 53). Nesses termos, seguindo os autores, pode-se entender a argumentação como um procedimento que estabiliza um enunciado controverso - no caso, interesse nacional - ao conectá-lo a outro não sujeito à controvérsia - no caso, a estabilidade política e o desenvolvimento dos vizinhos são bons para o Brasil. Segundo Charaudeau e Maingueneau (2008), o argumento legitima uma conclusão - no caso, a estabilidade política e o desenvolvimento dos vizinhos interessam ao Brasil. Contudo, como a conclusão é apenas uma projeção hipotética do argumento e como não há garantias quanto a sua aceitabilidade pelos interlocutores, a seleção do conteúdo dos enunciados a serem aceitos como verossímeis decorre de uma escolha estratégica dependente das circunstâncias (Charaudeau, 2008). No caso em estudo, a relativa estabilidade e crescimento econômico do Brasil favorece o recurso aos aspectos positivos da estabilidade política e econômica dos vizinhos para os interesses materiais do Brasil (exportações e investimentos, por exemplo).
Entende-se que há um evidente esforço argumentativo para persuadir os interlocutores acerca da vinculação entre o que é entendido pelos enunciadores como interesse nacional do Brasil e os interesses da Bolívia e do Paraguai. O Brasil justifica suas posições pelo interesse no desenvolvimento e na estabilidade da região. Para os públicos externos, essa posição é sustentada discursivamente nos aspectos compreensivo, generoso, solidário e responsável da política externa brasileira; para os públicos internos, sobretudo os mais críticos, é sustentada no interesse de desenvolver e projetar materialmente o país na região.
O artigo possui duas seções, além desta Introdução e das Considerações Finais. Na primeira, são abordados os contenciosos e as posições adotadas pelo Brasil. Nela, recuperam-se apenas os registros mais decisivos com a intenção de evidenciar as demandas, as posições assumidas pelo Brasil e os desfechos dos processos. Na segunda, analisam-se os discursos e pronunciamentos das autoridades brasileiras focalizando suas estruturas argumentativas. Privilegiamos as chamadas free informations (Keohane, Nye, 1998) capazes de gerar efeitos de soft power uma vez que nos propomos a identificar os argumentos utilizados para produzir efeito persuasivo, de convencimento, de formação de opinião.
Os contenciosos e as posições assumidas pelo Brasil
As transformações internacionais e regionais das últimas décadas do século XX fizeram com que o Brasil reorientasse sua política externa em relação aos vizinhos sul-americanos e se comprometesse crescentemente com a integração dessa região (CERVO, 2007; Couto, 2010). Poder-se-ia arrolar como momentos marcantes desse processo, a aproximação com a Argentina que resultou na criação do Mercosul nos anos 1990; a criação da IIRSA, em 2000, que identificou nos setores energético e de infra-estrutura o potencial integrador da região; a política "solidária" dos anos 2000 que revelou habilidade política do Brasil para lidar com o aumento das demandas de seus pares sul-americanos.
O contexto em que se desenrolaram os contenciosos objeto desta análise esteve marcado pela chegada ao poder de forças à esquerda do espectro político em vários países sul-americanos, inclusive no Brasil o que significou, no plano doméstico, importante movimento de inclusão política, social e econômica com repercussões significativas sobre a política externa de tais países, basicamente daqueles onde as mudanças políticas foram mais profundas, como na Bolívia e no Paraguai.
Na agenda de política externa do Brasil, houve a valorização de estratégias solidárias no combate às assimetrias regionais e a adoção de uma concepção menos comercialista de integração regional, mais focada em aspectos políticos e sociais, o que não significou abandono da política de projeção externa mediante internacionalização econômica, nem do objetivo de integração sul-americana traçado no governo anterior.
O Brasil, sob Lula da Silva, chamou a si certas responsabilidades pela superação das assimetrias regionais e recebeu importantes demandas por parte de seus vizinhos, particularmente Bolívia e Paraguai. Em duas ocasiões principais, o Brasil foi levado a conciliar, em termos práticos e discursivos, os seus princípios de política externa com ações concretas em resposta a demandas que envolviam setores e interesses estratégicos nacionais: a nacionalização dos hidrocarbonetos pela Bolívia (2006) que atingia interesses do Brasil através da presença da Petrobrás naquele país e as demandas do governo paraguaio de renegociação do Tratado de Itaipu (2007). Em ambos os casos, o Brasil foi confrontado com a necessidade de responder às demandas conciliando suas aspirações de política externa a limitações políticas internas. As decisões tomadas pelo Brasil estiveram balizadas argumentativamente de forma pragmática em razões de médio e longo prazo ao evocarem o necessário sacrifício de interesses setoriais imediatos em benefício dos chamados interesses nacionais (de médio e longo prazo), vinculados à estabilidade política e ao desenvolvimento econômico e social da região. Os argumentos também transparecem a empatia política e ideológica do governo brasileiro em relação a seus pares ao evocarem a legitimidade das medidas tomadas (nacionalização dos hidrocarbonetos pela Bolívia) e a justeza das demandas (reivindicação de novos preços e condições de venda da energia pelo Paraguai).
Nesta seção, primeiramente contextualizam-se os dois contenciosos, analisando-se comparativamente a situação econômica, política e social dos países envolvidos. Em seguida, são descritos os contenciosos propriamente ditos.
O contexto político, econômico e social de Brasil, Bolívia e Paraguai
Como se afirmou anteriormente, os contenciosos aconteceram em um momento de grandes transformações internacionais com significativas repercussões regionais. Ao mesmo tempo em que a maior interdependência internacional favoreceu a busca por alternativas de desenvolvimento que levaram a identificação de interesses comuns em torno da integração física e energética na América do Sul, o receituário prescrito para a adequação de diferentes economias à nova dinâmica do capitalismo global promoveu grandes distúrbios internos, sobretudo em países mais vulneráveis.
Enquanto o Brasil pode fazer frente a tais desafios com relativo sucesso, Bolívia e Paraguai ressentiram-se mais intensamente. Na Bolívia, antigas clivagens sócio-políticas reavivaram-se ao mesmo tempo em que irromperam movimentos sociais com envergadura política capaz de contestar a ordem estabelecida. Entre 2000 e 2006 houve constantes crises políticas, sete trocas de presidente e dois grandes levantes populares, a Guerra da Água (1999) e a Guerra do Gás (2003). Após uma tentativa frustrada em 2002, Evo Morales chega ao poder em 2005 com 54% dos votos válidos. A eleição de Morales, índio Aymará, sindicalista e político de esquerda, marca uma ruptura e introduz uma nova agenda política na Bolívia. Com base em compromisso de refundação do ethos nacional mediante um novo pacto constitucional, o governo Morales ampliou os direitos civis à população indígena e promoveu a nacionalização dos recursos naturais. As reformas necessárias para viabilizar tais compromissos foram arduamente conduzidas tendo havido momentos de grande tensão interna e externa face à possibilidade de cisão do país (MEIRA, 2009; DUARTE; SARAIVA; BONÉ. 2008).
No plano externo, o governo Morales zelou pela demonstração de autonomia e independência na condução dos interesses nacionais do país redefinidos no bojo do movimento que possibilitou a transformação política daqueles anos. Isso repercutiu nas negociações com o Brasil em torno da nacionalização dos hidrocarbonetos, e foi feito de tal forma que surpreendeu quem esperava maior entendimento entre governos de matiz ideológico semelhante. No entanto, percebeu-se que pressões políticas internas, associadas a uma percepção negativa da projeção externa do Brasil, impuseram-se de forma marcante. Mobilizaram-se sentimentos profundos quanto à espoliação externa sofrida historicamente pela Bolívia e reacendeu-se o nacionalismo, algo inesperado para quem, como o Brasil nos anos 1990, estabeleceu com a Bolívia relações de cooperação estruturalmente institucionalizadas e articuladas a um projeto maior de integração regional como foi a Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA).
No Paraguai, Fernando Lugo chega à Presidência tendo vencido, com 40,83% dos votos válidos, as eleições de 20 de abril de 2008, como candidato da Aliança Patriótica para a Mudança (APC), uma coligação de forças de esquerda e tradicionais, ancorada na mobilização popular e com apelo nacionalista Essa vitória mudou o cenário político paraguaio, dominado, desde 1947, pelo Partido Colorado. Lugo, ex-bispo da Igreja Católica, assume o poder comprometido com uma agenda de reformas internas voltadas à inclusão social e política e ao desenvolvimento econômico, incluindo o Paraguai no grupo de países sul-americanos com governos de esquerda (BLANCO, 2009).
No que concerne às relações externas particularmente ao Brasil, o principal ponto da agenda foi o compromisso, amplamente apoiado pela população, de exigir a renegociação dos termos do Tratado de Itaipu firmado com o Brasil em 1973, considerados lesivos aos interesses do Paraguai. (CORTÊS, 2008). O governo Lugo retoma três antigas reivindicações relativas ao preço da energia vendida ao Brasil, à cláusula preferencial de venda dos excedentes de energia para o Brasil e ao aumento da participação do Paraguai na gestão de Itaipu Binacional.
No Brasil, a chegada do ex-sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva ao poder, em 2003, representou um avanço político sem igual na história do país, particularmente porque não produziu rupturas institucionais. A manutenção do compromisso com o equilíbrio macroeconômico juntamente com a adoção de políticas redistributivistas capacitou a economia brasileira para superar as crises mundiais e para projetar-se externamente. Lula da Silva manteve e intensificou a política de integração sul-americana (Couto, 2010) e incentivou a internacionalização econômica (Menezes), o que suscitou demandas e estimulou desconfianças.
Interdependência
Juntos, Brasil, Bolívia e Paraguai conformam uma área superior a dez milhões de quilômetros quadrados, com mais de duzentos milhões de habitantes e com um PIB que soma mais de três trilhões de dólares. Contudo, se tomado separadamente, o Brasil lidera desproporcionalmente em todos esses índices; possui mais de 80% da superfície e da população e, no que diz respeito ao PIB, o do Brasil supera os US$ 3 trilhões face ao da Bolívia, em torno de US$ 45 bilhões e ao do Paraguai, próximo de US$ 29 bilhões. Apesar dessa discrepância, em aspectos pontuais o poder de barganha da Bolívia e do Paraguai em relação ao Brasil é considerável devido à respeitável interdependência de cada um com o Brasil (Anuário Estatístico da CEPAL, 2009).
No caso da Bolívia, deve-se considerar, além das questões decorrentes de sua extensa fronteira com o Brasil (3.400 Km), a intensificação das relações bilaterais na área energética. Tópico recorrente nas relações dos dois países desde a década de 1930, a cooperação em torno da exploração dos recursos naturais (petróleo e gás) bolivianos pelo Brasil teve desfecho positivo apenas nos anos 1990 no contexto regional de redemocratização e de adoção de políticas neoliberais. A reaproximação teve início ainda sob o governo de Fernando Collor no Brasil e seqüência nos governos subseqüentes sendo que grande impulso lhe foi dado durante o governo de Fernando Henrique Cardoso o qual definiu o estreitamento das relações com a América do Sul como uma de suas prioridades. No marco dessa cooperação, foi construído o gasoduto Bolívia-Brasil com 3.150 Km interligando e abastecendo sete estados brasileiros (MS, SP, MG, RJ, PR, SC, RS) responsáveis por mais de 80% do PIB nacional. A Petrobrás passou a operar de forma crescente na Bolívia, onde criou a Gasbol, inaugurada em 1999, ano em que passa a administrar as Refinarias Guillermo Elder Bell e Gualberto Villaroel como sócia majoritária da Empresa Boliviana de Refinación S/A. A Petrobrás chegou a atuar em toda a cadeia produtiva (exploração, produção, comercialização, transporte, processamento, refino) onde investiu, entre 1996-2006, mais de US$ 1,5 bi. Em 2006, a Petrobrás era responsável por cerca de 18% do PIB da Bolívia; 22% dos tributos recolhidos e 20% dos investimentos diretos realizados naquele país, era a maior empresa da América Latina na Bolívia. Em 2007, o Brasil importou 69% do gás produzido na Bolívia o que correspondia, aproximadamente, a 62% do gás consumido no país. Esses números mostram a dependência mutua de Brasil e Bolívia. Enquanto o primeiro tornara-se dependente do gás boliviano ao incentivar, nos anos 1990, a diversificação da matriz energética nacional sem possuir fontes alternativas, a Bolívia passou a depender do mercado, da tecnologia e dos investimentos brasileiros (MEIRA, 2009; DUARTE; SARAIVA; BONÉ. 2008).
No caso do Paraguai, os fatores de dependência mútua envolvem tanto questões relacionadas à presença de mais de 300 mil brasileiros (brasiguaios) no Paraguai e à permeabilidade da chamada região da Tríplice Fronteira, quanto a exploração conjunta de recursos hídricos através da Itaipu Binacional. Convém lembrar que duas questões estratégicas foram "resolvidas" com esse empreendimento: os problemas de demarcação de fronteiras e o abastecimento de energia (ROLÓN, 2010).
Segundo dados oficiais (http://www.itaipu.gov.br/energia/geracao acessado em 29/06/2011), as 20 unidades geradoras de Itaipu fornecem 16,4% da energia consumida no Brasil e 71,3% da consumida no Paraguai. Em 2010, a hidrelétrica, considerada a maior do mundo em geração de energia, produziu o suficiente para suprir o equivalente ao consumo do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul por mais de um ano. Esses dados indicam a relevância dos recursos ali produzidos, além dos demais aspectos que estreitam a interdependência entre Brasil-Paraguai.
O interesse geopolítico e estratégico do Brasil na região, manifestado ao longo de sua história em diferentes ocasiões e de diversas maneiras, reaparece nos anos recentes num contexto propício a sua projeção externa. Contudo, a experiência alerta para os possíveis impactos negativos dessa projeção. Muito facilmente pode ser identificado na expansão regional do país alguma intenção de dominação ou "imperialista". Consciente dessa possibilidade, o governo Lula da Silva fez acompanhar suas ações de um discurso dissuasivo de animosidades. Logo em seu discurso de posse, Lula evocou a responsabilidade histórica do Brasil perante seus pares sul-americanos por quem o país podia e deveria fazer mais, num esforço de antecipação às demandas e de construção de uma imagem positiva do país.
O contencioso Brasil-Bolívia
O contencioso que envolveu Brasil e Bolívia desenrolou-se entre 1º de maio de 2006, quando governo boliviano de Evo Morales promulgou decreto visando a nacionalização dos recursos naturais, a estatização das empresas que operavam no setor e a renegociação dos contratos de exportação, e junho de 2007, quando houve a assinatura de novos contratos.
A promulgação do decreto foi acompanhada de invasões militares em mais de cinqüenta instalações de empresas estrangeiras que operavam no setor de hidrocarbonetos na Bolívia. Essa medida causou comoção no Brasil, sobretudo porque havia a expectativa de que os governos de ambos os países, ideologicamente próximos, dispensariam essa forma de pressão em suas mutuas relações.
As negociações iniciadas em 15 de maio de 2006 entre Brasil e Bolívia envolveram dois assuntos principais a nacionalização dos recursos naturais e a estatização das refinarias. A nacionalização dos recursos naturais já havia sido aprovada em plebiscito realizado na Bolívia em 2004, ainda sob o governo de Carlos Mesa. As negociações foram conduzidas pela Bolívia de modo a obter a nacionalização dos recursos naturais, a manutenção do fluxo de investimentos, o controle acionário das empresas e a indicação da maioria de seus diretores. Pelo Brasil, as negociações foram encaminhadas no sentido de minimizar as perdas e manter as operações na Bolívia, ou seja, no sentido de não produzir rupturas e de satisfazer as demandas bolivianas até o limite em que a situação política no Brasil permitisse (KOHLRAUCH, 2010).
Em outubro de 2006, a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) assume a propriedade sobre os hidrocarbonetos. A Petrobrás, por seu turno, mantém-se na Bolívia produzindo gás natural, em condição melhor do que simples prestadora de serviços uma vez que, além de operadora, permanece como responsável pelo desenvolvimento do setor no país. Em maio de 2007, a Bolívia compra as refinarias por US$ 112 mi depois de ter oferecido US$ 60 contra os US$ 200 demandados pela Petrobrás. Com isso, a Petrobrás teve um prejuízo de aproximadamente 2% do lucro de 2006, uma rentabilidade de 15% durante os 30 anos do novo contrato e manteve-se operando na Bolívia como a maior empresa latino-americana. (MEIRA, 2009; DUARTE; SARAIVA; BONÉ. 2008).
O contencioso Brasil-Paraguai
Em seguida, aborda-se o contencioso entre Brasil e Paraguai transcorrido entre maio de 2008, quando Fernando Lugo pede a revisão do Tratado de Itaipu ao Brasil, e setembro de 2009, quando Brasil e Paraguai assinam as Notas Reversais sobre as Bases Financeiras do Anexo C do Tratado de Itaipu.
As demandas do Paraguai foram basicamente a compatibilização do preço da energia vendida ao Brasil aos preços de mercado; a supressão da cláusula preferencial de venda dos excedentes de energia para o Brasil e a ampliação da participação paraguaia na gestão de Itaipu Binacional. Em princípio, o governo brasileiro manteve-se inarredável quanto a impossibilidade de renegociar o Tratado o que deu a entender que haveria um impasse. Contudo, essa postura do Brasil não significava irredutibilidade quanto a atender às demandas do Paraguai sem que isso implicasse, ou fosse admitida como necessária, a renegociação do Tratado. Ao longo das negociações, o governo brasileiro mostrou-se sensível às demandas e disposto a compensar as eventuais perdas do Paraguai mediante investimentos e programas de cooperação. Concretamente, os termos do acordo negociado favoreceram enormemente ao Paraguai. O acordo triplica o valor da energia cedida pelo Paraguai para o Brasil; estabelece que a Agencia Nacional de Eletricidad (ANDE) poderá vender o excedente de energia a outras empresas do mercado brasileiro que não Eletrobrás, e que, a partir de 2023, isso poderá ser feito a outros mercados que não o brasileiro (TRINDADE, 2010).
Além dos custos materiais desse acerto, houve importantes custos políticos internos para o Brasil. Embora, o governo brasileiro tenha sinalizado desde o início sua disposição para ir ao encontro das demandas paraguaias, muitos setores da sociedade brasileira se ressentiram diante da possibilidade de o país ver-se privado, no futuro, do acesso ao excedente de energia produzida por Itaipu e também diante do iminente aumento do custo da energia no Brasil. Por essas e outras razões, o governo brasileiro foi acusado de descuidar dos interesses nacionais e de agir no plano externo movido por convicções político-partidárias e ideológicas. As autoridades brasileiras evocaram razões de médio e longo prazo, vinculadas à estabilidade e prosperidade regional, para defender uma concepção de interesse nacional desvinculada de interesses setoriais. Dessa perspectiva, certas perdas no curto prazo seriam justificadas pelos ganhos de médio e longo prazo.
A argumentação oficial
Uma vez que nos propusemos a identificar os argumentos utilizados para produzir efeito persuasivo, de convencimento, de formação de opinião em diferentes públicos, selecionamos pronunciamentos e discursos que tiveram ampla divulgação na mídia, as chamadas free informations capazes de gerar efeitos de soft power (Keohane, Nye, 1998), proferidos pelo Presidente Lula da Silva e pelo Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim.
Durante as negociações, as autoridades brasileiras pronunciaram-se publicamente evocando a legitimidade das demandas de Bolívia e Paraguai e em defesa dos interesses do Brasil1, definidos em termos de ganhos de médio e longo prazo decorrentes da estabilidade e prosperidade regional. Com base nessa argumentação, o governo brasileiro justificou as eventuais perdas havidas durante as negociações.
Identificamos dois eixos argumentativos. O primeiro diz respeito a quais seriam os interesses do Brasil; o segundo refere-se a como atingir tais interesses nas relações com seus pares regionais.
O eixo (I), relativo à identificação (o que) dos interesses nacionais, pode ser subdividido em três planos de argumentação. O primeiro (A) plano evoca os interesses do Brasil a médio e longo prazo definidos em termos de estabilidade, paz e prosperidade regional. O segundo (B) plano alude aos aspectos capazes de assegurá-los: a promoção do bem-estar, do desenvolvimento e da confiança. O terceiro plano (C) diz respeito ao que seria propiciado em termos concretos (intensificação dos investimentos, cooperação agrícola, energética e em infra-estrutura, industrialização, controle da imigração, aumento das transações, complementaridade das elites, redução das assimetrias, entre outros) nessas circunstâncias e que atenderia aos interesses nacionais definidos no primeiro plano.
O eixo (II), relativo a como atingir tais interesses, pode ser dividido em três planos. O primeiro (A), identifica a forma propriamente dita (negociação, cooperação); o segundo (B), os princípios que fundamentam a prática (generosidade, solidariedade, compreensão, justiça, respeito, responsabilidade), e o terceiro (C), os possíveis resultados (previsibilidade, transparência, confiança.).
A Figura abaixo representa esquematicamente os eixos acima e permite visualizar a compatibilidade entre os resultados esperados em um e outro eixo denotando consistência lógica e complementaridade dos discursos.
Como dito acima, objetivo (assegurar o interesse nacional a médio e longo prazo, definido em termos de estabilidade, paz e prosperidade regional) e meios para atingi-lo (negociação, cooperação, baseados na generosidade, solidariedade, compreensão, justiça, respeito e responsabilidade) são congruentes com os resultados concretos esperados (Eixo I, Plano C) a serem atingidos em um clima de confiança, transparência e previsibilidade das relações regionais (Eixo II, Plano C)
Considerações Finais
A pesquisa desenvolvida até o momento permitiu identificar um duplo esforço argumentativo por parte das autoridades governamentais para, por um lado, reeditar a compreensão de interesses nacionais do Brasil redefinindo-os de forma a incluir a estabilidade e prosperidade regional nos cálculos e para, por outro lado, dissipar junto aos pares sul-americanos a idéia de Brasil imperialista e com pretensões hegemônicas.
Da análise dos discursos, também foi possível discernir os resultados concretos almejados a médio e longo prazo, como o crescimento e desenvolvimento econômico, a intensificação dos fluxos materiais (investimentos, comércio, tecnologia), a estabilização da imigração, a serem atingidos mediante cooperação e negociação que por sua vez assegurariam o ambiente propício de previsibilidade, transparência, confiança mútua, essenciais para atingir os resultados almejados.
A partir dessa análise, mesmo que parcial, poder-se-ia dizer que a argumentação das autoridades brasileiras revelam esforços no sentido de gerar as condições essenciais ao sucesso da integração regional, identificadas na literatura sobre o tema e analisadas por nós em outra ocasião (MALLMANN, 2010). Entre tais condições estariam um ambiente de previsibilidade, transparência e confiança mutua; o aumento das transações e a existência de uma liderança disposta a investir no processo.
Referências bibliográficas
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1. Embora tenha havido posicionamentos de autoridades brasileiras, aparentemente contraditórios, quanto à disposição do Brasil em negociar certos pontos, considera-se, aqui, que a análise desses aspectos deve ser realizada no âmbito de uma abordagem do processo de negociação propriamente dito.