ISBN 2236-7381 versión
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3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011
A reforma do conselho de segurança: uma questão de legitimidade e autoridade*
Mariana Pimenta Oliveira Baccarini
Universidade Federal de Minas Gerais
RESUMO
Responsável pela paz e pela segurança internacionais, o Conselho de Segurança (CS) é um dos principais órgãos da Organização das Nações Unidas. No entanto, desde o fim da Guerra Fria e a reconfiguração do poder no cenário internacional, diversos países e instituições vêm pedindo a reforma do Conselho devido a perda de autoridade e legitimidade deste, argumentando que a distribuição do poder internacional atualmente não está refletida na distribuição de assentos do órgão. Seguindo esta linha de raciocínio, este trabalho visa única e exclusivamente analisar proposições teóricas de diversos autores da ciência política a respeito da legitimidade e autoridade das instituições, tentando levar suas argumentações ao plano das relações internacionais de forma livre, em especial ao Conselho de Segurança. Longe de pretender elaborar uma proposta para sua reforma, este trabalho busca esclarecer um pouco mais porque a reforma do Conselho vêm se tornando algo urgente e inevitável, caso se queira manter a legitimidade e autoridade do órgão e da Organização das Nações Unidas em geral.
Palavras- chave: Conselho de Segurança; legitimidade; autoridade; processo de tomada de decisão; Organização das Nações Unidas
O Conselho de Segurança e seu Processo de Tomada de Decisão
Dentre os objetivos da ONU e de acordo com os artigos 24 e 39 da Carta das Nações Unidas, a manutenção da paz e segurança internacionais é de responsabilidade principal do CS (ONU, 1945), órgão que pode fazer recomendações, decidir e executar as medidas necessárias, inclusive sanções militares contra Estados, em casos de "ameaça contra a paz, ruptura da paz ou ato de agressão", para "manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais" (ONU, 1945). O Conselho é composto por quinze membros (ONU, 1945) onde as potências vencedoras da Segunda Guerra estão representadas. Na Conferência de Yalta, 1945, estabeleceu-se que seus membros se difeririam em membros permanentes e não-permanentes (transitórios), sendo os últimos eleitos pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, por um período de dois anos (CASTRO, 2006). Já os artigos 23 e 27 dispõem que os membros permanentes detêm o chamado poder de veto que implica que qualquer decisão tomada pelo órgão não deve sofrer oposição de nenhum destes (ONU, 1945).
A tomada de decisão do CS é estabelecida por um sistema misto que exige dupla maioria, quantitativa e qualitativa. Desta forma, para que uma decisão do Conselho seja tomada, faz-se necessária a aquiescência de nove votos favoráveis, incluindo a unanimidade dentre os membros-permanentes (Estados Unidos, China, França, Inglaterra e Rússia), visto que detém o poder de veto, exceto em questões procedimentais em que são necessários nove votos afirmativos de quaisquer dos quinze membros (CASTRO, 2006; ONU, 1945). As decisões emanadas do órgão são consideradas impositivas, devendo ser obedecidas pelos Estados- Membros da Organização das Nações Unidas, sob risco de sanção (ONU, 1945).
Para além dos aspectos formais da tomada de decisão do CS, descritos na Carta, estudiosos apontam diversas variáveis e estratégias que influenciam informalmente nestes processos e nos resultados das negociações.
Em relação ao CS, uma das principais discussões permeia a relevância ou irrelevância dos membros não-permanentes no processo de tomada de decisão. Para O'Neill (1996), os membros não-permanentes do CS teriam um pequeno poder visto que só fariam diferença caso os cinco membros permanentes mais exatamente três membros não permanentes dessem suporte a uma resolução. Mais do que três membros não permanentes, seu voto se torna redundante e, menos de três, ineficiente. Na mesma lógica, ao adicionar um novo membro não-permanente no órgão, este poder diminuiria ainda mais, pois daria aos membros permanentes um maior número de Estados com quem formar a maioria necessária. Um assento no CS, sem a detenção do poder de veto, traria prestígio, informação e envolvimento nas decisões, mas não poder de votação. Por sua vez, o aumento da maioria requerida poderia aumentar este poder, apesar de correr o risco de tornar o Conselho mais truncado e as Nações Unidas menos efetiva (O'NEILL, 1996).
A necessidade da reforma formal do Conselho de Segurança
Durante os sessenta anos de existência da ONU, somente uma alteração foi feita referente ao número de assentos do CS, aumentando os membros não permanentes do órgão de 6 para 10, formalizada em 1965. Para que esta mudança fosse realizada, dois terços dos Estados membros da AG tiveram que ratificar e os membros permanentes do CS tiveram que aprovar a Resolução 1990, adotada pela AG em 1963, que propunha o alargamento do órgão de 11 para 15 membros e a maioridade requerida de 7 para 9. O poder de veto foi mantido intacto (WEISS, 2003).
Ainda na Conferência de São Francisco, vários delegados se mostravam insatisfeitos com o papel especial que seria dado aos Estados poderosos, expresso com o poder veto, mas também não queria impedir a criação da organização, esperando que uma nova conferência entre os Estados membros da ONU seria realizada rapidamente para discutir mudanças na Carta e na estrutura organizacional. O que não ocorreu. Os membros permanentes, ou P5, como são conhecidos, resistiram, demonstrando claramente suas intenções de manter o poder de veto (WEISS, 2003).
A vantagem dos membros permanentes sobre os outros Estados, no entanto, não se restringe ao poder de veto. A memória institucional desenvolvida pelo P5 facilita a habilidade destes em "manejar as regras e procedimentos a seu favor, construir relações com o Secretariado da ONU que possam ser de assistência de longo prazo e entender melhor a forma e a substância do trabalho do Conselho" (ROMITA; CHOWDHURY; PAPENFUSS, 2011, p.2. Tradução livre). Além disso, o P5 dispõe de missões com melhores staff e recursos e um número maior de embaixadas e representantes que possa prover informações na hora da decisão (ROMITA; CHOWDHURY; PAPENFUSS, 2011).
Com o fim da descolonização, o fim da Guerra Fria e o desmantelamento da União Soviética, dezenas de Estados passaram a fazer parte do sistema ONU e a buscar uma maior representação de seu número e interesse no CS e na ONU de forma em geral. Esta demanda se encontra ancorada no artigo 2 da Carta, que enfatiza "o princípio da igualdade soberana de todos seus Membros", ou seja, na igualdade entre os Estados, e não no impacto prático no órgão (WEISS, 2003).
Hurd (1997) argumenta que mudanças de posições de poder relativo dos estados gerariam uma necessidade de mudança interna no CS, o que poderia ocorrer de duas formas: 1) mudanças na estrutura formal, onde ocorreria reconfiguração oficial da estrutura da organização; 2) e através de mudanças na estrutura informal, ou seja, em práticas e rotinas do órgão sem reestruturação formal (HURD, 1997).
Como mudanças formais são mais difíceis que inclusões informais de estados, o CS realizou modificações em seus procedimentos e práticas no decorrer dos anos, buscando aumentar a abertura e a accountability do órgão, assim como possibilitar diferentes inputs na tomada de decisão. Consultas entre membros do CS e não- membros podem então serem consideradas um desenvolvimento na estrutura informal. Estas consultas normalmente são feitas com os Membros do Movimento dos Não Alinhados (NAM) e contribuintes de tropas e materiais das operações de paz, no entanto, estados como Alemanha e Japão são consultados em praticamente todas as questões pelos Estados Unidos, Inglaterra e França, mesmo quando não ocupam assentos não-permanentes, devido a sua posição econômica. Outros Estados, por sua vez, são incluídos nas deliberações em questões específicas (como Israel) (HURD, 1997).
Para alguns autores, no entanto, uma reforma substantiva é uma ilusão, pois o poder incontestável dos EUA tornaria os esforços para consegui-la irrelevantes. Segundo Weiss, "os esforços do Conselho de Segurança para controlar a ação dos EUA está começando a se assemelhar os esforços do Senado Romano para controlar o imperador" (WEISS, 2003, pg.152. Tradução livre). Ainda segundo Weiss, as operações militares realizadas pela ONU só ocorrem com o consentimento de Washington (WEISS, 2003).
Esta inabilidade de reformar a Carta comprometeria a credibilidade do CS? Provavelmente não, de acordo com Weiss, ou não mais do que no passado. E mesmo que essa reforma se tornasse possível, não alteraria a questão do veto e a predominância dos EUA (WEISS, 2003).
Outras questões também dificultam a formalização da reforma. Apesar deestar na pauta da ONU há anos, e ser frequentemente lembrada por Estados interessados, intensas negociações e concessões entre blocos regionais, em consulta com o P5, teriam que ocorrer. Disputas regionais poderiam bloquear a votação na AG e impedir a obtenção da maioria requerida (ROMITA; CHOWDHURY; PAPENFUSS, 2011).
No entanto, se por um lado alguns autores afirmam que uma ampliação dos membros do CS poderia gerar problemas de eficiência, por outro também afirmam que o CS sobre com um déficit de legitimidade, pois sua composição não representa de forma equânime a comunidade internacional (ROMITA; CHOWDHURY; PAPENFUSS, 2011). E é neste último aspecto que passamos agora a nos focar.
Autoridade e Legitimidade do Conselho de Segurança: perspectivas teóricas
Raz
Para Raz, a questão de legitimidade é intrinsicamente relacionada com a questão da autoridade, tendo como questão central a obediência. Assim, a obediência é legítima se se justifica. Para tanto, as razões para a obediência são válidas na medida em que são razões para ação. O critério de validade da norma deve ser diretiva, "autoritativa", ou seja, há a necessidade de autoridade para estabelecer ordem e diretivas para os indivíduos. Estas razões são independentes do conteúdo, não havendo relação direta entre razão e ação. Podemos reconhecer que há uma razão para agir, mas mesmo assim não agirmos. Ou, ao contrário, podemos achar que não há razões para agir e mesmo assim obedecermos a diretiva (RAZ, 1986).
Assim, a autoridade se justifica quando diretivas postas representem razões para agir, sendo que esta autoridade não inventa diretivas, mas apresenta aquelas em que os indivíduos já reconhecem como razões para agir. Desta forma, não são as sanções que asseguram a obediência, a autoridade transforma razões em diretivas, em lei pela racionalidade da própria lei, estabelecendo instituições (RAZ, 1986).
A autoridade é exercida pelas dinâmicas das instituições, sendo diferente de poder. Quando não há obediência, saímos da normalidade para a exceção, não existindo mais a autoridade, que é substituída pela lógica do poder, de imposição pela força. Durante a exceção não existe liberdade, que é atributo da autoridade (RAZ, 1986). A justificativa deve ser partilhada, apesar de não pelo consenso. Quando não há muita obediência e racionalidade reconhecida na justificativa, há uma crise da legitimidade. Para tanto, deve-se haver um mínimo de eficácia da lei, da diretiva (RAZ, 1986).
Uma das grandes questões que permeiam as negociações na ONU a respeito da reforma do Conselho de Segurança diz respeito ao aumento do número de membros permanentes e não-permanentes, de forma a torná-lo mais representativo e legítimo. Isto se deve pela mudança no cenário internacional e por inúmeros países o considerarem não representativo. Assim, com o fim da Guerra Fria, observamos variadas violações à Carta das Nações Unidas, que determina que ao Conselho cabe as decisões a respeito da paz e da segurança internacionais. O Conselho e suas decisões vêm sendo contestados, não obedecidos e muitas vezes desafiados, principalmente por Estados econômica e militarmente fortes.
Estes Estados que desafiam a Carta não aceitam as diretivas do CS como razões para ação, atropelando suas decisões ou mesmo impedindo que estas sejam tomadas. Várias foram as situações em que Estados (principalmente os Estados Unidos, ou a OTAN, liderada por estes) agiram por conta própria, não respeitando a autoridade do CS. Os casos da Guerra da Bósnia de 1992 e a Guerra do Iraque de 2003 são talvez os principais exemplos, com conseqüências diversas.
Rosanvallon
De acordo com Rosanvallon (2008), em resposta à crise da representação e desconfiança com as instituições representativas, alguns autores apostam na imparcialidade como fator de legitimidade via despolitização de questões e propagação do modelo de autoridades independentes. Estas autoridades, imunes à política e imparciais quanto aos interesses, se propagaram durante a década de 80 em busca da transparência do procedimento, a eficácia, avaliando-se permanentemente o desempenho, e o controle, através dos mecanismos de controle (ROSANVALLON, 2008).
Esta imparcialidade qualificaria o processo de delegação, através da despolitização, priorizando o lado técnico, de gestão, valorizando as burocracias. Isto se daria pela aproximação da ordem tecnocrática, pelo domínio e eficácia devido a demandas crescentes pela imparcialidade. Assim, a legitimidade seria alcançada pela eficácia, medida pelo desempenho da instituição, onde o poder jurídico e administrativo se sobreporia à política (ROSANVALLON, 2008).
No entanto, para Rosanvallon, a imparcialidade não pode substituir a política, o poder administrativo não substitui o poder político pelo problema dos interesses e a contínua reprodução de conflitos e desigualdades. Para o autor, tentar repolitizar conflitos é confiar na capacidade política de resolução das pessoas e buscar a legitimidade democrática, pela sustentação da política e repolitização das questões, havendo necessidade de reconstrução da autoridade política (ROSANVALLON, 2008).
A legitimidade democrática tem que ser plural, pois a democracia não se restringe às eleições. O Judiciário tem seu papel nas democracias, mas não pode junto com a Administração se transformar na fonte de legitimidade pelo processo de despolitização e o argumento da imparcialidade. Para Rosanvallon, a representação deve se associar a outras formas consultivas e participativas, pelo fortalecimento da democracia (ROSANVALLON, 2008).
Outro questionamento do autor diz respeito às formas de democracia eleitoral e participativa, em que a primeira se foca unicamente nas eleições, sendo a atividade política uma continuidade do momento eleitoral que a constitui, e a segunda uma reconstrução da idéia de democracia direta, através da desinstitucionalização radical da política. O problema das diferenças, do pluralismo, das questões de identidade e minorias são o ponto de partida para sua abordagem da Democracia Reflexiva (ROSANVALLON, 2008).
A democracia representativa deve ser vista pela multiplicação funcional das instâncias de representação, arquitetando uma soberania complexa aos moldes de Condorcet. Nesta, há a distinção entre povo eleitoral, povo social e povo princípio, coabitando a comunidade política. O povo eleitoral é a sucessão de minorias ativas ou passivas, a minoria que governa; o povo social é o lugar da contra-democracia, uma posição crítica da cidadania frente às instituições e seu desempenho; e o povo princípio centraliza os direitos fundamentais, o princípio de igualdade. A legitimidade advém de múltiplos fóruns de negociação tendo em vista os três povos, múltiplas instâncias e instituições (ROSANVALLON, 2008).
Para Rosanvallon, a reflexividade visa um equilíbrio da noção de soberania, entre questões procedimentais e substantivas, equilibrando dimensão política e jurídica, que podem se encontrar, mas não se sobrepor. A soberania complexa se dá pela multiplicação de soberanias, pela pluralidade. A reflexividade e a complexidade da idéia de representação política não é só criada na dimensão eleitoral, mas também pela multiplicação de instituições, em que o julgamento político e judicial não devem se sobrepor e o constitucionalismo jurídico e a democracia devem se equilibrar (ROSANVALLON, 2008).
Por fim, o último ponto que Rosanvallon apresenta acerca da legitimidade é a possibilidade de legitimidade por proximidade, que advém da própria cidadania. Há uma valorização da participação em oposição à representação. Uma valorização da dinâmica local e da participação ampliada dos cidadãos na formulação da política pública, através das quais a cidadania aproxima instituições e sociedade civil. As instituições reconhecem então as diferenças e particularidades, onde o que é generalizado é a atenção a essas particularidades, gerando políticas de atenção (ROSANVALLON, 2008).
Para o autor, seja por imparcialidade, reflexividade ou proximidade com a sociedade civil que se obtenha a legitimidade de uma ordem política, a despolitização é o pior caminho, sendo necessário recuperar o político e o conflito, sem abandonar essas perspectivas. Há uma necessidade que a democracia resgate o político e construa uma autoridade democrática que rompa com a crise da representação sem a ocorrência da despolitização (ROSANVALLON, 2008).
Trazendo o argumento do autor para o âmbito das relações internacionais, podemos concluir que, segundo sua linha de raciocínio, o Conselho de Segurança sofre com uma crise de representação e desconfiança sem que, no entanto, a despolitização seja o melhor caminho. Não seria desta forma o caso de extinguir o Conselho e levar as questões por ele resolvidas a órgãos judiciais como a Corte Internacional de Justiça, mas de reformular sua legitimidade pela fragmentação de sua "soberania" na resolução da paz e segurança internacionais através da imparcialidade, reflexividade e proximidade, reconstruindo sua autoridade política.
A pluralidade e o grau de complexidade das questões internacionais que envolvem a paz e segurança de Estados e Nações devem ser enfrentadas através de vias também plurais, onde somente a eleição de membros não-permanentes de 2 em 2 anos e as votações realizadas por esse grupo de 15 Estados representados no Conselho não dão conta de impingir uma legitimidade a suas decisões, mesmo com a inclusão de outros membros ou não membros da ONU através das negociações informais. Essa pluralidade foi vivenciada pelos Estados através da reformulação das práticas do CS com o fim da Guerra Fria. A multiplicação das operações de paz com variadas funções, desde apaziguamento e congelamento de conflitos às destinadas à reconstrução das instituições estatais, demonstram como as funções do CS estão cada vez mais complexas, demandando ajuda de outras instituições, ONG's como a Cruz Vermelha e a Anistia Internacional, e mesmo empresas e consultorias que auxiliam na reconstrução dos Estados, para garantir a manutenção da paz e segurança internacionais
A argumentação do autor a respeito da necessidade de uma multiplicidade de instituições enfrenta problemas políticos nas relações internacionais. Os Estados, em decorrência das grandes guerras do século XX, aceitaram e negociaram a criação de uma organização internacional que garantisse a segurança de todos sendo minimamente representativa. No entanto, apesar de várias instituições políticas contribuírem para a manutenção da paz e segurança internacionais, o CS é a única responsável por tomar tais decisões. Creio que a emergência de uma nova instituição política que dividisse essa capacidade decisória poderia gerar efeitos perversos, em que cada Estado se voltaria novamente aos seus interesses particulares, não aceitando essa multiplicidade. Para os Estados, dividir sua soberania nas questões que envolvem segurança com uma organização multilateral como a ONU já foi uma decisão complicada, dividir com mais de uma organização talvez ainda seja algo utópico.
Por outro lado, tanto o Conselho como a ONU em geral pecam pela falta de proximidade com a sociedade civil internacional que, muita vezes, é representada por ONG's que se auto-intitulam suas representantes. Não visualizo como essa proximidade poderia ser feita para além das ONG's, principalmente porque o CS é um órgão de representação estatal, e não de nações ou pessoas.
Michelman
Além disso, a Carta da ONU e os princípios estipulados por ela que criaram o CS são compreendidos de forma diferenciada pelos Estados. Para além de uma visão liberal, republicanos se preocupam com a virtude das constituições e das instituições, criticando a vertente procedimental em detrimento do substantivo.
Segundo Michelman (2003), o liberalismo preocupa-se com neutralidade tendo uma perspectiva contratualista abstrata, em que há a neutralização do exercício de poder no momento do estabelecimento da ordem constitucional através do véu da ignorância, permitindo estabelecimento de princípios e justificativas neutros. Para liberais, os princípios são justificados de forma neutra. A partir do consenso constitucional temos um mundo de procedimentos que julgarão os atos e leis de acordo com a própria constituição de forma neutra a partir dos princípios originários (MICHELMAN, 2003).
Para republicanos a questão não é de validade, mas de legitimidade de uma determinada lei, a moralidade de um ato político que deve ser moralmente justificado porque não se pode afirmar que as constituições estão sempre corretas. Há outra forma questionamento, não preocupada com a constituição, mas com o se "isto é moralmente correto?". A questão não é justificada só procedimentalmente, mas também por sua substância (MICHELMAN, 2003).
Mesmo quando procedimentalmente corretas, variados países e instituições representativas da sociedade civil, como as ONG's, questionam os procedimentos de tomada de decisão do Conselho e as decisões por ele tomadas. Alguns Estados criticam a substância das decisões e as consideram muitas vezes voltadas aos interesses das potências ocidentais, ou dos Estados Unidos em particular. As negociações no âmbito da ONU e do CS e o give and take entre diplomatas podem parecer por vezes obscuras, em detrimento das nações mais fracas, não representadas. Da mesma forma, ONG's apresentam questionamentos que permeiam outros tipos de interesses que não dos Estados, como a promoção e proteção dos direitos humanos e do meio ambiente.
Buchanan
De acordo com Buchanan (2002), o poder político é legítimo se, e somente se, protege os direitos humanos dos cidadãos, oferecendo mecanismos de proteção por meio de processos, ações etc, para viabilizar os direitos humanos, não promovendo a usurpação e não usando o poder coercitivo em benefício próprio. Segundo o autor, isto seria o "dever natural robusto de justiça" que promove a justificação do poder político justamente com a não coação das pessoas à obediência se não for por respeito à justiça (direitos humanos) e no reconhecimento da igualdade de tratamento, de respeito (BUCHANAN,2002).
O conceito do dever natural robusto de justiça tem a ver com o conceito de Estado democrático, sendo a democracia a condição necessária para legitimidade, considerando os direitos básicos de todos e a universalização dos direitos humanos (BUCHANAN,2002).
Esta linha de raciocínio leva, no sistema internacional, a um deslocamento do Estado para o indivíduo, ou à sociedade como um todo, em que os interesses dos Estados ficam subordinados aos interesses dos seres humanos, sendo a garantia da vida e a promoção dos direitos humanos um dos pilares de garantia da paz e segurança internacional. No entanto, apesar dos apelos de muitas ONG's e especialistas, os direitos humanos são, na maioria das vezes, utilizados como justificativas para intervenção e não pelo princípio em si, de forma a ocultar interesses particulares dos interventores sob a bandeira dos direitos humanos.
Cristiano
Para Cristiano (2004), tanto a concepção substantiva, focada na qualidade dos resultados, quanto a procedimental, focada na qualidade dos procedimentos são importantes para a prática democrática, tendo por objetivo uni-las em um dualismo baseado na justiça social e da razão independente do conteúdo (razão procedimental) (CRISTIANO, 2004).
Se por um lado há o pluralismo, onde não há consenso sobre as questões substantivas, por outro os cidadãos querem resultados, não estando preocupados com procedimentos. Em toda sociedade democrática há conflito de interesses, e depende da ordem pública equilibrar estas relações. Assim, a igualdade e a justiça sempre irão requerer a ordem política democrática, se entendida como igual avanço de interesses (CRISTIANO, 2004).
Mesmo que as faculdades cognitivas dos indivíduos sejam limitadas, a publicidade fraca é necessária, pois os indivíduos querem se tratados como iguais em uma sociedade, mesmo havendo desacordo sobre a justiça e desconhecimento de seus princípios e de seus interesses, entendendo-se por princípios de justiça o igual tratamento dos interesses (CRISTIANO, 2004).
Na democracia os conflitos são resolvidos com discussão, negociação e voto, através do qual os cidadãos julgam medidas enquanto justas ou não. A democracia deve realizar publicamente a busca de atendimento igualitário dos interesses e o igual respeito ao julgamento e participação, sendo a idéia de justiça intrínseca a idéia de democracia. E é a partir desta publicidade que se cria a autoridade democrática, que é baseada pela idéia de justiça social e igualdade democrática através das quais os cidadãos elaboram as leis. A autoridade democrática se constitui na representação (CRISTIANO, 2004).
Assim, na democracia o que é central são as regras e leis que são elaboradas. Por isso a autoridade das Assembléias são tão importantes. Dentro da ordem democrática, a equidade democrática (as liberdades, igualdades fundamentais) antecedem outras equidades (CRISTIANO, 2004).
Na ordem internacional, e no CS em especial, o princípio do igual tratamento de interesses nem sempre é respeitado. Nem todos os Estados podem levar as questões para a pauta do CS, tendo que fazê-lo via algum membro do órgão (permanente ou não) ou através do Secretário Geral da ONU. Da mesma forma, se o conflito de interesses nas democracias é resolvido por negociação e voto, grande parte dos Estados não estão representados no CS, muitas vezes não fazendo parte da negociação e com certeza não fazendo da votação, a não ser nos casos especificados de participação através de grupos, como apontados acima.
Assim, se os princípios democráticos e de justiça não são respeitados, não havendo justiça social e igualdade democrática, não existe, por sua vez, uma autoridade democrática, baseada na representação. Talvez, o mais próximo de uma autoridade democrática que exista na ordem internacional se dê na Assembléia Geral da ONU. No entanto, as resoluções da AG não são impositivas, mas unicamente recomendatórias.
Conclusão
A reforma do Conselho de Segurança da ONU é uma pauta difícil a ser enfrentada pelos Estados- membros da organização e do órgão em particular. O conflito de interesses existentes entre os que querem a reforma e os que relutam em aceitá-la, e entre as diferentes propostas, necessita ser resolvido dentro da própria organização.
Diferentes são as razões para apoiar essa reforma, sendo a principal delas a falta de representatividade do órgão, e a notória ausência de membros permanentes representantes do continente africano e sobre-representação de potências ocidentais (Estados Unidos, França e Inglaterra).
Para além dos aspectos procedimentais, os Estados devem se ater, neste momento, aos aspectos substantivos. O respeito às decisões do CS é um elemento essencial na manutenção da paz e segurança internacionais, e os inúmeros questionamentos quanto à legitimidade e autoridade do órgão e de suas decisões vêm contribuindo para o desencantamento de Estados e da população mundial com a ONU.
As perspectivas teóricas apresentadas por Raz (1986), Rosanvallon (2008), Michelman (2003), Buchanan (2002) e Cristiano (2004) ajudam na compreensão do problema e na busca por argumentos que visam convencer da necessidade da reforma para a manutenção da própria ordem internacional. No entanto, como estes autores apontam, uma reforma procedimental talvez não seja suficiente, se não se levar em consideração os aspectos substantivos.
Referências Bibliográficas
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* Este trabalho foi realizado com o apoio da Fapemig.