ISBN 2236-7381 versión
impresa
ISBN 2236-7381 versión impresa
3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011
Deslocamentos ambientais: o caso dos pequenos países insulares*
Environmental displacements: the case of small island states
Marina Rocchi Martins Mattar
Bacharel em Relações Internacionais pela Fundação Armanda Álvares Penteado (FAAP) e mestranda em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: marinamartins_br@yahoo.com.br
RESUMO
O deslocamento humano causado por efeitos climáticos adversos é, e tem sido por muito tempo, uma estratégia natural de adaptação à variação do meio ambiente. Contudo, a freqüência de desastres naturais e o impacto negativo da mudança climática têm aumentado consideravelmente afetando um número cada vez maior de pessoas. Tensões internas e externas causadas por deslocamentos em larga escala, além de conflitos originados pela escassez de recursos, aumento da proliferação de doenças e o reordenamento geopolítico são algumas das possíveis conseqüências encadeadas por este fenômeno. O caso dos pequenos países insulares que desaparecerão com o aumento do nível do mar é um exemplo extremo que gera fascinantes questões. O presente artigo busca analisar a relação da mudança climática com as dinâmicas de migração e explorará implicações políticas jurídicas e possíveis soluções, em especial, nos casos das populações de pequenos países insulares.
Palavras-chave: Deslocamento Humano, Mudança Climática, Pequenas Nações Insulares, Apatrídia
ABSTRACT
The human displacement caused by adverse weather conditions is, and has been for a long time, a natural strategy to adapt to environmental changes. However, the frequency of natural disasters and the negative impact of climate change have increased significantly affecting a growing number of people. Internal and external tensions caused by large-scale displacements, conflicts generated by resource scarcity, increased spread of diseases and geopolitical reordering are among the consequences linked to this phenomenon. The case of the small island nations that will be submerged by the sea level rise is an extreme example that raises fascinating questions. This article aims at analyzing the links of climate change on the dynamics of migration and exploring legal and political implications and possible solutions, in particular, for the populations from small island nations.
Keywords: Human Displacement, Climate Change, Small Island Nations, Statelessness
Deslocamentos Ambientais: O Caso dos Pequenos Países Insulares
O deslocamento humano causado por efeitos climáticos adversos1 tem sido por muito tempo uma estratégia natural de adaptação à variação do meio ambiente. No entanto, existe um consenso entre pesquisadores e políticos de que a crescente freqüência de desastres naturais e o impacto negativo da mudança climática afetará um número cada vez maior de pessoas nas próximas décadas e, conseqüentemente, o deslocamento humano aumentará. A comunidade internacional tem cada vez mais reconhecido o deslocamento ambiental2 como um dos maiores desafios políticos deste século. É uma crise mundial relativamente nova que ameaça a segurança humana e envolve questões de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais.
A mudança climática é um processo que é manifestado de diferentes formas, incluindo o "aumento nas temperaturas médias, muitas vezes chamado de 'aquecimento global'; alterações nos padrões de chuva levando a inundações, secas e, em algumas áreas, desertificação; condições meteorológicas extremas e imprevisíveis resultando em mais intensos e numerosos desastres naturais; e o derretimento das geleiras e das calotas polares resultando em aumento do nível do mar e erosão costeira, tornando as áreas de baixa altitude inabitáveis" (A. Guterres, 2008: 1).
John Holmes destacou que nove em cada dez desastres têm relação com o clima (J. Holmes in Refugee Studies Center, 2008: 4). Nos últimos vinte anos, o número de desastres registrados no mundo praticamente dobrou - apenas no ano de 2007, mais de 400 desastres naturais afetaram cerca de 234 milhões de pessoas, resultando em aproximadamente 16 mil mortes e deslocando milhões de pessoas (W. Kälin, 2008). De acordo com a Organização Internacional para a Migração (International Organization for Migrations - IOM), entre os anos de 1979 e 2008, 718 milhões de pessoas foram afetadas por tempestades e cerca de 1,6 bilhões de pessoas afetadas por secas (IOM, 2009: 264).
A relação entre a alteração climática e as migrações e deslocamentos humanos é um problema global inevitável, que já está acontecendo e que requer ações nacionais, sub-regionais, regionais e internacionais. No entanto, não existe um espaço comum no cenário internacional onde possam evoluir de forma ordenada as deliberações sobre possíveis respostas a este fenômeno.
Isso se deve pela grande dificuldade em conceitualizar e descrever de forma precisa o fenômeno dos deslocamentos ambientais. Até o momento, não há uma definição oficializada internacionalmente para este grupo de pessoas. Em resumo, os deslocados ambientais são pessoas que são obrigadas a deixar suas casas por já não desfrutarem de uma vida segura por causa dos efeitos, de curto e longo prazos, da mudança climática nos locais onde vivem.
Este fenômeno pode ser compreendido como questões de direitos humanos, ambiental, de segurança, humanitária, de refugiados ou de migração. Além disso, é muito difícil estabelecer uma linha entre movimentos forçados e voluntários, temporários e permanentes. A mudança climática não é necessariamente o único motivo que leva pessoas a se deslocarem para outras áreas dentro e fora de seus países. Os problemas ambientais geralmente estão associados com outras questões, como pressões populacionais e pobreza profunda. O deslocado não necessariamente atribuiria sua situação à mudança climática.
Algumas pessoas se mudam de imediato, outras demoram mais tempo para se deslocar e algumas, se possível, optam por nunca deixar suas casas ou cidades. As decisões de migrar ou permanecer no local afetado pela mudança climática são, geralmente, influenciadas pela situação sócio-econômica na qual se encontram as pessoas em questão. Aquelas que optam por permanecer são, em geral, pessoas mais pobres e vulneráveis, que, pela falta de saúde, habilidades e capacidade econômica, acabam não encontrando outra opção se não a de permanecer no local onde vivem, mesmo este tendo sido fortemente afetado pela mudança climática (McAdam, 2009: 5).
A grande maioria dos migrantes ambientais se desloca internamente, alguns migram para países vizinhos, principalmente quando seus países foram totalmente afetados pela mudança climática. Diferente de grande parte dos migrantes econômicos ou voluntários, os migrantes ambientais não só desejam retornar as suas casas, como na medida do possível, ou seja, se as condições de vida em sua terra natal voltarem a se normalizar e a oferecer oportunidades de subsistência, a maioria retorna.
Em geral, as migrações exigem um maior planejamento e mais recursos, algo que as pessoas que perderam suas casas e seus próprios sustentos raramente possuem. Os deslocamentos ambientais tentem a ocorrer entre áreas rurais ou entre regiões rurais e urbanas dentro do mesmo país. Poucos casos migram para nações vizinhas ou outros países. Neste sentido, é possível desmistificar a idéia de que milhões de pessoas de países pobres migrarão para países ricos como um resultado da mudança climática.
Estimativas do número potencial de deslocados ambientais são bastante contraditórias deferindo profundamente em termos de números, causas e período de tempo. Isto pode ser explicado pela complexidade da ciência das mudanças climáticas que envolve uma grande diversidade de variáveis. Norman Myers, sociólogo da Universidade de Oxford, fez uma estiva que, conforme o próprio professor admitiu, requereu algumas "extrapolações heróicas", de que cerca de 200 milhões de pessoas deslocarão até 2050 como resultado das mudanças climáticas (O. Brown in Refugee Studies Center. 2008: 8). Já no relatório intitulado The Economics of Climate Change: The Stern Review (2007), Sir Nicholas Stern considera a estimativa de Myers "conservadora".
Apesar dos países mais pobres também contribuírem com o crescente nível de emissões de gases de efeito estufa na atmosfera, estes são os que mais sofrem com as conseqüências do aquecimento global. O aumento da freqüência de desastres naturais tem afetado o sustento e a segurança de milhões de pessoas, em especial das populações mais pobres e vulneráveis, as quais em geral vivem em zonas de risco. A capacidade de adaptação é uma função que depende de diversos fatores, como por exemplo, "acesso aos recursos econômicos, tecnologias, informações e habilidades; o grau de equidade em uma sociedade; a percepção de risco; e a qualidade da governança" (J. Barnett e J. Campbell, 2010: 9).
Os países mais afetados não são os maiores responsáveis pelas mudanças climáticas, nem os que possuem mais recursos para implementar políticas de adaptação e mitigação. Neste sentido, considerando a perspectiva da mudança climática como um problema global, muitos estudiosos e líderes políticos defendem que a principal responsabilidade para financiar toda esta política de proteção deve ser dos países desenvolvidos, emissores de gases de efeito estufa (Zetter in McAdam. 2010: 147).
As populações que vivem em áreas costeiras de baixa altitude (cerca de 634 milhões de pessoas) estão entre as mais vulneráveis aos efeitos da mudança climática, como o aumento do nível do mar, deterioração das condições costeiras (erosão de praias e branqueamento de corais) e eventos extremos (Zetter in Mc Adam. 2010: 138). Recentes estudos sobre o aquecimento global indicam que um aumento de 2ºC na temperatura média global até 2100 resultará num aumento do nível do mar de 1,4 metros. É importante ressaltar que uma elevação de 1 metro poderá colocar mais de 145 milhões de pessoas em risco (idem).
Estima-se que algumas ilhas que já sofreram as conseqüências de eventos extremos serão vítimas destes acontecimentos com uma freqüência cada vez maior (I. Kelman in Refugee Studies Center, 2008: 21). Alguns Estados insulares, como Ilhas Marshall, Maldivas, Kiribati e Tuvalu, já estão com suas existências ameaçadas pelo aumento no nível do mar.
O relatório AR4 do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) prevê que as deteriorações das condições costeiras nas pequenas ilhas afetarão as principais atividades econômicas da maioria destes locais, como a pesca e o turismo. O relatório também destaca que o aumento do nível do mar pode agravar inundações, tempestades, erosões, entre outros riscos costeiros que afetarão estruturas vitais das comunidades destas ilhas, incluindo aeroportos e estradas. A diminuição de disponibilidade de água (prevista no relatório) juntamente com o aumento de temperaturas poderão resultar em casos de diarréia e outras doenças infecciosas. Doenças sensíveis ao clima, como malária, dengue, filaríase e esquistossomose podem custar vidas e impactar na economia destas pequenas ilhas (S. Humphreys. 2010. p. 326).
As opções de adaptação nas pequenas ilhas serão cada vez mais limitadas e os custos continuarão aumentando em relação ao PIB. Sem adaptação, o relatório do IPCC prevê um custo econômico agrícola para os pequenos países insulares de 2 a 3% (em países com considerável altitude, como Fiji) e 17 a 18% (em países de baixa altitude, como Kiribati) do PIB 2002 até 2050 (idem).
O deslocamento humano para outros países não apenas separa as pessoas de suas terras, mas também envolve "mudanças drásticas no estilo de vida, economia, política, sistemas jurídicos e normas culturais" (idem. p. 78). Na maioria dos pequenos países insulares, os cidadãos têm uma forte ligação com a terra em termos de identidade, espiritualidade, cultura e subsistência. Em muitos casos, as populações acreditam que a terra não pode ser separada daqueles que a "pertencem". Muitos migrantes, incluindo aqueles que vivem em outros países há bastante tempo, ainda se consideram parte de suas terras de origem, mesmo estando fisicamente longe de seus territórios (Campbell in McAdam. 2010. p. 63).
Diversas possibilidades de mover uma comunidade inteira para outro destino mantendo seu formato social semelhante ao da comunidade de origem tem sido discutidas. Considerando o grande elo com a terra além de outros valores culturais, o meio de vida, a espiritualidade e a identidade, a opção que encontra menor resistência seria o deslocamento dentro do próprio país (quando possível). Uma outra opção seria o deslocamento da comunidade para um país insular vizinho. O problema da importância da terra permanece nestas duas opções, uma vez que é improvável que as comunidades aceitarão facilmente dar parte de suas terras para os recém-chegados. O deslocamento da comunidade para outros países, em especial os que o país de origem possui alguma ligação, como a Nova Zelândia, Austrália e Estados Unidos, é também uma outra possibilidade (Campbell in McAdam. 2010. p. 65).
De qualquer forma, é improvável que algum país, incluindo aqueles da região do Pacífico, cederia a soberania sobre parte do seu território para o grupo deslocado, da mesma forma que será muito difícil o grupo de deslocados conseguir manter suas crenças e práticas culturais por muito tempo neste novo território (Campbell in McAdam. 2010. p. 67).
O caso do desaparecimento dos pequenos países insulares é um exemplo extremo que resultará em grandes migrações internacionais forçadas. É um caso claro de impossibilidade de retorno da população e suscita interessantes questões jurídicas. Não há uma simples "solução" jurídica para este fenômeno de "Estados em desaparecimento" por causa da mudança climática, assim como não é fácil determinar o status legal das pessoas deslocadas destes Estados.
A dissolução de um Estado por causa da mudança climática em vez da "anexação (absorção por outro Estado), fusão (com outro Estado) e dissolução (com a emergência de Estados sucessores)" (McAdam, 2010: 106) envolve questões novas que vão ao cerne das regras jurídicas sobre a criação e extinção de Estados. Trata-se de um caso inédito, pois o território que foi abandonado "não será (e não poderá ser) assumido por nenhum outro Estado" (idem)
Os critérios essenciais para a existência de um Estado em termos legais são: i. uma população permanente; ii. um território definido; iii. um governo efetivo; iv. a capacidade de estabelecer relações com outros Estados (McAdam, 2010: 108). No entanto, o direito internacional carece de uma prática uniforme satisfatória para resolver a questão da nacionalidade quando um Estado deixa de existir (McAdam, 2010: 119).
O cenário do "Estado em desaparecimento" provavelmente não será uma repentina inundação do território, mas sim um processo gradual que tornará a terra insustentável - por causa da falta de água potável, erosões costeiras, aumento da salinização do solo, aumento de doenças, etc - e, que fará com que sua população se desloque aos poucos até o memento em que o território se tornará inabitável, numa base permanente (McAdam, 2009: 16). Portanto, o prazo para a extinsão deste Estado, ou seja, o ponto preciso em que o Estado perderá sua identidade legal como Estado, é incerto. Neste sentido, como determinar em que ponto a ausência dos critérios essenciais para a existência de um Estado em termos legais, ou parte deles, poderá levar outros Estados (e a comunidade internacional, através de organizações internacionais) a negar a continuidade de sua existência como Estado?
Alguns estudiosos defendem que, apesar da maioria da população já ter migrado para outros Estados, é importante que pelo menos alguns cidadãos permaneçam na ilha. Caso isso não seja mais possível, ao menos o governo deve ser preservado para que seja mantida sua posição de Estado Membro nas Nações Unidas e garantida sua identidade como Estado, uma vez que, enquanto for membro da ONU, os outros Estados deverão reconhecer sua independência. Por isso, é importante que o Estado permaneça reivindicando a continuidade da sua existência aumentando, assim, suas chances de poder manter seu assento na ONU e continuar sendo reconhecendo pela comunidade internacional. Esta será, portanto, a primeira vez que um governo será deslocado do seu território permanentemente. Os casos de governos em exílio, que diferem do caso em questão por serem temporários, oferecem lições que podem ser aproveitadas
Não há regras para lidar com o desaparecimento de Estados. Esta nova situação demanda um processo multilateral. Enquanto um debate sobre o assunto em um espaço multilateral, como a Assembléia Geral, não for realizado de forma efetiva, é imprescindível que acordos bilaterais, que permitam múltiplas cidadanias, por exemplo, sejam realizados.
O fenômeno das migrações ambientais é, acima de tudo, uma questão de direitos humanos. Desde a ratificação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, diversos instrumentos específicos de proteção foram criados. No entanto, apesar da importância do tema das migrações ambientais, não há uma legislação específica que proteja este grupo de pessoas. A redução dos riscos de desastres e vulnerabilidades tem sido descrita pela Corte Européia de Direitos Humanos como uma obrigação de direitos humanos (Kälin in McAdam, 2010: 83). A necessidade de esclarecer ou, até mesmo, desenvolver uma estrutura normativa aplicável a este grupo de migrantes é outra questão bastante discutida atualmente - e, também, muito controversa.
Em alguns casos o deslocado ambiental pode também receber o status de refugiado, deslocado interno ou apátrida. Estas três formas de migração ou deslocamento se ajustam ao mandato do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e, portanto, acabam adquirindo proteção internacional através desta agência.
Em raros casos, o deslocado ambiental pode ser considerado um refugiado quando este for obrigado a deixar seu Estado em razão de conflitos que ocorreram devido à diminuição de recursos vitais (água e produção de alimentos) atribuídos à mudança climática e desencadeados pela falta de vontade ou incapacidade do governo de lidar com certas consequências do desastre ou de prestar a assistência necessária às vítimas. Neste exemplo, o indivíduo deverá ter um bem fundado temor de perseguição por razões de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política. Portanto, "a maioria dos casos de deslocamento entre fronteiras que tem relação com o clima não serão cobertos pela lei de refugiados" (Kälin, 2010: 89).
Os deslocados internos, diferente dos refugiados e como o próprio nome diz, permanecem em seus próprios países. Milhões de civis que perderam suas casas ou sustentos por causa de desastres naturais e se deslocam dentro de seus Estados também podem ser classificados como deslocados internos, porém, o ACNUR geralmente se envolve com este segundo grupo apenas em circunstâncias extraordinárias, como, por exemplo, o tsunami que afetou a Ásia em dezembro de 2004.
Por fim, existem diversas discussões sobre a possibilidade dos deslocados ambientais de pequenos países insulares também receberem o status de apátridas e, portanto, receber a proteção do ACNUR através de alguns instrumentos jurídicos específicos, tais como a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1954 e a Convenção sobre a Redução dos Casos de Apatrídia de 1961. Porém, estes dois tratados internacionais não prevêem a eventualidade de apatrídia, literal e física. A definição de apátridas se aplica apenas aos casos de apatrídia de jure (que se baseia na negação da nacionalidade através da operação da lei de um determinado Estado), não se estendendo aos casos de apatrídia de facto (quando um indivíduo possue formalmente uma nacionalidade, mas esta é ineficaz na prática). De qualquer forma, o mandato do ACNUR prevê que os esforços para a redução de apatrídia abrangem os casos de facto. E, para esta agência, o caso das populações de pequenos países insulares em desaparecimento pode ser tratado como apatrídia de facto (McAdam, 2010: 119 e 120), o que não é o interesse da maioria destas populações.
Entretanto, nem todas as formas de migrações ambientais se ajustam ao mandato do ACNUR. Discussões têm sido realizadas nos âmbitos nacionais e internacional sobre como melhorar a proteção aos deslocados ambientais e as soluções encontradas variam bastante. Além da sugestão de um novo protocolo para a Convenção do Refugiado, alguns estudiosos e líderes políticos sugerem um protocolo para a UNFCCC (sigla em inglês da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima), enquanto consideram ser importante a elaboração de um instrumento específico de reconhecimento e proteção dos deslocados ambientais, o que inclui a criação de uma nova convenção e a ampliação de tratados ambientais multilaterais. Estes últimos também consideram fundamental que seja designada uma organização que inclua em seu mandato a proteção destas pessoas.
António Guterres, Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados, considera que qualquer iniciativa para alterar a definição de refugiados prevista nesta Convenção arriscaria sua renegociação que, no atual contexto, poderia resultar em uma redução do grau de proteção dos refugiados e até prejudicar o regime internacional de proteção ao refugiado como um todo. Não é o objetivo do ACNUR estender seu mandato, mas sim cumprir sua obrigação de alertar a comunidade internacional sobre as lacunas de proteção que estão surgindo (A. Guterres, 2008, p. 7). É importante destacar a grande tendência de fechamento das fronteiras e o fato de que o tema das migrações ambientais é um assunto bastante delicado e de fraco suporte internacional.
No entanto, um dos grandes erros no campo dos deslocamentos ambientais é considerar que estes estão relacionados com apenas um fenômeno que pode ser discutido de uma forma generalizada. Conforme discutido anteriormente, existem diversas variáveis relacionadas aos deslocamentos ambientais. Além disso, os tipos de deslocamentos divergem bastante e, neste sentido, as soluções necessárias também. Qualquer tratado que tenha como premissa o deslocamento por causa da mudança climática deverá requerer que o indivíduo seja capaz de estabelecer algum nexo causal, o que será muito difícil de ser fundado.
Portanto, dificilmente um instrumento específico de proteção atenderia de forma satisfatória todos os casos de deslocamentos ambientais no mundo, especialmente se considerarmos a falta de estudos aprofundados e evidências empíricas sobre a natureza, prazos, escalas e duração dos movimentos previstos.
Walter Kälin destaca a existência de diversas situações que resultam em diferentes naturezas de movimentos humanos (deslocamentos internos, deslocamentos entre fronteiras - que incluem refugiados e outros - e pessoas que se deslocam de pequenos países insulares submersos pelo aumento do nível do mar), incluindo movimentos permanentes ou temporários e voluntários ou forçados (Kälin in McAdam, 2010: 92). Existem diferentes instrumentos de proteção que podem ser aplicados em cada caso especifico.
Como brevemente apresentado no início deste trabalho, vale também lembrar que, apesar da mudança climática causar impactos reais na vida das pessoas, em especial daqueles que vivem em países mais vulneráveis, na maioria dos casos a mudança climática é apenas uma entre muitos motivos que fazem com que um indivíduo decida se deslocar para outras regiões dentro e fora do seu país. A mudança climática tende mais a multiplicar estresses pré-existentes (como pobreza, conflito generalizado, falta de oportunidade) do que ser a única causa do deslocamento humano.
Atender às necessidades dos deslocados ambientais é responsabilidade não só dos governos afetados pela mudança do clima, mas também da sociedade civil, das organizações não-governamentais (ONGs) e dos prestadores bilaterais e multilaterais de assistência humanitária e de desenvolvimento (Barnett and Webber in McAdam, 2010: 48).
Um dos maiores problemas em atender às necessidades dos migrantes ambientais é a vontade e/ou a capacidade dos governos nacionais de cumprir com suas próprias responsabilidades com relação aos direitos humanos. A comunidade internacional deve coordenar ações e apoiar os países a atenderem às necessidades humanitárias de curto e longo prazos dos migrantes ambientais protegendo estas pessoas e, também, oferecendo assistência aos deslocados para garantir seus direitos de propriedade após o regresso.
Muitas das pessoas e comunidades susceptíveis de ter de suportar o peso das conseqüências das alterações climáticas dificilmente estão cientes de que são, ou serão, as principais vítimas de uma série de eventos que poderão mudar suas vidas. Raramente estas pessoas são habilitadas ou incentivas a entrar neste debate global, muito menos consultadas sobre tal situação, suas necessidades e possíveis opções que poderão moldar o futuro bem-estar delas próprias.
Esse é um grande erro que a comunidade internacional tem cometido, uma vez que, em geral, as respostas para os problemas públicos são encontradas através da comunidade. Além disso, é importante ressaltar que tanto o direito destas pessoas de permanecer no local onde vivem, bem como o direito de partir, devem ser respeitados podendo elas escolher a opção que melhor se adapte às suas necessidades e valores.
A primazia do retorno ao status quo ante é de grande importância no caso de violações de direitos humanos. No entanto, no que diz respeito às violações dos direitos humanos dos deslocados ambientais, nem sempre é possível que haja esta restituição na íntegra. Nos cenários mais extremos, os deslocados ambientais podem encontrar-se em situações consideradas, de certa forma, mais desesperadoras do que as enfrentadas pelos refugiados, uma vez que a possibilidade de retorno pode ser mínima ou inexistente. Nestes casos, a restituição material pode sofrer restrições, uma vez que haverá a impossibilidade material do retorno ao status quo ante, que ocorre quando a natureza do evento danoso torna fisicamente impossível a restituição.
Estas restrições à restituição material podem ser suavizadas através de determinadas ações, como por exemplo, a proteção ativa dos direitos destes migrantes (oferecida pelos Estados que recebem os deslocados ambientais, o que inclui medidas administrativas e legislativas que permitam o pleno gozo dos seus direitos), a compensação pela perda de casas e ativos, a reconstrução da comunidade do migrante como uma comunidade (permitindo manter intacto o capital social), a receptividade e o respeito das liberdades e direitos dos deslocados ambientais por parte da população que os recebe, entre outros.
Parece improvável que um regime jurídico internacional que prevê o reconhecimento e proteção dos deslocados ambientais discutido anteriormente ganhe a aceitação generalizada dos diversos países e seja alcançado no curto prazo. No entanto, as discussões para a criação de tal regime devem continuar, porém, é importante que os direitos fundamentais dos grupos vulneráveis que têm sofrido o impacto das mudanças climáticas sejam protegidos temporariamente pelos padrões e políticas de migração existentes, incluindo vistos para migrantes, políticas de proteção aos refugiados e deslocados internos, visto de residência permanente por razões humanitárias, envolvimento de instutuições especializadas em migrações forçadas, utilização de corredores de migrações já existentes, entre outros (Hugo in McAdam, 2010: 33).
Esquemas de proteção temporários parecem encontrar menos barreiras entre os governos e as sociedades de destino destes migrantes do que opções de reassentamento permanentes e, ao mesmo tempo, permitem oferecer uma proteção, segurança e assistência imediatas aos deslocados ambientais (Hugo in McAdam, 2010: 33).
Esquemas temporários permitiriam que respostas graduais sejam criadas para cenários específicos que surgirem em diferentes regiões. Tais respostas poderão ser adaptadas para atender às especificidades de cada cenário. A longo prazo, com evidências empíricas sendo gradualmente desenvolvidas e estudos qualitativos mais aprofundados e concretos sendo realizados, a comunidade internacional passará a compreender melhor este problema, assim como as implicações das respostas dadas, e estará mais apta a articular as características fundamentais do deslocado ambiental de uma forma mais geral.
Referências Bibliográficas
BARNETT, Jon, CAMPBELL, John. Climate Change and Small Island States: Power, Knowledge and the South Pacific. Earthscan. 2010. 218 p.
CAMPBELL, Kurt M. et al. The Age of Consequences: The foreign policy and national security implications of global climate change. Center for Strategic and International Studies. Novembro, 2007. 124 p.
Coventry Peace House. Statelessness: The quiet torture of belonging nowhere. 2008. 137 p.
CRISP, Jeff. Vital Distinction: States are having increasing difficulty distinguishing between refugees and migrants. Refugees Magazine. UNHCR. Número 148. Edição 4. 2007. P. 4-11.
DOCHERTY, Bonnie, GIANNINI, Tyler. Confronting a Rising Tide: A Proposal for a Convention on Climate Change Refugees. Harvard Environmental Law Review. Harvard School. Julho, 2009. p. 56.
GROTE, Jenny. The Changing Tides of Small Island States Discourse - A Historical Overview of the Appearance of Small Island States in the International Arena. Verfassung und Recht in Übersee - Abhandlugen. 2010. Vol. 43, issue 2, p. 164-356.
GUTERRES, António. Climate Change, Natural Disasters and Human Displacement: a UNHCR perspective. United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR). 23 de outubro de 2008. 12 p.
GUTERRES, António. Millions Uprooted: Saving refugees and the displaced. Foreign Affairs Magazine. Setembro/Outubro 2008.
HUMPHREYS, Stephen et al. Human Rights and Climate Change. New York: Cambridge University Press, 2010. 348 p.
INTERGOVERNMENTAL PANEL ON CLIMATE CHANGE. Climate Change: The IPCC Scientific Assessment: Final Report of Working Group 1. NY: Cambridge University Press, 1990.
INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR MIGRATION. Migration, Environment and Climate Change. 2009, p. 264.
JOUZEL, Jean et al. Climate Refugees. Collectif Argos. The MIT Press. 2010. 349 p.
KÄLIN, Walter. The Climate Change: Displacement Nexus. Brookings-Bern Project Displacement. Apresentação no Painel sobre redução de risco e preparação - ECOSOC Humanitarian Affairs Segment. 16 de julho de 2008.
KOLMANNSKOG, Vikram Odreda. Future Floods of Refugees: A comment on climate change, conflict and forced migration. Norwegian Refugee Council. Oslo. Abril, 2008. 42 p.
Lynch, M. Lives on Hold: The Human Cost of Statelessness. Refugees International. Fevereiro, 2005. 52 p.
M.L. Parry, O.F. Canziani, J.P. Paluitkof , P.J. van der Linden e C.E. Hanson, Eds. Climate Change 2007: Impacts, adaptation and vulnerability. Contribuição para o Grupo de Trabalho II do Quarto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental de Mudança Climática. Cambridge University Press, Cambridge. 2007. 976 p.
McADAM, Jane. Environmental Migration Governance. University of New South Wales - Faculty of Law Research Series. 2009. 33 p.
McADAM, Jane. Swimming Against the Tide: Why a Climate Change Displacement Treaty is Not the Answer. Oxford University Press. International Journal of Refugee Law. Vol. 23. No 1. Pp. 2-27.
McADAM, Jane et al. Climate Change and Displacement: Multidisciplinary Perspectives. Oxford: Hart Publishing, 2010. 258 p.
MYERS, N. Environmental Refugees in a globally warmed world. Bioscience. Vol. 43. No. 11. Dezembro, 1993.
Refugee Studies Center. Climate Change and Displacement. Forced Migration Review. Edição 31. Outubro, 2008. P. 4-62.
STERN, Nicholas. The Economics of Climate Change: The Stern Review. CUP, Cambridge, 2007.
UNHCR. The State of the World's Refugees - A humanitarian agenda. 1997. 293 p.
UNHCR. What would life be like if you had no nationality? 2005. 14 p.
* O presente artigo faz parte da pesquisa que a autora está desenvolvendo em seu mestrado.
1. Este artigo não pretende discutir as causas da mudança climática (ex.: processos naturais e/ou ação do homem), mas os deslocamentos humanos decorrentes deste fenômeno.
2. Não existe um termo oficial que defina o status de pessoas que tiveram que se deslocar ou migrar devido à mudança climática. Neste artigo, o termo "deslocados ambientais" será usado para definir este grupo de pessoas.