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3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Análise semiótico-pragmática comparada das Políticas de Defesa Nacional brasileiras (1996 e 2005)

 

 

Martino Gabriel Musumeci

Mestrando do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Ciência Política, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo (DCP/FFLCH-USP)

 

 


RESUMO

Os autores que empregam a perspectiva teórica da chamada Escola de Copenhague simplificam certos aspectos das fontes teóricas de que ela se origina, como a pragmática discursiva. Com vistas a resgatar parte dessa tradição negligenciada e suplementá-la com estudos ainda mais profundos sobre a significação, este artigo invoca também a semiótica para analisar comparativamente dois documentos oficiais breves, as Políticas de Defesa Nacional de 1996 e 2005. Lançadas em momentos históricos marcados por diferentes preocupações e por governos de tendências ideológicas distintas, os textos dessas políticas refletem concepções significativas diversas da Defesa brasileira, mesmo que sob a aparência de regularidades características de decisões que se anunciam antes estatais que governamentais. A fim de analisar tanto as regularidades subjacentes ao discurso quanto os laivos semânticos mais abstratos encontrados no nível fundamental, buscar-se-á um equilíbrio entre a identificação das regras e convenções típicas dos atos de linguagem e a busca pela sintaxe sumária no plano semiótico dessas manifestações discursivas.

Palavras-chave: Política de Defesa Nacional, Semiótica, Pragmática, Brasil, Escola de Copenhague


 

 

Introdução

Em um tempo de forte rememoração das questões brasileiras de segurança e defesa, oportunizado pela preparação do Livro Branco Nacional, faz-se interessante a retomada do debate sobre as Políticas de Defesa Nacional (PDN), muito embora o assunto se tenha praticamente desgastado há cerca de cinco anos, quando muitos lançaram suas opiniões comparativas entre as PDN de 1996 e a de 2005.

Para empregar uma imagem explicativa palatável, o presente artigo não procura simplesmente requentar e servir o mesmo prato de dias atrás, aproveitando o renovado gosto por seu velho sabor. Procura, ao invés, como que elaborar uma iguaria nova usando os mesmos ingredientes básicos, mas temperando-a com especiarias raramente experimentadas pelo público brasileiro e cozinhando-a de um modo que provoque uma sensação gustativa renovada e refinada a partir dessas matérias-primas.

A pretensão parece ambiciosa, mas vale, ao menos, pelo desafio ao paladar tradicional. Algo um pouco semelhante já foi empreendido por Vagner Santana (2007) em seu mestrado; porém, a perspectiva ali adotada se filia à vertente chamada Análise de Discurso Crítica, que joga o foco de análise sobre questões diferentes daquelas com que a perspectiva semiótico-pragmática se preocupa. Um dos maiores objetivos deste ponto de vista aqui empregado é o evidenciamento, tanto quanto possível, em primeiro lugar, dos atos de linguagem que se sobressaem na dimensão enunciativa desses textos e, em segundo lugar, das significações profundas existentes sob essa manifestação discursiva, originadas a partir de um percurso gerativo de sentido1.

Como bem esclarece a professora Diana de Barros (2001, p.13), a escolha de uma abordagem sêmio-linguística toma como componente fundamental a semiótica, tentando "determinar as condições em que um objeto se torna objeto significante para o homem" e, assim, vendo a linguagem antes como sistema de significações ou relações do que de signos. Isso faz com que determinada base nunca seja um termo isolado, mas sim uma rede de relações. No esforço que se segue, serão selecionados das PNDs determinados trechos cujo esclarecimento da significação pareça mais relevante no fito de compará-las e trazê-las a uma compreensão textual mais específica e circunstanciada, reatualizando sua importância na contemporaneidade.

 

Política Nacional de Defesa de 1996

A começar por sua denominação, há quem questione que este documento possa ser realmente chamado de "política nacional de defesa". Embora tenha sido o primeiro escrito brasileiro deste tipo mais declaratório, suas condições de produção2 são comumente observadas como determinantes mais de "uma harmonização de pontos de vista entre diversas agências responsáveis por assuntos externos do país"3 ou de um tipo de "declaração da postura internacional" brasileira que de uma política de defesa ideal contendo todos os elementos tidos como essenciais esperados para um documento desse porte (PROENÇA Jr.; DINIZ, 1998, p.18). A saber, Clóvis Brigagão (1998, p.9) arrola tais elementos nas seguintes atividades: "avaliação estratégica governamental, projetos de forças e planejamento das ações militares e seu aspecto fundamental, o orçamento consolidado de defesa".

Não obstante ter sido influenciada direta e indiretamente por numerosos atores da política nacional, esta PDN é assinada pela Presidência da República, sendo então ocupante do cargo de chefe do Estado Fernando Henrique Cardoso. Após sua elaboração relativamente rápida (ou, segundo relatos, feita às pressas4), o documento foi simplesmente apresentado por FHC, não tendo oficialmente recebido revestimento jurídico pelo Congresso.

Nesse tocante, convém lembrar brevemente o histórico contextual do momento: havia algum anseio por parte da liderança governamental pela criação do Ministério da Defesa brasileiro, à semelhança do que havia em tantos outros países para assinalar com mais ênfase o controle civil sobre as Forças Armadas. Porém, estando seu processo de institucionalização "atolado no pântano das resistências corporativas" (ALSINA Jr., p.64), o Presidente se encontrava pressionado pelas rusgas entre os ministros militares e notava na dinâmica dos trabalhos destes uma falta de articulação preocupante, donde lhe teria vindo a convicção da "necessidade de elaboração de um documento público que proporcionasse um quadro de referências comum às forças singulares" (ib., p.67).

No entanto, essas pressões parecem ter sido suficientes para que o documento não trouxesse tantas mudanças, tendo-se limitado a uma "sistematização daquilo que cada uma das forças já vinha fazendo", adicionada pela visão internacional alegadamente conciliadora do Ministério de Relações Exteriores e sua decorrente ênfase na cooperação em detrimento da projeção de poder ou afirmação incisiva das capacidades nacionais. Assim, no panorama geral resgatado por Alcina Jr. (ib., p.68-69),

[t]ratava-se, a um só tempo, de afirmar o foco externo da política de defesa, assegurar as intenções pacíficas perante os vizinhos e o mundo, demonstrar o engajamento nacional na construção de uma ordem mundial estável e salientar o papel primordial da diplomacia na resolução de diferendos.

É, de fato, o que aparece logo no início do texto da PDN-1996: logo no primeiro parágrafo, sua introdução desenha o cenário internacional como um quadro de desafios e oportunidades, que desperta a necessidade de "promover no Brasil o desenvolvimento de modalidades próprias, flexíveis e criativas de pensamento estratégico, aptas a atender às necessidades de defesa do País". Instalando dessa maneira os marcos dêiticos referenciais espaciais e temporais, o discurso toma parte numa isotopia de novidades que vêm de encontro ao sujeito, desafiando-o e instaurando para seu programa narrativo uma alta normatividade, materializada na recorrência dos sememas indicadores de dever-fazer tanto em forma gramatical adjetiva quanto substantiva, não apenas neste primeiro parágrafo, mas também no que lhe é sucedâneo, confirmando-o e realçando-o.

A solução para o impasse colocado é a capacitação do sujeito por meio de aptidões interessantemente chamadas "modalidades", às quais a abordagem semiótica confere lugar central de análise da sintaxe narrativa, conforme se poderá verificar adiante. No caso, trata-se de uma expectativa de cumprimento pelo sujeito de um programa superador daqueles desafios, por meio de seu investimento com os atributos de individualidade, flexibilidade e criatividade.

No plano da performatividade privilegiado pela pragmática, o ato de linguagem indireto (v. SEARLE, 2002, p.47 e ss.), irrigado por aquele valor proposicional de capacitação, está revestido de força ilocucionária apelativa, da qual se espera, por um lado, uma perlocução adesiva da população brasileira para com essas normatividades mas, por outro (provavelmente, pela sobredita influência conciliadora do Itamaraty), certa tranquilização aos demais colegas no cenário internacional (confirmada pelo quarto parágrafo), com a impressão de que o Brasil ainda não é um sujeito que conte com as tais aptidões, ainda que isso se atenue pelo evidente ímpeto de melhorar a situação subjetiva, este sendo, afinal, um dos objetivos implícitos do próprio documento, conforme se expôs pouco antes.

Não surpreende, pois, o fato de o terceiro parágrafo definir taxativamente que a PDN, "voltada para ameaças externas, tem por finalidade ficar os objetivos para a defesa da Nação, bem como orientar o preparo e o emprego da capacitação nacional", envolvendo tanto os setores civil como militar. Nesta última menção, cumpre lembrar que o papel desses "setores" civil e militar, que não deixam de ser atores do nível discursivo, é o que Greimas chama, no plano da narratividade, de adjuvante do sujeito principal prosopopeizado na Nação (esta, atorialização coletiva5 de "Brasil"), ou seja, é "o auxiliar positivo quando esse papel é assumido por um ator", correspondendo a um "poder-fazer individualizado que, sob a forma de ator, contribui com seu auxílio para a realização do programa narrativo do sujeito" (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p.23-24).

Após a breve descrição do "perfil brasileiro" (físico-geográfico, econômico) no quinto parágrafo, o sexto batiza de "defesa sustentável" um programa narrativo principal em que o sujeito adjuvante é objetificado enquanto instrumento da efetivação de um programa eufórico subordinado, a "construção de um modelo de desenvolvimento", no qual se busca a conjunção com a "democracia" enquanto objeto-valor, e a disjunção com as "desigualdades sociais" e "desequilíbrios regionais" enquanto anti-objetos. Note-se, ainda, que a axiologização tímica presente neste parágrafo acaba por privilegiar a disforia quando eleva como objetivos paralelos a "paulatina modernização da capacidade de auto-proteção" e a compatibilização das prioridades políticas, sociais, econômicas e militares com as necessidades de defesa e diplomacia.

No parágrafo seguinte, que encerra a introdução à PDN-1996, mais uma vez se confirma que esses objetos investem um poder-fazer: invocando mais uma vez a temática da dificuldade que impõe o dever, procura-se conciliá-las com a "disponibilidade de meios", atividade que o texto deixa condicionada à "aprovação de recursos pelo Congresso nacional", instância clara do poder democrático, fortalecida mais uma vez pela sociedade enquanto adjuvante que se envolve, mas não cumpre programa, agora atorializada discursivamente nos "segmentos acadêmico, científico-tecnológico e industrial".

A parte seguinte do documento, ao descrever o "quadro internacional" com mais pormenores, continua a descrever uma estrutura mundial condicionante em muitos aspectos, dentre os quais aparenta ser muito forte a inspiração de temor enquanto substrato da securitização. Ainda que de maneira relativamente indireta, apenas a menção a algumas expressões já é suficiente para dar a entender a construção desse lúgubre campo semântico de dúvida, obscuridade, fragilidade, incerteza e desconhecimento que busca perlocucionar linguisticamente a concordância da audiência com as medidas que seguem, tanto a partir do nono parágrafo desta segunda parte, quanto na seção 4 do mesmo documento: "indefinido", "instável", "falta de correspondência", "evolução ainda é difícil de se prever", "desapareceu a relativa previsibilidade", "conflitos" "em quase todos os continentes", "recrudescimento de extremismos", "fragmentação", "fase de transição", "ausência de paradigmas claros", "quadro de incertezas", "continue a merecer o cuidado", "abdicar de uma força de defesa", "região mais desmilitarizada do mundo", "extremamente complexo". Embora não seja possível desenvolvê-la por falta de espaço e por risco de tornar ainda mais cansativa a exposição, uma análise em quadrados semióticos provavelmente não desmentiria um ponto fundamental comum no princípio do percurso gerativo de sentido para todas essas figuras discursivas.

A partir do §2.9, conforme já adiantado, são iniciadas as sintaxes de uma gramática narrativa simultaneamente heroica e cordial do sujeito e seu sucesso na busca por objetos de valor semântico positivo. Isso vem a fechar o quadro de modalidades exotáxicas virtualizante-atualizante-realizante (dever-poder-fazer) (BARROS, 2001, p.52): para esclarecer em um exemplo, o esforço brasileiro de "promover maior integração e aproximação entre os países do continente" lhe confere "credibilidade" e, assim, faz os vizinhos conformarem como que uma couraça à sua volta, "um verdadeiro anel de paz em torno do País, viabilizando a concentração de esforços com vistas à consecução de projeto nacional de desenvolvimento e de combate às desigualdades sociais" (§2.10).

Embora seja notável a ausência de menção a qualquer ator que cumpra o papel evidente de (anti)destinador, existe em 2.11 um ocultamento propiciado pela emprego de voz passiva cujo valor securitizante é bem forte: "pode ser compelido a envolver-se em conflitos gerados externamente, como consequência de ameaças ao seu patrimônio e aos seus interesses vitais", uma frase que reproduz em síntese quase didática as condições subjetivas que a Escola de Copenhague coloca para um ato de linguagem deste tipo (ameaça existencial à sobrevivência do objeto referente, invocação de medidas urgentes e/ou extraordinárias, cf. BUZAN et al.,1998, p.21-24).

O parágrafo seguinte, no entanto, marca a actante narrativa de antissujeito para grupos frequentemente chamados nas Relações Internacionais de "novos atores", a saber, "bandos armados" agindo nas fronteiras da Amazônia, e "o crime organizado internacional", não obstante seja feita a ressalva de que a enumeração não se pretende exaustiva, porque esses são apenas "alguns dos pontos a provocar preocupação" (outra indefinição propagadora de temor e ansiedade).

A terceira seção, que lista os "objetivos da Defesa Nacional", serve como que uma grande modalização endotáxica (querer) que marca a transição entre o registro predominantemente patético que se escrevia até então, para um registro pragmático propriamente dito, eivado de asserções bem mais incisivas que visam a indicar a enfatizar a dimensão da ação e obviamente opor-se àquele conjunto anterior de caos, incertezas e riscos. Entre os sememas responsáveis por isso, podem-se trazer: "atuação", "prover", "centrada", "ativa", "postura estratégica dissuasória", "perfeitamente definidos", "reconhecidos", "estreito", "confiança", "respeito", "rejeição", "busca", "uso da força", "ação diplomática", "eficaz", "decisão", "impondo", "fortalecimento equilibrado", entre outros.

Não é por outra razão, finalmente, que a quinta e última parte do documento vem ainda mais recheada de verbos performativos e notadamente a adição da modalidade endotáxica atualizante (saber) como elemento que faltava para a completude do binômio superiormente hierarquizado desejabilidade-verdade. Assim, o documento é encerrado com a tentativa de transmitir uma sensação de dinâmica e preparação que visa a aliviar as tensões antes criadas, desde que o contrato fiduciário proposto pelo enunciador à audiência seja aceito com sucesso6.

 

Política Nacional de Defesa de 2005

Embora tenham sobejado opiniões no sentido de que a PDN-2005 não inovava7, os analistas mais atentos hão de se questionar ao menos sobre as razões por que certos trechos foram alterados, suprimidos ou adicionados, já que essa nova edição foi oficial (Decreto Nº 5.484, de 30 de junho), deu-se em um governo de inclinação ideológica alegadamente distinta (Lula da Silva) e sob condições de produção diversas, em especial porque se havia finalmente criado no País, no ano de 1999, o Ministério da Defesa (MD)8.

Já na apresentação do novo texto, abre-se uma concessão muito importante, que a PDN-1996 estrategicamente silenciava. Se antes a peça era "voltada para ameaças externas", agora ela se torna "voltada, preponderantemente, para ameaças externas". Infere-se que a intercalação do advérbio9 marque a admissão de possibilidade de existência ou a percepção de ameaças também internas, o que evidentemente muda a força ilocucionária desse ato de linguagem securitizador sem que altere seu valor proposicional propriamente dito.

No mesmo primeiro parágrafo, acrescenta-se aquele elemento institucional enfatizado pela maioria dos comentadores, o MD. Uma visão semiótica nota que sua menção aí como o órgão que "coordena as ações necessárias à Defesa Nacional" o investe de um poder privilegiado, nomeadamente, o de destinador, numa coincidência sintática muito apropriada que Greimas e Courtés (2008, p.132) exprimem da seguinte maneira.

é aquele que comunica ao Destinatário-sujeito (do âmbito do universo imanente) não somente os elementos da competência modal, mas também o conjunto dos valores em jogo; é também aquele a quem é comunicado o resultado da performance do Destinatário-sujeito, que lhe compete sancionar.

Poucos também parecem ter percebido que o segundo parágrafo, para além de uma metalinguagem explicativa e organizativa, contém uma divisão muito significante para o entendimento da securitização. Afirma que a PDN "é composta por uma parte política, que contempla os conceitos, os ambientes internacional e nacional e os objetivos da defesa", somada de "[o]utra parte, de estratégia", em que se situam as orientações e diretrizes. Isso condiz muito com a visão da Escola de Copenhague sobre o espectro de politização rompido pelo ato de linguagem securitizador, porque este desloca o assunto e suas dinâmicas respectivas para uma esfera prioritária em que a contestação política fica minorada, em que o debate perde espaço para a afobada extraordinariedade das medidas emergenciais, isolando o domínio estratégico do domínio da política ou, nas palavras de Jürgen Habermas, a ação estratégica da ação comunicativa10.

É bem certo que o parágrafo sucessivo ainda na introdução continue a colocar a (parte) Política de Defesa Nacional como "tema de interesse de todos os segmentos da sociedade brasileira" (note-se que não há mais a presença do adjetivo totalizante, homogeneizante e unificador que havia na PDN-1996, tendo ele sido substituído pela pluralidade de "segmentos"), mas adiciona que está condicionada não apenas às diretrizes alegadamente perenes da política externa (visão construída e bem discutível em que o Itamaraty e até estudiosos da política externa sempre insistem), mas também às contingências governamentais, esta sendo uma possibilidade sequer aventada em todo o texto da edição anterior da PDN. Reforça este argumento o fato de que a política externa vem acompanhada de um aposto explicativo definidor de tais diretivas, mas as "orientações governamentais" ficam ao lado numa notável e bem conveniente carência de explicitação e limitação.

No último parágrafo da até bastante inédita introdução, existe uma atenuação do tom cordial usado outrora: quase repreendendo os brasileiros por terem talvez deixado apagar-se da memória as ameaças de conflitos, o documento ecoa a cartilha maquiaveliana ao afirmar que "é imprudente imaginar que um país com o potencial do Brasil não tenha disputas ou antagonismos ao buscar alcançar seus legítimos interesses", donde vem como consequência a frase imediatamente seguinte que apresenta a PDN como propositada a "conscientizar todos os segmentos da sociedade brasileira de que a defesa da Nação é um dever de todos os brasileiros", cuja última parte é reiterada amiúde nas propagandas midiáticas das Forças. Insere-se, assim, também para o adjuvante coletivo a modalidade exotática virtualizante do dever-fazer, isto é, supera o envolvimento lateral de 1996 com uma determinação de compartilhamento ativo do programa narrado.

A seção de número 1, iniciada com o fim dos parágrafos introdutórios, traz uma série de definições sobre o Estado, a segurança e a defesa, as quais relembram o uso de sólito presente nas primeiras partes de textos jurídicos, aí incluídas convenções interestatais. Para um estudo preocupado com a significação, esse artifício didático vem bem a calhar para que não seja toda a impressão derivada de trechos paralelos. Nessa enumeração, aliás, há perceptíveis intertextos em relação à consolidada Teoria do Estado nas ciências jurídicas (Estado composto de território, povo, governo, soberania e leis) e, simultaneamente, com um dos maiores clássicos das ciências sociais na replicação weberiana do "monopólio legítimo dos meios de coerção", acrescentando-lhe estabelecimento democrático da lei e da ordem que o Estado deve fazer valer e assegurar, segundo formula o item em questão.

O §1.2 inicia a definição da segurança com uma curiosa debreagem enunciativa: "[n]os primórdios, a segurança era vista somente pelo ângulo da confrontação entre Estados", e depois contemporiza a dêixis para o leitor atual com a locupletação de que, "[à] medida que as sociedades se desenvolveram, novas exigências foram agregadas, além da ameaça de ataques externos", algo que vem a confirmar aquilo que se percebia sutilmente desde o exórdio da introdução. Isso é continuado no item seguinte, que descreve a ampliação da segurança e parece até ter sido decalcado dos cinco setores previstos pela Escola de Copenhague (político, militar, econômico, social e ambiental), além de também envolver "defesa civil; segurança pública; políticas econômicas, de saúde, educacionais", um escopo impressionantemente amplo que chega até à perspectiva notabilizada pelos autores que trabalharam o conceito de segurança humana e pode causar preocupação quando se pensa, por exemplo, nas críticas normativas que enfatizam a necessidade de dessecuritização por seu potencial extraordinário detrimental já aludido supra.

Continuando a cascatear o conceito, o documento constrói um paralelismo sintático de subordinação e instrumentalização, "[a] segurança, em linhas gerais, é a condição em que o Estado, a sociedade ou os indivíduos não se sentem expostos a riscos ou ameaças, enquanto que a defesa é ação efetiva para se obter ou manter o grau de segurança desejado"; sucedido por uma invocação de autoridade e legitimidade plural universal, qual seja, a compreensão da segurança para certos especialistas convocados pela ONU como "uma condição pela qual os Estados consideram que não existe perigo de uma agressão militar, pressões políticas ou coerção econômica", um dado que o analista pode transpor ao caos extralinguístico como uma das orientações mais enfatizadas pelo governo que lançou a PDN-2005.

Enfim, chega-se após um caminho algo tortuoso à definição própria para segurança e defesa, que não se compromete com vários dos conceitos citados nos parágrafos antecessores, mas insere novos elementos bem interessantes: na segurança, inclui-se a condição de "garantia aos cidadãos do exercício dos direitos e deveres constitucionais" (por dedução, algo que a ameaça elimina ao instituir o domínio insegurança); na defesa, surpreendentemente abraça ameaças "potenciais", algo que causaria calafrios a muitos internacionalistas críticos dos preemptive attacks norte-americanos, por exemplo.

Ainda sobre as condições de produção discursivas que se disse serem provavelmente influenciadas pelas orientações governamentais de que se falava, nota-se outra das já diversas novidades da nova PDN: no item 2.2, mencionam-se, de acordo com certas tendências de nomenclatura da política internacional, os "países em desenvolvimento" como desafiados pelas alterações no mercado mundial que o fenômeno da globalização oportuniza e gradativamente exacerba, embora não explicite que o Brasil faça parte desse grupo. No parágrafo adiante, a nova percepção de morfologia do poder também é pintada com pinceladas mais precisas, uma "unipolaridade no campo militar" produtora de "tensões e instabilidades indesejáveis", referência óbvia aos vizinhos do norte.

Como se percebe apenas na análise das primeiras partes da PDN-2005, há mudanças significativas com relação àquela que lhe precedeu, muitas das quais foram apontadas com paciência pelo discursivista crítico Vagner Pereira (2007). À guisa de forçosa conclusão de uma análise que ainda poderia estender-se ricamente por páginas a fio e em complementaridade com a desse estudioso, porém, fica não apenas a recomendação de uma leitura mais atenta e desvestida de preconceitos, mas também que procure nas alterações sutis a abrangente gama de significação profunda e respectivas consequências pragmáticas construídas no percurso gerativo do sentido. Os esforços envidados até agora no presente trabalho devem haver mostrado que há um potencial bem promissor nesse tipo de análise, que evita simplismos e compreensões demasiadamente rasas de uma realidade ainda em constante retrabalhamento (por exemplo, nas recentes iniciativas pluralizantes de escrita do Livro Branco de Defesa Nacional), que afeta o cotidiano de milhões de pessoas, muitas vezes sem que elas se deem conta disso.

 

Conclusão

Finalmente, retomando a metáfora inicial para uma conclusão harmônica, espera-se que, com a releitura das Políticas de Defesa Nacional ora realizada, ainda que não tenha explorado todas as inúmeras possibilidades abertas pelas abordagens linguísticas adotadas, não tenha sido desperta no eventual apreciador uma impressão de que se lhe esteja sendo oferecido tão-somente um bizarro prato de arroz com feijão condimentado à moda francesa. Se a ousadia não causa agrado, terá servido ao menos como experiência que mostra boa vontade e busca revelar um potencial ainda pouco explorado na cozinha acadêmica brasileira. Nesse caso, fica este prato submetido à aberta crítica dos chefs gourmet internacionalistas, para que seja possível melhorar e aperfeiçoar suas sutilezas. Em caso de agrado, estão na maior parte revelados os temperos especiais na lista de ingredientes abaixo arrolada, para que ainda outros cozinheiros ensaiem suas próprias versões, de acordo com suas ideias e gostos particulares.

 

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Artigo preparado para apresentação no 3º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais, São Paulo, 20 a 22 de Julho de 2011.

1. Não haverá espaço no presente artigo para esmiuçar as bases teórico-metodológicas da perspectiva aqui denominada semiótico-pragmática. As referências principais são BARROS, 2001; GREIMAS; COURTÉS, 2008 e SEARLE, 1983 e 2002. Para um quadro teórico sinótico resumido (ainda que baseado em dimensões teóricas mais abrangentes), pode-se consultar MUSUMECI, 2011.
2. Parte das raízes da noção de condições de produção está fincada no pensamento de Zellig Harris, cujo trabalho Discourse analysis pode ser considerado o ponto de partida da Análise de Discurso (AD) em dois sentidos: por um lado, mostra a possibilidade de ultrapassar as análises que se limitavam à frase; por outro, discute criticamente a clássica oposição saussuriana entre língua e fala. Preocupando-se simultaneamente com o conceito de enunciação e os processos de significação, Harris evidencia a necessidade de que estas instâncias sejam pensadas em seus processos histórico-culturais de constituição, o que se veio a chamar convencionalmente de condições de produção (ORLANDI, 1986, p.110). Na perspectiva semiótica, com base em Hjelmslev, a noção de condições de produção pode ser cotejada com o conceito de contexto implícito ou situacional (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p.97). Diante dessa possibilidade, no entanto, deve haver uma cautela assinalada por Charaudeau e Maingueneau (2008, p.115): o conceito de contexto, referindo-se a "dados não-linguísticos que organizam um ato de enunciação", pode ser entendido tanto como os dados que decorrem da própria situação de comunicação (conteúdo discursivo) quanto como aqueles dados provenientes de um "saber pré-construído" (condições situacionais: "saberes, crenças e valores que circulam no grupo social ao qual pertence ou ao qual se refere" o sujeito). Se é certo que ambos os "contextos" determinam o sujeito falante, há que se fazer atenção, na análise, para a alta importância dessa diferença, refletida, por exemplo, na sempre recorrente questão de sobredeterminação entre agente e estrutura nas Relações Internacionais.
3. Ainda na identificação das condições de produção que envolvem a subjetividade expressa no documento, vale lembrar que, à época, "[d]iferentemente da maioria dos países democráticos], não existia no Brasil o Ministério da Defesa, mas sim "cinco agências militares em nível de ministério - Exército, Marinha, Aeronáutica e Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA) e o ministro-chefe da Casa Militar -, além da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, todos voltados, no todo ou em parte, para os assuntos de defesa do Brasil. A esses, somavam-se ainda "instâncias diversas que exerceriam o papel de conselhos consultivos superiores sobre estes temas: o Conselho de Defesa, órgão constitucional, a Câmara Setorial de Relações Exteriores e Defesa Nacional (Credena) e, ainda, setorialmente, estruturas de comando nacional e alto comando das forças singulares, cujos papéis se sobrepõem". As que teriam participado diretamente na elaboração da PDN em 1996 são a SAE, os ministérios militares e o MRE, "além da presença, pouco clara em termos institucionais, do Ministério da Justiça" (PROENÇA Jr.; DINIZ, 1998, p.17-18).
4. A esse respeito, v. ALSINA Jr., p.68-69. Segundo este autor, o caráter pouco inovador do documento é uma das razões por que "em apenas dois meses, com número não exaustivo de reuniões semanais, foi possível chegar a um texto consensual. Note-se, no entanto, que o Presidente teria estabelecido o prazo de apenas vinte dias úteis para a produção do documento! Nessas condições, seria de todo improvável chegar a uma fórmula que contemplasse qualquer inovação substantiva em relação às convicções arraigadas nos meios militar e diplomático".
5. Um dos autores canônicos do construtivismo nas RI, Alexander Wendt (1999, p.215-216; 2004) explica que a agência de uma corporação como o Estado é, na realidade, um tipo de "estrutura de conhecimento ou discurso compartilhado que permite aos indivíduos engajar-se na ação coletiva institucionalizada". Para maior esclarecimento, vale informar que, segundo Wendt, existe uma divergência básica de opiniões acerca do status ontológico dessa estrutura entre "nominalistas" e "realistas". Este realismo científico, que não deve ser confundido com o realismo clássico das RI, consiste na negação do entendimento nominalista predominante nas teorias da política internacional: enquanto o nominalismo vê a agência corporativa "meramente como uma ficção ou metáfora útil para descrever o que 'na realidade' são ações de indivíduos", os realistas científicos acreditam que esta agência se refere a "um fenômeno real e emergente que não pode ser reduzido aos indivíduos" nem à soma das ações individuais, nem simplesmente ao "governo", principalmente porque o "comportamento" dos agentes corporativos funciona para "se fazer predições confiáveis sobre os indivíduos", assim subvertendo o rumo de determinação e dependência, ainda que não necessariamente o suplante.
6. Dadas as muitas críticas verificadas tanto no setor acadêmico quanto entre parcela dos militares, há razões para crer que os macroatos de linguagem presentes na PDN-1996 não tiveram sucesso absoluto, em particular devido à falta de firmeza, de pormenorização e mesmo de coerência interna que alguns notaram (v., p. ex., ALSINA Jr., 2003, p.72-73).
7. É a opinião resoluta, por exemplo, exposta em PEREIRA, 2006, p.45: "conquanto denominada de nova Política de Defesa Nacional, é praticamente a mesma anterior, com mudanças de palavras, arranjos e introdução de uns poucos e discutíveis conceitos". Este ex-Ministro da Marinha, aliás, não hesita em evidenciar com veemência sua avaliação de que haveria uma "dissonância entre palavra e vontade" (p.46), instanciada na reclamação pela alocação de recursos suficientes para o preparo das Forças, distribuição esta que a PDN afirma priorizar.
8. No entender de João Paulo Alsina Jr. (2003, p.54), "a publicação da PDN e a criação do MD representaram acontecimentos interligados". Mais especificamente, "a PDN converteu-se em um passo lógico em direção ao Ministério da Defesa. Se o procedimento ortodoxo seria primeiro unificar Marinha, Exército e Aeronáutica sob o comando do MD e depois elaborar uma política de defesa que fornecesse as linhas de orientação para o preparo castrense, no plano concreto ocorreu o oposto. Inicialmente, formulou-se um documento declaratório que, apesar de suas deficiências, serviu como elemento impulsionador do processo de mudança que até então caminhava lentamente" (p.78). Em concordância, Helder da Silva (2007, p.13) enxerga que a PDN-1996 "abriu caminho para as reformas estruturais que as instituições de defesa do país necessitavam, a fim de adequá-las ao ordenamento democrático".
9. Mudança extensamente analisada por Santana, 2007, p.75-77, que procura explicar a inserção desse "modalizador deôntico" inclusive em seus aspectos discursivos pragmáticos.
10. Segundo a pragmática habermasiana, as ações estratégicas são um tipo de ação social que não visa primariamente ao entendimento mútuo, mas sim à consecução de objetivos individuais por meio do apelo aos desejos e receios do interlocutor, entre outros meios. A diferença sutil para com a ação comunicativa é, pois, que nesta os interlocutores coordenam sua ação na busca de objetivos individuais ou conjuntos, mas com base num entendimento compartilhado de que esses objetivos sejam inerentemente razoáveis e válidos. O sucesso da ação comunicativa, destarte, não seria tanto a concretização do objetivo em si, como na ação estratégica, mas sim a própria concordância livre entre os atores de que seus objetivos validam o comportamento cooperativo (BOHMAN; REHG, 2007).