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ISBN 2236-7381 versão impressa

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Integração regional na América do Sul: processos em aberto

 

 

Miriam Gomes Saraiva

Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais - UERJ. E-mail: miriamsaraiva@uerj.br

 

 


RESUMO

Os objetivos do paper são, por um lado, identificar tanto a situação atual das abordagens analíticas dos processos de integração regional quanto as percepções dos atores políticos sobre a integração sulamericana, assim como analisar e conectar estas iniciativas atuais com as abordagens e as percepções definidas. Por outro lado, seu objetivo é explicar o papel exercido recentemente pelo Brasil na evolução destes processos. Com estes objetivos, o paper será dividido em quatro partes: primeiro, examinará os modelos tradicionais de integração regional e suas lacunas para explicar as iniciativas mais recentes em curso, junto com a referência a novas abordagens; em segundo lugar apresenta diferentes visões dos atores políticos sobre a integração regional definidas de acordo com alguns elementos comuns; em seguida o paper menciona as iniciativas regionais em curso; e, por fim, examina o papel relevante do Brasil neste campo.

Palavras-chave: integração regional, integração sulamericana, política externa brasileira


 

 

O cenário atual dos processos de integração na América do Sul não apresenta contornos precisos. As iniciativas mais tradicionais, o MERCOSUL e a Comunidade Andina (CAN), não levaram a uma regionalização em termos de interdependência entre os países do continente como um todo nem o comércio intra-regional chegou a mostrar um desempenho significativo, e estão cedendo espaços para modelos mais cooperativos que se afastam das categorias tradicionais de integração econômica orientadas para a integração comercial. O modelo de economia aberta, por seu turno, vem sendo substituído em diversos países sul-americanos por políticas mais próximas ao neodesenvolvimentismo.

Por outro lado, desde o 11/Setembro que o governo de George W. Bush abandonou os resquícios de uma política panamericana para a América Latina, enquanto o novo governo de Barack Obama não tem uma política específica orientada para a América do Sul. Os novos governos de caráter anti-liberal eleitos na região atuam no sentido de aprofundar a distância em relação aos Estados Unidos enfraquecendo os laços históricos com o norte.

Este novo cenário vem dando lugar a novas experiências no campo da integração/cooperação regional. A ALBA e a UNASUL são iniciativas diferentes entre e com características próprias. A ALBA inclui uma maior institucionalização e uma forte rede de cooperação técnica e financeira com um viés político, enquanto a UNASUL tem um caráter estritamente intergovernamental e de institucionalidade baixa, garantindo a autonomia dos Estados membros. Em termos econômicos, por não ter compromissos próprios de integração econômica, a UNASUL pode acomodar diferentes iniciativas subregionais como o MERCOSUL e a CAN.

Indagações acerca da UNASUL e da ALBA são levantadas. São mecanismos de cooperação ou de concertação política? São orientadas para áreas de investimento e cooperação na região? Abarcam a dimensão social? São orientadas para a construção de bens comuns regionais ou pensados para evitar danos? Qual é o papel da liderança brasileira neste processo?

O principal objetivo aqui é identificar a situação atual das abordagens analíticas e das percepções dos atores políticos sobre os processos de integração na região, analisar estes processos e conectá-los com as abordagens e as visões. Em seguida, examinará o papel que o Brasil vem desempenhando na evolução destes nos últimos anos.

Por se tratar de uma conjuntura nova em mutação, este artigo não fornece classificações definitivas nem traz novas abordagens mas sim aponta elementos para reflexão que poderão ser aprofundados posteriores. Para tanto, vai examinar os modelos tradicionais e suas lacunas frente às iniciativas mais recentes, assim como algumas abordagens que buscam introduzir algo de novo; as visões de atores políticos da região sobre a integração regional, definidas a partir de elementos comuns; as experiências regionais em curso; e o papel relevante que o Brasil vem exercendo neste novo cenário. Por fim, a conclusão busca apontar as lacunas e idéias principais que marcam o cenário atual.

 

Os modelos tradicionais de integração econômica e a contribuição de outras abordagens

As iniciativas de articulação regional na América do Sul receberam um impulso singular com a eleição de diversos governos progressistas na região, mas assumindo padrões diferentes do tradicional e mais difíceis de serem analisadas e compreendidas com os modelos analíticos existentes.

Quando se pensa em integração regional, a primeira definição que vem em mente é a abordagem proposta Bela Ba­lassa, nos anos 60 e diante do início dos processos de integração. O objetivo da abordagem era defi­nir e conceituar a inte­gração econômica, e sistematizar as for­mas possíveis de integraç­ão neste campo1. Nesta classificação, Balassa define quatro principais catego­rias de integração: a área de livre comércio, a união adua­nei­ra, o mercado comum e a união econômica. Estes modelos de integração econômica vêm servindo há muito tempo como padrões para classificação e explicação das experiências de integração mais tradicionais da região - a ALALC/ALADI, o Pacto Andino/CAN e o MERCOSUL. São modelos que, por si, repousam na dimensão econômica e, em suas primeiras etapas, mais propriamente na dimensão comercial. O Grupo do Rio, criado em 1986 e atuando como mecanismo de concertação política, poucas vezes foi objeto de atenção dos estudiosos de integração.

Durante os anos 70 e 80, com vistas a definir o modelo e a evolução do processo europeu, desenvolveram-se abordagens que propõem diferentes definições e dinâmicas marcadas pela coexistência das dimensões supranacional e intergovernamental. A perspectiva neofuncionalista defende que a inte­gração ocorre por ser funcional e eficiente. Em si mesma, traz uma tendência ao aumen­to progressivo da integraç­ão, marcado pela transfer­ência gradual das leal­da­des políticas para as instituições supranacio­nais, até atingir a integração política. Para o intergovernamentalismo liberal as decisões mais importantes em matéria de integração regional explicam-se de acordo com os cálculos dos Estados soberanos atendendo aos atores sociais: os interesses econômicos, o poder relativo e a necessidade de compromissos possíveis. A integração seria vista como uma forma dos Estados gerenciarem a interdependência.

De maneira geral, por buscarem definir a lógica particular da integração européia, estas abordagens nunca conseguiram explicar as experiências de inte­gração sul-americanas. Enquanto as experiências de integração sul-americanas limitavam-se mais a áreas de livre comércio, a dimensão supranacional não tinha função nestas iniciativas e a interdependência entre estes países não se configurava, estas abordagens não eram adotadas por seus analistas. Atualmente alguns elementos destas pers­pectivas começam a ser improvisados em um intento de explicar os novos tra­ços destes processos de integração.

Durante os anos 90, as iniciativas de integração regional tomaram novo impulso com os exemplos do renascimento da CAN e da criação do MERCOSUL. Devido ao fato destas iniciativas serem orientadas basicamente para uma melhor inserção das economias nacionais no sistema econômico internacional, estas ficaram conhecidas como o "regionalismo aberto" ou "novo regionalismo".

O novo regionalismo assumiu características, vinculadas ao processo de globalização dos 90, que atuariam como orientadoras de seu funcionamento: medidas visando a obtenção de uma economia mais aberta; expectativa de articulação multinacional para a construção de uma economia de escala; defesa de regimes democráticos ocidentais. O novo regionalismo significou a contraparte do liberalismo nos processos de integração regional e orientou as análises das experiências sul-americanas neste período.

Desde o início dos anos 2000, condições básicas de seu funcionamento foram postas em xeque. Por um lado, o modelo de abertura das economias nacionais não mostrou os resultados esperados em diversos países na região e foi coexistindo ou sendo substituído paulatinamente por traços de um modelo orientado para políticas industriais, próximo do neodesenvolvimentismo. Nestes casos a adoção de compromissos próprios da integração de caráter comercialista deu lugar a preferências mais cooperativas. Por outro lado, a ideia de criar uma economia regional de escala não foi implementada devido a obstáculos colocados por agentes econômicos nacionais e ao caráter defensivo dos processos de integração na região. Por fim, o consenso sobre os regimes democráticos ocidentais sofreu mudanças e perdeu relevância em alguns países da região. Alguns governos têm buscado re-construir os respectivos regimes políticos nacionais a partir de novos padrões de inserção de setores até então marginalizados da política. As explicações tradicionais sobre integração deixaram ainda mais lacunas frente a estas transformações.

Com vistas a introduzir novas reflexões sobre o tema Andrés Malamud cita Ernst Haas que define a integração como um processo através do qual os Estados "se mesclam, se confundem e se fundem voluntariamente com seus vizinhos de modo tal que perdem certos atributos fáticos de soberania, ao mesmo tempo que adquirem novas técnicas para resolver conjuntamente seus conflitos". Esta definição ajuda a se entender a fronteira entre integração e cooperação entre Estados2. Malamud ressalta a dimensão deliberada e de construção estatal de uma comunidade política de integração e faz diferenças com a governança regional, que corresponderia a "mecanismos através dos quais se regulam as novas comunidades". Destaca também a importância das reflexões sobre o regionalismo multi-nível, como fenômeno que conduz ao convívio entre diferentes iniciativas de integração que que pode produzir impasses entre as instituições próprias destas iniciativas e as sociedades nacionais.

Sean Burges, por sua vez, defende que os ganhos dos processos de integração econômica na região anunciados pelas lideranças políticas não correspondem a avanços em termos reais3. Ele demonstra através de dados empíricos que não existem incentivos econômicos ou demandas doméstica na região suficientes para um êxito neste campo. Aponta, porém a possibilidade destes processos receberem impulsos de outro tipo, como vantagens nas áreas de segurança e de energia. Destaca também a importância que o Brasil exerça o papel de paymaster absorvendo os custos da integração e provendo o coletivo de bens públicos necessário para o sucesso de um processo de integração.

Outros autores explicam a conjuntura atual dos processos de integração na América do Sul a partir das ideias, ou combinando ideias com interesses4. Neste caso, as idéias seriam recursos de poder utilizados por "atores interessados"; o instrumento em lutas políticas que ajudaria certos atores a alcançarem certos objetivos. Desde esta perspectiva, que tipo de percepções sobre a integração regional podem ser identificadas nos atores políticos e econômicos da região? Estas idéias se baseiam nas concepções antigas de Balassa ou em de outras abordagens explicativas?

 

Visões sobre a integração5

Desde a dimensão política, as visões sobre integração na América do Sul são variadas. Grosso modo, podem ser agrupadas como segue:

A primeira visão, que se estruturou no início dos anos 1990, tem como base o pensamento liberal-ortodoxo no campo da economia e na dimensão política6. Em termos estritamente econômicos, esta visão defende a abertura indiscriminada da economia, e sugere o desenvolvimento de um menor número de setores produtivos mas que detenham maiores vantagens comparativas e possam ter melhor inserção da economia nacional no mercado internacional. Dá preferência a áreas de livre comércio em detrimento de uniões aduaneiras por identificar as últimas como um obstáculo para as negociações com diferentes parceiros na arena internacional. Neste caso, os acordos comerciais são julgados pelas suas criações e desvios de comércio, e o quanto o acordo favorece uma maior abertura das economias de seus Estados. Em termos políticos, a visão liberal dá preferência a aproximar-se dos Estados Unidos. O apoio norte-americano para temas de segurança e defesa também aparece como relevante para este grupo. Esta visão foi forte especialmente no Chile, que optou por uma estratégia de projeção individual na economia internacional.

Um segundo grupo orienta-se no campo econômico para modelos mais heterodoxos que preferem políticas estatais destinadas a promover o desenvolvimento industrial com enfoques setoriais. Este grupo abarca, porém, interpretações mais variadas no campo econômico e visões diferentes no campo político. Como elemento comum apóiam uma integração regional, mas com diferentes matizes. Nos marcos dos blocos econômicos existentes na região e a partir da perspectiva comercialista, ao contrário dos liberais os heterodoxos mostraram preferências para uma a união aduaneira que daria aos países membros acesso preferencial aos mercados do bloco e fortaleceria a posição destes países nas negociações internacionais.

No caso do MERCOSUL, aonde existe uma diferença marcante entre os respectivos parques industriais de seus países membros, os heterodoxos pragmáticos na Argentina e nos países menores sugerem maior coordenação de políticas macroeconômicas no interior do bloco junto com a introdução de uma agenda industrializante. Isto significaria uma integração estratégica de recursos que assegurasse o desenvolvimento dos setores produtivos, junto com a incorporação à agenda do bloco da questão distributiva e de acesso às oportunidades. O fim das assimetrias entendidas como diferenças nas políticas de incentivos para a industrialização seria um passo importante. Trata-se de uma visão pragmática, que defende um modelo que produza benefícios econômicos para o país e aonde a institucionalização será bem vinda somente na medida em que aumente sua eficácia neste campo. Têm maior preocupação com o fortalecimento de procedimentos técnicos e com a integração funcional.

As percepções brasileiras têm características específicas, próprias do tipo de inserção histórica do Brasil na região, assim como do crescimento econômico e da projeção externa que o país vem experimentando desde meados dos anos 1990. A primeira visão, que se situa entre os heterodoxos e os liberais, é mais favorável a uma liberalização condicionada (que não abre mão da política industrializante adotada no período desenvolvimentista). Esta, identifica uma integração na América do Sul como um espaço para diminuir os impactos e o próprio ritmo de uma abertura para o exterior, e, em relação ao MERCOSUL, oscilou nos últimos anos entre, nos piores momentos, a defesa com pouco vigor do retorno a uma área de livre comércio e, em momentos mais favoráveis, a aceitação de uma união aduaneira incompleta. Com a eleição de Lula da Silva este grupo teve sua influência reduzida.

Em termos político-diplomáticos, este grupo encontrou identidade principalmente nos marcos dos institucionalistas pragmáticos do Itamaraty, que se caracterizaram por dar maior importância ao apoio do Brasil aos regimes internacionais em vigência. No que diz respeito à institucionalidade do MERCOSUL, esta visão aproxima-se dos pragmáticos na Argentina: a institucionalização só será bem vinda na medida em que potencialize a capacidade do bloco de produzir benefícios no campo econômico.

Os brasileiros desenvolvimentistas -de corte mais propriamente heterodoxo- buscam a integração econômica como mecanismo de acesso a mercados externos e de projeção das empresas nacionais, assim como um canal de projeção e fortalecimento nas negociações econômicas internacionais. Sua maior identidade na esfera diplomática dá-se com a corrente autonomista, que defende uma projeção mais autônoma e ativa do Brasil na política internacional e que busca um papel de liderança brasileira assertiva na América do Sul. Percebe a integração sul-americana sob a liderança brasileira como prioridade e considera importante a ampliação do MERCOSUL.

No entanto, a base do regionalismo aberto do MERCOSUL e seu caráter mais comercialista são criticados por este grupo. O "desenvolvimento" é apontado como matriz para um processo regional de integração. O maior destaque é dado à possibilidade de implementar projetos brasileiros de desenvolvimento de infraestrutura e projeção industrial.

Dentre os governos anti-liberais eleitos após 2000, vem se estruturando uma visão neodesenvolvimentista, de caráter também heterodoxo, que busca estabelecer uma política industrial mais ativa orientada para a estruturação de um parque industrial nacional. O modelo econômico nacionalista e neodesenvolvimentista junto com o pouco avanço no sentido de organizar políticas para lidar com as assimetrias frente à projeção brasileira na região deu argumentos a um grupo que se preocupa com a dimensão excessiva da economia brasileira, e defende o estabelecimento de mecanismos defensivos no campo econômico frente ao vizinho maior. Esta corrente prioriza um modelo mais cooperativo que evite compromissos econômicos de longo prazo vis a vis o exterior e tem mais espaços em países como a Argentina, que podem atuar como países barganhadores ou desafiantes externos no cenário regional7.

A visão progressista, por sua vez orienta-se para a dimensão política8. O processo de integração, neste caso, tem uma perspectiva de longo prazo de caráter estratégico vis a vis terceiros Estados. Entendem que o processo de integração fortaleceria a posição da América do Sul no concerto de nações. Propõem um processo de integração cuja base seja uma identidade comum no qual a ênfase estaria na participação da sociedade civil e no fortalecimento da parte institucional. Sem se perfilarem ao neofuncionalismo e desde outro ponto de vista, vêm a institucionalização como um incentivo para a integração. Sua origem está em acadêmicos e lideranças políticas ligadas a partidos progressistas com um histórico de atuação internacionalista.

Uma visão diferente -a bolivariana- desenvolveu-se na Venezuela durante a década. A Venezuela é um país também caribenho, o que faz com que esta visão tenha uma concepção diferente da América do Sul. Seus defensores mostram preferência por criar um tipo de confederação latino-americana, que teria um conteúdo majoritariamente político. A partir de 2004 torna-se clara a percepção da integração por este grupo como instrumento anti-liberal e anti-norte-americano, junto da idéia de aprofundar o "processo revolucionário" em suas dimensões interna externa. Esta perspectiva defende a dimensão política com vistas a criar um bloco de poder que assegure aos países sul-americanos maior poder e autonomia nos cenários globais.

Neste caso, a dimensão econômica da integração vem subordinada à dimensão política e é criticada por ser considerada uma expressão do "neoliberalismo selvagem" identifica como responsável por um incremento da dependência regional. Para esta visão, a integração pode se afastar da dimensão econômico-comercial e centrar-se nos aspectos políticos, ideológicos e militares. Este seria o início da denominada "integração bolivariana", que busca promover a eqüidade, a igualdade, a lealdade e a unidade de propósitos. Estas idéias encontraram ecos também na Bolívia e no Equador.

 

Cenário atual

Atualmente existem 3 iniciativas de integração/cooperação na América do Sul -MERCOSUL, CAN, UNASUL- junto com outras que incluem países de toda a América Latina. Dentre as últimas, a ALBA é importante de ser vista por condensar uma das visões atuais sobre integração regional. O Grupo do Rio e a CELAC, por representar mecanismos de concertação política com institucionalidade muito baixa não serão incluídas na análise.

A CAN atualmente está bastante desarticulada. Criada em 1993 a partir de um reordenamento do Pacto Andino, conseguiu consolidar uma área de livre comércio entre seus membros somente em 2006. Neste mesmo ano, em função da ascensão de governos de esquerda no Cone Sul e da decisão do Peru e da Colômbia de negociar tratados bilaterais de livre comércio com os Estados Unidos, a Venezuela solicitou a saída do bloco e solicitou sua entrada como membro pleno no MERCOSUL trazendo uma baixa no grupo.

Originalmente, o modelo institucional da CAN previa a formação de uma dimensão supranacional através do Parlamento Andino mas, na prática, mantém-se até hoje como uma iniciativa intergovernamental. A predominância nos governos da Colômbia e do Peru da visão liberal obstacularizou a formação de uma união aduaneira (prevista no tratado de formação) e deu lugar a uma área de livre comércio entrecortada por tratados de livre comércio bilaterais dos dois países com os Estados Unidos. As negociações com a EU para um acordo de livre comércio estão empacadas. Bolívia e Equador, por sua vez fazem parte também da ALBA. E os quatro países são associados ao MERCOSUL. Os problemas do regionalismo multi-nível neste caso se fazem presentes e não tem um país que assuma internamente o papel de paymaster.

O MERCOSUL é uma união aduaneira incompleta de caráter  intergovernamental. Criado em 1991, a percepção predominante entre os analistas de temas regionais é que as expectativas de evolução iniciais não se concretizaram. Durante sua primeira década, o convívio de uma visão entre a heterodoxia e o liberalismo tanto no Brasil (com os institucionalistas pragmáticos) quanto na Argentina (com o convívio entre os liberais e os heterodoxos pragmáticos nos quadros do governo), o bloco avançou nas áreas aonde produzia maiores ganhos econômicos -o comércio intrabloco- e com baixa institucionalidade. A desvalorização cambial de 1999 interrompeu este processo por introduzir nas relações comerciais um fator de desequilíbrio entre os dois principais parceiros - a difícil equação entre câmbio e exportações.

A partir da crise argentina de 2001 e depois das eleições de Lula e Néstor Kirchner o equilíbrio político nos dois países foi modificado. Nos dois casos, o convívio entre os heterodoxos tanto pragmáticos quanto progressistas foi estabelecido em detrimento dos liberais, embora com diferenças entre si.

O governo de Lula reflete a coexistência das correntes autonomista/pró-desenvolvimentismo e progressistas. Esta combinação articula, por um lado, a visão autonomista formulada no Itamaraty que ve a integração sul-americana sob a liderança brasileira como objetivo e prioriza uma ampliação do MERCOSUL através da entrada de novos Estados ou a formação da UNASUL. Sua prioridade não é o comércio, mas sim o desenvolvimento. A provável entrada da Venezuela atende a esta perspectiva. Este grupo busca manter um equilíbrio no interior do MERCOSUL que favoreça os projetos brasileiros de desenvolvimento de infraestrutura e projeção industrial. Por outro, os progressistas defendem o aprofundamento da integração política e social.

Na Argentina, Kirchner adotou uma estratégia neodesenvolvimentista de heterodoxa, buscando estabelecer uma política industrial ativa orientada para a recomposição do parque industrial. Esta estratégia recolocou a expectativa do estabelecimento de uma coordenação de políticas macroeconômicas e cambiais com o Brasil que viria acompanhada de um aumento de eficiência no processo de integração de infraestrutura. Mas o fracasso desta expectativa cedeu lugar a preocupações com a dimensão da economia brasileira, e ao estabelecimento de mecanismos defensivos e de comércio administrado.

Os progressistas conseguiram, nos dois casos, ter influência sobre as dimensões institucional e societal do MERCOSUL. A entrada em vigor do Protocolo de Olivos e a formação do Parlamento são resultantes desta perspectiva. Na dimensão intersocietal o nível de integração atingido em parte dentro do MERCOSUL -sobretudo entre Brasil e Argentina- é significativo. A cooperação entre diferentes ministérios em setores como educação, cultura, energia e agricultura cresceu nos últimos anos.

O processo ainda incompleto de admissão da Venezuela como membro pleno do bloco atendeu a formuladores argentinos preocupados com o peso crescente da liderança brasileira, aos autonomistas que buscam a ampliação do bloco, e aos progressistas de defendem maior aproximação com os governo anti-liberais da região. Mas empacou nos limites da visão bolivariana que tinha expectativas de reformular o caráter econômico do MERCOSUL.

Em termos econômicos, a área de livre comércio e a TEC vêm sendo perfuradas e os investimentos no bloco vêm deixando de ser atrativos para agentes econômicos. Mas a idéia da união aduaneira incompleta segue, e os demais países latinos da região são associados ao bloco em termos comerciais. A dimensão supranacional não está ainda contemplada - apesar da criação do Parlasul- e o Brasil, vem, progressivamente, ocupando o papel de paymaster no bloco através do FOCEM.

A ALBA surgiu como alternativa à área de livre comércio proposta pelos Estados Unidos para a região, e busca atender à visão bolivariana mencionada. Seu caráter é prioritariamente político e sua proposta é de formar uma identidade entre países que partilham ideais políticos e estratégias de desenvolvimento econômico anti-liberais. Pelo perfil também caribenho da Venezuela, seu arco de ação orienta-se para América Latina e Caribe, e não apenas para a América do Sul. Seu processo de institucionalização começa em 2004 e atualmente possui uma institucionalidade própria. Tem como órgãos o Conselho de Presidentes, o Conselho de Chanceleres, uma coordenação permanente que administra os projetos e comissões setoriais. O Banco da ALBA também é importante de se destacar.

Sua operacionalização se dá através de tratados de comércio entre seus membros, junto com empresas estatais mistas (as grannacionais) e projetos coletivos orientados para os países de menos recursos. Estes projetos incluem a troca de bens e serviços, o aproveitamento de vantagens comparativas preexistentes, convênios para facilitação de pagamentos e transferência tecnológica. Esta diplomacia baseia-se em recursos provenientes do petróleo venezuelano e na ação clara da Venezuela como paymaster, junto com um papel central também de Cuba com contribuições nas áreas de saúde e educação. Através do discurso da solidariedade e de benefícios concretos para os países menores, cria-se um núcleo em torno do projeto de socialismo venezuelano. Dentre os sul-americanos, fazem parte da ALBA também a Bolívia e o Equador. Não se enquadra em nenhuma das classificações de Balassa de etapas da integração econômica, e tem um caráter intergovernamental, não incluindo uma dimensão supranacional. É importante destacar seu modelo cooperativo e um tipo de integração -no sentido da formação de uma rede que perpassa áreas não-econômicas- que, embora inclua compromissos para o futuro, não prevê partilha de soberania.

A UNASUL tem um perfil diferente das outras iniciativas e se aproxima mais de um instrumento de governança regional que dos padrões clássicos de integração. Em 2000, o presidente Cardoso organizou uma primeira reunião em Brasília com os governantes da região com vistas à formação de uma comunidade sul-americana. A partir da eleição de Lula, a diplomacia brasileira concentrou esforços mais diretos na sua institucionalização (formalizada em 2004). A primeira Cúpula dos países da CASA, em 2005, estabeleceu como agenda as assimetrias entre seus membros, e foram tratados temas como o diálogo político; a integração física; meio ambiente; integração energética; mecanismos financeiros sul-americanos; promoção da coesão social. Isto demonstra seu perfil cooperativo que congrega iniciativas de cooperação técnica e financeira, assim como uma atuação importante no campo político.

Em 2008 a CASA evoluiu para UNASUL, que tem um caráter intergovernamental e de baixa institucionalidade. Conta, de forma semelhante à ALBA, com o Conselho de Chefes de Estado e Governo, Conselho de Chanceleres, Conselho de Delegados e uma secretaria geral, junto com alguns conselhos setoriais. Em termos econômicos, por não ter compromissos de uma experiência de integração regional específica nem se enquadrar em nenhuma das classificações de integração econômica, pode acomodar diferentes iniciativas subregionais como o MERCOSUL, a CAN e mesmo a ALBA.

Nos últimos anos a UNASUL vem, progressivamente, unificando comportamentos dos países da região. Vem desempenhando um papel importante frente às situações de crise no continente; seja de política doméstica (como no caso da Bolívia) ou de relações de fronteira (como no caso de Venezuela e Colômbia). A criação do Conselho de Defesa Sul-Americano em seu interior, por iniciativa do governo brasileiro, tem contribuído para maior aproximação entre os países da região no campo militar, assim como colocou o Brasil no centro da agenda de segurança regional9.

Vis a vis outros continentes, a UNASUL já é reconhecida como canal de diálogo com a região por outros atores. Já existem dois diálogos interregionais estruturados em seus marcos -América do Sul-África e América do Sul-países árabes- e, no caso da União Européia, já existe um reconhecimento por parte de formuladores europeus da importância de se estabelecer um diálogo UE-UNASUL10. Pode ser considerada, então, uma novidade, com um perfil diferente das outras iniciativas, que acomoda diferenças e que pode dar uma contribuição importante para a consolidação de um governança regional.

 

Papel da liderança brasileira

Dentro deste cenário incerto que abre perspectivas para um novo ordenamento, o Brasil vem desempenhando um papel relevante no sentido da integração/governança regional. Sean Burges observava que o regionalismo sul-americano precisaria de um líder que exercesse o papel do paymaster11. A diplomacia brasileira vem assumindo este papel e orientando seu comportamento para a formação de consensos entre diferentes. No entanto, prioriza, de forma não-explícita, a construção de uma governança regional em detrimento de concepções mais tradicionais do que se entende por integração.

Na política externa do governo de Lula um ordenamento da América do Sul sob a liderança brasileira passou a ser considerada prioridade, e seria possível enquadrá-la em termos de idéias, em uma articulação entre os autonomistas desenvolvimentistas e os progressistas. A aproximação com os países vizinhos é percebida como o caminho para melhor inserção internacional, mas que possibilita a realização do potencial brasileiro e a formação de um bloco capaz de exercer maior influência internacional. Com este objetivo, a diplomacia brasileira deu um novo peso à construção de uma liderança brasileira na região baseada no reforço do multilateralismo. Atualizou os princípios da não intervenção como "não-indiferença" e incluiu em sua agenda a articulação da liderança regional com os processos de cooperação e integração regional e com incentivos ao desenvolvimento brasileiro12.

Para os pensadores autonomistas e desenvolvimentistas, a aproximação com países da região abre perspectivas para a projeção das indústrias brasileiras na medida em que estas ocupariam espaços vazios decorrentes das limitações das indústrias nestes países. A Estratégia Nacional de Defesa (que propôs o Conselho Sul-Americano de Defesa) do governo de Lula tem uma orientação para o desenvolvimento da indústria nacional na área de defesa.

Em termos gerais, a diplomacia de Lula introduziu no leque das iniciativas externas brasileiras uma estrutura complexa de cooperação com países da região dando prioridade à cooperação técnica e financeira e ao bilateralismo. Os investimentos na região e financiamento de obras de infraestrutura têm crescido e o BNDES começou a dar financiamentos para estas obras, alavancadas pela IIRSA e com vistas a desenvolver uma infraestrutura regional. A cooperação técnica tem sido implementada em setores como os de Educação, Agricultura, Ciência e Tecnologia e Saúde. Estas iniciativas contribuem para o avanço da articulação com os países vizinhos em áreas não-comerciais, que não vinham mostrando resultados significativos, e reforçam o processo de regionalização do continente.

A atuação brasileira nesta área, porém, tem convivido com algumas tensões. Sentimentos nacionalistas nos marcos dos processos internos de mudança em alguns países vizinhos vêm desafiando a posição brasileira e reivindicando concessões no campo econômico. A cobrança de que o Brasil cumpra plenamente o papel financeiro do paymaster é forte, ao mesmo tempo em que a liderança brasileira é contestada em dimensões extra-regionais13.

Como resposta, o governo brasileiro tem dado passos importantes em termos domésticos no sentido de uma articulação política em torno do projeto de liderança na região, que se reflete na formação de uma coalizão mais favorável a que o país arque com alguns custos da integração sul-americana. O debate tornou-se público e já existe uma associação entre a liderança e seus custos por parte de membros das agências de governo. Pensadores da visão progressista tiveram influência neste comportamento vendo a cooperação como elemento positivo, incentivando os esforços de construção de uma identidade sul-americana e orientando no sentido de maior aproximação com os países cujos governos são identificados também como progressistas.

Para implementar este projeto, a consolidação da CASA teve um papel importante. Com a eleição de Lula, a diplomacia brasileira concentrou esforços na sua institucionalização. Sua passagem para UNASUL foi resultante de pleitos do governo venezuelano articulados com a disposição política do governo de Lula. Atualmente, a organização vem sendo seu principal canal de ação multilateral. Trata-se de um mecanismo que ressalta a dimensão política da política brasileira para a região e através do qual a diplomacia brasileira vem atuando com vistas a construir consenso entre os países vizinhos frente a situações difíceis, e buscando sempre ocupar papel de destaque.

 

À guisa de conclusão

Seria interessante destacar, em primeiro lugar, o papel que a UNASUL vem exercendo atualmente na região. Tem tido um desempenho agregador e tem contribuído para a solução de situações de crise que, sem um marco institucional consolidado, poderiam ter resultados prejudiciais ao continente. A UNASUR não representa um tipo de integração econômica, mas tem aberto caminhos para uma articulação político-estratégica importante. A UNASUL como mecanismos de formação de consensos tem podido acomodar visões diferentes sobre integração, experiências de integração econômica, países individuais e um projeto de formação de identidade como a ALBA.

O governo brasileiro, com vistas a construir uma liderança na região, tem dado um incentivo político importante para o funcionamento da UNASUR. Ao mesmo tempo, vem atuando em diferentes áreas de cooperação aprofundando o processo de regionalização no continente. Assim, embora não tenha um perfil tradicional de processo de integração, este movimento de articulação e cooperação entre os países da região tem um paymaster. Na prática, a construção de uma governança regional necessita de um ou dois países que trabalhem neste sentido para ter êxito.

Os processos de integração da década de 1990 repousavam então em expectativas de que iriam se desenvolver seguindo as etapas de integração econômica sugerida por Balassa e, mais adiante, iriam incorporar uma dimensão supranacional. No entanto, assumiram diferentes formatos baseados em percepções políticas que se consolidaram na região na década de 2000, incorporando outras dimensões e prioridades.

É colocada, então, a questão conceitual, que atualmente está em aberto. O convívio entre diferentes visões da integração e diferentes iniciativas -de caráter político ou econômico- que em muitos casos se sobrepõem ressalta a importância para se pensar em termos de um regionalismo multi-nível. Por outro lado, a articulação entre os países da região em diferentes dimensões como a energética, de infraestrutura, de educação, ciência e tecnologia, e outras aponta para a necessidade de se formular novos modelos explicativos da integração regional que dêem conta da atual conjuntura sul-americana.

 

 

1. Bela Balassa, A procura de uma teoria de integração econ­ômica. In: Miguel S. Wionczek (org.), A integração econômica da América Latina. Rio de Janeiro, Ed. Cruzeiro, 1966. p.37-48.
2. Citação de Ernst Haas, 'The study of regional integration: reflections on the joy and anguish of pretheorizing`, in L.N.Lindberg e S.A.Scheingold (eds.), Regional Integration: theory and research. Cambridge, Harvard University Press, p.6, por Andrés Malamud, Conceptos, teorías y debates sobre la integración regional - trabalho apresentado no V da ALACIP, Buenos Aires, 28-30/jul./2010.
3. Sean Burges, 'Bounded by the reality of trade: practical limits to a South American region`, Cambridge Review of International Affairs vol.18 n.3. Outubro/2005, p.437-454.
4. Ver, por exemplo, J. Briceño Ruiz e M.G. Saraiva, Las diferentes percepciones sobre la construcción del Mercosur en Argentina, Brasil y Venezuela. Foro Internacional vol.L n. 1(199), México, Colegio de México, 2010. p.35-62, e T.Vigevani,, G. Favaron, H.Ramanzini Jr e .R. A. Correia, O papel da integração regional para o Brasil: universalismo, soberania e percepção das elites. RBPI  Ano 51 n.1. 2008, p.5-27.
5. Esta parte contem fragmentos do artigo de J. Briceño Ruiz e Miriam G. Saraiva mencionado acima.
6. Andrés Malamud. e Pablo Castro, em Are Regional Blocs leading from nation states to global governance? A skeptical vision from Latin America. Iberoamericana. Nordic Journal of Latin American and Caribbean Studies vol.37 n.1, 2007, fazem um bom balance das visões sobre integração existentes na região classificando-as entre liberais, realistas e progressistas.
7. A definição de país barganhador é de David Myers, Threat perception and strategic responses of regional hegemons: A conceptual overview, in D.Myers (org.), Regional Hegemons: Threat perceptions and strategic responses. San Francisco, Westview Press, 1991.
8. A classificação como progressista desta visão foi introduzida no artigo de Malamud e Castro, op.cit.
9. Sobre este tem ver Mónica Hirst, 'A presença do Brasil nos novos tempos da agenda inter-americana`, Análise de Conjuntura n.5, maio/2009. Disponível em http://observatorio.iesp.uerj.br/analises.php.
10. Esta possibilidade vem sendo debatida por acadêmicos e foi examinada por diplomatas espanhóis durante a presidência da Espanha na UE.
11. Sean Burges, 2005, op.cit.
12. A "não-indiferença", ressaltada por Celso Política Externa do Governo Lula: os dois primeiros anos. Análise de Conjuntura, Observatório de Política Sul-Americana, 04/mar./2005. Disponível em http://observatorio.iesp.uerj.br/analises.php , representa uma articulação entre a não-intervenção e relativo nível de ingerência em questões políticas de outros países aproximando-se de padrões normativos mais gerais vigentes na atual ordem internacional.
13. Em 'Leadership without followers: the contested case for Brazilian power status', in E.de R. Matins e M.G.Saraiva (eds.), Brasil-União Européia-América do Sul. Anos 2010-2020. Rio de Janeiro, Fundação Konrad Adenauer, 2009, p.126-149, A.Malamud aponta para reações contrárias dos países da região materializadas em negativas frente a candidaturas brasileiras para cargos eletivos em organizações internacionais. O autor tem buscado identificar qual é o papel da liderança na construção de organizações regionais nos marcos de um regionalismo multi-nível.