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3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011
O desafio democrático para a integração Latino-americana*
Regiane Nitsch Bressan
Mestre e Doutoranda - USP- Universidade de São Paulo. PROLAM- Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina. São Paulo, SP, Brasil. CEP 05508-060 - E-mail: regianebressan@usp.br
RESUMO
O presente trabalho identifica a relação entre a questão democrática e o processo integracionista sul-americano. A partir de 1990, a América do Sul presenciou instabilidade política nos países da região. Contudo, se por um lado, a crise democrática afeta diretamente as propostas de integração, alguns exemplos de políticas regionalizadas em defesa da democracia foram decisivas para a sobrevivência desse regime em diferentes Estados latino-americanos. Ações comuns na região, logrando salvaguardar a estabilidade institucional relativa, em países como Equador, Paraguai e Peru, são exemplos relevantes desse fato. Portanto, esse trabalho pretende demonstrar que, embora o déficit democrático esteja presente nos países sul-americanos e caracteriza-se como um desafio às propostas integracionistas, os processos de integração podem contribuir de forma decisiva no aprimoramento e manutenção dos regimes democráticos na região.
Palavras-chave: Mercosul, Democracia, Integração Regional, América Latina, Instituições Democráticas
Introdução
Esse estudo busca traçar a relação entre a integração regional da América do Sul e a questão democrática. Durante a década de 1990 e o início da década de 2000, a região foi palco da instabilidade política do continente. A instabilidade atingiu, de maneira generalizada, políticos tanto das elites tradicionais como daquelas recentemente alçadas ao poder, repercutindo nos processos de tomadas de decisões dos projetos integracionistas da região (ALBUQUERQUE, 2006).
Contudo, se a crise democrática representa uma ameaça às propostas de integração regional, por outro lado, há casos em que políticas regionais em defesa da democracia apresentaram êxito. Em 1998, o Paraguai, perante a tentativa de golpe e crise institucional, apoiou-se no Protocolo de Ushuaia, firmado entre os países do Mercosul e seus associados - Chile e Bolívia, para garantir a estabilidade democrática doméstica. Esse documento sobre Compromisso Democrático, defendia a ordem constitucional e a democracia, como condições para a manutenção dos membros no Mercosul. Esse caso demonstra a relevância do processo de integração regional na manutenção da democracia na região.
Assim, embora o déficit democrático esteja presente nos países sul-americanos e representa um desafio às propostas de integração regional, a integração regional pode cooperar ao aprimoramento e manutenção dos regimes democráticos dos países sul-americanos. A grande compatibilidade entre os preceitos democráticos e as necessidades da integração, faz com que a última não possa se sustentar senão apoiada pela primeira. A própria redemocratização na região, fomentou a aproximação entre os países que integram o Mercosul - Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai - e seus associados por meio de áreas de livre comércio, Bolívia e Chile. A questão democrática foi defendida desde o princípio como condição fundamental a essa integração regional.
Enquanto a questão democrática se apresenta como um desafio ao fortalecimento das propostas de integração latino-americana, por outro lado, a integração pode contribuir para a qualificação e aprimoramento das democracias dos países envolvidos.
No desenvolvimento desse trabalho, primeiro, será feito um estudo teórico sobre o conceito de democracia e os pressupostos democráticos a integração regional. Em seguida, serão analisados brevemente os níveis democráticos prevalecentes na região latino-americana e seus desafios. Por fim, será demonstrado como esse quadro se relaciona com as propostas integracionistas da América Latina.
1. Democracia e Integração Regional
Para a consecução das iniciativas de integração regional, é condição sine qua non a existência de regimes democráticos na organização política interna de cada Estado participante. A incompatibilidade entre regimes políticos ditatoriais e a integração regional é evidente. As características de um sistema autoritário são contrárias aos preceitos sustentados pelas teorias integracionistas. Portanto, como será dissertado nessa parte, a democracia é fundamental para o consecução de qualquer processo de integração regional.
A definição etimológica da palavra democracia é "Governo do Povo". No entanto, a concepção teórica da palavra apresenta múltiplos significados e definições, pois invoca um conceito aberto, dinâmico e plural, em constante processo de transformação.
Para Bobbio (1986), a democracia é composta por um método de governo e um conjunto de regras de procedimentos, para a formação das decisões coletivas, na qual está prevista e facilitada a ampla participação dos interessados. O autor também defende a dinâmica na democracia, sendo essa passível de constante transformação. Em seus estudos, o autor resgata o termo da teoria clássica, conhecida como teoria aristotélica, a qual definiu as três formas de Governo - Democracia, Monarquia e Aristocracia. A partir da definição clássica, Bobbio (1986) desenvolve o conceito, ao atribuir o vínculo da democracia à criação das "regras do jogo", constituindo o fundamento da legitimidade de todo o sistema.
As regras do jogo democrático representam a civilidade da passagem do reino da violência para o da não-violência. É como um jogo que aceita colocar em discussão as próprias regras. Assim, o regime democrático implica em um conjunto de regras que estabelece quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. As decisões coletivas podem ser vinculantes para todo o grupo e são tomadas pela maioria. O eixo do regime democrático consiste na transparência e controle popular dos atos e decisões governamentais. Portanto, a democracia não se reduz ao ato eleitoral, mas requer eficiência, transparência e eqüidade nas instituições públicas (Ibidem).
Dentro das exigências para a consecução da democracia, o Estado liberal é um pressuposto. Da mesma forma, são necessárias certas liberdades para o exercício do poder democrático; não há democracia sem o exercício dos direitos e liberdades fundamentais. A democracia também exige o efetivo e pleno exercício de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais. Caso contrário, não seria possível o pleno exercício da democracia. A violação nas liberdades fundamentais e nos direitos sociais implicaria na violação aos direitos civis e políticos, o que resulta na fragilização da própria democracia.
Para cumprir com essas exigências, Bobbio (1986) propõe uma forma de governo (liberal-socialismo ou social-liberalismo), em que sejam garantidas as liberdades individuais, se façam respeitar as regras do jogo, aumentando os espaços de participação e a eqüidade social ou diminuindo das diferenças sociais (degradação, fome, desemprego, miséria etc).
Entretanto, nas sociedades modernas, a grande maioria das pessoas não usufrui de uma ideal democracia nesses parâmetros e não exerce uma influência real no exercício do poder. Certas sociedades democráticas carecem de meios efetivos de participar das decisões que são tomadas em seu nome.
Deparando-se com tal realidade, autores como Robert Dahl, adotaram outros conceitos e termos para dar interpretar as democracias existentes, como a poliarquia. O termo deriva do grego, e significa "muitos" e "governo". Segundo Dahl (1997), uma democracia poliárquica é um sistema político dotado das instituições democráticas. A democracia poliárquica é diferente da democracia representativa com sufrágio restrito - século XIX. É também diferente das democracias e repúblicas mais antigas, que tinham sufrágio restrito, e não possuíam muitas das outras características cruciais, tais como: partidos políticos, direito a formar organizações políticas, opor-se a governos existentes, grupos de interesse organizados etc. É também diferente das práticas democráticas próprias de unidades tão pequenas que possibilitem a realização de uma assembléia direta de seus membros e a decisão direta das políticas ou leis.
Com maior especificidade, Dahl (1997) defende a poliarquia como explicação aos regimes relativamente democratizados, ou seja, dotados de caráter inclusivo e aberto à contestação pública. Para o autor, a democracia é encarada como um sistema político de caráter "responsivo", ou seja, que atende às preferências dos cidadãos. Assim, a democracia representa o ideal; e o termo poliarquia se refere aos regimes democráticos efetivamente existentes com todas as suas dificuldades.
No caso da América Latina, a Democracia Delegativa pode ser o modelo mais factível para os regimes ditos democráticos que imperam na região. Esse conceito consiste na baixa definição e institucionalização das práticas democráticas, pouca transparência no exercício das regras do jogo eleitoral e alta capacidade discricionária do chefe do Executivo associada à alta exclusão social. (O´DONNELL, 2001). Ou seja, essa forma regime democrático não representa todas as características da concepção plena do termo.
Contudo, mesmo que na prática, o regime democrático apresente obstáculos e distorções, a democracia é um pressuposto à cooperação e aos projetos de integração regional. Entre suas motivações básicas, a cooperação regional prevê a redução do grau de incerteza de cada país em relação ao comportamento dos demais, possibilitando a criação de estruturas institucionais (KEOHANE, 1989). Tais estruturas influenciariam os comportamentos dos Estados, os quais passariam a considerar as ações dos demais atores como reflexos das regras, normas e convenções estabelecidas no interior da instituição de cooperação.
As condições relacionadas à democracia e ao pluralismo na moderna sociedade ocidental aparecem como elemento crucial para o desenvolvimento de um processo de integração regional, que pode ser compreendido como um processo em que os atores políticos de uma sociedade desviassem as suas expectativas de benefícios e interesses próprios do Estado nacional para uma instituição de maior escala. Ou seja, o processo de integração regional se sucederia com a transferência de lealdade dos atores políticos para um centro de poder, resultado de certo grau de satisfação com as repartições governamentais (HAAS, 1963).
O decurso da transferência de lealdade ocorreria de forma gradual, partindo de um setor específico para os demais, caracterizando-se como spillover. Esse fenômeno, conceito fundamental para teoria Neofuncionalista de Relações Internacionais, consiste no transbordamento do processo para a sociedade, a partir de um núcleo funcional. Esse núcleo, constituído pelos governos e burocracias especializadas, amplia o processo de integração ao passar para as elites dominantes e representantes políticos, a percepção positiva da integração (HAAS, 1963).
Do seu ponto de partida, a iniciativa burocrático-estatal, o processo de spillover espalha-se em direção à sociedade, gerando uma dinâmica de reações, demandas e respostas. O seu alastramento mobiliza grupos de elites distintos, que buscam formas autônomas e satisfatórias para intervir e participar do processo integrativo. O fenômeno do spillover ganha dinamismo quando o seu núcleo funcional atrai apoio e amplia o processo, ao provocar nos representantes políticos e nas elites a percepção positiva do processo. Por conseguinte, esses atores, ao perceberem a superação dos benefícios face aos custos integracionistas, tentam influenciar as instituições centrais a favor do processo. Em seguida, os grupos, antes indiferentes e contrários ao processo, passam a defendê-lo, gerando mais expectativas e demandas favoráveis à integração. Finalmente, o processo é consagrado quando os governos fossem capazes de garantir a continuidade dos benefícios para todos os interessados, que são a base do processo (Ibidem).
Dentro dessa lógica, a democracia interna torna-se um requisito prévio ao processo, ao pressupor a participação das diversas camadas da sociedade, além das próprias elites e governos. Ademais, o aprofundamento do processo de integração necessita de livre circulação de pessoas e o entrelaçamento das culturas, condições não ofertadas em regimes autoritários. Portanto, a conciliação entre os dois temas é fundamental ao desenvolvimento da integração regional.
2. Democracia na América Latina
A partir da década de 1980, os países da América Latina sofreram grandes transformações em seus regimes políticos. Com exceção de Cuba, as ditaduras na região foram substituídas a priori por governos democráticos. Nessa mesma época, a América Latina enfrentava a crise da dívida, vivenciando uma situação de vulnerabilidade externa, sem solucionar as dificuldades advindas da desigualdade social, geradora de pobreza e miséria. Assim, em toda a região, a redemocratização não significou a inclusão da população no regime democrático (PNUD, 2004).
A partir da década de 1990, movimentos sociais e atores políticos, alguns vinculados a grupos étnicos se fortaleceram, intensificando sua participação nas políticas domésticas na década seguinte. Contudo, alguns desses movimentos apresentaram perspectivas militaristas e nacionalistas radicais, provocando incertezas à região. Mesmo que eleitos democraticamente, muitos governos tenderam a manter sua autoridade com métodos não democráticos, como modificar as constituições nacionais em seu favor, intervir nos processos eleitorais e restringir a independência dos poderes legislativo e judiciário.
Entre os países sul-americanos, somente três gozavam do regime democrático há vinte e cinco anos. Por outro lado, em países que não enfrentaram golpes políticos no passado recente, como Brasil, Uruguai e Argentina, foram executadas manobras para a manutenção do poder. Os respectivos presidentes promoveram reformas constitucionais para continuarem no poder ou viabilizar a reeleição. É o caso de José Sarney (1988), Fernando Henrique Cardoso (1994), as intenções declaradas de Luís Inácio Lula da Silva (2009) no Brasil; de Carlos Menem (1995) na Argentina; e, no Uruguai também houve em 1996, reformas constitucionais promovidas por Júlio Sanguinetti.
Além disso, outros países da região, como a Venezuela, vivem uma democratização dramática. Na Venezuela, houve nesse intervalo três tentativas de golpe de Estado, sendo duas em 1992 e uma em 2001. Ainda nesse intervalo, vários presidentes foram afastados do poder: na Venezuela, o social-democrata Carlos Andrés Pérez recebeu impeachment em 1993, acusado de corrupção administrativa.
No Equador, em menos de três anos (1997 a 2000), dois presidentes foram afastados do poder. O primeiro deles Abdalá Bucarán, em janeiro de 1997, acusado de "incapacidade mental" pelo Congresso, com apenas seis meses de governo O outro presidente, Jamil Mauad, foi derrubado por um golpe cívico-militar em janeiro de 2000, com um ano e meio de governo.
Em 1991, no Peru, Alberto Fujimori provocou um auto-golpe, ao promover a dissolução do parlamento e do judiciário, promulgando-se em seguida vencedor de uma controvertida eleição em 2000. No ano seguinte, Fujimori decidiu se exilar no Japão, ao enfrentar uma rede de corrupção nos mais altos escalões do governo, chefiada pelo diretor dos serviços de inteligência Vlademiro Montesinos. Na Argentina, a volta ao poder da União Cívica Radical durou pouco, posto que a crise institucional e econômica ocasionou a saída do governo do Presidente Fernando de la Rúa, em 2002.
Na Bolívia, o presidente Sánchez de Lozada renunciaria em fins de 2003, depois de uma crise política e da mobilização social intensa que se arrastou por todo o ano, e seu sucessor interino, Carlos Mesa, nem sequer conseguiu completar o período de mandato, tendo que renunciar em inícios de 2005. Por outro lado, é possível constatar a emergência de novos partidos e de novos atores políticos, sobretudo de grupos indígenas, como na Venezuela, Bolívia, Equador e Peru.
Assim, os desafios de redemocratização na América Latina são proporcionais à novidade democrática vivenciada pela maior parte dos países. Além disso, surgiram lideranças identificadas como de esquerda e direita, as quais demonstram a necessidade de políticas centralizadoras e autoritárias, como solução para questões não solucionadas pelo regime democrático, ou mesmo, pela necessidade de conter movimentos populares que cresceram nas últimas décadas.
A redemocratização na região também é acompanhada por questionamentos sobre suas instituições representativas e governos ditos "populares", mais conhecidos pela literatura atual como "neopopulistas" (LIEVESLEY, 1999; WEYLAND, 2004). O conceito do neopopulismo é entendido como uma forma política pós-moderna (TRAINE, 2004 apud ALBUQUERQUE, 2006). Com base no populismo clássico, os atuais políticos se apóiam da insatisfação populacional latino-americana, relacionada às reformas neoliberais realizadas na década de 1990, aos governos militares de décadas anteriores, e à insatisfação relacionada aos governos democráticos instáveis dos últimos vinte anos. Os políticos se utilizariam desse tipo de descontentamento para emergirem como novos representantes do povo.
Em outro sentido, os fatos políticos mostram uma incongruência entre eficiência das medidas econômicas e desenvolvimento institucional, sobretudo democrático. Essa discrepância entre política e economia é confirmada pelas informações constantes no relatório do PNUD sobre a Democracia na América Latina. Uma pesquisa de opinião pública realizada pelo órgão apresentou uma tensão entre a opção pelo desenvolvimento econômico e a democracia. Os dados obtidos indicaram:
- a preferência dos cidadãos pela democracia é relativamente baixa;
- grande parte da população dá mais valor ao desenvolvimento do que à democracia;
- os não-democratas pertencem, geralmente, a grupos com menor educação, cuja socialização ocorreu, fundamentalmente, em períodos autoritários, que têm baixas expectativas de mobilidade social e uma grande desconfiança das instituições democráticas e dos políticos;
- embora os democratas estejam distribuídos em diversos grupos sociais, nos países com menores níveis de desigualdade, os cidadãos tendem a apoiar mais a democracia (PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO - PNUD, 2004).
Por sua vez, embora os Estados desenvolvidos apoiassem o retorno do regime democrático na região, esses países pouco auxiliaram o processo de redemocratização nos países latino-americanos, tampouco na superação das desigualdades econômicas. O apoio desses Estados se limitou aos aspectos políticos formais, evidenciando uma clara incoerência entre a defesa da redemocratização na região e as políticas comerciais protecionistas que impunham ao comércio da região.
Dessa forma, os países latino-americanos, ameaçados pela crescente marginalização dos fluxos comerciais e financeiros, além do quadro de crescente vulnerabilidade econômica diante da globalização, buscaram a cooperação para enfrentarem esse cenário.
Portanto, os Estados da região visualizam a cooperação, através da integração regional como um mecanismo para ampliação da segurança nacional e fortalecimento diante às adversidades internacionais. Assim, a retomada da integração regional foi também identificada como uma necessidade para o desenvolvimento e consolidação da democracia na região.
3. A integração regional e a democracia na América do Sul
A partir de 1990, a integração real nas economias latino-americanas avançou em ritmo superior em comparação às décadas anteriores. Acordos regionais, sub-regionais e bilaterais - que vão desde a cooperação setorial até a união aduaneira, da cooperação política até o livre comércio de bens e serviços, foram assinados em direção a uma liberalização continua de comércio mútuo e de uma cooperação econômica crescente. Por conseguinte, tais acordos contribuiriam para a inserção dos países da região na economia mundial e para intensificar seus vínculos comerciais, financeiros e de investimentos com grandes centros internacionais.
No caso do Mercosul, sua formação foi expressão das "novas formas de integração", resultado da abertura e desregulamentação das economias, cujo destino estaria ligado à lógica das iniciativas extra-regionais e à dinâmica do processo de globalização (BERNAL-MEZA, 2002).
Além das necessidades de dinamizar economicamente e de aumentar o peso político dos Estados-Partes, o Mercosul é considerado meio pelo qual os quatro sócios possam fazer frente ao processo de globalização (BAPTISTA et al., 1998). É também considerado uma resposta estratégica para melhorar as posições de barganha dos quatro Estados participantes no comércio exterior, a partir de ação conjunta e coordenada, principalmente para enfrentarem barreiras protecionistas colocadas aos seus produtos agrícolas (SAHA, 2000). Sua agenda com predominância comercial demonstra o ambiente de abertura unilateral das economias dos países participantes (BERNAL-MEZA, 2002).
Para Hirst (1995), a opção por um processo de integração sub-regional procurou ampliar a competitividade internacional das economias dos países membros através de novas possibilidades de comércio e investimento. A formação do Mercosul não foi uma resposta isolada, mas um impulso sub-regional vinculado às políticas comerciais latino-americanas e também instrumento para assegurar a redemocratização recente nos principais países envolvidos, Argentina e Brasil.
A democracia foi sempre uma preocupação constante pelos governos no marco da criação desse bloco. Para assegurar a legitimidade do processo de negociação dessa integração, seus representantes buscaram incorporar ao longo do tempo diferentes representantes da sociedade (VIGEVANI; MARIANO; OLIVEIRA, 2000). O elemento "democracia", no que tange aos seus aspectos formais, passou a deter uma significativa importância nos discursos oficiais, sendo considerado um pressuposto para a integração, ainda que não tenha sido incorporado de forma explícita nos tratados de integração regional, como no Tratado de Assunção, que constituiu o Mercosul.
O primeiro órgão que possibilitou a participação dos representantes dos setores econômicos e sociais foi o Foro Consultivo Econômico-Social, criado no marco do Protocolo de Ouro Preto (1994), quando se instituiu a estrutura institucional do bloco. Embora o Foro apresente apenas caráter consultivo e esteja limitado ao GMC (Grupo do Mercado Comum), foi a primeira instituição do Mercosul para esse fim.
Dois anos depois, em São Luis, na Argentina, firmou-se "Declaración Presidencial sobre el Compromisso Democrático en el Mercosur", sendo o primeiro referencial sobre o assunto dentro do Mercosul. Mas, o compromisso democrático foi reafirmado diante da tentativa de golpe de Estado por parte do General Lino Oviedo, em 1996, no Paraguai.
Contudo, somente em 1998, o bloco incorporou a questão democrática ao Tratado de Assunção e aos acordos de integração firmados com o Chile e a Bolívia, através do "Protocolo de Ushuaia sobre compromisso democrático no Mercosul Bolívia e Chile", que entrou em vigor em 2002. Dentro do Protocolo está prevista a suspensão dos direitos do membro que romper com a ordem democrática, sendo este impedido de participar dos órgãos ou de outros tratados do Mercosul. O novo tratado representou um elemento importante para a estabilidade política na região, ao estabelecer a plena vigência das instituições democráticas como condição essencial para o desenvolvimento da integração entre seus seis signatários.
Dessa forma, o Protocolo de Ushuaia é uma tentativa à superação do déficit democrático que seus países participantes enfrentam. Embora com resistência, o envolvimento de atores não-estatais nessa integração aumentou de forma relevante nos últimos anos, envolvendo um contingente cada vez maior de maior de empresários, jornalistas, pesquisadores, estudantes, trabalhadores, políticos, revelando a importância da consolidação democrática ao bloco (Ibidem).
No âmbito da América Latina e Caribe, no marco da XIª Reunião dos Chefes de Estado e de Governo do Grupo do Rio, ocorrida em Montevidéu, em 14 de dezembro de 1997 institui-se a "Declaração Sobre Defesa Da Democracia". O documento realçou a necessidade de preservar e fortalecer a democracia nos países da região. Os representantes de Estado reafirmaram a democracia representativa como condição e obrigação política, cujo valor seria compartilhado por todos os seus integrantes. A declaração também salientou a democracia representativa como fundamento da legitimidade dos sistemas políticos e condição indispensável para a paz, para a estabilidade e o desenvolvimento da região. Por fim, o documento reforçou a necessidade democrática o processo de integração regional no qual se encontram comprometidos nossos países.
Em 1999, durante a Primeira Reunião entre os Chefes de Estado e de Governo da América Latina e Caribe e da União Européia, na cidade do Rio de Janeiro, os países participantes reforçaram o compromisso democrático ao mencionar na maioria dos documentos, a democracia como fundamento para o relacionamento entre os países presentes.
Embora a Organização dos Estados Americanos não represente um processo de integração regional, mas uma organização internacional, sua intervenções zelam pela prevalência da democracia na região. No caso do Peru, quando o ex-presidente Alberto Fujimori provocou um auto-golpe - dissolução do parlamento e do judiciário - em 1991, e depois de se promulgou vencedor em uma controvertida eleição em 2000; a OEA (Organização dos Estados Americanos) fez diversas intervenções na política doméstica do país, propondo reforma nos tribunais e instituições militares, para restaurar a credibilidade da democracia do país.
As reformas propostas ao governo de Fujimori incluíam a indicação de magistrados independentes, revisão das instituições eleitorais e a garantia que civis assumam o controle dos serviços de inteligência e forças armadas do país. Desde então, a OEA acompanha o regime político no país, inclusive nas eleições recentes de 2011. Portanto, organizações regionais também contribuem para o fortalecimento democrático na região.
Se por um lado, fica evidente a contribuição da cooperação regional para a democracia, qual o desafio que esse tema coloca aos processos integração regional.
Fatores como o pouco envolvimento da sociedade civil na construção da integração regional na América Latina de forma geral, atingem a credibilidade dos projetos de integração regional. O desenvolvimento de qualquer projeto geralmente está limitado aos altos funcionários governamentais, empresários e determinadas elites da sociedade, impedindo que o processo de spillover aconteça no interior dos blocos regionais. Fato que é apontado como responsável pela falta de eficácia das normas do bloco e pelo baixo índice de suas internalizações, visto que o desconhecimento e a falta de interesse pelo bloco não teria contribuído "para gerar uma dinâmica favorável ao aprofundamento da integração" (HERZ; HOFFMANN, 2004 apud FREIXO; RISTOFF 2008).
Embora o pressuposto teórico neofuncional de integração aponte um modelo de integração criado de cima para baixo, o processo de aprofundamento deverá abarcar os demais níveis da sociedade ao longo do seu desenrolar. O Foro Consultivo Econômico-Social do Mercosul, criado no intuito de captar os interesses das sociedades dos Estados-membros e ser um órgão representativo de conjunto de suas populações, deveria facilitar a participação da sociedade, mas não logrou esse objetivo e permaneceu focado em aspectos econômicos, impedindo o avanço da integração para as demais camadas da sociedade civil.
O envolvimento de outros atores no processo de integração do Cone Sul, aumentou de forma relevante nos últimos anos, envolvendo um contingente maior de empresários, jornalistas, pesquisadores, estudantes, trabalhadores, políticos. Todavia, essas classes pertencem a um grupo minoritário em relação à sociedade.
Para que a sociedade civil e os novos atores se envolvam, é fundamental que os benefícios e impactos positivos gerados pela integração, tornem-se aparentes, atraindo esses novos atores para sua consolidação. Quanto maior for o número de benefícios, maior será a resposta positiva das camadas participantes e melhor fluirá o processo de integração regional.
Dessa forma, a ampliação da democratização nos Estados envolvidos, fomentaria maior participação da sociedade em geral nos projetos de integração. Portanto, é possível afirmar que a diminuição do déficit democrático na integração regional, e a maior democratização interna dos países participantes, constituem um processo único e essencial para a consolidação dos dois temas.
Por fim, no caso do Mercosul, a integração passou a abarcar temas não propostos inicialmente, como as áreas energética, cultural e trabalhista. Assim, vislumbra-se a possibilidade que a integração regional supere seu caráter econômico e caminhe em rumo à sociedade civil, superando todos os entraves do déficit democrático tanto nos países envolvidos, quanto no interior do próprio processo.
Considerações Finais
O presente trabalho buscou traçar relação entre a questão democrática e os processos de integração regional, enfatizando a integração do Mercosul. Ao analisar a teoria neofuncional de relações internacionais, torna-se evidente a importância fundamental do regime democrático para que haja cooperação entre os Estados e para que a integração regional possa abarcar toda a sociedade civil, como defende o conceito teórico de spillover. Na segunda parte, discorreu-se sobre a instabilidade democrática na região, que representa um desafio à própria integração regional. Já na terceira parte, foram elucidados alguns casos em que diferentes organizações regionais atuaram em defesa do regime democrático nos países da região, reafirmando a importância de tais organizações para a consolidação da democracia na América dos Sul. Por fim, discutiu-se sobre o desafio do déficit democrático à integração regional. No caso do Mercosul, a participação da sociedade ainda é baixa, revelando a fragilidade do próprio processo. Por outro lado, o combate do déficit democrático tanto no interior dos Estados, quanto na integração regional, proporcionaria maior participação da sociedade civil dentro da integração, favorecendo a consolidação dos dois temas.
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* 3º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais Governança Global e Novos Atores 20 a 22 de julho de 2011, São Paulo. Área temática: Integração Regional