Print ISBN 2236-7381
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3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011
A ação humanitária e a construção de estados liberal-democráticos: o caso do Timor Leste de 1999 a 2008
Ricardo Oliveira dos Santos
Graduado e mestrando em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
RESUMO
O objetivo do trabalho é compreender as principais evoluções normativas e institucionais no campo da segurança internacional, desenvolvimento e ajuda humanitária no pós Guerra-Fria. Para tanto, delimita seu objeto de estudo a três instrumentos em torno dos quais esses campos convergem: (i) Operações de Manutenção da Paz; (ii) Consolidated Appeals (CAP - sigla em inglês) e Projetos de desenvolvimento do United Nations Development Assistance Framework (UNDAF - sigla em inglês); (iii) e, finalmente, os Componentes de Ajuda Humanitária nos mandatos das Missões desenvolvidos pela Assembléia Geral e Conselho de Segurança. Tais instrumentos serão tratados no caso do Timor Leste no período de 1999 até 2008. A problemática da pesquisa reside na compreensão de um nexo existente entre os três componentes anteriormente mencionados da ação humanitária contemporânea. Com base na revisão da obra de Hedley Bull "A Sociedade Anárquica: um estudo da ordem na política mundial", o estudo adota um modelo da política internacional fundada no conceito de sociabilidade precária, na qual a tensão entre ordem e justiça informa os desenvolvimentos recentes das práticas humanitárias no interior da sociedade de estados.
Palvras-chave: Ação Humanitária; Estados Liberal-Democráticos; Organização das Nações Unidas; Timor Leste; Escola Inglesa de Relações Internacionais
1. Introdução: a problemática da intervenção humanitária
Em sua obra clássica "A Sociedade Anárquica - Um estudo da ordem na política mundial", Hedley Bull ocupa sua análise na tentativa de compreender o significado da ordem na política mundial, como ela é mantida dentro do sistema de Estados soberanos e se o mesmo sistema ainda pode ser considerado vital para a manutenção da ordem (Bull 2002, p.1).
No referido livro, Bull entende que as relações internacionais seriam marcadas por três dimensões distintas: (i) o sistema de estados, ou sistema internacional, (ii) a sociedade de estados, ou sociedade internacional e (iii) a sociedade cosmopolita (ibid, p.15-19). Para o autor, é na sociedade de estados que os estados soberanos conseguem interagir a partir de um conjunto de normas, regras e padrões de comportamento (ibid, p.32). Hedley Bull reafirma este argumento ao dizer que "a ordem é mantida por um senso de interesses comuns nesses objetivos elementares ou primários, por regras que prescrevem a forma de conduta que os sustentam e por instituições que tornam essas regras efetivas" (ibid, p.63).
Para o autor, ordem e justiça estão em constante tensão nas relações internacionais, uma vez que é possível identificar a preocupação dos Estados nacionais com a manutenção da ordem em detrimento da justiça reivindicada pelos indivíduos. Hedley Bull, porém, sustenta que as demandas por justiça são relevantes no cenário internacional, pois "ele é marcado não só pelo conflito entre os Estados preocupados fundamentalmente com a preservação da ordem e aqueles que atribuem prioridade às mudanças justas, mas também pela tensão inerente entre a ordem propiciada [...] pela sociedade de Estados e as várias aspirações por justiça presentes na política mundial, manifestadas persistentemente de uma forma ou de outra" (ibid, p.102).
Para os propósitos do estudo, ao analisar o caso da Organização das Nações Unidas (ONU), percebe-se que sua estrutura político-organizacional reproduz o modelo de sociedade de estados proposto por Bull na medida em que reflete em grande medida as características mantenedoras da ordem desta sociedade. Isto fica evidente a partir da composição da Assembléia Geral, que se caracteriza pela igualdade jurídica e a utilização da diplomacia para o relacionamento amistoso entre as nações. Já no âmbito do Conselho de Segurança fica claro a assimetria de poder dentro da sociedade de estados e o papel que as grandes potências desempenham na manutenção da ordem internacional. A partir dessa perspectiva, o princípio da balança de poder é fundamental para a compreensão da estabilidade na sociedade de estados e na guerra como mecanismo de preservação da ordem.
Neste sentido, o conceito de sociabilidade precária apresentado por Bull (2002) permite compreender o fenômeno pelo qual a sociedade de estados e a própria ONU está submetida: por um lado as pressões particularistas dos Estados nacionais desafiam a ordem internacional, já que rompem com as instituições responsáveis pela provisão da mesma, por outro lado, pressões comunitárias que desafiam a sobrevivência dos Estados - já que atacam diretamente a soberania e a independência dos mesmos.
Diante da perspectiva em tela, conclui-se que a tensão entre ordem e justiça informa, como será desenvolvido ao longo do presente estudo, os desenvolvimentos recentes das práticas humanitárias no interior da sociedade de estados.
Como forma de preservar a ordem e atender as demandas por justiça na sociedade de estados, a ONU, após se ver confrontada com a questão na Palestina, a distensão política na Coréia, a crise no canal de Suez no Egito, e o processo de descolonização no Congo, estabelece, a partir de 1956, as operações de manutenção da paz (Esteves 2011, p.61). "Nesse contexto, as primeiras operações de manutenção da paz - conhecidas como operações de "primeira geração" - foram condicionadas, de um lado pela estrutura normativa da Carta da ONU e, de outro, pela lógica das esferas de influência" (ibid, p.61).
A partir do início da década de 1990, entretanto, surge o que ficou conhecido como a segunda geração das operações de manutenção de paz da ONU, que "se constituíram em palco das transformações normativas decorrentes do desmantelamento do mundo bi-polar" (ibid, p.62). Essas operações representaram uma inovação pois "incorporam elementos da construção da paz pós-conflito, entre os quais emergiram instituições democráticas (...), nesse sentido, é possível identificar um lento processo de transformação das operações de manutenção da paz sob o programa da paz democrática. Ao longo desse processo, as tarefas relacionadas à peace-building ganharam centralidade nos mandatos estabelecidos após a Guerra Fria, transformando tais operações em importante veículo de difusão dos postulados da paz democrática" (ibid, p.64).
Essa dinâmica deve ser entendida a partir de um conjunto de transformações normativas que o sistema ONU sofreu a partir, principalmente, de 1992 (ibid, p.60). Entre os documentos mais notórios que possibilitaram essa mudança de percepção das operações de manutenção da paz e os mecanismos para atendimento a justiça na sociedade de estados destacam-se a Agenda para a Paz (1992), Agenda para o Desenvolvimento (1994), Agenda para a Democratização (1996), entre outros (ibid, p.60).
Em suma, esses documentos elevam a democracia liberal a "posição de modelo para a constituição das novas polei que se constituem após a Guerra Fria e para a reforma daquelas que, até então, não haviam aderido ao modelo. Nesse sentido, pode-se considerar que como uma doutrina da legitimidade, a democracia liberal concorre e modifica o princípio da autodeterminação dos povos, que, desde a segunda metade do século XIX se apresentava como critério de constituição e reconhecimento das comunidades políticas particulares" (ibid, p.60).
Além dessa evolução normativa no âmbito da ONU, as transformações no tratamento da questão humanitária resultante a partir do término da Guerra Fria, "nos permite compreender que o significado mais amplo do humanitarismo deve ser perscrutado nas práticas humanitárias e em suas relações com outros campos da política internacional (...), a autonomia do campo do humanitarismo não é um dado, mas sim um resultado das próprias práticas humanitárias que são necessariamente descontínuas e heterogêneas (...), as experiências que tiveram lugar ao longo da Guerra Fria nos permitem compreender a rearticulação dos campos humanitário e da segurança internacional após o colapso da União Soviética" (ibid, p.3).
Diante dos dados supracitados, o objetivo do estudo é contextualizar brevemente o leitor quanto as principais evoluções normativas e institucionais no campo da segurança internacional, desenvolvimento e ajuda humanitária no pós Guerra-Fria. Entende-se que examinar com profundidade essa temática, resultaria em um grande esforço acadêmico, que certamente daria lugar a outro estudo, pois seria necessário remontar ao século XVIII para compreender como a noção de segurança, desenvolvimento e humanitarismo vem se constituindo.
Ao adotar o marco teórico fornecido por Bull, principalmente sobre a temática da tensão entre ordem e justiça, o estudo parte do pressuposto que a evolução normativa e institucional dos três campos anteriormente mencionados se faz presente no âmbito da ONU e estão intrinsecamente relacionados, pois, como aludido, essa organização reflete a estrutura da sociedade de estados. Nesse sentido, cabe notar que "as práticas humanitárias são práticas políticas internacionais que, como tal, articulam permanentemente as normas que orientam o comportamento dos atores, não apenas no campo humanitário, mas em todos os campos das relações internacionais" (ibid, p.105).
Conforme será abordado na seção seguinte, o caso do Timor Leste de 1999 até 2008 permite compreender com mais clareza os pressupostos até então apresentados através do breve estudo das operações de manutenção da paz; dos Consolidated Appeals (CAP) e Projetos de desenvolvimento do United Nations Development Assistance Framework (UNDAF); e, os Componentes de Ajuda Humanitária nos mandatos das Missões desenvolvidos pela Assembléia Geral e Conselho de Segurança.
Tais instrumentos permitem compreender como as evoluções normativas e institucionais (particularmente no âmbito da ONU) convergem para a criação de um Estado liberal-democrático. Essa dinâmica deve ser entendida, conforme sublinhado, de um amplo processo de transformações que o sistema ONU sofreu a partir da década de 1990 através de uma série de documentos, relatórios e encontros que adensaram o debate sobre a temática proposta e propuseram uma série de mudanças, por diversos fatores (principalmente políticos), no tratamento da questão.
Nesse sentido, cabe salientar que "as práticas observadas ao longo da Guerra Fria parecem ser testemunhas dessa relação problemática e complexa que o humanitarismo guarda em relação à política internacional e particularmente em relação ao campo da segurança internacional. De fato, as práticas humanitárias ao longo da Guerra Fria apresentam uma ruptura em relação aos padrões até então estabelecidos, porquanto vinculem a proteção humanitária não mais à lógica" (ibid, p.106).
2. O Timor Leste e a construção de um Estado liberal-democrático
Com a eclosão da "Revolução dos Cravos" em 25 de abril de 1974, Portugal sinalizava claramente um novo tipo de política externa para as suas colônias, inclusive para o Timor Leste (Organização das Nações Unidas 2000, p.3). Entretanto, com a relativa animosidade do povo timorense quanto a sua eminente independência após mais de quatro séculos de dominação portuguesa, as tropas indonésias invadiram o país e estabeleceram um regime político autoritário que perduraria até meados do final da década de 1990 (ibid, p.4).
De dezembro de 1975 até junho de 1998, a Indonésia, movida por interesses políticos e econômicos, não pretendia mudar a sua política para o Timor Leste, preferindo, ao contrário, continuar com a ocupação repressiva e violenta (ibid, p.4-5). Após intensos debates no âmbito da ONU e uma constante pressão da comunidade internacional sobre os líderes de governo, a ONU em 1999 aprovou a primeira missão no país: a Missão das Nações Unidas no Timor Leste (UNAMET) (ibid, p.12). A UNAMET tinha como mandato organizar a consulta popular para o processo de independência ou anexação do Timor Leste a Indonésia e contava com componentes militares nas áreas política, eleitoral, de polícia civil, de informação administrativa e financeira (ibid, p.12).
Com o expresso desejo de 344,580 eleitores (78,5% do total) de rejeitar a proposta de autonomia especial no seio da Indonésia, o Timor Leste dava então seus primeiros passos rumo a independência (ibid, p.40). Entretanto, uma grave onda de violência levada a cabo pelas milícias pró-integracionistas levou a ONU a criar, através do consentimento do Conselho de Segurança, a Força Internacional para o Timor Leste (INTERFET) e, posteriormente a Administração de Transição das Nações Unidas no Timor Leste (UNTAET) (ibid, p.51-56). A INTERFET tinha o claro mandato de estabelecer condições seguras em todo o território do Timor Leste, e, ao mesmo tempo, apoiar as operações humanitárias (ibid, p.53). Já a UNTAET, tinha o mandato bem amplo de atuar como um governo na administração do Timor Leste (ibid, p.56).
Após o Timor Leste se constituir como país soberano, a UNTAET encerra seu mandato em maio de 2002, dando lugar a Missão das Nações Unidas de Assistência a Timor Leste (UNMISET) criada através da Resolução 1410 do Conselho de Segurança (S/RES/1410, 2002) que tinha como objetivo observar, durante o período de um ano, todas as atividades desempenhadas pela UNTAET até que fossem inteiramente transferidas para o novo governo timorense (ibid, p.2-3).
O grande papel desempenhado pela UNMISET, que expirou em maio de 2005, foi o de auxiliar o governo na criação de instituições políticas capazes de assegurar a tranqüila transição de uma operação de peacekeeping para uma nova missão de assistência ao desenvolvimento sustentável (ibid, p.2-3).
A partir de então o Escritório das Nações Unidas no Timor Leste (UNOTIL) foi estabelecido no dia 20 de maio de 2005 com a missão de continuar a apoiar as instituições políticas do país, provendo 45 conselheiros civis, 40 conselheiros policiais e mais 35 conselheiros para a Unidade de Controle Fronteiriço (S/RES/1599, 2005).
Entretanto, com as contínuas crises políticas, econômicas e sociais que se seguiram no Timor Leste, foi criado no dia 25 de agosto de 2006, através da Resolução 1704, a Missão Integrada das Nações Unidas no Timor Leste (UNMIT) (S/RES/1704, 2006). Em linhas gerais, a UNMIT, que atua até hoje no país objetiva a manutenção da estabilidade no país e promover a reconciliação nacional e a governabilidade democrática (ibid p.1).
Diante dos dados apresentados, é possível compreender, brevemente, o contexto que culminou nas sucessivas intervenções das Nações Unidas no Timor Leste de 1999 à 2008. Esse processo foi acompanhado, como sublinhado na primeira seção do estudo, das principais evoluções normativas e institucionais da ação humanitária no âmbito da ONU.
3. Segurança, Desenvolvimento e Ajuda Humanitária
Retomando a discussão sobre as gerações de operações de manutenção de paz da ONU, uma nova concepção dessas missões emerge a partir da década de 2000 e tem como propósito criar e assegurar um ambiente estável ao mesmo tempo em que fortalece a habilidade do Estado em garantir a segurança, respeitando integralmente os direitos humanos e o rule of law (United Nations 2008, p.23, tradução própria). Além disso, essas novas missões têm como função facilitar o processo político através da promoção do diálogo e reconciliação, bem como dar suporte ao estabelecimento de instituições governamentais legítimas e efetivas (ibid, p.23, tradução própria). Igualmente procura garantir que as Nações Unidas e outros atores internacionais alcancem suas atividades no Estado de forma coerente e coordenada (ibid, p.23, tradução própria).
Nesse sentido, as operações de paz multidimensionais que emergem a partir da década de 2000 e que, conforme observado, se fazem presentes no caso específico do Timor Leste, tem a clara preocupação de coordenar as atividades no campo da segurança, desenvolvimento e ajuda humanitária.
No campo da segurança, conforme observado através das sucessivas missões que foram estabelecidas no Timor Leste é possível perceber a presença da pressão cosmopolita nos mandatos de cada missão onde a construção do Estado liberal-democrático de direito se faz presente (para maiores detalhes vide anexo 1). Tal pressão contribui para as transformações das operações de manutenção da paz na medida em que observa-se a convergência da agenda de segurança internacional com os postulados da paz democrática e dos direitos humanos.
Entretanto, as atividades desempenhadas pelas operações de manutenção da paz dependem "do suporte oferecido, por um lado, por ações humanitárias, e, por outro, por programas de desenvolvimento" (Souza 2010, p.87).
No campo da ação humanitária, cinco Consolidated Appeals foram criados no Timor Leste como forma de agregar os esforços humanitários no campo da segurança: United Nations Consolidated Inter-Agency Appeal for East Timor Crisis, de 1999 a 2000; Joint Appeal Solutions for East Timorense Refugees, de 2002; Flash Appeal de 2006; Consolidated Appeal Process de 2007; por fim, o East Timor Transitional Strategy and Appeal de 2008 (para maiores detalhes vide anexo 2).
No campo do desenvolvimento, somente dois relatórios foram elaborados pelo United Nations Development Assistance Framework: o primeiro de novembro de 2000 pelo Common Country Assesment intitulado East Timor: Building Blocks for a Nation; o segundo de janeiro de 2003 elaborado pelo UNDAF intitulado East Timor United Nations Development Assistance Framework (2003-2005)
Conforme discutido nessa seção do estudo, as operações de manutenção da paz multidimensionais têm como uma de suas funções primordiais criar um ambiente seguro no qual outros atores ligados a ajuda humanitária e ao desenvolvimento possam desempenhar suas tarefas sem maiores problemas. Nesse sentido, percebe-se que a noção de alcance da paz não passa somente pela segurança, mas igualmente pelo atendimento humanitário e a promoção do desenvolvimento. Essa mudança de percepção que surge no pós Guerra Fria, acompanhado pelos contínuos aparatos institucionais criados no âmbito da ONU, permitiu que um novo discurso democrático e liberal emergisse como condição sine qua non para que a paz seja alcançada (Souza 2010, p.102).
Nesse sentido, essa nova concepção produziu um discurso no qual o modelo de construção de Estados liberal-democráticos passa por um processo de proselitismo político, onde o desenvolvimento, os direitos humanos e a manutenção da paz devem se propagar por todo o mundo como forma de se alcançar estabilidade política para Estados que estão em processo de degradação política, econômica, social e cultural (ibid, p.102).
Esse processo incide de forma marcante sobre as operações multidimensionais e demais atores humanitários que atuaram no Timor Leste na medida em que se observa uma convergência de projetos que visam atender a esses padrões democráticos e liberais (ibid, p.102).
4. O nexo entre Segurança, Desenvolvimento e Ajuda Humanitária
Analisando as distribuições das políticas de reconstrução implementadas no Timor Leste, é possível observar a convergência de alguns projetos na área da segurança, ajuda humanitária e desenvolvimento (para maiores detalhes observar anexo 3). Mesmo que as operações de manutenção da paz tenham como especialidade o uso da força e tarefas relacionadas à segurança, seu papel no caso estudado perpassa esse campo e vai de encontro aos projetos desenvolvidos pelo CAP, UNDAF e vice-versa.
Por outro lado, ainda que exista essa convergência de atividades e projetos, percebe-se que as operações de manutenção da paz, o CAP e a UNDAF possuem especialidades inerentes a sua essência. Enquanto que o primeiro ator tem como capacidade exclusiva a garantia de liberdades fundamentais, consolidação da paz, o segundo, por sua vez, especializa-se em projetos voltados para a área da saúde e de necessidades básicas, e, por fim, o terceiro ator, está mais focado em tarefas de desenvolvimento liberal e democrático.
Como o Timor Leste até o final da década de 1990 ainda estava sob ocupação indonésia e não tinha nenhuma estrutura política, econômica, social e cultural própria, os esforços nos três campos analisados foram fundamentais para que o país pudesse dar os primeiros passos rumo à democracia e o liberalismo.
Percebe-se também que a presença das operações de manutenção da paz de 1999 até 2008 seguiu o processo de construção de um Estado nos moldes citados na medida em que a UNAMET deu início a consulta popular para averiguar a vontade da sociedade favorável à independência ou integração. Depois do resultado a favor da autonomia, as sucessivas missões da ONU tiveram como objetivo auxiliar o povo timorense na criação de seu novo Estado.
Em relação aos CAPs apresentados, percebe-se que a sua implementação nos anos 1999, 2000, 2002, 2006, 2007 e 2008 seguiu em grande medida os momentos humanitários mais críticos. Nos dois anos iniciais o CAP tinha como objetivo prestar as necessidades básicas a população o mais rápido possível para reconstruir e desenvolver o Timor Leste. Já em 2002, período no qual o Timor Leste alcança de fato a sua independência, os esforços do CAP se concentravam em continuar a prestar assistência humanitária a parcela da população que ainda estava sofrendo algum tipo de privação e, principalmente, ajudar as operações de manutenção da paz no processo de reintegração dos refugiados e deslocados internos a vida social. Em 2006, com as convulsões sociais resultantes das agudas desigualdades, tensões étnicas, o CAP lançou um Flash Appeal como forma de responder imediatamente a crise e ajudar a UNMIT nas suas tarefas. Os CAPs seguintes de 2007 e 2008 seguiram as tendências apresentadas em 2006 e focavam seus esforços na tentativa de ajudar os deslocados internos que sofreram com a referida crise social.
Na UNDAF, percebe-se que apenas um relatório foi criado para os anos de 2003 e 2005. Período que não houve nenhum CAP e que as operações de manutenção da paz no Timor Leste tinham como estratégia fortalecer o as autoridades governamentais timorense na sua nova tarefa de administrar um novo Estado. Nesse sentido as atividades da UNDAF se encaixam em um momento estratégico no qual o desenvolvimento foi introduzido como forma de auxiliar nesse processo e criar as bases necessárias para que o Timor Leste correspondesse aos esforços feitos no campo da segurança e ajuda humanitária.
Para que todas essas atividades apresentadas na figura acima pudessem ser alcançadas, houve a participação de diversos Estados e organizações não governamentais (para maiores detalhes ver anexo 4). Nesse sentido, "a idéia de que, nas operações multidimensionais, ocorreria a divisão de tarefas entre organizações e agências especializadas e que caberia à ONU coordenar a realização das atividades parece se confirmar" (ibid, p.107).
Com base na distribuição das organizações e Estados que participaram do processo de reconstrução do Timor Leste nas áreas de segurança, ajuda humanitária e assistência ao desenvolvimento, os programas e agências especializadas da ONU que se encontram na intercessão entre as três áreas, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o Banco de Desenvolvimento Asiático, que faziam parte do United Nations Country Team, desempenharam um papel de destaque no Timor Leste.
Os programas e agências da ONU acima mencionados já atuavam no Timor Leste desde 1999, assim que a violência pós-referendo se instaurou no país. As demais organizações foram agregadas ao longo dos anos e se mostraram fundamentais para que os projetos desenvolvidos na área de segurança, ajuda humanitária e desenvolvimento fossem possíveis. Por exemplo: o Banco Mundial através do Performance Partnership Plan (programa que agregam diferentes atores para trabalhar em prol de um projeto específico) foi responsável pela reestruturação do setor de saúde no Timor Leste..
Em relação aos países, observa-se que os contribuintes para a composição das missões que atuaram no Timor Leste de 1999 à 2008 se manteve quase que intacta, sofrendo apenas algumas variações a partir de 2006.
Nesse sentido é importante notar que "a convergência das políticas implementadas e a divisão de tarefas entre as organizações apontam para a existência de um nexo entre segurança coletiva, assistência humanitária e assistência ao desenvolvimento no âmago das operações de paz multidimensionais. Tal nexo sugere uma importante transformação institucional que aponta para a consolidação de novas idéias acerca da manutenção da paz e da estabilidade, cada vez mais pautadas pela redefinição de elementos da ordem interna dos Estados em reconstrução, como, por exemplo, a forma de governar, e pelo esforço de adequar esses elementos a padrões aceitos internacionalmente, como as práticas de boa governança" (ibid, p.107).
5. Conclusão
Tendo por base o modelo compreensivo da política internacional fundado na idéia de sociabilidade precária, o estudo procurou demonstrar como a tensão entre ordem e justiça é responsável pelas principais evoluções normativas e institucionais no campo da ação humanitária no pós Guerra Fria.
Para tanto, fez um apanhado teórico da vertente racionalista encontrada na Escola Inglesa de Relações Internacionais, expostas por Hedley Bull, para compreender como dentro da Sociedade de Estados percebe-se que a manutenção da ordem se sobrepõe ao atendimento das demandas por justiça. Partindo dessa concepção, a ONU, enquanto reprodutora da Sociedade de Estados, criou as operações de manutenção da paz como forma de se alcançar a estabilidade no sistema internacional.
Ao longo dos anos, entretanto, essas operações foram passando por um processo de evolução que redefiniu o conceito de ação humanitária. Se anteriormente as missões necessitavam do consentimento dos Estados em litígio para desempenhar suas atividades, no pós Guerra Fria esse princípio não se mostra mais como fator impeditivo para que o Conselho de Segurança estabeleça uma missão de paz em determinada crise.
Ao considerar os conflitos intra-estatais, que começaram a eclodir principalmente a partir da década de 1990 e que apresentam alto grau de degradação política, econômica, social e cultural, uma séria ameaça a paz e estabilidade do sistema internacional, a ONU adota um discurso de proteção aos direitos humanos e dos indivíduos como forma de garantir a ordem e não o atendimento da justiça (entendida como os direitos humanos).
Por mais que a organização tenha passado por um processo, e ainda vem passando, de reforma e aprimoramento institucional, a Carta de 1945 ainda coloca o Estado e todos os seus atributos inerentes (como a soberania) em primeiro plano. Já a Declaração Universal dos Direitos Humanos por mais que tenha sido considerado um marco para a proteção dos indivíduos, só encontra aplicação caso um Estado o faça em relação ao indivíduo. Ou seja: o Estado é o único ator capaz de prover os direitos humanos em sua totalidade aos cidadãos.
Nesse sentido, (i) considerando que a ordem se sobrepõe a justiça, (ii) que as operações de manutenção da paz evoluíram ao longo dos anos e que (iii) a ação humanitária, por conta da conjuntura política contemporânea vem ganhando contornos sem precedentes na história, o estudo procurou entender a transformação das operações de paz a luz de um projeto de construção de Estados liberal-democráticos. Tal dinâmica implica um nexo entre segurança, ajuda humanitária e desenvolvimento, além de um novo significado para a ordem internacional (que não mais se assenta sobre a balança de poder, mas na difusão de Estados liberais-democráticos).
Para tanto, adotou como estudo de caso o Timor Leste no período de 1999 à 2008. No episódio em questão foi possível encontrar a presença tanto das operações de manutenção da paz multidimensionais (também conhecidas como as de terceira geração) como dos novos mecanismos institucionais criados pela ONU para a criação do modelo de Estados acima mencionado.
As resoluções aprovadas pela Assembléia Geral e Conselho de Segurança, os Consolidated Appeal Process e os relatórios da United Nations Development Assistance Framework convergem para a consecução do objetivo de criar um Estado com características liberais e democráticas e que une em sua totalidade um nexo entre segurança, ajuda humanitária e desenvolvimento.
Esse nexo é a principal ferramenta que a ONU vem adotando a partir da década de 1990 como forma de assegurar a paz e a estabilidade e, em segundo plano, atender as demandas por justiça.
Nesse sentido, "propor um nexo entre segurança, assistência humanitária e assistência ao desenvolvimento permite compreender o papel da ONU na reconstrução de Estados como expressão da própria reconfiguração da noção de paz no sistema internacional, e não como idealizadora de métodos e técnicas de combate efetivo às causas de conflitos com dimensões potencialmente internacionais" (Souza 2010, p.140).
Referências Bibliográficas
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ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. As Nações Unidas e Timor Leste: a autodeterminação através da consulta popular. 1ª ed: Nova York: Departamento de Informação Pública das Nações Unidas, 2000. 97p.
SOUZA, Letícia Carvalho de. Segurança, Desenvolvimento e Reconstrução de Estados: o caso da Libéria (2003-2008). 2010. 172 p. Tese (Mestrado em Relações Internacionais) - Instituto de Relações Internacionais da PUC Minas.
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