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Print ISBN 2236-7381

3° Encontro Nacional ABRI 2011 2011

 

Antiamericanismo e política externa: o caso do Brasil sob o paradigma desenvolvimentista

 

 

Seme Taleb Fares

Universidade de Brasília - UnB, História das Relações Internacionais - HRIS. E-mail: seme.fares@gmail.com

 

 


RESUMO

O conceito de antiamericanismo varia tanto em relação a países e regiões como a períodos históricos. O antiamericanismo no Brasil ao longo do paradigma desenvolvimentista (1930-1989) é mais bem explicado pelos próprios princípios da política externa brasileira, quais sejam, busca do desenvolvimento econômico do país, maior grau de autonomia e de inversões de capitais estrangeiros. Ainda que envolva uma variedade de comportamentos, o fator que mais relação e impacto possui para a condução da política externa brasileira se fundamenta mais numa reação de desconfiança dos Estados Unidos (do tipo "me mostre que você está certo") como ameaçadores em potencial dos interesses e da autonomia nacionais e menos uma atitude basicamente preconceituosa (antiamericanismo do tipo mais agudo, em que há uma profunda inclinação a atribuir ações e motivos negativos aos Estados Unidos em qualquer situação, sem se preocupar em analisar as especificidades da ocasião ou dos atores envolvidos, fechado, portanto, a informações positivas sobre as ações norte-americanas). O antiamericanismo do tipo preconceituoso poderia obstaculizar qualquer tipo de aproximação com os Estados Unidos, ainda que essa aproximação significasse vantagens para o Brasil. O antiamericanismo predominante no caso brasileiro, por outro lado, trouxe dividendos para o país justamente por representar uma defesa de seus princípios eleitos como nucleares para a busca do interesse nacional. Para demonstrar isso, este estudo procura cotejar as principais linhas disponibilizadas pela historiografia da política externa brasileira ao longo do paradigma desenvolvimentista frente aos conceitos apresentados acerca do antiamericanismo, indicando, também, que o grande estoque de argumentos antiamericanos presente na sociedade brasileira facilitou a sua institucionalização. Legitimado pela sociedade, o Brasil adotou atitudes antiamericanas como defesa natural de seus interesses.

Palavras-chave: Política Externa Brasileira; Antiamericanismo; Paradigma Desenvolvimentista; Brasil


 

 

1. INTRODUÇÃO

Esta apresentação possui duplo objetivo. O primeiro é analisar o fenômeno do antiamericanismo no Brasil no período que abrange o paradigma desenvolvimentista da política externa. O segundo, as conexões e os possíveis impactos concretos na Política Externa Brasileira (PEB) no que tange ao relacionamento com os Estados Unidos.

De fato, as relações dos Estados Unidos com o Brasil não caberiam em conceitos simples do tipo aliança não-escrita, alinhamento, rivalidade emergente, dependência, relações perigosas, relações triangulares, assimetria ou relações especiais, muito menos antiamericanismo, todos veiculados ora pelo discurso diplomático e político, ora pelo acadêmico.1. Pretende-se demonstrar, contudo, que a tentativa de se conceitualizar o antiamericanismo pode contribuir para entender a complexidade que envolve as relações do Brasil e a grande potência do norte, tanto nos seus aspectos sociais como, principalmente, políticos e econômicos. Para tanto, demonstrar-se-á que o antiamericanismo no caso do Brasil pode ser mais bem explicado pelos próprios princípios da PEB, ao invés de um simples sentimento preconceituoso e difuso na sociedade.

Metodologicamente, há um sério obstáculo em se mensurar o antiamericanismo numa sociedade e avaliar o seu impacto concreto na condução da política externa de um determinado país. Grosso modo, as pesquisas de opinião ou as análises dos conteúdos de discursos são duas das formas mais amplamente utilizadas. Para os propósitos desta apresentação, no entanto, procurar-se-á apenas cotejar as principais linhas da história da PEB frente aos conceitos apresentados acerca do antiamericanismo. Sem embargo, um estudo conclusivo sobre a matéria demandará maior pesquisa histórica, ou seja, algum grau relevante de empiria. Apesar disso, acreditamos que seja possível anteciparmos algumas hipóteses de trabalho e, juntamente, algumas conclusões temporárias.

 

2. DESENVOLVIMENTO

2.1. Conceitualização de antiamericanismos.

Como ocorre com os demais conceitos históricos, o antiamericanismo varia ao longo do tempo. Existem tantas variações entre países e regiões que o mais correto é se referir a antiamericanismos (no plural) ao invés de antiamericanismo (no singular).

O termo antiamericanismo abrange uma variedade de comportamentos. Dito de outra forma, o fenômeno do antiamericanismo não pode ser explicado de maneira única, homogênea. Varia, portanto, de acordo com o tempo e o país, e até mesmo em relação a grupos e indivíduos, se considerarem diferentes aspectos da sociedade e da política norte-americanos. O antiamericanismo, grosso modo, significa a expressão de atitudes negativas em relação aos Estados Unidos. Contudo, não se trata de uma excepcionalidade norte-americana. Afinal, sentimentos antiimperialistas ou anti determinada nação têm uma longa história. O Império Romano certamente suscitou medo, inveja e inimizade entre aqueles povos sujeitos ou ameaçados pelo seu poder. O antiamericanismo, apesar de ser capaz de conter características únicas, é apenas um exemplo de um fenômeno social mais abrangente e genérico, que pode englobar o "antibrasileirismo", o "antiniponismo", etc.2.

Os Estados Unidos, como é usual ocorrer em qualquer país de grandes dimensões, rica história e variada composição étnica, são uma nação heterogênea. Essa heterogeneidade, ou polivalência, pode ser a própria causa da heterogeneidade do americanismo e de sua antítese, o antiamericanismo. Daí a razão de, na maior parte dos casos, os sentimentos em relação aos Estados Unidos serem expressos de forma ambivalente: respeito e ressentimento, ao mesmo tempo, ou seja, admira certos aspectos e rejeita outros. Nisso, é possível, sem haver uma contradição inerente, admirar sua cultura de massa, ciência e tecnologia e deter posições amplamente antiamericanas. Um dos primeiros passos ao analisarmos o conceito é distinguir se o antiamericanismo é baseado "no que os EUA são" (valores fundamentais e atitudes da sociedade norte-americana) ou "no que os EUA fazem" (suas políticas, especialmente a externa).3.

Katzenstein e Keohane4. classificam o antiamericanismo em três categorias: opinião, desconfiança e preconceito. A opinião (opinion) representa a forma mais branda de antiamericanismo e acompanha a evolução dos fatos independente de sua origem serem os Estados Unidos ou o povo norte-americano, um julgamento, portanto, sem qualquer tipo de predisposição, e aberto a novas informações. A desconfiança (distrust) significa oposição ou falta de apoio aos Estados Unidos, uma predisposição para o ceticismo ("me mostre que você está certo" ou "me mostre que você se comportará bem aqui"). O preconceito (bias), por fim, indica uma profunda inclinação a atribuir ações e motivos negativos aos Estados Unidos em qualquer situação (ou na maior parte de situações), sem se preocupar em analisar as especificidades da ocasião ou dos atores envolvidos. Tanto a desconfiança como o preconceito tendem a subestimar as informações potencialmente favoráveis e fazer das informações negativas em relação aos Estados Unidos mais salientes, ficando o preconceito com um grau de abertura a novas informações bastante mais reduzido. O papel do antiamericanismo , portanto, na maior parte das vezes, não fica restrito apenas a uma simples oposição a determinado movimento ou proposta dos Estados Unidos (opinião), mas principalmente numa predisposição fortemente negativa para os EUA, mesmo diante de atitudes claramente positivas de sua política externa (desconfiança e preconceito).

Além disso, é possível identificar diferentes graus de antiamericanismo (que num continuum vai desde americanófilo até antiamericanismo radical). Nesse sentido, o antiamericanismo liberal critica o lado hipócrita da política externa norte-americana, de não seguirem, eles próprios, os ideais liberais. Nisso incluem o apoio a ditaduras (em que a história da América Latina é rica de exemplos), a proteção ao comércio internacional de sua agricultura, a procura pela proteção extensiva de suas patentes farmacêuticas, etc. Esse é um dos pontos que afetam bastante o Brasil e pode suscitar posturas antiamericanas de fato inclusive naquelas figuras tidas como americanófilas (isto é, defesa de fiel e estreita relação com os Estados Unidos). Em segundo lugar, o antiamericanismo social representa o conflito de visões e valores, o ressentimento da ideia política guiada pelo mercado pura e simplesmente, da injustiça de políticas que privilegiam os ricos em detrimento dos menos favorecidos, da manutenção da pena de morte, da preferência por ações unilaterais no cenário internacional, da desobediência a tratados e organizações internacionais. O antiamericanismo nacionalista-soberano, por seu turno, tem o seu foco no poder político, em especial nos valores de não perder o grau de soberania do país e de proteger os valores da identidade e cultura nacionais. Por fim, o antiamericanismo em seu formato radical sustenta que a identidade política e econômica dos Estados Unidos assegura que suas ações serão necessariamente prejudiciais aos bons valores, práticas e instituições do resto do mundo ou de um determinado país ou região apenas. O variante radical prega, portanto, a necessidade de transformar o mundo, ou pelo menos a sociedade e a política norte-americanas. Isso não significa, necessariamente, o recurso à violência, mas é nesse grupo que incluem os defensores da destruição da sociedade norte-americana, por considerá-la incorrigível na sua essência.

É importante salientar que, no geral, é possível afirmar que o antiamericanismo no Brasil é mais bem explicado pelos próprios princípios da PEB do que de um sentimento basicamente preconceituoso (bias). Desse modo, existiu mais uma desconfiança (distrust) dos Estados Unidos como ameaçadores em potencial dos interesses e da autonomia nacionais que simples opinião (isenta) e preconceito (absolutamente fechado a informações positivas sobre as ações dos Estados Unidos).

Com efeito, concorrem para o antiamericanismo brasileiro outros fatores que não apenas aqueles ligados aos ditames de sua política externa. Nesse aspecto, motivos de ordem econômica e política misturam-se a críticas ao apoio norte-americano às ditaduras, sua ação indireta por meio de organismos internacionais que controlam, sua cultura, seus valores. Contudo, o argumento principal traçado neste estudo é que o fator que mais relação e impacto possui para a condução da PEB se fundamenta justamente em uma reação de desconfiança gerada pelos Estados Unidos de séria ameaça a seus valores mais caros.5

2.2. O antiamericanismo brasileiro durante o paradigma desenvolvimentista.

O paradigma desenvolvimentista da política externa brasileira (1930-1989) tinha na autonomia de atuação um de seus principais pilares. A consciência a respeito do subdesenvolvimento econômico do país demandava a liberdade de ação de sua política externa como um instrumento necessário para a promoção de sua prosperidade. O desenvolvimentismo pressupunha crescente grau de autonomia das políticas exteriores, entendida esta autonomia como conformação das decisões externas, em primeiro lugar, à percepção de interesses próprios. A dizer isso, sem autonomia decisória não haveria projeto nacional. Tanto que o modelo autonomista de desenvolvimento latino-americano confrontava, com freqüência, com a hegemonia dominadora da economia norte-americana, de restringir a margem de manobra das economias desses países a uma lógica em que os principais ganhos eram ditados pela grande potência do norte.6

Desse modo, para obter os melhores resultados possíveis, de forma eficiente, era indispensável liberdade (mesmo que relativa) de ação, ou então, autonomia política no que se refere aos movimentos do país no sistema internacional. Soberania com autonomia decisória vinculados ao projeto de desenvolvimento-industrialização foram ideias-força de todo o paradigma desenvolvimentista, alcançando sua definição conceitual mais elaborada a partir dos anos 1960. Essa visão paradigmática da política externa brasileira encontrou grande respaldo tanto nos meios decisórios quanto na opinião pública brasileiras, acima de partidos e regimes políticos, por ser considerada como tendo uma percepção correta dos interesses nacionais. Tal legitimidade, representada por um verdadeiro consenso (dos seus pontos principais, ao menos) é o que dificultaria a ruptura do paradigma e o levaria a perdurar até 1989. O fim dessa política, em suma, tinha forte apelo popular: o desenvolvimento (econômico e social) do Brasil.7

Nesse sentido, a partir de 1935, o contexto de guerra internacional modificou o sistema de competição das potências na América Latina, a favor do incremento da autonomia da política externa desses países. O cenário internacional, portanto, contribuía para a implementação das principais diretrizes do desenvolvimentismo, tendo a política externa, autônoma, como meio supletivo do grande projeto de desenvolvimento econômico do Brasil. É nesse contexto que se inserem as iniciativas de comércio compensado com a Alemanha e a Itália, como meio alternativo de relançar e fortalecer as trocas comerciais do país. O motor dessas ações era alcançar os maiores ganhos possíveis nos relacionamentos internacionais do país, de forma pragmática.

Outra característica do desenvolvimentismo brasileiro é de que sua política de comércio exterior era baseada na oportunidade e no pragmatismo. Ao mesmo tempo, havia a percepção na diplomacia brasileira de que tanto a América Latina, no geral, como o Brasil, no particular, eram objeto de interesse das potências, em especial dos Estados Unidos. O desenvolvimentismo, por outro lado, sintetizava a ideia de que a industrialização resolveria todos os principais problemas do país - renda para as massas urbanas, meios para as forças armadas. A industrialização representava o objetivo-síntese da política externa.

A busca por maior autonomia, naturalmente, criava rivalidades no relacionamento Brasil-EUA e, apesar de não representar o tipo mais agudo (preconceito), tratava-se, ainda assim, de antiamericanismo (desconfiança). Para muitos analistas e políticos, esse não seria o caso, como o chanceler Azeredo da Silveira, in verbis:

No passado, a balança das relações políticas entre os dois países [Estados Unidos e Brasil] tendia a apresentar desequilíbrios em detrimento do Brasil. É natural que numa fase de reequilíbrio sejam mais necessários os reasseguramentos de independência e de igualdade. Isso os Estados Unidos da América precisam entender que não representa, necessariamente, como frequentemente supõem, uma atitude "antiamericana".8

O paradigma desenvolvimentista agregava componentes teóricos tais como: percepção de interesses que alimentariam o processo decisório, negociação de ganhos recíprocos nas relações internacionais, determinação de superar desigualdades entre as nações, visão cooperativa e não confrontacionista. As relações entre o Brasil e os Estados Unidos não foram, ao longo desses anos (assim como nos demais, no geral), tranqüilas e, em parte, podem ser explicadas com base na desconfiança do Brasil das intenções dos Estados Unidos.9

De certo modo, é verdadeiro dizer que, durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), os órgãos de repressão percebiam qualquer crítica aos EUA como propaganda em favor da União Soviética e do comunismo. Contudo, havia, em paralelo, a institucionalização do antiamericanismo, ou seja, adoção de práticas críticas aos Estados Unidos também pelo próprio governo militar. A administração de Ernesto Geisel (principalmente após 1977) tomou grande distância com relação aos Estados Unidos. O que explicaria isso, afinal? Provavelmente o fato de que o antiamericanismo institucionalizado e levado aos meios de ação do Estado brasileiro era baseado, em grande parte, na percepção de que estavam sendo atingidos os valores-base do paradigma desenvolvimentista (e, portanto, da política externa brasileira), por meio de uma política de dominação desenfreada e sem reciprocidade que os Estados Unidos implantavam tanto no Brasil como na América Latina de forma indistinta.10

Mas esse sistema ideacional tem suas raízes muito tempo antes do surgimento do paradigma desenvolvimentista no Brasil e que, por conseqüência, contribuiu para avolumar um expressivo estoque de antiamericanismo no país. O lema "a América para os americanos", proposto pelo presidente James Monroe em 1823, reiterava a neutralidade dos EUA em questões que envolviam as nações européias para, em seguida, declarar qualquer intromissão no continente americano como um passo perigoso para sua paz e segurança. Aos Estados Unidos cabia todo um continente para seu exercício de poder. Enfim, não precisavam atravessar os mares para estender seu império. Mais tarde, à doutrina Monroe seria acrescentado o corolário de Theodore Roosevelt, o "big stick" - exercício do poder internacional de polícia com o intuito de impedir a intrusão de outra potência em sua esfera de influência, se necessário com o uso da força. O processo de enriquecimento material do país exacerbou o seu expansionismo e a sua belicosidade, amplificado por uma tendência ao messianismo nacional, da ideia de povo eleito, resumido no conceito de destino manifesto. Décadas depois, durante a Guerra Fria, a América Latina continuava sendo tratada de forma semelhante, por meio da doutrina da reserva estratégica na zona de influência global dos Estados Unidos frente à União Soviética.

Nesse contexto, ainda na primeira metade do século XIX, as atenções norte-americanas se voltaram para o Amazonas, seja pela abertura à navegação, seja pela colonização direta de seu território, por meio da transplantação de parte de sua população negra e, consequentemente, constituir a República Amazônica. A desconfiança do governo brasileiro fazia sentido pelo histórico expansionista dos Estados Unidos nos territórios do México - primeiro ocupar pela população, depois anexar formalmente. Provável que datam dessa época os primeiros esquemas ideacionais de criação e consolidação do antiamericanismo no Brasil. O próprio ministro americano Robert C. Schenk admitia que "a atividade e o espírito aventureiro do povo e do governo dos Estados Unidos somente excita, no Brasil de modo geral, o medo de que o mais pacífico empreendimento possa ocultar algum desígnio mau contra a sua prosperidade e possessões". Outro diplomata norte-americano, Richard Meade, constatou, em 1858, que "nossas ameaças oficiais, ou por outras formas, têm criado preconceitos contra nós na comunidade" brasileira. As expressões "confiança" e "respeito" conviviam, agora, com as de "desconfiança", "ódio", "ressentimento" e "ceticismo" na gramática do relacionamento bilateral entre os dois países.11

As ações norte-americanas, então, eram vistas, primeiro, como motivadas por um interesse egoístico, ambicioso e tendente a prejudicar os interesses brasileiros. Eduardo Prado considerava "deletéria e perniciosa" a influência dos Estados Unidos no Brasil, afirmando que os laços que uniam os dois países não passavam de ficção, com ganhos apenas para um lado (os Estados Unidos) e que, a todo momento, ameaçavam a autonomia e a soberania brasileiras. O fantasma de uma intervenção armada dos Estados Unidos em cidades brasileiras em decorrência de crises políticas (Revolta da Armada, suicídio de Getúlio Vargas, planos de invasão de 1963, golpe militar de 196412) encontra exemplos abundantes no subconsciente coletivo da sociedade e dos homens de Estado brasileiros. No fim, isso não ocorreu, mas as interferências concretas no processo político brasileiro (redemocratização de 1944, participação ativa da embaixada dos Estados Unidos nos acontecimentos que culminaram no golpe de 1964) foram frequentes.

Essas ideias serviriam como matéria-prima para o antiamericanismo no Brasil (ou as causas do ressentimento contra os Estados Unidos13), disseminando-se, ao mesmo tempo, na sociedade e na elite política do país. O estoque de antiamericanismo pode ser, por meio de um mecanismo social e histórico, legado de geração a geração ("legacy anti-americanism"), mantido por memórias do passado, ainda que longínquo. A partir daí, as opiniões da população podem ser institucionalizadas em um período de grande antagonismo pelas elites políticas (ou homens e mulheres de Estado), que então criam uma barreira para relações mais profícuas com os Estados Unidos. A memória coletiva e o legado existente condicionam substancialmente a probabilidade de conflitos futuros.14

O grande estoque de argumentos antiamericanos observado no caso brasileiro15, de certo modo, facilitava a sua institucionalização. Ao longo de quase dois séculos, o antiamericanismo encontrou justificativas históricas robustas no Brasil. Além disso, como coexistiam no país todos os tipos de antiamericanismos, ficava bastante facilitado o recurso a esse tipo de retórica, sem nenhum custo, como ferramenta para benefício político. Os homens de Estado do Brasil tinham, então, poucos incentivos para defender os Estados Unidos, ou mesmo criticar posições ou pronunciamentos antiamericanos.

De modo geral, a política externa brasileira que não defendesse a soberania e o espaço de autonomia do país frente aos Estados Unidos era denominada por grande parte da historiografia e segmentos políticos como entreguista, servil e aduladora. Cabia ao Brasil um espaço isonômico nesse relacionamento, e não apenas caudatário e que não permitisse um avanço econômico e social do país. Mais lógico, portanto, era "procurarmos ser nós mesmos, da mesma forma que eles procuram ser eles mesmos"16. O uso do termo "americanófilo" servia para designar, muitas vezes, como um rótulo e um instrumento deslegitimador das credenciais de oponentes políticos na dinâmica do embate entre grupos domésticos.

O antiamericanismo, com isso, foi institucionalizado com o respaldo e a legitimação da sociedade brasileira. As relações entre o Brasil e os Estados Unidos mereceram atenção especial de todos os governos brasileiros desde Rio Branco pelo menos. Essa parceria chegou a criar certo ciúme nos vizinhos da América do Sul. Com Vargas, o Brasil soube estabelecer essa relação de maneira altiva, soberana e com independência do processo decisório. Muitos outros países, e alguns governos brasileiros, tentaram, mas de forma servil. Posturas de Getúlio Vargas de defesa dos interesses nacionais e da margem de autonomia do país tinham grande receptividade no grande público. Vargas entendeu que as relações entre o Brasil e os Estados Unidos poderiam acelerar a industrialização, por meio de recursos advindos das exportações para o mercado norte-americano, de créditos e de inversões diretas. Nisso se incluem afirmações como "não preciso buscar exemplos nem lições no estrangeiro". Nos acontecimentos que se sucederam ao suicídio de Vargas, as manifestações antiamericanas se exacerbaram. Na própria carta-testamento, o presidente do Brasil denunciava que uma "campanha subterrânea dos grupos internacionais" exercia pressão contra os direitos do trabalhador - elemento fundamental do governo varguista - e, portanto, contra a soberania do País. A reação do povo à notícia da morte do presidente ensejou um quebra-quebra contra estabelecimentos que, pela sua denominação, dessem a mais leve ideia de origem norte-americana, e a embaixada dos Estados Unidos sofreu ataques. Havia um consenso nos meios políticos e na população em geral de que os "grupos internacionais" referidos na carta-testamento e em tantas outras ocasiões se compunham principalmente por norte-americanos e seu governo. A carta de renúncia de Jânio Quadros, de 1961, na mesma linha, desejava "um Brasil para os brasileiros" e que "forças terríveis" haviam se levantado contra o ex-presidente.

O governo Dutra, por outro lado, ficou estigmatizado por uma postura de submissão diante dos Estados Unidos, talvez em razão de uma menor propensão à adoção de atitudes antiamericanas (desconfiança). Nesses anos, o servilismo apenas contribuía para reduzir a margem de autonomia da política externa brasileira, pois tranquilizava o governo de Washington, desobrigando-o de qualquer investimento para comprar lealdade e segurança, na retaguarda. A diplomacia submissa de Eurico Gaspar Dutra aumentava a dominação econômica e ideológica dos Estados Unidos no Brasil e, ao mesmo tempo, diminuía a capacidade de o país barganhar ganhos para o seu projeto desenvolvimentista. A aceitação inerte e automática da hegemonia norte-americana produziu profundas frustrações no meio político brasileiro, por não alcançar recompensas econômicas nem pela cooperação de guerra, nem pelo concurso que prestou à implantação da nova ordem internacional.17

Alguns anos mais tarde, a suspensão do Brasil de negociações com o FMI (Fundo Monetário Internacional, 1959) pelo governo Kubitschek foi amplamente aplaudida pela população. Na campanha presidencial de 1960, os dois candidatos, Jânio Quadros e General Henrique Lott, adotaram um discurso nacionalista, tomando o sentido de contestação aos Estados Unidos. Do mesmo modo, a mídia exaltava atitudes independentes do Brasil em relação aos Estados Unidos.

Na América Latina, os anos seguintes foram marcados pelo recrudescimento do grau de antiamericanismo, como reação à subserviência e à vassalagem. Como se não bastasse, misturava ao caldeirão de argumentos antiamericanos os ideais comunistas. A lógica pró-soviética, durante a Guerra Fria, gerava incentivos adicionais ao antiamericanismo, e os Estados Unidos representavam basicamente tudo aquilo que era negativo e que se deveria lutar contra: imperialista, capitalista, uma sociedade orientada apenas ao lucro. Durante a década de 1950, a luta contra o comunismo ascendeu ao tema primordial da agenda bilateral Estados Unidos-Brasil. Episódios como o da Baía dos Porcos de 1961, com o apoio norte-americano, contribuíram para a consolidação do antiamericanismo na região. A confusão de um tema com o outro levava muitas vezes, de forma errônea, a tratar uma posição antiamericana (com base apenas na desconfiança e na defesa dos princípios da política externa brasileira) como um "perigo comunista".18

O que diferencia um grau latente para um ativo de antiamericanismo é o medo das ações dos Estados Unidos prejudicarem interesses de seu país. Quando a percepção de medo do ambiente aumenta, a dimensão antiamericana se torna mais proeminente. Do contrário, quando o ambiente analisado não produz sinais de ameaça, o nível e os ânimos antiamericanos diminuem. Por isso é que o grau de antiamericanismo oscilou ao longo do período do paradigma desenvolvimentista da PEB, não existindo uma linha ascendente no longo prazo; existiram "ondas" de antiamericanismo, portanto, que recorriam aos estoques existentes na história acionados por eventos novos.19

No decurso desse período, os interesses capitalistas internacionais eram quase que totalmente confundidos com os interesses eminentemente norte-americanos. Ora, e os interesses capitalistas europeus, japoneses, enfim, de outras partes do mundo, não atuavam? É evidente que a presença norte-americana era preponderante, mas não absoluta. A percepção da população e da classe dirigente, apesar disso, não refletia essa equação.

No que concerne à análise do antiamericanismo no Brasil ao longo da política externa desenvolvimentista, portanto, talvez os principais conceitos explicativos residam na busca do desenvolvimento econômico e de um maior grau de autonomia para se atingir esse objetivo. O conceito de antiamericanismo conjugava-se com a noção de dominação e despojo dos interesses nacionais. Nesse período, avanços dos interesses norte-americanos eram percebidos como o outro lado da mesma moeda da drenagem dos recursos nacionais, que por meio de remessas de lucros, juros, royalties e dividendos, causavam um déficit estrutural do balanço de pagamentos e eram considerados a principal causa da inflação. Em outros termos, a simples presença dos Estados Unidos no Brasil atingia aquilo que havia de mais caro entre os objetivos da política externa brasileira: desenvolvimento econômico e autonomia política. Natural, portanto, uma reação de desconfiança contra os Estados Unidos, tanto por parte da diplomacia como do grande público brasileiros.

O mesmo tipo de antiamericanismo não foi observado em todos os países latino-americanos durante o período desenvolvimentista. Na Argentina, por exemplo, elementos do neutralismo, da terceira via, dos não-alinhados, do cultivo de ambições desmesuradas (desequilíbrio entre fins e meios da política externa) e da "empáfia política" (nações que não têm substância real e pretendem, apesar disso, exercer um papel acima de seus meios) geraram o substrato para uma postura fortemente antiamericana. A condução da política externa brasileira, como dito acima, buscava espaços de autonomia frente aos Estados Unidos. Com a Argentina isso também ocorria, só que de forma mais saliente e aguda. Por isso, os impactos do antiamericanismo na Argentina podem ser considerados significativos, acentuando em períodos específicos de sua história, e a explicação talvez esteja em seu grau mais elevado, com forte viés preconceituoso.

Por fim, e ao que parece, as conseqüências concretas do antiamericanismo na política externa brasileira, apesar de reais, provavelmente não chegaram a prejudicar o aspecto geral do relacionamento bilateral Brasil-Estados Unidos. Nesse sentido, a desconfiança política gerada pelo antiamericanismo não contaminou as relações econômico-comerciais entre os dois países, apesar da enorme quantidade retórica de seu uso pelos diferentes representantes da diplomacia e da presidência do Brasil. É verdade que, sem o componente antiamericano, a política externa brasileira poderia ter aprofundado, em especial na agenda política, o seu relacionamento com os Estados Unidos, mas às custas da abdicação de alguns dos princípios nucleares de sua conformação. Mesmo governos considerados alinhados automáticos (Dutra, Castello Branco) como aqueles que buscavam uma política externa mais independente continham elementos de antiamericanismo em sua conformação mental, ainda que os do primeiro grupo com graus menos acentuados. De acordo com a historiografia, o maior sucesso em política externa veio com a busca de uma maior autonomia, de forma pragmática e, consequentemente, com atitudes mais e mais antiamericanas no sentido de desconfiança, sem um predomínio daquele de tipo preconceituoso, que obstaculizaria qualquer tipo de aproximação, ainda que pudesse significar vantagens para o país. Em suma, o antiamericanismo (desconfiança) trouxe, grosso modo, dividendos para a política externa do Brasil.

 

3. CONCLUSÃO

As relações do Brasil com os Estados Unidos, tomando como parâmetro apenas o período desenvolvimentista, foram bastante complexas, ricas em detalhes e sofreram fortes oscilações, tanto que não poderiam ser abarcadas por análises que pretendessem reduzi-las a uma ou outra categoria conceitual. O antiamericanismo, da mesma forma, não seria capaz de cumprir esse papel isoladamente.

No entanto, como buscamos demonstrar, a utilização das diferentes categorias de antiamericanismo (opinião, desconfiança e preconceito) podem esclarecer certas reações e movimentos da diplomacia brasileira no que tange ao relacionamento com os Estados Unidos. Dessa forma, uma das possíveis conexões entre antiamericanismo e política externa pode estar assentada nos próprios princípios estabelecidos para a inserção internacional de um determinado país. Nisso, o paradigma desenvolvimentista (e que, em tese pode ser estendido aos outros paradigmas) e suas principais características, quais sejam, busca do desenvolvimento econômico do país, maior grau de autonomia e de inversões de capitais estrangeiros, explicam as ações antiamericanas observadas na PEB. Ao lado disso, o elevado estoque de antiamericanismo, baseado em uma longa tradição histórica, facilitou a sua institucionalização ou adoção de suas práticas pelo Estado. Em outros termos, a própria sociedade brasileira respaldou e legitimou atitudes antiamericanas como defesa natural dos seus interesses.

 

BIBLIOGRAFIA

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1. CERVO, Amado Luiz. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 220.
2. KATZENSTEIN, Peter. J. e KEOHANE, Robert. O. Anti-Americanisms in World Politics. Nova York: Cornell Paperbacks, 2007. p. 251.
3. KATZENSTEIN, Peter. J. e KEOHANE, Robert. Op. cit. pp. 2, 10, 103.
4. Idem. p. 21.
5. CERVO. Amado Luiz. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 92.
6. CERVO. Amado Luiz. Op. cit. pp. 32, 71. "Embora admirasse os Estados Unidos e houvesse morado lá na juventude, [Azeredo da] Silveira acreditava que o principal papel da diplomacia brasileira era preservar algum grau de 'autonomia' diante do sistema capitalista internacional e do seu principal motor, os Estados Unidos. Caso contrário, os desígnios de Washington poderiam tornar-se o principal obstáculo à emancipação política e econômica do país." In: SPEKTOR, Matias. Kissinger e o Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. p. 12.
7. CERVO, Amado Luiz. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 232. ARINOS, Filho, Afonso. Diplomacia Independente: um legado de Afonso Arinos. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p 12.
8. SILVEIRA, Azeredo da. Apud. SPEKTOR, Matias. Op. cit. pp. 133 e 134.
9. CERVO. Amado Luiz. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 35.
10. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A Presença dos Estados Unidos no Brasil. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2007. p. 11. CERVO. Amado Luiz. Op. cit. p. 105.
11. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Op. cit. pp. 137 e 247. CERVO. Amado Luiz. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 69.
12. Em 1964, por exemplo, uma frota naval norte-americana ficou de prontidão próximo à costa brasileira, caso considerasse necessária uma intervenção armada. In: BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Op. cit. p. 634.
13. CERVO. Amado Luiz. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 29.
14. KATZENSTEIN, Peter. J. e KEOHANE, Robert. O. Op. cit. pp. 21, 37, 129.
15. O que é observado no caso da França, também. A esse respeito, ver: MEUNIER, Sophie. The Distinctiveness of French Anti-Americanism. In: KATZENSTEIN, Peter. J. e KEOHANE, Robert. O. Op. cit.
16. Tristão de Ataíde. Apud. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz.  Op. cit. p. 299.
17. CERVO. Amado Luiz. Relações Internacionais da América Latina: velhos e novos paradigmas. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. p. 82. CERVO, Amado Luiz. Inserção Internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 45.
18. ARINOS, Filho, Afonso. Op. cit. pp. 17, 71. Para Afonso Arinos, durante a Guerra Fria, época em que imperava o maniqueísmo, impunha-se a cooperação com os Estados Unidos, líder e defensor do bloco ocidental, mas, nessa colaboração, a solidariedade continental precisava ajustar-se aos interesses nacionais, sendo que essa colaboração estreita deveria se dar sem nenhuma forma de automatismo.
19. KATZENSTEIN, Peter. J. e KEOHANE, Robert. O. Op. cit. p. 75.